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TESES PARA UMA TEORIA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO (esboço)

Para David F. L. Gomes

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Primeira Tese: Parte significativa da doutrina constitucional brasileira (Bonavides,


José Afonso, Barroso e Marcelo Neves, etc.), sobretudo quando trata do problema da
legitimidade/efetividade das constituições, e remete esse problema para o diagnóstico da
falta de povo soberano, acaba por adotar como solução viável alguma versão de
"autoritarismo instrumental" (Wanderley Guilherme dos Santos), seja apostando na
figura do Presidente forte e em formas plebiscitárias de solução de impasses, seja na
Jurisdição Constitucional, no Ministério Público ou mesmo, corporativamente, na
própria Doutrina, alguma forma, enfim, de “democracia possível” (Manoel Gonçalves),
acompanhada por certo desdém pela política e pelo parlamento, como modo de suprir
essa falta de povo, forjar esse povo e criar as condições de superação dos supostos
resquícios pré-modernos próprios a um suposto atraso do Brasil, em relação à Europa e
aos EUA.

Exemplo, a forma de recepção do chamado “estado de coisas inconstitucional” por parte


da doutrina brasileira: Como a tese, no fundo, parte de um modelo das regras (normas
de eficácia limitada, plena e contida; autoaplicáveis e não autoaplicáveis) e não de um
modelo de princípios, assim como pressupõe uma suposta ausência de povo como
explicação para a falta de atuação legislativa e/ou executiva, a solução somente pode ser
a "razão serena" (a expressão é do Barroso, na retrospectiva 2015) do Poder Judiciário
legislar, administrar ou "moderar" (o termo tb é do Barroso, idem) os demais poderes,
suprimindo, com a sua atuação direta e/ou na articulação dos demais poderes, o suposto
"abismo entre norma e realidade", em resposta ao chamado "estado de coisas
inconstitucional". No fundo, é a tese do STF como poder moderador à brasileira, em que
o poder moderador ser a "chave de toda organização política" aqui significa que ele
reina, governa e administra, acima e também no lugar dos demais poderes.
Autoritarismo, portanto, travestido de ativismo judicial.

O protagonismo do STF não é suficiente, diria mesmo legítimo, para defender a


Constituição, sobretudo se o Tribunal for visto como um substituto ou equivalente
funcional do poder moderador, a pretender livrar a política dos riscos dela mesma: esse
não é o papel a ser assumido pela jurisdição constitucional na democracia.

Aliás, o próprio conceito de poder moderador faz parte de uma semântica monárquica,
antiquada, completamente inadequada a uma sociedade democrática, sob pena de
autoritarismo.

Também não é suficiente, diria mesmo legítimo, ver o Tribunal como a encarnar uma
suposta "vanguarda iluminista" (Barroso, conferência no Instituto FHC), sobretudo se,
paradoxalmente, se pretender usar heteronomamente uma moral axiológica (de quem?)
como corretivo, desde fora, da política por meio do direito; mais uma vez, não deve ser
o Tribunal, para recuperar a crítica de Ingeborg Maus, "o superego da sociedade órfã".
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No fundo, isso nada tem que ver com o Iluminismo que, como dizia Kant, é "a saída",
por iniciativa própria, da condição "de menoridade", porque pressupõe uma visão
autoritária de um papel tutelar do Tribunal em face do processo político, por mais que
desse papel se pretenda fazer um uso "moderado" ou "autocontido"; a omissão na
garantia das condições jurídicas de deliberação democrática nada mais é do que
complacência que, como de resto, é apenas a outra face do autoritarismo.

É preciso, sim, ampliar o campo de luta, mas no sentido de se reconhecer que dele já
fazem parte os movimentos sociais. Não cabe, portando, tão somente pretender incluir
os movimentos sociais, mas reconhecer o papel que esses movimentos efetivamente
desempenham e podem desempenhar.

E digo isso não apenas, concorde que seja sim extremamente necessário, para "atestar,
superando falsas neutralidades, de que lado, na sociedade brasileira, está, política e
institucionalmente, o STF" (Ribas), mas também de modo a podermos superar certas
falsas dicotomias, p. ex., a do constitucionalismo visto como algo contrário à
democracia.

