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Resumo: O uso da transcrição musical divide opiniões em meio aos etnomusicólogos. Considerando a
pertinência dos questionamentos e da reflexão a respeito disso, o texto registra argumentos tratando
não somente do produto transcrito, mas do processo de transcrever, na via dialógica entre o ouvir, o
escrever, o ler, e mesmo um às vezes pretendido (re) fazer soar; todas estas etapas atinentes à pesquisa
em música e, em especial, na etnomusicologia. O conhecimento que se constrói numa empreitada de
transcrição, segundo se cogita, extrapola a resposta escrita direta a uma dada emanação sonora; e, num
exercício do fazer e do pensar – em práxis – devem-se incitar novas e diferentes indagações acerca,
primeiramente, das características intrínsecas e expressivas daquela manifestação musical em cuidado
e, depois, sobre a maneira de se empreender contatos com esta música ao longo de um estudo. As
ponderações daqui inserem-se no âmbito da estruturação teórico-metodológica de uma pesquisa de
doutorado, de viés etnomusicológico, dedicada à música do Choro e às práticas e discursos de seus
executantes na cidade de Belo Horizonte.
Abstract: The use of musical transcription divides opinions among the ethnomusicologists.
Considering the pertinence and importance of the questions and the reflection on this, the text registers
some arguments dealing not only with the transcribed product, but also with the process of
transcribing, in the dialogical way between listening, writing, read, and even sometimes intended (re)
sounding; all these stages pertaining to the practice of the music research, and, especially, in the
ethnomusicology. The knowledge that is constructed in a transcription process, according to one's
mind, extrapolate a “direct” written response to a given sound emanation; and, in an exercise of
thinking and doing - in praxis - should stimulate new and different inquiries on, first, the intrinsic and
expressive characteristics in that musical manifestation that is taken care of and, later, on the way to
make the contacts with such music throughout of a study. The weightings here are part of the initial
theoretical and methodological structuring of a doctoral research, with an ethnomusicological bias,
dedicated to Choro music and to the practices and discourses of its performers in Belo Horizonte.
Abertura
1
O termo se refere a Guido Adler (1855-1941), musicólogo austríaco tomado como o delimitador do
campo de estudos da Musicologia Comparada, distinta, por exemplo, da Musicologia Histórica ou do
ramo de uma Estética da Música. Costuma-se argumentar que, historicamente, foi da Musicologia
Comparada, em voga desde a virada do século XIX para o XX, que derivou a Etnomusicologia,
somente entre as décadas de 1960 e 1970. Mais detalhes dessa caminhada histórica da disciplina nos
textos de Pinto, 2004 e de Menezes Bastos, 2014. Já sobre o Positivismo e o Evolucionismo, grosso
modo, diz-se que são vertentes do pensar sociológico e antropológico, respectivamente, em voga no
início do século XX. Embora distintos em muitos pontos, e cada um contando com literatura própria,
num resumo pode-se inferir que ambas correntes de pensamento faziam crer que as culturas diversas
do mundo tendiam a caminhar num mesmo rumo para tecer suas organizações e desenvolvimento
cognoscente, racional, tecnológico e artístico-cultural: daí a perspectiva de compara-las e desvendar os
estágios anteriores da “evolução” do homem europeu do pós-revolução industrial. Sobre o uso de
partituras nessa concepção musicológica comparada, como pensada à época, na verve positivista e
evolucionista, pode-se mesmo obstar o quanto camufla algum eurocentrismo.
universos musicais diversos (Piedade, 2011 e Menezes Bastos, 1996). A questão, assim, leva
a pensar na necessidade dum paradigma de pesquisa que fosse “além de uma Antropologia
sem música e de uma Musicologia sem Homem” (Menezes Bastos, 2014, p. 49).
