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PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA JUNGUIANA

TURMA 2019
Módulo I
Unidade 1 - História da Psicologia Junguiana

SEQUELAS DO ROMPIMENTO COM FREUD

Entre 1914 e 1917, quando Jung estava trabalhando no que acabou


sendo seu próximo livro, Tipos psicológicos (que muitos estudiosos
consideram sua contribuição mais importante para a literatura da
psicanálise), achou que seria desonesto continuar a aplicar construtos
freudianos quando não podia aceitar o sistema de Freud em sua
totalidade. Além do mais, achava que Freud o havia marcado
opressivamente como charlatão, quando surgira o número do Jahrbuch
[anuário] de 1914 com uma versão unilateral freudiana sobre a teoria e
o evento psicanalítico. “Sobre a história do movimento psicanalítico”.
Ali Freud punira Jung por se dedicar “à inescrupulosa busca de seus
próprios interesses”, por suas “concepções errôneas da psicanálise e
pelos seus desvios com relação a ela”. (BAIR, 2006, pag.319-320)

Jung percebeu que sua credibilidade seria nula se continuasse a usar a


técnica de Freud, especialmente depois que este ainda tentou
desacreditá-lo publicando a carta de um ex-paciente que alegava “ter
sido forçado a experimentar” uma análise com Jung. Ele não deu
nenhuma resposta escrita formal ao ataque de Freud porque sua angústia
e confusão estavam agudas demais para fazê-lo.

(...). Mesmo assim Jung tinha pacientes para tratar, de modo que tomou
a decisão consciente de que, se as pessoas buscavam sua perícia, ele
tinha a obrigação de pelo menos escutá-las. Não faria interpretações
baseadas em seus textos científicos anteriores porque, nas condições em
que se encontrava, não estava mais seguro de seu valor. Mais
importante ainda, não faria diagnóstico algum baseado em suas
interpretações dos escritos dos outros, especialmente de Freud. (BAIR,
2006, pag.320)

UMA NOVA FORMA DE CLINICAR


Por diversas vezes Jung “percebeu” que seus pacientes estavam
trazendo “por eles mesmos” às sessões sonhos e visões, porque seu
método de tratamento tinha se tornado fazer perguntas simples e diretas:
“O que você quer dizer com isso? De onde ela [interpretação] vem? O
que você acha disso? ”. Também de súbito notou que suas
“interpretações vinham à luz sozinhas. Eu não olhava para nada que não
fosse o material e não trazia a elas quaisquer pré-requisitos teóricos”.
(BAIR, 2006, pag.320)

DESENVOLVENTO O SEU PRÓPRIO ESTILO


No início o método assustou-o de verdade, porque o considerou pouco
ortodoxo, mas à medida que o tempo passava, tornou-se apenas mais
umas das maneiras que o ajudavam a alcançar o tipo de “autocura”, ou
uma “integração” do self, enquanto ele observava fascinado como isso
ajudava os pacientes a obterem o mesmo resultado. (BAIR, 2006,
pag.320, grifo do autor)
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CLINICA PSICANALÍTICA X CLÍNICA ANALITICA

PSICANÁLISE PSICOLOGIA ANALÍTICA

Método Analítico-Redutivo * Método Sintético-Construtivo**

1 Compreensão retrospectiva Compreensão prospectiva


)
2 Causal Simbólico
)
3 Objetivo Subjetivo
)
4 Científica (porque?) Especulativa (para que?)
)
5 Ênfase no passado Ênfase no futuro
)
6 Redução do complexo ao simples “Redução” a tipos gerais análogos às construções
) Mitológicas

* Por exemplo, Freud buscava a redução do complicado sistema de delírios dos


pacientes, aos seus componentes mais simples e gerais. Tal método, por dar origem a
uma explicação que tem por base o princípio de causalidade, seria científico e objetivo.
**A ideia de apreender o conteúdo atual da psique como uma expressão simbólica,
conduziria ao método construtivo, o qual elaboraria algo mais complexo e elevado do
que a compreensão causal, mesmo sendo sempre, especulativo. O método construtivo,
ou prospectivo, então, estaria preocupado não só com as causas dos distúrbios, mas
também com sua relação com o futuro.

VULGARIZAÇÃO DA PSICANÁLISE
A palavra “psicanálise” vulgarizou-se a tal ponto, que quem usa o termo
até parece entender o que ele significa. No entanto, em geral, o leigo
desconhece o significado real da palavra: de acordo com a vontade do
seu criador, ela designa apenas, e acertadamente, o método inaugurado
por FREUD, para reduzir complexos de sintomas psíquicos a certos
processos instintivos recalcados; e, na medida em que esse
procedimento não é possível sem a base conceptual correspondente, o
conceito da psicanálise inclui também certos pressupostos teóricos, a
saber, a teoria sexual de FREUD, conforme exigência expressa de seu
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autor. Mas, ao invés disso, o leigo aplica o termo psicanálise, sem


distinção, a todas as tentativas modernas de conhecer a alma por
intermédio de métodos científicos. (JUNG, 2008, p.51, §115)