Ora, o constitucionalismo liberal é que é historicamente contrário à democracia, embora


essa tensão, essa exigência de legitimidade tipicamente pós-tradicional e moderna, já se
encontre nele mesmo. Se o constitucionalismo liberal mostrou-se empiricamente
contrário à democracia, cabe considerar também a existência da tradição política do
republicano cívico, não-comunitarista e mesmo comprometida com o "pluralismo
compreensivo", para usar a expressão de Michel Rosenfeld.

Assim, o STF, ao garantir o devido processo legislativo, o devido processo


constitucional e os direitos fundamentais, deve atuar de tal modo a retroalimentar o
processo político democrático, reconhecendo, inclusive, novos sujeitos e novos direitos,
e interpretando construtivamente o sistema de direitos fundamentais, a igualdade e a
liberdade, garantidores da autonomia pública e privada, como constitutivos da própria
democracia. Afinal, para falar com alguém como Friedrich Müller, não há constituição
democrática sem povo ativo; nem há povo ativo sem constituição democrática.

Como já tive oportunidade de dizer, rebatendo, já faz um tempo, certas críticas feitas
pelo Min. Gilmar: no Estado Democrático de Direito, não tem o menor sentido
contrapor um Direito institucional com o Direito achado na rua: aquele só se legitima
neste, mediados se forem pelo exercício dos direitos políticos, que, aliás, foram apenas
enunciados no texto da Constituição e, portanto, exigem posteriores desdobramentos.
Esta, a Constituição democrática, na sua abertura ao porvir, deve ser, assim, vista, como
um processo jurídico e político de aprendizagem social de longo prazo, com o Direito e
com a Política, em que o Estado Democrático de Direito possa se apresentar como
conquista própria, dos próprios cidadãos, como parte da sua própria história.

Parto da crítica, portanto, ao conservadorismo e ao autoritarismo do nosso culturalismo


jurídico, em que boa parte da nossa doutrina, seja a de direita, seja a de esquerda, se
enreda. E proponho uma perspectiva crítica, com uma influência neohegeliana de
esquerda, para lidar de forma pós-loewesteiniana com questões de efetividade
constitucional. Pois não penso que a categoria do nominalismo constitucional
(simbólico, ornamental ou o nome que se queira dar), nem a ideia de promoção do
sentimento constitucional, de ativismo judicial e de judicialização da política, como
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uma das formas de superação desse nominalismo, sejam adequadas, enquanto


perspectiva de abordagem, para lidar com o problema da efetividade constitucional. Vão
sempre desembocar em algo como "o estado de coisas inconstitucional", que serve de
desculpa pra tudo e para nada, basta ler a ADPF 347, do PSOL ("o abismo entre norma
e realidade"), assinada pelo Daniel Sarmento, e mesmo a decisão liminar tomada pelo
STF. Ora, como já disse Lenio (texto sobre ECI), dizer que a realidade das coisas é
inconstitucional pode bem levar à velha tese de que a Constituição é que é idealista ou
irreal. Penso, assim, que o problema da efetividade e da legitimidade deve ser tratado na
linha de Friedrich Müller, como "conflito concreto do direito positivo".

Como sabemos, o ativismo judicial tradicional era criticado por fazer do Judiciário, por
vezes, "o superego da sociedade", para usar a expressão da Profa. Maus.

O que você propõe, então, com esse ativismo judicial "light", esse ativismo judicial que
se legitimaria ao assumir o papel de mediador e promovedor do diálogo institucional,
em face de um estado de coisas inconstitucional ( diga-se, criado pela falta de atuação e
de articulação dos e entre os demais poderes), é tornar o Judiciário, não uma espécie de
superego, mas sim de "alterego da sociedade"?

Seria isso, então, uma certa governança (não propriamente governo) judicial,
articuladora dos demais poderes, o Judiciário como alterego da sociedade?

Mas daí como fica o problema da responsabilidade objetiva do Estado e da


responsabilidade pessoal de seus agentes, seja política, seja jurídica, pelas ações e
omissões inconstitucionais e ilegais que instauraram esse estado de coisas
inconstitucional? Ou isso não seria mais um problema, a responsabilização objetiva do
Estado e a subjetiva dos agentes estatais? A declaração do ECI "zera" essas
responsabilidades e a desloca, é avocada, ao Judiciário?

