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Aliás, o próprio conceito de poder moderador faz parte de uma semântica monárquica,
antiquada, completamente inadequada a uma sociedade democrática, sob pena de
autoritarismo.
Também não é suficiente, diria mesmo legítimo, ver o Tribunal como a encarnar uma
suposta "vanguarda iluminista" (Barroso, conferência no Instituto FHC), sobretudo se,
paradoxalmente, se pretender usar heteronomamente uma moral axiológica (de quem?)
como corretivo, desde fora, da política por meio do direito; mais uma vez, não deve ser
o Tribunal, para recuperar a crítica de Ingeborg Maus, "o superego da sociedade órfã".
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No fundo, isso nada tem que ver com o Iluminismo que, como dizia Kant, é "a saída",
por iniciativa própria, da condição "de menoridade", porque pressupõe uma visão
autoritária de um papel tutelar do Tribunal em face do processo político, por mais que
desse papel se pretenda fazer um uso "moderado" ou "autocontido"; a omissão na
garantia das condições jurídicas de deliberação democrática nada mais é do que
complacência que, como de resto, é apenas a outra face do autoritarismo.
É preciso, sim, ampliar o campo de luta, mas no sentido de se reconhecer que dele já
fazem parte os movimentos sociais. Não cabe, portando, tão somente pretender incluir
os movimentos sociais, mas reconhecer o papel que esses movimentos efetivamente
desempenham e podem desempenhar.
E digo isso não apenas, concorde que seja sim extremamente necessário, para "atestar,
superando falsas neutralidades, de que lado, na sociedade brasileira, está, política e
institucionalmente, o STF" (Ribas), mas também de modo a podermos superar certas
falsas dicotomias, p. ex., a do constitucionalismo visto como algo contrário à
democracia.
Como já tive oportunidade de dizer, rebatendo, já faz um tempo, certas críticas feitas
pelo Min. Gilmar: no Estado Democrático de Direito, não tem o menor sentido
contrapor um Direito institucional com o Direito achado na rua: aquele só se legitima
neste, mediados se forem pelo exercício dos direitos políticos, que, aliás, foram apenas
enunciados no texto da Constituição e, portanto, exigem posteriores desdobramentos.
Esta, a Constituição democrática, na sua abertura ao porvir, deve ser, assim, vista, como
um processo jurídico e político de aprendizagem social de longo prazo, com o Direito e
com a Política, em que o Estado Democrático de Direito possa se apresentar como
conquista própria, dos próprios cidadãos, como parte da sua própria história.
Como sabemos, o ativismo judicial tradicional era criticado por fazer do Judiciário, por
vezes, "o superego da sociedade", para usar a expressão da Profa. Maus.
O que você propõe, então, com esse ativismo judicial "light", esse ativismo judicial que
se legitimaria ao assumir o papel de mediador e promovedor do diálogo institucional,
em face de um estado de coisas inconstitucional ( diga-se, criado pela falta de atuação e
de articulação dos e entre os demais poderes), é tornar o Judiciário, não uma espécie de
superego, mas sim de "alterego da sociedade"?
Seria isso, então, uma certa governança (não propriamente governo) judicial,
articuladora dos demais poderes, o Judiciário como alterego da sociedade?
Assim, ao assumir o lugar de articulador dos demais poderes, o Judiciário, assim, não
estaria, em verdade, deslocando o problema da responsabilidade, do Estado e de seus
agentes, em face desse estado de coisas inconstitucional?
Por fim, se me permite, só mais uma coisa. Você pensa que isso ainda seria controle de
constitucionalidade? Ainda, ainda seria mesmo um controle? Se sim, em que sentido?
Ou seria, agora, governança judicial, do Judiciário como alterego da sociedade?
O ECI postula de modo "idealista" um suposto "abismo entre norma e realidade" (seja
isso chamado de nominalismo constitucional, constucionalismo ornamental ou
constitucionalização simbólica), no tratamento de questões de eficácia e de legitimidade
constitucionais;
A solução para o ECI não envolve a responsabilização subjetiva dos agentes políticos e
administrativos por sua ação ou omissão, algo que seria próprio ao Poder Judiciário,
desde que fosse provocado, via processo judicial, seja pelas próprias vítimas, seja pelo
MP ou de associações em prol dessas vítimas;
Toda essa objetivação (ou seria não mesmo uma coisificação?) do controle de
constitucionalidade, descolado de situações e de pessoas concretamente consideradas,
gera, portanto, o paradoxo da irresponsabilidade: sem povo, sem legislativo, sem
executivos responsáveis;
Tal como ainda ocorre hoje, aliás, quando políticas de reparação em matéria de justiça
de transição são proibidas pelo próprio STF de ser acompanhadas pela
responsabilização pessoal, criminal, dos agentes do Estado.