Como alternativa a tais prerrogativas, anotem-se algumas opiniões menos cingidas
(Araújo, 1999; Lucas, 2001; Sandroni, 2001), apontando para a possibilidade de a transcrição
servir, sim, metodologicamente; porém, numa construção de trabalhos em que dialoguem,
horizontalmente, o seu procedimento – algum registro do que se apreende duma realidade
sonora em atenção – com as outras maneiras de estudo dos elementos pertinentes ao contexto
músico-cultural em questão. Além disso, é sempre importante conciliar esse primeiro diálogo
com apontamentos vindos da reflexão crítica sobre as práticas de pesquisa e, de novo, sobre a
própria razão de ser do procedimento de transcrever música – levando em conta que uma
“transcrição [...] em si pode ser considerada uma forma de análise” (Chada, 2012, p. 04) ou
“um ato de interpretação” (Ribeiro, S/A, p. 01).
2
O mesmo resumo consta em Proposta de Pesquisa aprovada no processo seletivo do Doutorado em
Música da Universidade Federal de Minas Gerais. Adaptação para publicação no prelo.
Ora, a asserção que se delineia, em seus intentos, terá como ponto metodológico
central a tarefa do trabalho de campo. O plano inicial caminha para o exercício de uma
“audição-observação” (cf. Hijiki, 2004) de rodas de Choro e doutros ambientes em que essa
música se cultive em estruturas que contem com palcos – no primeiro caso, em performances
de verve mais participativa e, no outro, num formato mais próximo da apresentação de
música, onde se delimitam os lugares dos grupos de músicos e de uma plateia; faz-se uso,
aqui, dos conceitos de Michael Chanan (1994) e Thomas Turino (2008) para o tratamento das
distinções previstas num ou noutro universo, ambas no circuito chorão de BH3. Cogita-se,
ainda, empreender campo em ocasiões performáticas do Choro situadas em locais com
características híbridas, isto é, a meio caminho das tradicionais rodas e dos mais demarcados
palcos, algo semelhante à ideia de um fazer chorão conforme coloca Hermano Vianna: entre
os “quintais” e os “teatros” (Vianna in Cazes, 1998, p. 12).
O que se depreender dessas circunstâncias de contato – pensa-se – pode ser registrado
num relato etnográfico-fenomenológico (cf. Berger, 2008 e Titon, 2008): pretende-se um
modelo de descrição baseada na antes mencionada concepção de audição-observação e num
trabalho enredado por uma “psicologia descritiva” (Merleau-Ponty, 1999, p. 03) atenta às
experiências sensoriais, intencionais, volitivas, interacionais, tensionais e sinestésicas em
campo. Auxiliando este empreendimento descritivo, outros registros em vários formatos e
suportes também são pretendidos. Gravações audiovisuais – condensando momentos musicais
e entrevistas com os envolvidos na pesquisa – devem ser realizadas para criação de um
documentário que acompanhará o trabalho final. Assim também, transcrições das músicas que
se ouvirão durante as investidas a campo serão necessárias, tanto como ‘retrato’ de uma
paisagem sonora, quanto como subsídios para análises e exemplificações das paridades entre a
realidade musical dos diferentes ambientes estudados.
É de se antever que a proposta de investigação trata de uma abordagem que terá algo,
em si, de comparativa: colocar-se-ão, proximamente, a música e o modus operandi de
diferentes chorões, em situações espaciotemporais distintas, cada uma complexa. Ora, é
3
Michael Chanan e, mais adiante, Thomaz Turino chamam de Performance Participativa um tipo de
fazer musical em que a linha divisória entre executantes e ouvintes é, se ou quando existente,
considerável e grandemente atenuada. A expressão aparece antes num trabalho de M. Chanan (1994),
opondo-se ao que o autor denomina, grosso modo, como uma música que se torna parte de uma
economia estética definida pelo consumo passivo e cada vez mais privado, fruto de um longo e perene
processo histórico-econômico eurocidental. A leitura e emprego dos termos por T. Turino (2008)
interessa mais aqui, entretanto, pela sua aproximação com universos musicais populares ou que são
comumente tratados mais de perto pelas ferramentas usuais da Etnomusicologia. A Performance
Participativa se distingue das Presentation Performances, entendidas, pois, como situações de música
numa estrutura em que contempla-se marcadamente o palco e plateia.