Assim, ao assumir o lugar de articulador dos demais poderes, o Judiciário, assim, não
estaria, em verdade, deslocando o problema da responsabilidade, do Estado e de seus
agentes, em face desse estado de coisas inconstitucional?

Ou seja, ninguém seria, em princípio, responsabilizado pessoalmente por esse estado de


coisas; mas, com a declaração desse estado de coisas, o Judiciário assumiria a
responsabilidade objetiva pela articulação dos programas e políticas públicas de
efetivação dos direitos fundamentais? Mas isso não cria um paradoxo da (i)
responsabilidade institucional pela efetivação dos direitos fundamentais?

Por fim, se me permite, só mais uma coisa. Você pensa que isso ainda seria controle de
constitucionalidade? Ainda, ainda seria mesmo um controle? Se sim, em que sentido?
Ou seria, agora, governança judicial, do Judiciário como alterego da sociedade?

O ECI, em seus pressupostos teórico-jurídicos, parte de um modelo das regras (normas


de eficácia limitada, plena e contida; autoaplicáveis e não autoaplicáveis) e não de um
modelo de princípios;

O ECI pressupõe, teórico-social e politicamente, uma suposta ausência de povo ativo


como explicação sociológica para a falta de atuação legislativa e/ou executiva;
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O ECI postula de modo "idealista" um suposto "abismo entre norma e realidade" (seja
isso chamado de nominalismo constitucional, constucionalismo ornamental ou
constitucionalização simbólica), no tratamento de questões de eficácia e de legitimidade
constitucionais;

Assim, a realidade é tratada como algo idealizado, externo e limitador ao processo de


densificação ou concretização das normas, e não como parte dele;

A solução para o ECI não envolve a responsabilização subjetiva dos agentes políticos e
administrativos por sua ação ou omissão, algo que seria próprio ao Poder Judiciário,
desde que fosse provocado, via processo judicial, seja pelas próprias vítimas, seja pelo
MP ou de associações em prol dessas vítimas;

Diferentemente disso, argui-se o descumprimento de preceito fundamental, a violação


do Direito Objetivo portanto, por via de uma ADPF;

Ou seja, não se discute uma ilegalidade ou inconstitucionalidade especificamente


ocorridas, em face de um caso concreto de violação da lei ou da Constituição, que
concretamente caracterizaria uma lesão ou ameaça a direitos, ou descumprimento de
dever; assim como não se discute diretamente o problema acerca da responsabilidade de
quem violou a lei ou a Constituição ao ameaçar ou lesar direitos, ou descumprir deveres,
numa situação concreta; o Estado inconstitucional é de coisas, e não de pessoas; as
coisas é que são inconstitucionais.

Toda essa objetivação (ou seria não mesmo uma coisificação?) do controle de
constitucionalidade, descolado de situações e de pessoas concretamente consideradas,
gera, portanto, o paradoxo da irresponsabilidade: sem povo, sem legislativo, sem
executivos responsáveis;

Nesse sentido, falar em ECI implica justamente deslocar o problema da


responsabilização subjetiva dos agentes de Estado, pelos casos concretos de violação da
Constituição e da lei, para tratar a questão como sendo apenas de responsabilidade
objetiva do Estado;

Ora, isso é confundir responsabilidade jurídica, individualizavel, com uma noção


"estranha" de responsabilidade política: do sistema, mas de ninguém;

E isso pode justamente pulverizar a responsabilidade e, com isso, indiretamente gerar a


exculpação dos agentes políticos e administrativos, etc, sobretudo sem se cogitar das
devidas ações de regresso;

Tal como ainda ocorre hoje, aliás, quando políticas de reparação em matéria de justiça
de transição são proibidas pelo próprio STF de ser acompanhadas pela
responsabilização pessoal, criminal, dos agentes do Estado.

