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Gesto Na Sonata Per Pianoforte 2001 de B PDF
Gesto Na Sonata Per Pianoforte 2001 de B PDF
Valéria Bonafé
Universidade de São Paulo – valmcb@uol.com.br
Resumo: Apesar de ser sua peça para piano solo de maior fôlego, a Sonata per pianoforte de Berio,
composta em 2001, parece ainda não ter alcançado tanta notoriedade quanto a Sequenza IV. Um olhar
mais aprofundado sobre a Sonata nos permite verificar que a peça condensa diversas estratégias
composicionais características de Berio e se apresenta, assim, como uma espécie de relicário da escrita
desse compositor. Nesse artigo, nos restringiremos ao comentário da noção de gesto na Sonata.
Abstract: Despite being his solo piano work of greatest scope, Berio's Sonata per pianoforte, composed
in 2001, doesn't seem to have achieved as much notoriety as the his Sequenza IV. A closer look at the
Sonata allows us to verify that the piece brings together several of Berios's characteristic compositional
strategies and thus presents itself as a sort of a reliquary of his musical resources. In this article we will
focus on the notion of gesture in the Sonata.
“Esta é uma música onde gesto é mais importante que altura e harmonia. […] Esta
observação confirma que a categoria formal central que governa os trabalhos vocais
e teatrais de Berio: gesto, é também uma chave para entender sua música
instrumental da maturidade” (BRINKMANN, 2005, p. 485, trad. nossa).
mantê-lo como uma estrutura suficientemente aberta, capaz de se remodelar segundo cada
contexto, confere ao gesto um caráter processual. Para Berio é fundamental o estabelecimento
de um processo de construção e desconstrução permanente dos gestos no interior de cada
obra. Compreendido nesses termos, o gesto seria para Berio um elemento essencial para a
constituição de sua poética.
2. Gesto na Sonata
F
ig. 2 – Gesto Z, c.1 a c.3.
XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - Uberlândia - 2011
O gesto Z pode ser descrito como um elemento de repetição que evoca a sensação
de permanência e estabilidade. Em torno dele serão articulados os demais gestos da peça.
Segundo Brinkmann, “sua função é tanto servir como fator unificador e manter a integridade
da peça, quanto formar uma oposição dramática com os eventos que o cercam”
(BRINKMANN, 2005, p. 481, trad. nossa). O gesto Z compartilha certas característica com a
idéia de ostinato. Na definição do The New Grove, ostinato é “um termo usado para se referir
à repetição consecutiva de um padrão musical enquanto outros elementos estão em
transformação” (SCHNAPPER in SADIE, 2001, p. 782, trad. nossa). O ostinato foi um gesto
explorado de diversas maneiras ao longo da história da música, seja como elemento destinado
ao baixo, seja como estrutura rítmica ou harmônica. Entre tantos possíveis exemplos, uma
referência mais próxima à Sonata de Berio parece ser Le Gibet, a segunda peça de Gaspard
de la Nuit, de Ravel, que também se inicia com a lenta repetição de uma nota Sib que se
consolidará como um ostinato durante toda a peça e que, de maneira similar à Sonata, será
submetido à sobreposição de blocos de acordes. Lembrar de referências como essa,
caracterizadas pela presença do ostinato, contribui para o esclarecimento da relação entre
gesto e história proposta por Berio em Du geste et de Piazza Carità (1983). As obras
carregam o gesto do ostinato, e este, por sua vez, carrega em si a memória dessas obras. O
gesto carrega uma história, que se atualiza quando este se faz presente. A partir dessa
perspectiva, é possível dizer que a Sonata, ao fazer uso de um elemento (gesto Z) que
compartilha das características de um gesto tão carregado de sentido como o ostinato, permite
inserir o ouvinte numa dimensão espaço-temporal que se descola do presente, conduzindo o
ouvinte a um espaço mítico, como se flashes da história da música atravessassem sua escuta.
Porém, parece importante questionar o que significa se aproximar de um gesto de ostinato,
típico do repertório tonal numa obra desprovida de qualquer pretensão de revitalização da
tonalidade. O fato é que na Sonata o gesto do ostinato é refeito a partir de um novo
referencial, o referencial do próprio gesto. Isso significa dizer que o gesto Z não se comporta
somente como uma estrutura abstrata de ostinato, onde o evento sonoro é reduzido à uma
mera função, por exemplo, de manutenção da coerência formal da peça. Na Sonata, o gesto Z,
ao se estruturar a partir da reiteração de uma única nota, situada num registro específico, isto
é, um Sib4, coloca em evidência o próprio som e agrega, assim, à sua dimensão de
significação e de sentido formal, o movimento concreto do gesto, seu potencial sonoro. De
maneira crítica, Berio se utiliza de um gesto historicamente catalogado, atualizando-o num
novo contexto. Como resultado, o que se observa no início da Sonata é justamente um
XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - Uberlândia - 2011
conflito entre o gesto Z e os demais gestos que o cercam, fazendo com que o gesto Z oscile
entre os planos de figura e fundo, gerando um movimento de deslocamento constante.
