Você está na página 1de 3

O Tradutor, de Daoud Hari

Tenho estudado livros sobre cultura árabe, tendo como horizonte as Mil e Uma Noites, a partir da
tentativa de abordar alguns problemas. Entender a cultura, por exemplo, é um grande problema.
Entender A Odisseia como essencial para cultura do ocidente justapõe-se a colocar As Mil e Uma
Noites para entender o pensamento árabe.
A primeira grande diferença que se aponta, me parece, é o tipo de concepção de tempo e história. O
ocidente viu o tempo como um trajeto, uma missão, algo que do início ao fim precisa ser superado.
Superar o tempo até aboli-lo. É o caminho do trajeto cristão, por sinal: uma via crucis até a ascensão
aos céus. O tempo das Mil e Uma Noites, é um tempo elíptico, em espiral, em que um eixo se
desloca sempre para o lado em desdobramentos dele, de modo que se perca o centro, embora haja, a
todo instante a fundação de outros centros que, fatalmente, se deslocam para as margens da espiral
que continuam a circular no movimento que pode desdobrar-se ao infinito.
O Tradutor, então, é um livro sobre guerra. Mas será? Parece, a mim, um livro sobre tempos. A
guerra se for a partir de regras específicas, tratados de guerra e pactos de guerras, em que dois lados
concordam em guerrear sob um teto de disputas. O que se vê no Sudão de Daoud é, ao contrário,
uma série de tempos se sobrepondo, todos a partir da imposição violenta de forças, externas e
internas.
Creio que para a produção da peça, o livro não tem utilidade direta, mas indireta: nos mostra como
se formam campos de refugiados e como se dão as fugas dos vilarejos e cidades atacadas. Mostra
como são os trabalhos dos jornalistas que buscam cobrir estas áreas e como isto envolve a relação
com governo, grupos rebeldes e apoio de pessoas locais que, de alguma forma, receberam uma
educação formal “ocidentalizada” (no mau e no bom sentido). Mostra também a violência das
prisões e do envolvimento de jovens e crianças em milícias armadas, todas financiadas por
governos de todos os lados. Mas mostra, principalmente, um mecanismo de forças que não pode se
dissolver: a concepção de país ocidental, não se encaixa no pensamento deles e, ao tentar impor
isto, na forma de colônia, temos um esfacelamento da cultura sem que se consiga implantar uma
outra: o resultado é uma sociedade fragmentária que, de alguma forma, vê no outro igual a si um
inimigo, enquanto que o inimigo externo, mesmo que visto como vilão, não consegue virar um
amigo em comum. O pensamento de pequenas comunidades não será quebrado de um dia pro outro
e, assim, é mais fácil um alvo visível e conhecido do que uma força da qual apenas se vê o
semblante em cada corpo que cai. Para finalizar, apenas um trecho em que Daoud deixa clara a
relação entre o corpo e um sentimento de origem de tudo:
O corpo responde àquilo tudo. Os cheiros e os sons, o movimento dos soldados e veículos, tudo é
captado pelos sentidos mais apurados que afloram em tempos difíceis.
Frases:
Este canto do mundo, o nosso mundo, passava por profundas mudanças a cada dia, sendo
consumido pelas chamadas da crueldade. Queria despertas deste tormento. Imagine se tudo o que
rege o seu país, leis, princípios, de repente deixasse de existir e toda a sua família – cada parente –
passasse a correr perigo. Foi mais ou menos o que aconteceu.

Logo depois da morte, é bom lembrar de cada pessoa que partiu, porque, terminado o luto, qualquer
coisa que possa lembrá-la, uma foto, por exemplo, será removida: as roupas são doadas para os
habitantes de um vilarejo distante. Passado é passado. E não poderia ser diferente num lugar onde
há tantas mortes e nenhum médico.

É uma grosseria da parte de um homem, cuja missão é ser forte, mostrar-se seriamente ferido às
mulheres ou crianças.

Mais do que operar um milagre, bom é ser o próprio milagre. Como parar de ajudar? Contudo, nem
sempre éramos o milagre providencial.

Um governo só é verdadeiramente democrático quando reflete a alma de seu povo.

Daqui a alguns dias, tempestades de areia varrerão aquelas cinzas e quem um dia saberá que a gente
amável viveu ali e que aquela montanha lá coberta pela luz da lua, fresca e silenciosa, é chamada de
Vilarejo de Deus e que abriga todas as nossas esperanças em relação ao nosso povo?

Enquanto o governo continuasse a invadir vilarejos e expulsar as pessoas de sua terra, sempre
haveria grupos de rebeldes. Assim como esses grupos rebeldes que agora matavam seu próprio
povo, ele perdera o seu propósito original e tinha se esquecido de sua gente. Hoje pensava só em si
mesmo.

Tudo na África é muito complicado. Nada é simples. Ninguém é simples. A pobreza contempla
generosamente acada homem com um passado rico em experiências.

É engraçado coo alguém que planeja matar uma pessoa ainda se dá o trabalho de gritar com ela ou
até mesmo de torturá-la. Que lições tira quem está prestes a morrer? Que desperdício de energia!
Quando fiz minha primeira incursão em Darfur com os jornalistas africanos, alguém me perguntou
porque eu estava correndo tanto risco. Então respondi, sem querer fazer drama, que eu não estava
em segurança porque meu povo não estava em segurança – e como estar seguro, se o seu povo não
está seguro? Talvez, todo o mundo faça parte do mesmo povo.

Você também pode gostar