A lógica aqui me parece a mesma, ou seja, o do deslocamento de responsabilidade, da


pessoa, individualizada, para o sistema; assim como, portanto, seriam os problemas que
isso pode gerar em termos de falta de responsabilização pessoal dos agentes. Mais uma
vez, é o estado de "coisas" e não de pessoas o que é inconstitucional, não a ação e a
omissão, portanto, dos agentes do Estado individualmente considerados.
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E, assim, a "solução" (sic) para o ECI somente pode ser a "razão serena" (a expressão é
do Barroso) do Poder Judiciário legislar, administrar ou "moderar" (o termo tb é do
Barroso) os demais poderes, suprindo e suprimindo, enquanto "vanguarda iluminista" (a
expressão também é do Barroso) e com a sua atuação direta e/ou indireta na articulação
dos demais poderes, o suposto "abismo entre norma e realidade", em resposta ao
chamado "estado de coisas inconstitucional".

No fundo, é a tese do STF como poder moderador supostamente "à brasileira", em que o
poder moderador ser a "chave de toda organização política", aqui, significaria que ele
reina, governa e administra, acima e também no lugar dos demais poderes, sob o
pressuposto: da chamada "falta de povo soberano", da precariedade do legislativo e do
executivo no Brasil, da inaplicabilidade e ineficácia das normas constitucionais de 1988,
do " abismo entre norma e realidade" na sociedade brasileira _ um autoritarismo,
portanto, travestido de ativismo judicial.

Tal é o nosso culturalismo jurídico, conservador.

Convenci-me que o problema nem sempre é o ativismo judicial, sobretudo se


compreendido enquanto interpretação construtiva dos direitos no sentido da garantia do
processo democrático; que o problema de legitimidade, mas também de juridicidade, é a
judicialização da política, por meio de decisões fundadas em argumentos de políticas.
Essas, sim,assumem performativamente uma atitude, não de garantia das condições
deliberativas democráticas (e nesse sentido, de garantia de direitos como forma de
institucionalização dessas condições), mas de substituição, de tutela, a elas (ainda que
isso seja feito em nome da garantia da ordem jurídica ou social). E isso, sobretudo,
sobre o pano de fundo de uma tradição culturalista autoritária, presente tanto na teoria
social, quanto na doutrina jurídica, brasileira que desconhece os movimentos sociais
como parte do processo político, que os trata como questão de polícia, ao mesmo tempo
que ritualiza o discurso deslegitimar da falta de povo ativo, de povo soberano.Ou seja, é
preciso repensar o modo com que a sociologia e o direito, de "senso comum teórico"
culturalista, pensam a relação entre Estado e sociedade e mercado no Brasil; é preciso
superar a tese do patrimonialismo, da cordialidade, das resquícios pré-modernos, em
prol de uma teoria do Estado e da Constituição a partir do reconhecimento do caráter
moderno, ainda que altamente seletivo, da sociedade, do Estado, do mercado.

A propósito, inclusive, da discussão sobre o estado de coisas inconstitucional, penso que


o problema da responsabilidade (que a mera declaração dele não resolve, mas pode
agravar, porque pode simplesmente levar a um paradoxo da (ir) responsabilidade,
gerado pelo deslocamento da questão acerca da articulação institucional para o
Judiciário, nessa objetivação ulterior do controle de constitucionalidade "sic"), exigiria,
aqui, como, aliás, na Colômbia, a responsabilização política e mesmo jurídica das elites
por esse suposto "estado de coisas" – ou de pessoas, de instituições? (lembrando
também do fato de que boa parte da própria elite intelectual legitima esse estado de
coisas). Não é à toa que a Colômbia seja um dos países da América do Sul, assim como
o Brasil, mais conivente historicamente com os crimes de Estado cometido por
sucessivos governos autoritários e com a falta de responsabilidade pessoal de seus
governantes e agentes de Estado.

Segunda Tese: Esse diagnóstico, esse modo de encarar o problema e essa solução para
o problema foram desenvolvidos no amplo quadro da chamada tradição dos retratos ou
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intérpretes do Brasil, num caminho tortuoso que vai de Oliveira Viana (idealismo),
Gilberto Freire (masoquismo) e Sérgio Buarque (cordialidade) a Raimundo Faoro
(patrimonialismo) e a Roberto Schwarz (ideias fora do lugar), sem desconsiderar,
contudo, os que escreveram sobre populismo (e aí vem certa esquerda que leu FHC e
Weffort, até mais do que Caio Prado Jr, Darcy Ribeiro, Celso Furtado e Florestan
Fernandes), apesar das diferenças entre esses pensadores. Em termos próximos aos de
Jessé Souza e da sua hipótese da modernização seletiva, trata-se de uma auto-
interpretação dominante, seja do ponto de vista da teoria social e de sua reflexão
metódica, seja na própria prática social e institucional, que consagra a ideia segundo a
qual o Brasil é um país singularmente marcado por resíduos e traços pré-modernos, pelo
atraso social, pelo subdesenvolvimento econômico, pelo personalismo, pela
cordialidade e pelo patrimonialismo.