O gesto Z sofre diversas alterações no decorrer da Sonata. No início da peça são
configuradas duas camadas simultâneas: a camada I é estável e tem um material fixo, o gesto
Z; a camada II é mais dinâmica, sendo composta pelos demais gestos, apresentados
paulatinamente. A percepção de duas camadas bem delimitadas no início da peça é reforçada
pelo desencontro rítmico que há entre ambas: enquanto o gesto Z, caracterizado pela repetição
de semínimas, constitui uma primeira camada de pulsação regular, os demais gestos são
introduzidos com certa autonomia, não se submetendo à regularidade de Z e criando uma
segunda camada mais fluida. Porém, em alguns momentos, surgem breves pontos nodais entre
as duas camadas, atingidos pela convergência rítmica entre o gesto Z e os demais gestos,
fazendo com que as camadas entrem, provisoriamente, em “fase”. Um primeiro exemplo
dessa situação pode ser observado em c.6 e c.8, quando o gesto B converge com a pulsação do
gesto Z gerando um ponto nodal entre as camadas I e II. Em c.7 e c.8 um novo ponto nodal é
estabelecido através do encontro rítmico dos gestos A e Z. Um choque um pouco mais
acentuado ocorre no primeiro tempo de c.12 onde, pela primeira vez, o gesto Z tem sua
pulsação interrompida pela introdução inesperada do gesto C que, com dinâmica ff, rompe
com a sonoridade em pianíssimo característica do início da Sonata. Porém, observando com
maior detalhe, nota-se a presença marcante da nota Sib4 como parte de três dos cinco blocos
harmônicos que compõem o gesto C. De certa maneira, o gesto Z se dilui no interior do gesto
C, retomando sua pulsação regular já no segundo tempo do mesmo compasso. A figura abaixo
exemplifica os pontos nodais acima descritos:
Fig. 3 – Pontos nodais entre as camadas I e II: convergência entre o gesto Z e os gestos A, B e C.
3. Conclusão
isto é, claramente distanciados entre si, gerando um discurso inicial fraturado. Após essa
primeira apresentação, o que se percebe é o processo de inter-relação entre os gestos. A peça
passa a ser marcada pela preponderância ora de um, ora de outro, e pelos choques e
modulações entre os diferentes gestos. Nesse artigo caracterizamos o gesto Z e verificamos de
maneira sintética sua atuação na Sonata, passando por algumas de suas interseções com
outros gestos. Uma análise como essa, expandida a todos os gestos, permite observar que o
drama da Sonata reside na capacidade dos gestos iniciais se moldarem mais ou menos
facilmente no desenrolar da peça. Há, portanto, um constante embate entre a definição do
projeto pré-composicional – estruturação de um conjunto de gestos bem definidos – e as
necessidades (ou tendências) processuais e locais. Através da compreensão da atividade
gestual da peça, isto é, da história energética de cada gesto – que inclui a maneira como cada
um deles atua, deforma e é deformado – são demarcados vincos e fissuras na forma. Como
vimos, o próprio seccionamento da Sonata numa estrutura tripartite é, em grande parte,
norteado por relações de presença ou ausência do gesto Z. Um análise mais extensa de todos
os gestos e de suas inter-relações contribui em larga medida para a compreensão da
estruturação da forma musical na Sonata.
Referências
BERIO, Luciano. Du geste et de Piazza Carità. Contrechamps, Paris, n° 1, pp. 41-45, 1983.
BRINKMANN, Reinhold. Luciano Berio's Sonata per pianoforte solo or The disclosures of a
sketch page. In: VIKÁRIUS, Lásló e LAMPERT, Vera (Ed.). Essays in honor of László
Somfai on his 70th Birthday. Oxford: Scarecrow Press, 2005, pp. 481-485.
SCHNAPPER, Laure. Ostinato. In: SADIE, Stanley (Ed.). The New Grove: Dictionary of
music and musicians. Segunda Edição. New York, Oxford University Press, 2001, vol. 18, pp.
782-785.
1
Este artigo integra nossa pesquisa de mestrado realizada com apoio da FAPESP, sob orientação do Prof. Dr.
Marcos Branda Lacerda.
2
Os gestos foram nomeados por ordem de aparição na peça, partindo da letra A. Esse gesto, porém, por
constituir, inicialmente, uma camada independente que assiste a introdução dos demais gestos, foi nomeado Z.
3
Adotamos o sistema americano para indicação do registro onde o Dó central é chamado de Dó4.