importante destacar, então, que essa estratégia de trabalho não pressupõe ou intenta nenhuma
valoração ou classificação “do Choro verdadeiro para o artificial” ou “de um original para um
derivado” – não! Ao parear os diferentes tipos de execução chorona e os seus resultados
sonoro-musicais, o intuito da pesquisa é exatamente referir, positivamente, a diversidade e a
riqueza do universo atual do Choro em Belo Horizonte. A transcrição, como imanência de
dados do universo sonoro próximo, e possivelmente verossimilhante em alguns aspectos,
servirá como fonte de fixação e rememoração de exemplos da realidade musical em questão,
em suas especificidades, similaridades, contrastes, gestos e visagens.
Usando o termo de Charles Seeger (1958), trabalhado depois por Nettl (1964, p. 99),
infere-se que o quê “prescritivo” da escrita musical – aqui, de perto, a partitura – no caso do
Choro investe-se de complexidade ou mesmo de uma não literalidade: “o que se escreve nem
sempre é o que se toca” (Sève, 1999, p. 11). As performances dos chorões evidenciam – quase
regra – um contraste ao prescritivismo da notação que, ao menos idealmente, registraria seu
repertório: há uma maleabilidade rítmico-melódica na execução chorona (Salek, 1999). Assim
também, ornar, reelaborar ou colocar um sotaque a música que se toma da escrita – segundo
Jacob do Bandolim (Jacob Pick Bittencourt, 1918-1969) – configura-se como fator de
distinção de um bom chorão:
[...] há o chorão distante – que eu repudio – que é aquele que bota papel pra
tocar choro e deixa de ter, perde sua característica principal [...], e há o
chorão autêntico, verdadeiro, aquele que pode decorar a música do papel e
depois dar-lhe o colorido que bem entender. Este me parece o verdadeiro, o
autêntico, o honesto chorão. (Bittencourt em entrevista à Salek, 1999, p. 09).
[...] a partitura pode fornecer o fio condutor no qual devem ser introduzidas
modificações que fazem a diferença na interpretação. Ou seja, tocar somente
o que está no papel seria desmerecer a própria riqueza do estilo musical
Choro [...]. Entre os chorões, e na música popular, em geral, de tradição
eminentemente oral, a partitura tem muito mais o papel de descrever o que
seria a espinha dorsal da peça e não propriamente de estabelecer verdades
imutáveis sobre uma performance. (Salek, 1999, p. 08).
Abordando a escrita do Choro por outro viés, este mais próximo do universo da
transcrição musical, reflete-se sobre uma escrita descritiva: “um relato de como uma
determinada execução de fato soou.” (Seeger, 1958, p. 01). Quando se parte de uma
performance – menos ou mais culturalmente alheia ao copista – para, daí, colocar a música no
papel, está-se tratando da função descritiva da notação musical; muitos, inclusive, chamam
isso de transcrição5. Ocorre que tal prática no estudo do Choro merece advertência:
4
Durante um tempo, nos primórdios do Choro, “vender música” significava comercializar partituras
referentes ao repertório. Essa realidade se modificaria na primeira década do século XX, com a
invenção dos fonógrafos, gramofones e seus discos de cera.
5
Embora o termo tenha também outros usos e sentidos (cf. Barbeitas, 2000 e Pereira, 2011).
De fato, dentre os autores que se dedicaram ao trabalho de aproximação com o Choro
e, para tanto, utilizaram a transcrição musical como subsídio das suas análises, muitos relatam
a dificuldade de se empreender essa tarefa (e.g. Salek, 1999 e Gomes, 2007); e tratam da
necessidade, muitas vezes, de se adaptar determinados signos preexistentes.
Ora, essa não congruência da grafia descritiva dessa música parece não estar distante
do quase contracenso que se apontou acima, da realidade do uso prescritivo da partitura que,
se tomado a despeito da tradição transmitida pelo convívio entre chorões, resulta em
execuções pouco adequadas. É de se inferir, num primeiro exame, que a não vinculação aos
detalhes do traçado prescritivo da partitura chorona – pelos intérpretes – implica,
extensivamente, na impossibilidade de escritas musicais descritivas fidedignas.