Terceira Tese: Esse diagnóstico, esse modo de encarar o problema e essa solução para
o problema são a expressão de uma concepção culturalista - que adentra a doutrina
jurídica. Uma concepção “culturalista” de interpretação do Brasil e de sua
singularidade, profundamente marcada por uma leitura teológico-política da falta de
povo soberano e por uma convergência, entre uma certa esquerda e a direita, quanto à
proposta de uma modernização autoritária, no quadro de uma democracia possível e de
uma concepção dualista da chamada brasilidade. Compartilhada, assim, por parcela
significativa da teoria jurídica brasileira, essa “sociologia da inautenticidade” (Jessé
Souza) ritualiza um suposto “defeito cultural de origem” e se desdobra na consequente
visão segundo a qual a história jurídico-política brasileira deve ser compreendida como
uma “trajetória de fracasso” na construção do Estado de Direito, da democracia e da
justiça social entre nós.

Quarta Tese: Em outras palavras, diferentemente do que certa vez disse, p. ex, Gisele
Cittadino, nossa doutrina constitucional (ou parcela significativa dela) não é
republicano-comunitarista, mas culturalista. E aí cabe problematizar o que seria esse
"senso comum teórico", como diria Warat. Se ele não for Miguel Reale e a teoria
tridimensinal do direito, e temo que seja, a filosofia mediadora entre pensamento
sociológico brasileiro e doutrina constitucional, é alguma variante disso. Mesmo quando
se lê um autor como Loewenstein; ou Crisafulli; ou mesmo Alexy que seja, a
perspectiva a partir da qual se lê é a desse senso comum teórico culturalista.

Se duas questões centrais emergem do contexto de formação da teoria da constituição


como disciplina autônoma, a da legitimidade e a da efetividade das ordens
constitucionais, quando se procurou inicialmente repensar o próprio estatuto da
legalidade constitucional em transformação, na virada do constitucionalismo liberal em
crise para o constitucionalismo social, uma teoria tradicional da constituição é
fortemente marcada, em sua perspectiva de abordagem, pelo dualismo entre norma e
realidade ou entre constituição formal e constituição material; quaisquer que sejam as
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formas de reocupação ou de equivalência funcional da distinção: constituição normativa


e constituição nominal (como em Karl Loewenstein) ou mesmo constitucionalização
simbólica e constitucionalização normativa (como em Marcelo Neves), etc. Dualismo,
esse, que não se supera buscando apenas suprimir um dos lados da distinção, nem
estabelecer uma pseudodialética entre eles, na linha, por exemplo, de um incerto
culturalismo jurídico (como em Miguel Reale ou em seus herdeiros, de direita ou de
esquerda).

Aliás, antes do que uma teoria normativista da constituição, defende-se que a teoria
tradicional da constituição, no Brasil, é de matriz culturalista e reflete, no direito, os pré-
conceitos, dilemas e mitos típicos de determinadas leituras que na área foram e são
feitas da chamada “tradição dos retratos e intérpretes do Brasil” (do idealismo
constitucional de que falava Oliveira Vianna, passando pela plasticidade de Gilberto
Freire, pela cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda e, sobretudo, pelo
patrimonialismo de Raimundo Faoro, assim como pelas “ideias fora do lugar” de
Roberto Schwarz, até o que, por exemplo, Roberto da Mata considera “o que faz do
Brasil, Brasil”, etc.).

