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A CONTRA-MÃO NA EDUCAÇÃO DE SURDOS: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE

INCLUSÃO NO ENSINO REGULAR.


Laís A . Fernandes Solér1

A educação de surdos tem sofrido mudanças nas últimas três décadas. Segundo Skliar (1998), estas
mudanças decorrem de um novo olhar sobre o sujeito surdo que o reconhece nas interfaces de sua língua, de
sua experiência visual, de sua identidade, de sua cultura e comunidade. Assim, as práticas educacionais
substituem o modelo de pedagogia corretiva/clínica e assumem um discurso e prática bilíngüe - bicultural .
Vários estudos tem sido realizados nesta perspectiva, englobando educação, trabalho, língua,
identidade, etc. Porém, a leitura destes estudos mostra que os mesmos focam suas reflexões em uma
população que poderíamos denominar de “surdo-ideal”. Assim, os estudos apresentam sujeitos que se
caracterizam pelo predomínio da experiência visual, pela comunicação em língua de sinais, pela escrita surda,
pela participação de grupos e comunidades surdas e pela formação de identidade surda. Enfim, um surdo de
cultura surda que não abarca o sujeito que convive com a experiência visual concomitante à experiência
auditiva.
Elegendo a questão educacional como tema de reflexão, volto-me para o aluno com perda auditiva
leve ou moderada que, em um discurso bilíngue-bicultural, não pertence à cultura ouvinte, mas tampouco faz
parte da cultura surda. Não pertence à cultura ouvinte - como a concebe o enfoque bilíngue-bicultural - pois
não tem a fluência de uma oralidade de um ouvinte, pois necessita de apoios visuais para compreender a fala,
etc. Não faz parte da cultura surda pois sua língua, sua identidade e suas experiências de vida são estruturadas
no convívio com a oralidade.
Nesta indefinição de lugares encontra-se o sujeito que, entre outras preocupações, precisa de um
lugar na escola. Uma escola que viabilize propostas educacionais que garantam o seu lugar de aluno,
englobando o acesso, a permanência e o seu desenvolvimento. Mas, que escola é esta?

No relato que aqui será mencionado, o lugar encontrado foi a escola regular, em uma proposta de
um trabalho pedagógico de parceria entre profissionais do ensino fundamental e ensino especial. Calcada nos
pressupostos de uma educação Inclusiva que transponha o aspecto do acesso ao ensino regular, garantindo o
ingresso e a permanência do alunado com deficiência como escolar de sucesso, a busca pedagógica trilhou os
caminhos que pudessem alicerçar o trabalho da sala-de-aula. Assim, entendendo que:

“A Inclusão é [...] propiciar aos professores da classe comum um


suporte técnico; perceber que as crianças podem aprender juntas,
embora tendo objetivos e processos diferentes; levar os professores a
estabelecer formas criativas de atuação com crianças portadoras de

1
. Fonoaudióloga do Programa de Inclusão da Seção de Educação Especial do Município de São Bernardo do
Campo– Mestre em Educação Especial pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
deficiência; propiciar um atendimento integrado ao professor da classe
comum [...]” (MRECH, 1999, p.4).

primou-se por estabelecer um programa educacional que permitisse, conforme Marchesi (1995) preconiza,
garantir um espaço de ensino-aprendizagem efetivo, com um sistema de apoio organizado que vislumbrasse
adaptações atitudinais e metodológicas concomitante à atenção ao aprimoramento da língua oral e na
compreensão da informação que se compartilha em aula.

O relato

Marcos2 iniciou sua escolaridade aos seis anos em uma unidade educação infantil por escolha
familiar. Preocupada com o seguimento escolar do aluno em uma primeira série a equipe escolar o
encaminhou para o serviço de diagnóstico da educação especial . Marcos era uma criança tímida e retraída,
com perda auditiva neurosensorial moderada bilateral que se comunicava por linguagem oral, com boa
inteligibilidade de fala e boa interpretação. Não usava Aparelho de Amplificação Sonora Individual. A
discussão entre família, escola e diagnóstico levou à continuidade na escola regular. Porém, foi recomendado
um acompanhamento de profissionais da educação especial a fim de se garantir um espaço educacional que
pensasse em eliminar as barreiras das dificuldades educacionais provindas do desconhecimento das
especificidades do aluno. Assim, estabeleceu-se uma parceria entre Educação Especial e Ensino Fundamental
com o intuito de refletir sobre uma atuação conjunta em uma classe de primeira série com uma proposta de
alfabetização.
Iniciado o ano letivo da primeira série, os profissionais da Educação Especial (fonoaudióloga e
professor pedagogo com habilitação em deficiência auditiva) foram à escola de Marcos, sistematizando com
a professora do ensino regular momentos de trocas de experiência e observações em classe. O primeiro
momento de troca/observação mostrou a necessidade de duas frentes de atuação: a reorganização do trabalho
no ensino regular e o atendimento em sala-de-recurso. Em relação a reorganização do trabalho no ensino
regular, a linha mestra de pensamento seguiu as recomendações do MEC:

“ Os PCN preconizam a atenção à diversidade da comunidade escolar e


baseiam-se no pressuposto de que a realização das adaptações
curriculares pode atender a necessidades particulares de
aprendizagem” (BRASIL, PCN, 1999, ADAPTAÇÕES CURRICULARES,
p. 23).