E, assim, a "solução" (sic) para o ECI somente pode ser a "razão serena" (a expressão é
do Barroso) do Poder Judiciário legislar, administrar ou "moderar" (o termo tb é do
Barroso) os demais poderes, suprindo e suprimindo, enquanto "vanguarda iluminista" (a
expressão também é do Barroso) e com a sua atuação direta e/ou indireta na articulação
dos demais poderes, o suposto "abismo entre norma e realidade", em resposta ao
chamado "estado de coisas inconstitucional".
No fundo, é a tese do STF como poder moderador supostamente "à brasileira", em que o
poder moderador ser a "chave de toda organização política", aqui, significaria que ele
reina, governa e administra, acima e também no lugar dos demais poderes, sob o
pressuposto: da chamada "falta de povo soberano", da precariedade do legislativo e do
executivo no Brasil, da inaplicabilidade e ineficácia das normas constitucionais de 1988,
do " abismo entre norma e realidade" na sociedade brasileira _ um autoritarismo,
portanto, travestido de ativismo judicial.
Segunda Tese: Esse diagnóstico, esse modo de encarar o problema e essa solução para
o problema foram desenvolvidos no amplo quadro da chamada tradição dos retratos ou
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intérpretes do Brasil, num caminho tortuoso que vai de Oliveira Viana (idealismo),
Gilberto Freire (masoquismo) e Sérgio Buarque (cordialidade) a Raimundo Faoro
(patrimonialismo) e a Roberto Schwarz (ideias fora do lugar), sem desconsiderar,
contudo, os que escreveram sobre populismo (e aí vem certa esquerda que leu FHC e
Weffort, até mais do que Caio Prado Jr, Darcy Ribeiro, Celso Furtado e Florestan
Fernandes), apesar das diferenças entre esses pensadores. Em termos próximos aos de
Jessé Souza e da sua hipótese da modernização seletiva, trata-se de uma auto-
interpretação dominante, seja do ponto de vista da teoria social e de sua reflexão
metódica, seja na própria prática social e institucional, que consagra a ideia segundo a
qual o Brasil é um país singularmente marcado por resíduos e traços pré-modernos, pelo
atraso social, pelo subdesenvolvimento econômico, pelo personalismo, pela
cordialidade e pelo patrimonialismo.
Terceira Tese: Esse diagnóstico, esse modo de encarar o problema e essa solução para
o problema são a expressão de uma concepção culturalista - que adentra a doutrina
jurídica. Uma concepção “culturalista” de interpretação do Brasil e de sua
singularidade, profundamente marcada por uma leitura teológico-política da falta de
povo soberano e por uma convergência, entre uma certa esquerda e a direita, quanto à
proposta de uma modernização autoritária, no quadro de uma democracia possível e de
uma concepção dualista da chamada brasilidade. Compartilhada, assim, por parcela
significativa da teoria jurídica brasileira, essa “sociologia da inautenticidade” (Jessé
Souza) ritualiza um suposto “defeito cultural de origem” e se desdobra na consequente
visão segundo a qual a história jurídico-política brasileira deve ser compreendida como
uma “trajetória de fracasso” na construção do Estado de Direito, da democracia e da
justiça social entre nós.
Quarta Tese: Em outras palavras, diferentemente do que certa vez disse, p. ex, Gisele
Cittadino, nossa doutrina constitucional (ou parcela significativa dela) não é
republicano-comunitarista, mas culturalista. E aí cabe problematizar o que seria esse
"senso comum teórico", como diria Warat. Se ele não for Miguel Reale e a teoria
tridimensinal do direito, e temo que seja, a filosofia mediadora entre pensamento
sociológico brasileiro e doutrina constitucional, é alguma variante disso. Mesmo quando
se lê um autor como Loewenstein; ou Crisafulli; ou mesmo Alexy que seja, a
perspectiva a partir da qual se lê é a desse senso comum teórico culturalista.
