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Sinbad – A lenda dos sete mares (2003)

A animação da DreamWorks, Sinbad – A lenda dos sete mares é, como toda adaptação de um
clássico para uma obra semi-infantil, ou seja, de entretenimento para o cinema, um exemplo da
força de uma história. Aliás, creio que mais do que um exemplo, Sinbad é um sintoma de que este
formato de história, das lendas clássicas orais transpostas para a escrita e, aos poucos, tornadas em
contos populares, é, talvez, marca daquilo que, neste momento, procuramos nelas.
Elas sobrevivem porque são ao mesmo tempo móveis e eternas. Sua opacidade, sua transparência,
sua capacidade de metamorfose é que fazem delas não só parte integrante do arcabouço das
histórias de diversas culturas, como parte integrante do conteúdo, muitas vezes, moral (o que pode
não ser bom) e educativo (que é sempre bom) de uma sociedade. Elas contam a própria a sociedade
enquanto se contam. Assim, elas podem ser, ao mesmo tempo, Disney e lenda árabe: o Sinbad que
está nas Mil e Uma Noites, o Sinbad que NÃO está nas Mil e Uma Noites e uma história que muitos
sequer vão saber que um dia foi parte de uma obra como as Mil e Uma Noites.
Como dizer isto de outra forma? A história de Sinbad tem sete mares. A adaptação não precisa ter.
Tal como nas Mil e Uma Noites – um número que não significa que as noites sejam mil e uma – os
sete mares não precisam ser sete. Trata-se de um número vazio, que significa muitos mares ou
muitas aventuras, adversidades. Voltamos aos números. E a Borges. No entanto, há monstros a se
vencer, há uma disputa entre bem e mal (ou bens e maus)e há escolhas diante de si. Há, e falo agora
do filme, a formação de uma figura: o Sinbad, a ver se nas Mil e Uma Noites será assim também.
É? Da adaptação interessam algumas coisas, listo elas para tentar me entender melhor:

1- Existe um trajeto simples que se repete. Estar diante do mar e aparecer algo inesperado: um
monstro marinho, uma geleira que congela o barco, um pássaro gigante. Esta formação cíclica que
se repete, comum no gênero novela, nos oferece, para pensar o teatro, algo como a possibilidade de
síntese: se falamos tanto da ideia de alegoria, podemos abrir mão da série em nome da síntese. Não
que ela seja una, não creio que seja, mas a unidade pode ser múltipla em todas as suas faces. Neste
sentido, digo: imagino um barco – que pode ser qualquer barco, mas pode não ser, sendo, um barco
– em que uma figura de muitos prismas, como um caleidoscópio passe. Na prática, dois três
personagens que se desdobram em um, são espelhos. Neste caso, o mar une estas histórias, elas
giram em torno do mar: o mar, nestas sete aventuras, são a cama de Sheherazade. E vice versa.
Importante pensar que estas histórias, como a de Sinbad, estão na tradição. De certa forma, elas
fazem pares com A Odisséia, de Homero, com os Lusíadas de Camões, e com toda a tradição de
navegação, chegando até em Julio Verne, de certa forma. Além, claro, do Quixote, de maneira torta
e, por isso, mais espetacular. Estes pares podem ser importantes para dar luz a ideias. Manter,
sempre, elas no horizonte.
2- As figuras: no filme, além de Marina, Proteus e Sinbad, me chama atenção os marujos de Sinbad.
Gosto de personagens secundárias. O Rat, espécie de figura selvagem de outras terras (que lembra o
sexta-feira de Robinson Crusoé) e não se coloca diretamente em pé, como se tivesse um corpo feito,
de um lado, pras árvores e de outro, pros barcos. Os limites de seu corpo são potências do corpo a
serem exploradas. Se tudo é meio cérebro, palavra, ele entorta isto. Ele poderia contar melhor que
ninguém esta história. Ela teria essa permissão. E Cale, um ser exótico, grande, diferente dos
demais, sempre sem camisa (algo como um Xerxis musculoso) que ajuda no barco. Seu corpo não
cabe em si, nem em seu barco, mas sustenta tudo. Se Rat é o movimento, Cale é a estabilidade,
ambivalências, sempre, girando em torno de um centro vazio. Estas figuras secundárias, marcas de
força, excentricidade, humor, são essenciais para fazer pontes, unir pontes ou, como estamos
buscando, manter os centros vazios. Ficar atento a elas sempre que aparecerem, elas vão ser
essenciais.
3 – Creio que a pergunta sempre vai passar por uma coisa: E a Sheherazade? Se minha intuição de
começo de estudo estiver correta, é possível duplicar a Sheherazade nas figuras de Sinbad e de
Marina. Os dois tem fascínio para o mar, os dois guardam a potência desta mulher: a que conta
porque viaja e a que sofre porque precisa se prender (para salvar outras). Essa ambivalência que os
dois juntos compõe – Sinbad/Marina fazem uma Sheherazade ainda mais complexa, o que me faz
percebê-la como figura mais plural ainda. Usar duas Sheherazades? Uma que são duas? Perguntas.
4- É uma narrativa de aventura. Apesar de tudo, como pensou Gabi, pode ser uma festa. E possui
ciclos que se repetem, como estações. Imaginar que destes sete mares a história pode ser
dividida em quatro: outono, inverno, primavera e verão. O fragmento clareia o todo, o todo passa a
caber no fragmento.
5- Não ter medo dos diálogos. O filme tem diálogos nível Disney, mas são bonitos até certo ponto.
São claros, objetivos, sem voltas. Uma pressa ao dizer – porque a aventura é a tônica – faz com que
a poesia do diálogo esteja em fazê-lo fazer (e falar), não pensar (e se pensar) como poesia. É direto
por isso comove.

É importante que se diga que esta história não está nas Mil e Uma Noites originalmente. Isto foi
descoberto depois, pelo próprio Galland que organizou, mas ela permaneceu entrando nas
organizações da obra, inclusive em coleções árabes. Não sei se ela está na versão do Mamed, mas
seria bom tê-la, pois é famosa e dá possibilidades. Se não entrar, muitos trechos cabem aqui e acolá.

Diálogos:
1

- Sinbad, obrigado por ter voltado para me salvar.


- Bem...é...Não tem de que.
- Essa vida foi feita para você.
- Ahh... é. Eu não fui feito para a terra firme. E você? É da terra, ou do mar?
- Eu sempre amei o mar... Eu sonhei minha vida inteira com ele. Mas não era pra acontecer.
Tenho responsabilidades em Siracusa.
- E você teve que desistir do seu sonho?
- Foi...
- Sabe... eu viajei todo o mundo. Vi coisas que nenhum outro homem jamais viu. Mas nada...
nada se compara ao alto mar.
- E foi isso que você sempre quis?
- Na verdade, não. Quando garoto, eu e Proteus falávamos em entrar para a Real Guarda Naval e
servir à Siracusa lado a lado. Mas fomos ficando velhos e nossa vidas foram mudando. Ele é um
príncipe, e eu......e eu...bem... Eu nunca tive inveja... sabe? Até que uma manhã um navio chegou no
porto. Um navio com a sua prometida. Era a coisa mais linda que já tinha visto.
- Quem estava no navio?
- Você. Proteus se encontrou com você nas docas. Pulei no primeiro navio que encontrei e nunca
olhei pra trás. Até agora.

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