O recalque segundo Jung

No momento em que o espírito humano conseguiu inventar a ideia do


pecado, surgiu a parte oculta do psiquismo; em linguagem analítica: a
coisa recalcada. O que é oculto é segredo. O possuir um segredo tem o
mesmo efeito do veneno, de um veneno psíquico que torna o portador
do segredo estranho à comunidade. Mas esse veneno, em pequenas
doses, pode ser um medicamento preciosíssimo, e até uma condição
prévia indispensável a qualquer diferenciação individual. Tanto é que o
homem primitivo já sente fatalmente a necessidade de inventar
mistérios, a fim de, possuindo-os, proteger-se contra a sua absorção
pura e simples no inconsciente da coletividade, como se isso fosse um
perigo mortal para a alma. (JUNG, 2008, p.51, §124)

SOBRE A PSICOLOGIA ANALÍTICA E SUAS ETAPAS


(...) quanto a mim, prefiro a expressão “psicologia analítica”, para a
minha conceituação, procurando um modo genérico de englobar a
“psicanálise”, a “psicologia individual” e outras tendências no campo da
psicologia complexa. (JUNG, 2008, p.51, §115)

Obs.: A Psicologia Analítica também é referenciada como Psicologia Profunda ou Psicologia


Complexa.

Devido à extrema diversidade das tendências da nossa psicologia, é


imenso o esforço que temos que fazer para sintetizar os pontos de vista.
Faço, portanto, esta tentativa de dividir as propostas e o trabalho, em
classes, ou melhor, em etapas, com a reserva expressa de que se trata de
um empreendimento provisório, que poderá ser taxado de arbitrário...
vou arriscar-me a enfocar o resultado global em quatro etapas: a
confissão [“Solta o que tens, e serás acolhido”], o esclarecimento
[“descer do pedestal” ou assumir maior responsabilidade pessoal], a
educação [para o ser social] e a transformação [resgatando também o
que ficou para trás e passou desapercebido](JUNG, 2008, p.53, §122,
grifo do autor)

TONI ANNA WOLFF (*18/09/1888 +21/03/1953)


Aos 21 anos ela estava em estado de depressão aguda pela morte do pai que faleceu em
dezembro de 1909. Foi fazer análise com Jung em 20/09/1910. Jung tratou a depressão
dela estimulando e encorajando que ela usasse mais a mente. Ela ajudou Jung em suas
pesquisas e acompanhou Emma e Jung, junto com um grupo de outros colegas, na
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conferência de Weimar (Alemanha) em 1911. No final deste mesmo ano Jung encerrou
a análise com ela apesar da sensação crescente de “se sentir envolvido por ela”.

Em junho de 1913, Emma ficou grávida do quinto e último filho: uma


quarta menina. Emma Helene, nascida em 18 de março de 1914. Algum
tempo antes ou durante a gravidez de Emma, Jung e Toni Wolff
reconheceram como se sentiam profundamente atraídos um pelo outro,
e começou um nada ortodoxo triângulo emocional que durou pelo resto
da vida dos três. Apenas duas semanas depois de Emma dar à Luz “Lil”
(como a menina era conhecida na família), Jung e Toni tiraram umas
férias em Ravena, deixando Emma e o bebê aos cuidados da mãe dela, e
as crianças mais velhas com a mãe dele. Ravena passou a ter um
significado especial para Jung, e embora não exista documentação que
comprove, a cidade é em geral considerada o cenário da primeira
intimidade sexual entre ele e Toni. (BAIR, 2006, pag.322)

PARA TUDO EXISTE UMA EXPLICAÇÃO


Diversas vezes em sua vida e de diferentes maneiras, Jung descreveu
seu comportamento adúltero durante esse período. Referindo-se à teoria
de que existe um elemento feminino em cada homem (do mesmo modo
que há um “animus” em cada mulher). Jung se desobrigava de assumir a
responsabilidade por suas ações. “Na época eu estava no meio do
problema da “anima”. Em outras ocasiões ele ficava acanhado e
justificava-se, fazendo comentários do tipo: “O que se poderia esperar
de mim? A “anima” me mordeu na testa e não quis largar”. (BAIR,
2006, pag.322)

Toni Wolff era a única pessoa, além do filho de seis anos, Franz, que
Jung permitia que se sentasse com ele enquanto brincava às margens do
lago. Em geral ela se sentava em silêncio, fumando, um pouco afastada,
tentando buscar abrigo do sol que lhe feria os olhos e queimava a pele
clara, falando apenas quando ele iniciava a conversa. (BAIR, 2006,
pag.323)

Toni Wolff foi a única pessoa, durante o início de 1914, a ler o Livro
negro, e se Jung teve qualquer tipo de psicanálise formal (ou informal),
esta fora feita por ela naquela ocasião. (Ibidem)

A PREOCUPAÇÃO COM SEUS PACIENTES EM TEMPOS DE GUERRA

O bem-estar dos discípulos e dos pacientes preocupava Jung de maneira


diferente. Ele achava que em especial os estrangeiros estavam
demasiadamente isolados, tendo pouca ou nenhuma oportunidade de
encontrar outras pessoas com os mesmos interesses. (...), mas os
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pacientes e os discípulos suíços de Jung - embora não estivessem tão


deslocados quanto os estrangeiros – também sentiam uma grande
necessidade de encontrar pessoas que compartilhassem do seu interesse
na psicologia. (HANNAH, 2003, pag.136-137)

