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A educação de surdos tem sofrido mudanças nas últimas três décadas. Segundo Skliar (1998), estas
mudanças decorrem de um novo olhar sobre o sujeito surdo que o reconhece nas interfaces de sua língua, de
sua experiência visual, de sua identidade, de sua cultura e comunidade. Assim, as práticas educacionais
substituem o modelo de pedagogia corretiva/clínica e assumem um discurso e prática bilíngüe - bicultural .
Vários estudos tem sido realizados nesta perspectiva, englobando educação, trabalho, língua,
identidade, etc. Porém, a leitura destes estudos mostra que os mesmos focam suas reflexões em uma
população que poderíamos denominar de “surdo-ideal”. Assim, os estudos apresentam sujeitos que se
caracterizam pelo predomínio da experiência visual, pela comunicação em língua de sinais, pela escrita surda,
pela participação de grupos e comunidades surdas e pela formação de identidade surda. Enfim, um surdo de
cultura surda que não abarca o sujeito que convive com a experiência visual concomitante à experiência
auditiva.
Elegendo a questão educacional como tema de reflexão, volto-me para o aluno com perda auditiva
leve ou moderada que, em um discurso bilíngue-bicultural, não pertence à cultura ouvinte, mas tampouco faz
parte da cultura surda. Não pertence à cultura ouvinte - como a concebe o enfoque bilíngue-bicultural - pois
não tem a fluência de uma oralidade de um ouvinte, pois necessita de apoios visuais para compreender a fala,
etc. Não faz parte da cultura surda pois sua língua, sua identidade e suas experiências de vida são estruturadas
no convívio com a oralidade.
Nesta indefinição de lugares encontra-se o sujeito que, entre outras preocupações, precisa de um
lugar na escola. Uma escola que viabilize propostas educacionais que garantam o seu lugar de aluno,
englobando o acesso, a permanência e o seu desenvolvimento. Mas, que escola é esta?
No relato que aqui será mencionado, o lugar encontrado foi a escola regular, em uma proposta de
um trabalho pedagógico de parceria entre profissionais do ensino fundamental e ensino especial. Calcada nos
pressupostos de uma educação Inclusiva que transponha o aspecto do acesso ao ensino regular, garantindo o
ingresso e a permanência do alunado com deficiência como escolar de sucesso, a busca pedagógica trilhou os
caminhos que pudessem alicerçar o trabalho da sala-de-aula. Assim, entendendo que:
1
. Fonoaudióloga do Programa de Inclusão da Seção de Educação Especial do Município de São Bernardo do
Campo– Mestre em Educação Especial pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
deficiência; propiciar um atendimento integrado ao professor da classe
comum [...]” (MRECH, 1999, p.4).
primou-se por estabelecer um programa educacional que permitisse, conforme Marchesi (1995) preconiza,
garantir um espaço de ensino-aprendizagem efetivo, com um sistema de apoio organizado que vislumbrasse
adaptações atitudinais e metodológicas concomitante à atenção ao aprimoramento da língua oral e na
compreensão da informação que se compartilha em aula.
O relato
Marcos2 iniciou sua escolaridade aos seis anos em uma unidade educação infantil por escolha
familiar. Preocupada com o seguimento escolar do aluno em uma primeira série a equipe escolar o
encaminhou para o serviço de diagnóstico da educação especial . Marcos era uma criança tímida e retraída,
com perda auditiva neurosensorial moderada bilateral que se comunicava por linguagem oral, com boa
inteligibilidade de fala e boa interpretação. Não usava Aparelho de Amplificação Sonora Individual. A
discussão entre família, escola e diagnóstico levou à continuidade na escola regular. Porém, foi recomendado
um acompanhamento de profissionais da educação especial a fim de se garantir um espaço educacional que
pensasse em eliminar as barreiras das dificuldades educacionais provindas do desconhecimento das
especificidades do aluno. Assim, estabeleceu-se uma parceria entre Educação Especial e Ensino Fundamental
com o intuito de refletir sobre uma atuação conjunta em uma classe de primeira série com uma proposta de
alfabetização.