Assim, refletindo sobre as adequações curriculares que atendessem as especificidades do aluno,


optou-se pela organização normal do currículo, com algumas adequações atitudinais e metodológicas, já que
Marcos tem um bom nível de linguagem que lhe permite participar das atividades escolares organizadas para o

2
nome fictício
grupo-classe. Estas, foram pensadas frente à concepção de alfabetização sócio-construtivista da escola. O
diálogo entre os profissionais, a leitura e a discussão de planejamentos mostrou que as atividades propostas
apoiavam-se na oralidade. Havia um trabalho grande com pseudo-leitura de parlendas, receitas, contos,
jornais, etc. Assim, as mudanças em sala-de-aula envolveram: reorganização de espaços e lugares (Marcos
ficou mais próximo ao professor); incentivo ao trabalho em duplas e grupos (a fim de proporcionar maior
interação com os colegas, otimizar a comunicação e beneficiar a construção do conhecimento com as reflexões
e trocas entre parceiros); e, adequação de recursos materiais e atividades que utilizassem mais elementos
visuais (na expressão corporal/facial e no uso de gravuras). Já o trabalho em sala-de-recurso (realizado em
período contrário á escola regular, duas vezes por semana) primou em:
• garantir a introdução de atividades que permitissem maior interpretação e memória dos
textos utilizado em sala-de-aula, a fim de estabelecer a pseudo-leitura que alicerça a
construção das hipóteses de escrita. As atividades propostas eram de leitura e conto dos
textos utilizados em aula com diversos materiais e gêneros (fantoches, dramatizações,
vídeos, jogos, etc);
• trabalhar a especificidade da relação grafema-fonema (utilizando-se de pistas auditivas e táteis-
cinestésicas) , necessária a compreensão da leitura/escrita alfabética.

Mencionada a forma de trabalho adotada, foca-se a seguir o processo de alfabetização verificado com
Marcos.
A primeira sondagem de escrita, realizada no início do ano letivo, mostrou que Marcos apresentava
uma escrita silábica sem valor sonoro, segundo FERREIRO & TEBEROSKY (1985). Duas considerações
acerca desta escrita se fazem importantes: a primeira refere-se à pertinência de se apostar em na alfabetização
de marcos no ensino regular, com uma proposta sócio-construtivista alicerçada na psicogênese da língua
escrita, uma vez que a presença de uma produção silábica mostra que ele já percebe que a escrita representa a
fala, mostrando que a experiência auditiva já faz parte de suas reflexões acerca da língua escrita; a segunda diz
respeito às propostas pedagógicas que fomentarão desequilíbrios que propiciem a Marcos indagações e
avanços nas suas hipóteses. FERREIRO & TEBEROSKY (1985) colocam que anteriormente a escrita silábica
a criança elabora um nível de correspondência global, não analisável entre a linguagem e a escrita. Quando ela
percebe que a palavra escrita tem partes diferenciáveis ela passa a enfrentar um novo problema: como esta
divisão ocorre?

“A primeira solução oferecida pelas crianças é uma divisão de palavra


em termos de suas sílabas. Assim, surge a ‘hipótese silábica’. A
importância de aplicar à escrita a divisão das palavras em suas sílabas
componentes é enorme; a partir daqui a escrita está diretamente ligada
aa linguagem enquanto pauta sonora com propriedades específicas,
diferentes do objeto referido” (FERREIRO & TEBEROSKY, 1985, p.
266).
Aqui se insere um aspecto essencial no trabalho com Marcos: o avanço da escrita silábica sem valor
sonoro para a escrita com valor sonoro- que subsidia a construção dos demais níveis de escrita- requer uma
percepção da relação grafema-fonema,. Para tanto, o trabalho específico na sala de recursos com pistas
auditivas e táteis-cinestésicas para facilitar esta percepção foi essencial. Esse trabalho na sala-de-recurso foi
observado pela professora do ensino fundamental, o que permitiu a concretização de percepções de como
facilitar a comunicação com o aluno; melhorar a interferência do professor no cotidiano da sala-de-aula
(usando apoios táteis nas indagações de escrita para a adequação dos grafemas nas elaborações de Marcos); e,
acrescentar no seu planejamento diário a utilização de materiais mais visuais.
Concomitantemente a preocupação de se trabalhar com a relação grafema-fonema, houveram
sistematizações de atividades de leitura e de escrita que visavam proporcionar meios de marcos questionar
suas hipóteses e avanças nas etapas da escrita. Tais atividades foram elaboradas de acordo com a concepção
de FERREIRO & TEBEROSKY (1985) de que:

“a hipótese silábica entrará continuamente em conflito com a hipótese


de quantidade mínima de grafias (ambas são construções originais da
própria criança) tanto como os modelos de escrita propostos pelo
meio (muito particularmente com a escrita do nome próprio). Desta
dupla possibilidade de conflito surgem, de acordo com nossa análise,
as razões da superação da hipótese silábica, já que somente buscando
uma divisão que vá ‘mais além da sílaba’ (isto é, a divisão da sílaba em
sons menores) é possível superar o conflito” (ps. 266/267).