Argumentos finais
Com seu modo de escrita que reúne habilmente o relato etnográfico e o discurso de
fundamentação teórico-metodológica, Anthony Seeger, no quinto capítulo da edição brasileira
de seu Porque cantam os Kisêdjê (2015, p. 181-206), afirma que na busca por respostas às
indagações de pesquisa que teimem em persistir durante os trabalhos etnomusicológicos, o
pesquisador deve exaurir todas as possibilidades metodológicas, das convencionais às mais
inusitadas, tanto pela via tecnicista – a partir de gravações ou gráficos, anotações manuais ou
via melógrafo, com ferramentas diversas, antigas ou modernas – quanto pelo ramo filosófico,
de questionamento e revisão crítica de conceitos. Segundo o autor, a práxis etnomusicológica
responsável não pode prescindir dos diferentes meios existentes que sirvam para a
aproximação e conhecimento das manifestações músico-culturais que se pretende descrever: a
complexidade da(s) música(s) é, pois, diretamente proporcional à multiplicidade e
heterogeneidade das maneiras necessárias de abordá-la(s) para fundar um conhecimento
fidedigno e, porque não, notar também novas questões pertinentes.
Claro que Seeger trabalha com um meio humano-musical distinto do que se tem em
conta aqui. Ainda assim, esse seu postulado provoca a reflexão e serve de proposta de
filosofia de trabalho. O estudo proposto da música do Choro, portanto, é digno de revisões, de
reconsideração autocrítica, e, na carreira direta dos apontamentos de Seeger, pode se
enriquecer com o uso de abordagens das mais distintas para o contato, a vivência e a imersão
cognoscente que pretenda o êxito. Assim se cogita a relação da proposta de pesquisa ora
mencionada com a noção – e a ferramenta – da transcrição musical: eis aí um aspecto da
empreitada de pesquisa que, embora possa apresentar alguns percalços, talvez sirva a reflexão
muito por isso mesmo – constatar as fronteiras dessa tarefa, no contexto de um trabalho
etnomusicológico sobre o Choro, avaliando criticamente tal situação, gerará informações tão
essenciais quanto qualquer outro tipo de dado ou de resposta direta de pesquisa.
Conforme se acredita, é tarefa urgente dum pensamento crítico a reflexão acerca de
seus próprios limites e dos limites de sua maneira de apropriação e representação das
informações circundantes. Somente a experiência, em caráter plural e na sua constituição
diversificada, será o meio eficaz de constatação de uma percepção que realmente se
transforme em fundamento e essência do conhecer. O presente artigo coloca-se, pois, como
incitante à reflexão orientada nesse sentido, adotando o tema da prática de transcrever música,
possível instrumento de inquirição do Choro nessa pesquisa.
Acredita-se que a tarefa de transcrição da música do Choro belo-horizontino, tanto ao
gosto tradicional quanto do contemporâneo, não se encerrará em si; muito porque carrega
problemas intrínsecos de adequação ao fenômeno sonoro que se investiga – uma vez que este
último não encontra uma escrita que lhe represente fiel e plenamente nem na forma
prescritiva, nem descritivamente. Ainda assim, o tempo dedicado à tarefa disciplinada de
ouvir e inquirir os sons, e transforma-los em dado visual, poderá fornecer ocasiões em que o
pensamento passe a distinguir melhor: 1) o que significa na música a partir da experienciação
unicamente sonora; 2) o que é tributário de uma construção, talvez, psicoacústica; 3) decifrar,
nas idas e vindas, pelas semelhanças e contrastes, quais elementos de um plano extra-acústico
são capazes de deslindar um sentido sensível. Afinal, a pretensão aqui se resume talvez pela
expectativa em assinar uma escuta que, mesmo divisa dos demais sentidos, se queira de verve
sinestésica; e que ao mesmo tempo em que auxilia na marcação de sons e silêncios nalgum
grafismo sequente, questione-se também sobre a descontinuidade deste seu ato frente ao
amplo fenômeno musical chorão a que se dedica.
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