Iniciado o ano letivo da primeira série, os profissionais da Educação Especial (fonoaudióloga e
professor pedagogo com habilitação em deficiência auditiva) foram à escola de Marcos, sistematizando com
a professora do ensino regular momentos de trocas de experiência e observações em classe. O primeiro
momento de troca/observação mostrou a necessidade de duas frentes de atuação: a reorganização do trabalho
no ensino regular e o atendimento em sala-de-recurso. Em relação a reorganização do trabalho no ensino
regular, a linha mestra de pensamento seguiu as recomendações do MEC:
2
nome fictício
grupo-classe. Estas, foram pensadas frente à concepção de alfabetização sócio-construtivista da escola. O
diálogo entre os profissionais, a leitura e a discussão de planejamentos mostrou que as atividades propostas
apoiavam-se na oralidade. Havia um trabalho grande com pseudo-leitura de parlendas, receitas, contos,
jornais, etc. Assim, as mudanças em sala-de-aula envolveram: reorganização de espaços e lugares (Marcos
ficou mais próximo ao professor); incentivo ao trabalho em duplas e grupos (a fim de proporcionar maior
interação com os colegas, otimizar a comunicação e beneficiar a construção do conhecimento com as reflexões
e trocas entre parceiros); e, adequação de recursos materiais e atividades que utilizassem mais elementos
visuais (na expressão corporal/facial e no uso de gravuras). Já o trabalho em sala-de-recurso (realizado em
período contrário á escola regular, duas vezes por semana) primou em:
• garantir a introdução de atividades que permitissem maior interpretação e memória dos
textos utilizado em sala-de-aula, a fim de estabelecer a pseudo-leitura que alicerça a
construção das hipóteses de escrita. As atividades propostas eram de leitura e conto dos
textos utilizados em aula com diversos materiais e gêneros (fantoches, dramatizações,
vídeos, jogos, etc);
• trabalhar a especificidade da relação grafema-fonema (utilizando-se de pistas auditivas e táteis-
cinestésicas) , necessária a compreensão da leitura/escrita alfabética.
Mencionada a forma de trabalho adotada, foca-se a seguir o processo de alfabetização verificado com
Marcos.
A primeira sondagem de escrita, realizada no início do ano letivo, mostrou que Marcos apresentava
uma escrita silábica sem valor sonoro, segundo FERREIRO & TEBEROSKY (1985). Duas considerações
acerca desta escrita se fazem importantes: a primeira refere-se à pertinência de se apostar em na alfabetização
de marcos no ensino regular, com uma proposta sócio-construtivista alicerçada na psicogênese da língua
escrita, uma vez que a presença de uma produção silábica mostra que ele já percebe que a escrita representa a
fala, mostrando que a experiência auditiva já faz parte de suas reflexões acerca da língua escrita; a segunda diz
respeito às propostas pedagógicas que fomentarão desequilíbrios que propiciem a Marcos indagações e
avanços nas suas hipóteses. FERREIRO & TEBEROSKY (1985) colocam que anteriormente a escrita silábica
a criança elabora um nível de correspondência global, não analisável entre a linguagem e a escrita. Quando ela
percebe que a palavra escrita tem partes diferenciáveis ela passa a enfrentar um novo problema: como esta
divisão ocorre?
A experiência com a inclusão de Marcos no ensino regular foi marcante. Em termos pedagógicos, a
proposta de alfabetização foi alcançada, o que nos afirma a importância de garantir ao aluno com deficiência
auditiva leve ou moderada um lugar na escola regular, com adequações e recursos que permitam seu acesso,
ingresso e permanência com sucesso. Um lugar que possibilite que a criança tenha oportunidade de construir
seu conhecimento com a mediação do outro. Neste relato a proposta de trabalho assegurou este lugar, à
medida que na sala-de-aula e na sala de recurso foram desenvolvidas atividades e realizados questionamentos
que levaram Marcos a desestruturar sua hipótese inicial, observando, organizando, interiorizando e re-
elaborando conceitos. No parecer de FERREIRO & TEBEROSKY (1985) este lugar de mediação é essencial
no processo de ensino-aprendizagem da língua escrita. Ficam as palavras das autoras:
Finalmente, Marcos teve a oportunidade de ocupar também um lugar como sujeito, à medida que,
além de serem estabelecidos relações de amizades e trocas, ele ocupou um lugar de aluno que compartilhou
com os demais colegas a construção de um conhecimento.
Referências Bibliográficas
FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Artes Médicas, Porto Alegre, 1985.
MARCHESI,A. A educação da criança surda na escola integradora. In COLL, C.; MARCHESI, A.;
PALÁCIOS, J. Desenvolvimento psicológico e educação. Necessidades educativas especiais e
aprendizagem escolar. Vol 3.Artes Médicas, Porto Alegre, 1995.
MRECH, L. M. O que é educação inclusiva? Educação on line. Educação Inclusiva 2. htm, 10.12.1999.
SKLIAR,C. A surdez-um olhar sobre as diferenças. Editora Mediação. Porto Alegre, 1998.