A medida em que crescia o grupo em volta dele, surgiu o problema de


como dar-lhe algum tipo de vida corporativa, pois a maior parte dos
componentes do grupo sequer se conhecia. (...) Cada vez mais, Jung
sentia a necessidade de um grupo social como base de realidade para
aquilo que todos estavam aprendendo em termos de psicologia. Ele não
concordava com os analistas Freudianos que – pelo menos naquele
tempo – evitavam todo e qualquer contato com os seus pacientes fora da
análise e começou a sentir a necessidade de oportunidades para
conhecer os pacientes e suas reações em um contexto mais próximo da
vida exterior do que o consultório e a sessão de análise. (HANNAH,
2003, pag.137, grifo do autor)

JUNG NÃO ERA A FAVOR DA TERAPIA DE GRUPO

Para evitar equívocos, convém enfatizar, contudo, que Jung sempre


reprovou veementemente qualquer forma de “análise de grupo”. A
análise é uma coisa essencialmente individual e não tem sentido algum
exceto paro o indivíduo. A ideia de criar algum tipo de grupo ou vida
social para seus pacientes visava unicamente a impedir que ficassem
isolados demais ou apartados da vida. Ele costumava dizer: “Não é
possível individuar-se no topo do Monte Everest! ”. Os pacientes em
análise necessitam ardentemente de um lugar onde não estivessem sós,
mas pudessem encontrar-se com outras pessoas que compartilhassem
dos mesmos interesses, um local onde pudesse trocar ideias e encontrar
companheirismo. (HANNAH, 2003, pag.137, grifo do autor)

Ele também providenciou conferências sobre psicologia e assuntos afins


e incentivou discípulos e pacientes a testarem suas habilidades de
conferencistas. (Ibidem)
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1916 – O CLUBE DE PSICOLOGIA / INSTITUTO (1948)

Nesse empreendimento, ele teve grande auxílio da Sra. Harold


McCormick, uma americana que ficou em Zurique analisando-se com
Jung (...) de 1913 a 1923. Além de ser casada com um magnata (...)
Edith McCormick era filha de John D. Rockefeller, de modo que estava
em condições de doar ao clube uma considerável fortuna. (HANNAH,
2003, pag.137)

(...) uma casa bem mais modesta na Gemeindestrasse, situada em um


bairro mais calmo e aprazível. O clube ficou acomodado em seu andar
térreo, com um salão para conferências e festividades, além de três ou
quatro salas para biblioteca e outras atividades sociais. Esse prédio
ainda existe praticamente inalterado, ainda tendo o clube no andar de
térreo e, atualmente, o Instituto C. G. Jung em seu andar superior.
(HANNAH, 2003, pag.138)

ALTOS E BAIXOS DO CLUBE

Se Jung era o centro espiritual do Clube, Toni Wolff com certeza era a
sua viga mestra. Sendo uma pessoa extremamente introvertida, ela
achou muito difícil lidar com o clube de início, mas, à medida que os
anos foram passando, ela foi destinando cada vez mais energia para ele,
tendo sido, sem dúvida, a melhor presidente que o clube já teve. O clube
deve a ela mais do que a qualquer outra pessoa, exceto o próprio Jung,
por sua dedicação e iniciativa para desenvolver sempre novas
atividades; em suma, Toni foi quase tão importante quanto o próprio
Jung para o Clube Psicológico, em especial durante os seus primeiros
anos de existência, devido ao suporte e companheirismo que
proporcionou a muita gente solitária. (HANNAH, 2003, pag.138)
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(...) o Clube Psicológico passou por alguns períodos difíceis dos quais
eu sei apenas de ouvir. Em determinado momento, o próprio Jung
chegou a deixá-lo, embora a continuidade tenha sido garantida pela
presença de Emma Jung e Toni Wolff e por vários discípulos leais. Não
demorou muito, porém, para que Jung cedesse aos apelos e retornasse.
Ele já havia percebido, bem antes desses contratempos, que palestras e
discussões científicas não eram o bastante para manter a coesão de um
grupo. Sendo assim, ele não só incentivou diversos encontros sociais,
como também dava grande ênfase aos contatos sociais e aos petiscos
que sempre eram oferecidos durante os intervalos entre as conferências
e as discussões subsequentes. (HANNAH, 2003, pag.203)

1933 – ERANOS JAHRBUCH (anuário)

Em 1933, Olga Froebe-Kapteyn fundou o encontro anual de Eranos, em


Ascona, para o qual era convidado um grupo de estudiosos
internacionais para falarem de determinado tema. As conferências
tinham como tópico central a história da religião e da cultura,
enfatizando em particular as relações entre o Oriente e o Ocidente. Jung
serviu como consultor para Froebe-Kapteyn, indicando temas e
conferências, ao mesmo tempo em que cuidava para que Eranos não se
tornasse simplesmente um veículo de divulgação de sua escola.
(SHAMDASANI, 2003, pag.)