Assim, na sala-de-recurso priorizou-se as atividades que envolviam pseudo-leitura de textos


trabalhados na sala-de-aula com o intuito de garantir a interpretação e memória dos mesmos –essencial para
se ter modelos de escrita do meio que possibilitem os questionamentos do professor para levar a
desequilíbrios e novas elaborações.
No final de maio uma segunda sondagem é realizada, verificando-se a construção de uma escrita
silábico-alfabética. Na sala de recursos o trabalho enfocou a relação entre escrever e comunicar através da
escrita, com o objetivo de se fazer refletir sobre a escrita, pois segundo CÓCCO & HAILER (1996) a
percepção de que a produção escrita realizada pela criança não consegue ser lida pelos outros a faz indagar
suas hipóteses. Ainda, intensificou-se o trabalho com a relação grafema-fonema, a fim de proporcionais meios
para que Marcos tenha suporte para elaborar a escrita alfabética.
No início de agosto se verifica, na avaliação de Marcos, uma escrita alfabética e o trabalho –em
ambos espaços educacionais- direcionou-se para a eficiência da leitura e interpretação de texto. Marcos
mostrou-se bem proficiente ao ler um recado de aviso que no dia seguinte não haveria aula , dizendo que iria
brincar o dia inteiro. Em outubro Marcos passou a usar o Aparelho de Amplificação Sonora Individual. Ao
final do ano, já havia construção de textos, ainda que a escrita apresente algumas trocas de grafemas,
mostrando a importância da continuidade do trabalho de apoio às especificidades do processo ensino-
aprendizagem.
Considerações Finais

A experiência com a inclusão de Marcos no ensino regular foi marcante. Em termos pedagógicos, a
proposta de alfabetização foi alcançada, o que nos afirma a importância de garantir ao aluno com deficiência
auditiva leve ou moderada um lugar na escola regular, com adequações e recursos que permitam seu acesso,
ingresso e permanência com sucesso. Um lugar que possibilite que a criança tenha oportunidade de construir
seu conhecimento com a mediação do outro. Neste relato a proposta de trabalho assegurou este lugar, à
medida que na sala-de-aula e na sala de recurso foram desenvolvidas atividades e realizados questionamentos
que levaram Marcos a desestruturar sua hipótese inicial, observando, organizando, interiorizando e re-
elaborando conceitos. No parecer de FERREIRO & TEBEROSKY (1985) este lugar de mediação é essencial
no processo de ensino-aprendizagem da língua escrita. Ficam as palavras das autoras:

“ A escrita tem uma série de propriedades que podem ser observadas


atuando sobre ela, sem mais intermediários que as capacidades
cognitivas e lingüísticas do sujeito. Mas além disso existem outras
propriedades que não podem ser ‘lidas’ diretamente sobre o objeto,
mas através das ações que os outros realizam com esse objeto. A
mediação social é imprescindível compreender algumas de suas
propriedades” (p.282).

Finalmente, Marcos teve a oportunidade de ocupar também um lugar como sujeito, à medida que,
além de serem estabelecidos relações de amizades e trocas, ele ocupou um lugar de aluno que compartilhou
com os demais colegas a construção de um conhecimento.

Referências Bibliográficas

BRASIL. PCN. Adaptações Curriculares. Secretaria de educação fundamental. Secretaria de Educação


especial. MEC, Brasília, 1999.
CÓCCO, M.F. & HAILER, M.A. A. Didática da alfabetização. Decifrar o mundo: alfabetização e
sócioconstrutivismo. FTD, São Paulo, 1996.

FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Artes Médicas, Porto Alegre, 1985.

MARCHESI,A. A educação da criança surda na escola integradora. In COLL, C.; MARCHESI, A.;
PALÁCIOS, J. Desenvolvimento psicológico e educação. Necessidades educativas especiais e
aprendizagem escolar. Vol 3.Artes Médicas, Porto Alegre, 1995.

MRECH, L. M. O que é educação inclusiva? Educação on line. Educação Inclusiva 2. htm, 10.12.1999.

SKLIAR,C. A surdez-um olhar sobre as diferenças. Editora Mediação. Porto Alegre, 1998.

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