Aliás, antes do que uma teoria normativista da constituição, defende-se que a teoria
tradicional da constituição, no Brasil, é de matriz culturalista e reflete, no direito, os pré-
conceitos, dilemas e mitos típicos de determinadas leituras que na área foram e são
feitas da chamada “tradição dos retratos e intérpretes do Brasil” (do idealismo
constitucional de que falava Oliveira Vianna, passando pela plasticidade de Gilberto
Freire, pela cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda e, sobretudo, pelo
patrimonialismo de Raimundo Faoro, assim como pelas “ideias fora do lugar” de
Roberto Schwarz, até o que, por exemplo, Roberto da Mata considera “o que faz do
Brasil, Brasil”, etc.).
Como chama atenção Jessé Souza, ao menos desde Modernização Seletiva (Souza,
2000), essa tradição deixa entrever uma autointerpretação dominante dos brasileiros
sobre si mesmos, seja do ponto de vista da teoria social e de sua reflexão metódica, seja
na própria prática social e institucional, que consagra a ideia segundo a qual o Brasil
seria um país singularmente marcado pelo atraso social-econômico, pelo
subdesenvolvimento econômico, pelo personalismo e pelo patronato político como por
resíduos e traços pré-modernos, cujos referenciais críticos, idealizados, seriam,
sobretudo, os Estados Unidos da América ou a União Europeia. Compartilhada por
parcela significativa da teoria jurídica brasileira, mesmo por uma doutrina
constitucional que se considera crítica e progressista, essa verdadeira “sociologia da
inautenticidade” (Jessé Souza) ritualiza um suposto “defeito cultural de origem” do
Brasil e se desdobra na consequente visão segundo a qual a história jurídico-política
brasileira deve ser compreendida como uma “trajetória de fracasso” na construção do
Estado de Direito, da democracia e da justiça social.
Quinta Tese: Cabe contribuir, então, para construir uma teoria crítica da constituição,
do problema da efetividade e da legitimidade constitucionais, a parar da crítica e da
ruptura com essa tradição “culturalista” de interpretação do Brasil e de suas pretensas
singularidades, assim como com a teoria jurídico-política que a pressupõe,
problematizando seus supostos, seja na dimensão da reflexão metódica, seja na
dimensão política e institucional. Essa interpretação tradicional do Brasil e de sua
singularidade, assim como do direito, da política e da sua história constitucional,
contribuiu para uma reificação da história brasileira ao obstar, com consequências
deslegitimizantes, o reconhecimento de lutas por cidadania e por direitos que, do ponto
de vista de uma teoria crítica da sociedade de matriz reconstrutiva, constituem
internamente o processo político brasileiro de aprendizado social com o direito e com a
política, de longa duração.
Sexta Tese: Uma teoria crítica da constituição, portanto, visa se diferenciar dessa teoria
tradicional, culturalista, de tal modo a superar esse dualismo e se apresentar como uma
teoria “concretista” e crítico-reconstrutiva que seja capaz de reconhecer as questões de
legitimidade e a efetividade como “tensões constitutivas” (Menelick de Carvalho
Netto) ou “conflitos concretos” (Friedrich Müller) na legalidade mesma do direito
e do direito constitucional, enquanto constitucionalidade, para isso abrindo-se, pois,
para uma teoria da justificação normativa do constitucionalismo como aprendizado
social de longo prazo e para uma teoria sociológico-política da tensão entre os
princípios do constitucionalismo e dos processos sociais e políticos, todavia, no
interior da própria realidade da sociedade. (Uma possibilidade para a construção
desse enfoque seja, portanto, algo na linha da Teoria estruturante de Friedrich Müller,
quando vê a questão da legitimidade como conflito concreto do direito positivo. Ele
dialoga criticamente com o debate de Weimar, com o Schmitt, de Legalidade e
Legitimidade, com seus críticos marxistas, como é o caso de Neumann e Kirchheimer,
sem falar também naqueles que estariam numa tradição hermenêutico-crítica, como
Konrad Hesse).
Comparar:
A) Tese de 1999 (ver DPL, 3.ª ed, 2016, pp. 100 a 103):
B) Tese 2016.