1948 – INSTITUTO C. G. JUNG

Como havia a perspectiva da divisão do clube para atender a ingleses e americanos na


elaboração de conferencias em inglês e algum tipo de vida social para eles, Jung optou
pela criação do instituto ao invés da divisão.
(...) todos ficaram atordoados com a sua proposta totalmente inesperada,
de fundar um instituto, em escala bem maior. Sabendo o quanto ele
próprio havia sido contrário a essa ideia apenas dois anos antes, um
pouco depois de haver completado 70 anos, perguntei-lhe, no caminho
de casa (habitualmente eu conduzia os Jungs para as reuniões do
Clube), por que ele havia mudado de ideia. Ele disse que havia
percebido que seria impossível impedir que fosse criado algo desse tipo,
pois havia muitas pessoas determinadas a fazê-lo. “Eles iriam criar um
de qualquer maneira, entre minha morte e meu funeral, de modo que
achei melhor fazê-lo enquanto eu ainda puder exercer alguma influência
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em sua forma e talvez impedir alguns erros mais crassos”. (HANNAH,


2003, pag.306)

Outra razão para que o próprio Jung criasse o Instituto C. G. Jung pode,
provavelmente, ser encontrada em um texto gnóstico, que contém um
diálogo entre João Batista e Cristo, no qual o primeiro pretende manter
os mistérios em segredo, pois as pessoas não os compreenderiam e os
destruiriam. Cristo, por seu turno, pensa que os ensinamentos devem ser
proporcionados a todos, para o bem dos que venham a compreendê-los
e beneficiar-se deles. (HANNAH, 2003, pag.306-307)

Já no final dos seus dias, podemos ver o mesmo conflito, que na ocasião
foi solucionado através de um sonho: depois de uma firme recusa, ele
finalmente decidiu abrir o processo de individuação para um público
bem maior, mediante a publicação de O Homem e seus símbolos.
(HANNAH, 2003, pag. 307, grifo do autor)

“O CONHECIMENTO DEVE SER DADO ÀQUELE QUE QUER APRENDER” (ditado


Maçônico)

MARIE-JEANNE SCHIMID

Marie-Jeanne Schimid foi secretária de Jung durante 20 anos [1932-


1952] e acabou tornando-se virtualmente insubstituível. Isso não quer
dizer que ela fosse infalível – ela era suficiente humana para cometer
erros e jamais se considerar – “a secretária perfeita”. Ela enquadrou-se
perfeitamente e de fato foi de enorme valia durante todos os anos em
que trabalhou para Jung. Era da mesma idade que as filhas mais jovens
de Jung e muito brincaram quando crianças. Embora tivesse o seu
próprio apartamento nas proximidades, ela sempre almoçava na casa de
Jung na Seestrasse e ajudava a esposa de Jung no que fosse necessário,
sem jamais causar problemas à família. (HANNAH, 2003, pag.213)

Depois de lidar da melhor maneira que podia com o trabalho de


escritório durante vários anos, foi uma alegria totalmente inesperada
dispor dos serviços de uma secretária competente, que tomava conta de
sua correspondência e manuscritos e sempre conseguia localizar tudo o
que lhe fosse pedido. Ele também apreciava o fato de que ela tinha vida
própria, tendo mais coisas com que se ocupar do que cuidar apenas das
coisas de Jung. (Ibidem)

FALTAVA ALGO PARA JUNG APÓS A GUERRA


Segundo Hannah (2003, p 147) embora mesmo antes do término da 1ª
guerra Jung já tivesse concluído o “confronto com o inconsciente”, ele
ainda sentia que alguma coisa estava faltando. Para a autora,
permanecia nele um sentimento de que as coisas registradas apenas no
papel ainda não tinham uma forma suficientemente real. “Necessitava
representar meus pensamentos mais íntimos e meu saber na pedra, nela
inscrevendo, de algum modo, uma profissão de fé. Foi assim que
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comecei a construir a ‘Torre’ de Bollingen” (JUNG apud HANNAH,


2003, p. 147).

Era uma cabana deste gênero que eu queria construir, uma morada que
correspondesse aos sentimentos primitivos do homem. Ela devia
oferecer uma sensação de refúgio e de abrigo, não só em sentido físico,
mas também psíquico. (BAIR, 2006, pag.321)

Desde o princípio tive a certeza de que era necessário construir à beira


da água. O encanto particular da margem do lago superior de Zurique
me fascinou sempre e por isso comprei, em 1922, um terreno em
Bollingen, no distrito de St. Meinrad, que pertencera à Igreja, antiga
propriedade na abadia de St. Gall.