Como chama atenção Jessé Souza, ao menos desde Modernização Seletiva (Souza,
2000), essa tradição deixa entrever uma autointerpretação dominante dos brasileiros
sobre si mesmos, seja do ponto de vista da teoria social e de sua reflexão metódica, seja
na própria prática social e institucional, que consagra a ideia segundo a qual o Brasil
seria um país singularmente marcado pelo atraso social-econômico, pelo
subdesenvolvimento econômico, pelo personalismo e pelo patronato político como por
resíduos e traços pré-modernos, cujos referenciais críticos, idealizados, seriam,
sobretudo, os Estados Unidos da América ou a União Europeia. Compartilhada por
parcela significativa da teoria jurídica brasileira, mesmo por uma doutrina
constitucional que se considera crítica e progressista, essa verdadeira “sociologia da
inautenticidade” (Jessé Souza) ritualiza um suposto “defeito cultural de origem” do
Brasil e se desdobra na consequente visão segundo a qual a história jurídico-política
brasileira deve ser compreendida como uma “trajetória de fracasso” na construção do
Estado de Direito, da democracia e da justiça social.

Em contraposição a essa teoria culturalista, defende-se uma teoria crítica da


constituição que se diferencie desse enfoque teórico tradicional, de tal modo a superar
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esse dualismo e a se apresentar como uma teoria “concretista” e “crítico-reconstrutiva”,


capaz de reconhecer as questões de legitimidade e de efetividade como “tensões
constitutivas” (Cattoni/Menelick de Carvalho Netto) ou “conflitos concretos” (Friedrich
Müller) da/na normatividade do direito e do direito constitucional.

Quinta Tese: Cabe contribuir, então, para construir uma teoria crítica da constituição,
do problema da efetividade e da legitimidade constitucionais, a parar da crítica e da
ruptura com essa tradição “culturalista” de interpretação do Brasil e de suas pretensas
singularidades, assim como com a teoria jurídico-política que a pressupõe,
problematizando seus supostos, seja na dimensão da reflexão metódica, seja na
dimensão política e institucional. Essa interpretação tradicional do Brasil e de sua
singularidade, assim como do direito, da política e da sua história constitucional,
contribuiu para uma reificação da história brasileira ao obstar, com consequências
deslegitimizantes, o reconhecimento de lutas por cidadania e por direitos que, do ponto
de vista de uma teoria crítica da sociedade de matriz reconstrutiva, constituem
internamente o processo político brasileiro de aprendizado social com o direito e com a
política, de longa duração.

Sexta Tese: Uma teoria crítica da constituição, portanto, visa se diferenciar dessa teoria
tradicional, culturalista, de tal modo a superar esse dualismo e se apresentar como uma
teoria “concretista” e crítico-reconstrutiva que seja capaz de reconhecer as questões de
legitimidade e a efetividade como “tensões constitutivas” (Menelick de Carvalho
Netto) ou “conflitos concretos” (Friedrich Müller) na legalidade mesma do direito
e do direito constitucional, enquanto constitucionalidade, para isso abrindo-se, pois,
para uma teoria da justificação normativa do constitucionalismo como aprendizado
social de longo prazo e para uma teoria sociológico-política da tensão entre os
princípios do constitucionalismo e dos processos sociais e políticos, todavia, no
interior da própria realidade da sociedade. (Uma possibilidade para a construção
desse enfoque seja, portanto, algo na linha da Teoria estruturante de Friedrich Müller,
quando vê a questão da legitimidade como conflito concreto do direito positivo. Ele
dialoga criticamente com o debate de Weimar, com o Schmitt, de Legalidade e
Legitimidade, com seus críticos marxistas, como é o caso de Neumann e Kirchheimer,
sem falar também naqueles que estariam numa tradição hermenêutico-crítica, como
Konrad Hesse).

A Teoria da Constituição cumpre um papel central, como chave interpretativa do


Direito Constitucional Democrático e, por isso, de todo o Direito. O que significa dizer
que ela contribui para a compreensão e, sobretudo, para a reconstrução do Direito
Constitucional:

a) Compreensão do Direito Constitucional na tradição do constitucionalismo. A Teoria


da Constituição leva a sério o caráter histórico e institucional do Direito Constitucional
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no horizonte da tradição do constitucionalismo moderno, visto como processo de


aprendizagem de longo prazo com o direito e com a política, e;

b) Reconstrução do Direito Constitucional. A Teoria da Constituição procura


reconstruir os princípios normativos que dão sentido à tradição do constitucionalismo
moderno. Se a tradição do constitucionalismo pode assim ser vista como um processo
de aprendizado social, o sentido dos princípios não se reduz à mera facticidade, na
medida em que são abertos ao porvir das lutas por reconhecimento.