No princípio não pensei em fazer uma verdadeira casa, mas apenas uma
construção de um andar, com lareira no centro e beliches ao longo das
paredes, à maneira das moradas primitivas. Tinha diante dos meus olhos
a imagem de uma cabana africana: no centro, cercado por algumas
pedras, o fogo brilha e em torno dele se desenrola a existência da
família. (JUNG, 2006, p.163)

Era uma cabana deste gênero que eu queria construir, uma morada que
correspondesse aos sentimentos primitivos do homem. Ela devia
oferecer uma sensação de refúgio e de abrigo, não só em sentido físico,
mas também psíquico. (JUNG, 2006, p.164)

UM AMBIENTE IDEAL DE REFLEXÃO...


Nesse espaço fechado vivo só comigo mesmo. Guardo a chave e
ninguém pode entrar lá, sem a minha permissão. No correr dos anos
pintei as paredes desse quarto, exprimindo tudo o que me conduz da
agitação do mundo à solidão, do presente ao intemporal. É um recanto
de reflexão e da imaginação; as fantasias são muitas vezes
desagradáveis e os pensamentos árduos: é um lugar de concentração
espiritual. (JUNG, 2006, p.164)

[REMETE AO SEU SÓTÃO QUANDO CRIANÇA]


...DE DESCANSO E SABEDORIA

Desde o início, a torre foi para mim um lugar de amadurecimento – um


seio materno ou uma forma materna na qual podia ser de novo como
sou, como era, e como serei. A torre dava-me a impressão de que eu
renascia na pedra. Nela via a realização do que, antes, era um vago
pressentimento: uma representação da individuação. (...) Em Bollingen
sou mais autenticamente eu mesmo, naquilo que me concerne. Aqui
sou, por assim dizer, um filho “arquivelho” de sua “mãe”. Assim fala a
sabedoria dos alquimistas, pois o “velho”, o “arquivelho” que eu sentira
em mim, quando criança, é a personalidade número dois que sempre
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viveu e sempre viverá, fora do tempo, filho do inconsciente materno.


Em minhas fantasias, o “arquivelho” tomava a forma de Filemon
[aquele que ama] e este era vivo em Bollingen. (JUNG, 2006, p.165-
166)

[Recorte] TEMENOS
“Área consagrada, circundada por um templo. ”

“Círculo sagrado onde uma pessoa pode ser ela mesma, sem medo. ”

Stonehenge, que fica na planície de Salisbury ao sul da Inglaterra.

O templo de Qasr al-Bint em Petra (Sul da Síria) na qual uma grande porta com três vãos
separava a zona pública da zona sagrada, ou temenos, e permitia o acesso ao templo.

TEMENOS – Uma palavra usada pelos antigos gregos para definir um recinto sagrado (isto é,
um templo) dentro do qual a presença de um deus pode ser sentida.

O uso da palavra por Jung não acrescenta nada a seu significado original, porém lhe dá uma
aplicação psicológica. Aplicava-a de forma quase metafórica para descrever: a área
psiquicamente carregada que circunda um complexo, inabordável pela consciência e bem
guardada por defesas do ego; um recinto analítico (isto é, da transferência) dentro do qual
analista e paciente sentem-se na presença de um inconsciente potencialmente avassalador e uma
força demoníaca; a área da psique mais estranha ao ego e caracterizada pela numinosidade do
Self ou Imagem de Deus; e o continente psicológico moldado pelo analista e pelo paciente
durante a análise é caracterizado por um respeito mútuo a processos inconscientes, sigilo, um
compromisso com uma atualização simbólica e confiança no senso ético um do outro.

Um sinônimo de temenos é “o recipiente hermeticamente vedado”. Este é um termo alquímico


usado para o continente fechado dentro do qual os opostos se transformam. Devido à presença
de um elemento hermético sagrado e imprevisível não pode haver garantia de que o processo
venha a ser positivo. Por analogia, o temenos psicológico pode ser experimentado como um
útero ou uma prisão. A presença de um elemento errático e imprevisível no temenos psicológico
fez com que Jung observasse, a propósito do continente analítico, que a psicoterapia tem êxito,
quando é o caso. “Deo concedente” (um epiteto alquímico que significa “se Deus conceder”).
(SAMUELS; SHORTER; PLAUT, 1988, p.210-211)

O BRAZÃO DA FAMÍLIA JUNG


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Durante o inverno de 1955-1956, esculpi os nomes de meus


antepassados paternos em três lápides, que fixei na loggia
[elemento arquitetônico]. Pintei no teto motivo de meus
brasões, dos de minha mulher e de meus genros.
Originalmente, a família Jung tinha uma fênix como animal
heráldico, o que, sem dúvida, tem relação com a palavra Jung
(jovem) (...). Mas meu avô modificou os elementos do brasão,
provavelmente por reatividade ao pai. Era franco-maçom
entusiasta e grão-mestre da Loja Suíça. (JUNG, 2006, p.272,
grifo do autor)

A TORRE DE BOLLINGEN

A Torre foi construída principalmente como um local onde Jung pudesse “renascer na
pedra” e onde pudesse ser ele próprio em sua totalidade, “um local de contemplação
espiritual”. Um destaque sobre a importância de Bollingen para o equilíbrio psíquico de
Jung obtém-se do seguinte relato:
Bollingen era principalmente um local onde [Jung] podia ficar bem
sozinho e onde mesmo os mais chegados não podiam aparecer de
surpresa enquanto estivesse trabalhando, e ele gostou disso mais do que
qualquer outra coisa do início ao fim. Somente cerca de dois anos antes
de sua morte, eu estava sentada perto dele certo dia em que estava
cortando lenha junto ao lago. Falávamos da crença budista na
reencarnação. Comentei que, nesse caso, esperava fosse a última vez
que eu tivesse de reencarnar! Jung começou concordando
animadamente, como sempre ocorria em tais discussões, mas então
subitamente ele parou, ficou olhando em volta em silêncio e disse:
“Não, eu estou errado. Se fosse para ter Bollingen, eu estaria disposto a
voltar”. (HANNAH, 2003, p.161)

A TIPOLOGIA DE JUNG / BOLLINGEN

De acordo como Zacharias (1995), a tipologia de Jung seria: Atitude introvertida, com
função principal Intuição e função secundária Pensamento. Podemos confirmar esse
parecer através de descrição da Dra. Nise da Silveira ao relatar:
O conhecimento da vida e da obra de Jung, a valorização que ele dá aos
fatores subjetivos, permitem situá-lo do lado dos introvertidos. (...). Mas
a leitura atenta de seus livros, permite discernir que sua função principal
era a intuição. Parece que em visões de longo alcance ele apreendia o
sentido dos processos psíquicos de maneira imediata para depois passar
todo o material assim colhido pelos crivos do pensamento, trabalhando-
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o refletidamente e documentando-o exaustivamente. (SILVEIRA, 1974,


p. 68-69)

A IMPORTÂNCIA DE BOLLINGEN

Não era um sábio de gabinete. Não desdenhava a vida real. Sabia usar
as mãos: lavrava a terra, rachava lenha, cozinhava, esculpia a pedra.
Introduziu a dimensão sentimento na sua obra científica, dando a
importância devida à tonalidade afetiva que impregna toda a
experiência vivida de verdade. E seu pensamento era decerto poderoso.
(SILVEIRA, 1974, p. 68)

A LAPIS PHILOSOPHORUM

Em 1950 erigi uma espécie de monumento de pedra, simbolizando o


que a torre representa para mim. É uma estranha história o modo
pelo qual a pedra chegou às minhas mãos.

Ao construir o muro de separação do que chamei jardim, precisava de


pedras. (...). Quando as pedras chegaram por barco e foram
descarregadas, verificou-se que as medidas da pedra angular não
conferiam com as do pedido. (...) O pedreiro, furioso, disse aos
barqueiros que podiam levá-la de volta. (JUNG, 2006, p.165, grifo
nosso)

Quando vi a pedra, disse: “Não! É minha pedra, e eu preciso dela! ”


Logo vi que me convinha perfeitamente, e eu queria utilizá-la. Mas não
sabia ainda de que modo. (JUNG, 2006, p.166)

A PEDRA DO ALQUIMISTA

Ocorreu-me imediatamente uma estrofe latina do alquimista Arnaud de


Villeneuve (morto em 1913); resolvi esculpi-la na pedra. A tradução é
esta:

Eis a pedra, de humilde aparência.


No que concerne ao valor, pouco vale –
Desprezam-na os tolos
E por isso mais a amam os que sabem.

Logo observei um detalhe: no plano anterior distingui, na estrutura da


pedra, um pequeno círculo, uma espécie de olho que me fitava.
Cinzelei-o e coloquei um homenzinho no centro: é o boneco que
corresponde à pupila do olho, espécie de Cabiro ou de Telésforo de
Esculápio. Ele usa um manto com capuz e tem uma lanterna, tal como
se vê nas representações antigas. Ao mesmo tempo, é aquele que indica
o caminho! Dediquei-lhe algumas palavras que me vieram ao espírito
enquanto trabalhava.

A inscrição é em grego; eis a tradução: “O tempo é uma criança –


brincando como uma criança – sobre um tabuleiro de xadrez – o reino
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da criança. Eis Telésforo, que vaga pelas regiões sombrias deste cosmo
e que brilha qual estrela se erguendo das profundidades. Indica o
caminho das portas do sol e país dos sonhos. ” (JUNG, 2006, p.167,
grifo do autor)

1920 - VIAGEM À TUNÍSIA E ARGÉLIA (Norte da África).

(...) Jung teve experiências diretas de contato com os “primitivos” de


que falava: em 1920, visitou o norte da África e, em 1925, os índios
Pueblo, no Novo México, além do Quênia e de Uganda; novamente, em
1938, foi à Índia.