Assim, o Direito Constitucional é compreendido, duplamente, como:

a) Ciência do direito: um discurso científico sobre a “ordem constitucional” em seu


caráter operacional, como estudo prático da dinâmica constitucional;

b) Dinâmica constitucional: um sistema de normas – princípios, regras, procedimentos –


na sua dinâmica de produção e reprodução normativas.

A renovação contemporânea da Teoria da Constituição como ciência reconstrutiva exige


que esta se mantenha aberta, a um só tempo:

a) a uma sociologia jurídica reconstrutiva dos conteúdos ou exigências normativos


inscritos, ainda que parcialmente, nos processos político-sociais – gramática “moral”
das lutas por reconhecimento;

b) a uma filosofia jurídica pós-metafísica que visa esclarecer e problematizar as


condições normativas no interior da sociedade moderna – os direitos fundamentais –
para a formação/geração democrática do poder político.

Nesse sentido, a Teoria da Constituição deve assumir as seguintes perspectivas:

Comparar:

A) Tese de 1999 (ver DPL, 3.ª ed, 2016, pp. 100 a 103):

a) a perspectiva interna ao Direito Constitucional ao possibilitar uma “dogmática geral


(adequada) do Direito Constitucional” (Lucas Verdú);

b) a perspectiva externa da relação entre facticidade social-econômica e autocompreensão


do Estado Constitucional ao se consubstanciar em uma teoria pós-ontológica da
Constituição.
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A perspectiva simultânea da tensão interna (a) e externa (b) ao Direito Constitucional,


requer precisamente que a Teoria da Constituição se assuma como uma teoria crítico-
reflexiva da Constituição, "problematizadora e explicitadora de pré-compreensões" e
de paradigmas acerca da sociedade, da política e do Direito. Desse modo é que ela
sempre apresentará uma dimensão metateórica acerca dos seus próprios pressupostos
teoréticos, revelando-se uma metateoria da Constituição. Por isso mesmo, não se
poderá ignorar sua dimensão pragmático-política, a requerer do operador jurídico que a
assuma como uma teoria político-constitucional em sentido fraco.

Ad a) A Teoria da Constituição deve assumir a perspectiva do sistema jurídico-


constitucional e analisar a tensão interna entre facticidade e validade, ou seja, entre
positividade e legitimidade do Direito, reconstruindo os princípios, as regras, os
procedimentos, a compreensão, a justificação e a aplicação desses, resgatando a
normatividade constitucional e a função primordial do Direito moderno, presente no
Direito Constitucional de modo ímpar: a função de integração social, numa sociedade em
que tal problema só pode ser enfrentado e solucionado pelos seus próprios membros, na
medida em que instauram um processo em que se engajam na busca cooperativa de
condições recorrentemente mais justas de vida, no qual questões acerca de sua
autocompreensão ético-política e de sua autodeterminação prático-moral, além de seus
interesses pragmáticos, devem encontrar vazão, mediante, inclusive, a institucionalização
de formas discursivas e de negociação no nível do Estado. (...)

Ad b) Da perspectiva externa da tensão entre facticidade social-econômica e


autocompreensão do Estado Constitucional, a Teoria da Constituição deve alterar seu
enfoque interno ao Direito e complementá-lo através do diálogo com as teorias da
sociedade e com as teorias políticas, a fim de que possa ultrapassar as abordagens
tradicionais acerca da efetividade do Direito Constitucional quer no sentido de uma
classificação ontológica da Constituição (Karl Loewenstein), quer no sentido da eficácia
social das normas constitucionais (José Afonso da Silva), algo de fundamental
importância não somente em países como o nosso de pouca tradição democrática e
constitucional. (...)