Em 1920, ele acompanhou seu amigo Hermann Sigg, que fazia uma
viagem de negócios ao norte da África. Sua intenção era “ver, uma vez
ao menos, os europeus segundo um prisma fora da Europa, refletidos
num meio que lhes fosse estrangeiro em todos os sentidos”. Afirmava
que o único meio de chegar a um entendimento de suas próprias
peculiaridades nacionais seria tomando consciência de como os outros
as viam. Sendo assim, viajar para o exterior era a via régia para uma
etnopsicologia comparativa. (SHANDASANI, 2006, p.339-340)

Eu estava, enfim, onde tantas vezes desejara estar, num país não
europeu em que não se falava nenhuma língua da Europa, onde não
dominavam os preconceitos cristãos, habitado por uma outra raça, e
onde uma tradição histórica e uma concepção diferente do mundo se
estampavam no rosto da multidão. Desejara muitas vezes ver, de fora, o
europeu refletido num meio estrangeiro, sob todos os pontos de vista.
Deplorava profundamente meu desconhecimento da língua árabe, mas
isso me fazia observar com maior atenção as pessoas e seu
comportamento. Às vezes permanecia horas a fio sentado num bar,
escutando conversas, sem entender uma só palavra. Estudava ao mesmo
tempo, com atenção, a mímica e principalmente as manifestações
afetivas das pessoas. (JUNG, 2006, p.283)

Aquilo que o europeu considera como placidez oriental e apatia me


pareceu ser uma máscara atrás da qual pressentia uma inquietude e até
mesmo uma excitação que não conseguia absolutamente explicar.
Pisando o solo mourisco experimentei uma preocupação estranha, que
não podia compreender: sentia um cheiro bizarro no país, um cheiro de
sangue que parecia embeber a terra. Veio-me então ao espírito a ideia
de que esse canto de terra já liquidara três civilizações: a civilização
púnica, a romana, a cristã. O que a era da tecnologia fará ao Islã? É
preciso esperar, para saber. (JUNG, 2006, p.284)
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Senti-me transportado para vários séculos atrás, no passado, no mundo


infinitamente mais ingênuo de adolescentes que apenas começavam,
com a ajuda de um frágil conhecimento do Corão, a livrar-se do estado
original, crepuscular, que existia desde os tempos mais remotos, e a
tomar consciência da própria existência, a fim de se protegerem da
dissolução ameaçadora que vinha do Norte. Permanecia ainda sob a
esmagadora impressão do tempo infinito, da existência estática, quando
pensei, de repente, no meu relógio de bolso, símbolo do tempo
acelerado dos europeus. Era esta, sem dúvida, a inquietante nuvem
sombria que passava, ameaçadora, sobre a cabeça desses ingênuos.
Subitamente, deram-me a impressão de animais selvagens que não
veem o caçador, mas que o pressentem – por uma sensação imprecisa
de opressão – a ele, deus do tempo, que fragmentará e encurtará em
dias, horas, minutos e segundos sua duração ainda contida na
eternidade. (JUNG, 2006, p.284-285)

1924-1925 - VIAGEM DE ESTUDOS AOS ÍNDIOS PUEBLO NO ARIZONA E NO


NOVO MÉXICO, EUA.

“(...) Era chefe dos pueblos Taos, homem inteligente, de quarenta a cinquenta anos. Chamava-se
Ochwiay Biano – Lago da Montanha. ” (JUNG, 2006, p.292)

“Veja”, dizia Ochwiay Biano, “como os brancos têm um ar cruel. Tem


lábios finos, nariz em ponta, os rostos sulcados de rugas e deformados.
Os olhos têm uma expressão fixa, estão sempre buscando algo. O que
procuram? Os brancos sempre desejam alguma coisa, estão sempre
inquietos, e não conhecem repouso. Nós não sabemos o que eles
querem. Não os compreendemos e achamos que são loucos! ” (JUNG,
2006, p.293)

Perguntei-lhe então por que pensava que todos os brancos eram loucos.
Respondeu-me: “Eles dizem que pensam com suas cabeças. ”

- Mas naturalmente! Com o que pensa você? – Perguntei admirado.

- Nós pensamos aqui – disse ele, indicando o coração. (Ibidem)

O Índio Pueblo é extremamente fechado, absolutamente inacessível no


que diz respeito à religião, intencionalmente faz de suas práticas um
mistério tão bem preservado que renunciei – por ser impossível – a
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seguir a pergunta direta. Nunca sentira, antes, uma tal atmosfera de


mistério, pois as religiões do mundo civilizado de hoje são acessíveis a
todos; há muito seus sacramentos perderam o caráter misterioso. Ora,
aqui o ar era saturado de mistério, conhecido por todos, mas inacessível
ao branco. (...) eu não via nisso uma mistificação; sentia que era um
segredo vital, cuja traição seria um perigo tanto para o indivíduo como
para a coletividade. A preservação do segredo dá ao pueblo orgulho e
energia para resistir ao branco todo-poderoso. Dá-lhe coesão e unidade.
Senti que há uma certeza: os pueblos, como coletividade personalizada,
subsistirão na medida que conservarem seus mistérios, ou enquanto
estes não forem profanados. (JUNG, 2006, p.295)

Admirado constatava o quanto a expressão do índio se modificava ao


falar de suas ideias religiosas. (...). Quando tocava no essencial, ele se
calava ou dava uma resposta evasiva, manifestando uma profunda
emoção; às vezes seus olhos se enchiam de lágrimas. Para eles as
concepções religiosas não são teorias (...), mas fatos tão importantes e
significativos como as realidades exteriores correspondentes. (JUNG,
2006, p.295-296)

1925-1926 - VIAGEM AO QUÊNIA E UGANDA (Leste da África).