A Teoria da Constituição, portanto, não pode perder a dimensão fundamental de teoria


problematizante e explicitadora de pré-compreensões e de paradigmas. (...)
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Quanto a considerar uma dimensão pragmático-política da Teoria da Constituição, cumpre


ressaltar, contudo, que não se deve assumir uma compreensão equivocada desse aspecto,
pois não se trata, em hipótese alguma, de atribuir normatividade à teoria, transformando-a
numa doutrina, o que resultaria, com certeza, numa ruptura com um enfoque teorético-
discursivo. O que gostaríamos de salientar é que a Teoria da Constituição pode representar
importante aporte para discussões institucionais-instituintes, na medida em que se explore
o caráter pragmático das reflexões teorético-constitucionais. Daí a necessidade de o
operador jurídico assumi-la como uma teoria político-constitucional em sentido fraco: o
teórico da Constituição não deve assumir a atitude performativa do doutrinador iluminado,
a ditar soluções para uma massa de ignorantes, já que admitir isso seria, a essa altura de
nossas reflexões, uma grande incoerência. Uma teoria político-constitucional pode
fornecer ao jurista, no máximo, a perspectiva do operador do Direito comprometido com o
desenvolvimento constitucional que, no seu papel de intelectual e não de especialista, pode
contribuir e participar das controvérsias político-constitucionais através das quais todos os
co-associados jurídicos, inclusive ele, como cidadãos, podem refletir e definir sua vida em
comum.”

B) Tese 2016.

a) Teoria da linguagem constitucional e da história dos conceitos constitucionais, ou


seja, da gramática constitutiva do direito constitucional; dos termos, expressões e usos
desses termos e expressões, cujo sentido se constrói ao longo da tradição do
constitucionalismo. Em outras palavras, uma teoria da legalidade constitucional
enquanto supralegalidade, forma constitucional ou constitucionalidade;

b) Teoria filosófico-política da justificação do constitucionalismo democrático, a


envolver a questão da legitimidade normativa do constitucionalismo, em que a
autonomia (pública e privada) se apresenta como princípio moderno de legitimidade
jurídico-política. Em outras palavras, uma teoria da legitimidade constitucional;

c) Teoria sociológico-política da relação entre os princípios do constitucionalismo


democrático e os processos político-sociais, reconstruída como uma tensão (e não como
um hiato ou contraste) no interior da própria realidade político-social. Assim, procura-se
redefinir o tema da efetividade constitucional, rompendo-se com o dualismo metafísico
real vs. ideal. Nessa perspectiva, o próprio Direito Constitucional pode ser visto como a
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expressão normativa e contrafactual dos processos políticos e sociais. Em outras


palavras, uma teoria da efetividade constitucional.

A legitimidade e a efetividade são aqui tratadas como “tensões constitutivas”


(Cattoni/Menelick de Carvalho Netto) ou “conflitos concretos” (Friedrich Müller)
na legalidade mesma do direito e do direito constitucional, enquanto
constitucionalidade. A legitimidade e a efetividade, assim, estão implicadas na
própria legalidade constitucional enquanto “tensões constitutivas” ou “conflitos
concretos”. Ao considerar a legalidade, a forma constitucional como
supralegalidade, como constitucionalidade, o problema da legitimidade e da
efetividade estão implicados no próprio conceito de legalidade constitucional.

d) Teoria com sentido político-constitucional. A Teoria da Constituição, por fim, se


apresenta como uma contribuição para o aperfeiçoamento do Direito Constitucional,
servindo de suporte tanto para a ciência, quanto para a reconstrução e compreensão
crítica da dinâmica constitucional.

Sétima Tese: Portanto, uma constituição é efetiva, não em função de uma


correspondência ou concordância, em maior ou menor media, entre os processos
político-sociais e um suposto conteúdo dado, pré-estabelecido ou supostamente
originário das normas constitucionais. Mas no modo em que o sentido de constituição
e o sentido da constituição se traduzem numa disputa hermenêutica, política na
esfera pública, sob a pressão dos imperativos sistêmicos do capital (David Gomes).
Uma constituição é, portanto, efetiva enquanto for tema das controvérsias
jurídicas e políticas. Enquanto assim mobilizar a esfera pública política em torno das
interpretações paradigmáticas que concorrem, ao longo das lutas políticas e sociais por
reconhecimento, para a compreensão e reconstrução dos princípios do Estado de Direito
e dos direitos fundamentais.

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