Durante a viagem passamos, ao longo da costa, perto de numerosas


aldeias negras; as pessoas conversavam, sentadas em torno de pequenas
fogueiras. Logo, a estrada começou a subir. As aldeias desapareceram e
nos encontramos numa noite escura como breu. Pouco a pouco, o
frescor aumentou e adormeci. Só despertei quando o primeiro raio de
sol anunciou o começo do dia. O trem, envolto numa nuvem de poeira
avermelhada, contornava uma escarpa de rochas vermelhas. Sobre um
pico, acima de nós, imóvel, vi a forma esguia, cor de terra escura, de um
homem apoiado numa longa lança, olhando o trem que passava. Perto
dele erguia-se um gigantesco cactos-candelabro. (JUNG, 2006, p.300)

Fiquei como que enfeitiçado por esse espetáculo: era um quadro


estranho, que eu jamais vira, mas que me dava, no entanto, um intenso
sentiment du deja vu. Tive a impressão de que já vivera esse instante
uma vez, e que sempre conhecera esse mundo separado de mim apenas
pelo tempo. Era como se voltasse ao país de minha juventude, e
conhecesse esse homem escuro que me esperava há cinco mil anos.
(Ibidem)

Isso ocorreu depois de estar na África apenas a dois dias (em Mombaça)
e parece-me resumir toda a sua permanência por lá. Ambas as suas
personalidades, nº1 e nº2, estavam consteladas e ativas, operando
simultaneamente. A personalidade nº1 percebia o homem cor de terra
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escura como um estranho, pois jamais em seus 50 anos de vida ele havia
visto ou vivenciado nada igual; mas a personalidade nº2, em sua
atemporalidade, avançava até as mais profundas camadas do
inconsciente até os ancestrais originais e naturalmente sentia como se já
conhecesse o homem que dela estava separada apenas pelo tempo. Uma
tão completa constelação do Si-mesmo e do ego parece-me ser o
prólogo necessário para a tremenda impressão que a África viria a
causar em Jung. Com efeito, ele afirma: “o tom emocional dessa curiosa
experiência acompanhou-me ao longo de toda a minha viagem através
da África selvagem”. (HANNAH, 2003, p.178)

Não demorou muito para que Jung tivesse a experiência que talvez mais
o tenha marcado durante toda a sua permanência no monte Elgon. Ao
amanhecer, quando o sol desponta no horizonte, os nativos emergiam de
suas cabanas, cuspiam nas mãos e voltavam as palmas em direção ao
sol. Perguntados por Jung, não conseguiam explicar tal ação:
simplesmente, eles sempre haviam feito assim. Por outro lado, quantos
europeus são capazes de explicar as velas na árvore de natal ou o
porquê de esconder ovos coloridos na Páscoa? Jung ficou sabendo que,
somente no instante em que nasce, o sol é mungu, Deus; a lua nova,
com seu primeiro crescente dourado, também é Deus. A saliva é a
substância da alma para os primitivos, de modo que de fato eles
estavam dizendo: “ofereço a Deus minha alma vivente”, ou uma “prece
sem palavras, que poderia também significar: Senhor, em tuas mãos
entrego meu espírito! ” (HANNAH, 2003, p.182, grifo do autor)

(...) ele havia ficado impressionado com o límpido otimismo dos


elgonyis durante o dia, o qual dava lugar, sem contradições internas, ao
terror e ao pessimismo durante a noite. Isso mostra-nos vividamente o
quanto os opostos estão próximos entre os povos primitivos, sem que
haja o largo e doloroso abismo que a civilização abriu entre eles.
(HANNAH, 2003, p.183)

1938 - VIAGEM À INDIA.

Na Índia encontrei-me pela primeira vez sob a influência direta de uma


civilização estrangeira altamente diferenciada. Durante a minha viagem
através da África, impressões muito diversas – e não a civilização –
foram determinantes. Na África do Norte nunca tive ocasião de
conversar com um homem que estivesse em condições de traduzir sua
cultura em palavras. Agora, entretanto, apresentava-se a ocasião de falar
com representantes da mentalidade Indiana, e podia compará-la com a
da Europa. Isso foi para mim da maior importância. (JUNG, 2006,
p.322)
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A meta do Indiano não é atingir a perfeição moral, mas sim o estado de


nirdvandva. Quer livrar-se da natureza e, por conseguinte atingir pela
meditação o estado sem imagens, o estado do vazio. Eu, pelo contrário,
tendo a manter-me na contemplação viva da natureza, pois tudo isso
representa, a meus olhos, uma indescritível maravilha. A natureza, a
alma e a vida me aparecem como uma expansão do divino. O que mais
poderia desejar? Para mim, o sentido supremo do ser consiste no fato de
que isso é, e não o fato de que isso não é ou não é mais. (JUNG, 2006,
p.323)

LETRA DA CANÇÃO “THE RHYTHM OF THE HEAT” (JUNG IN ÁFRICA) DE


PETER GABRIEL

Looking out the window Olhando pela janela


I see the red dust clear Eu vejo o pó vermelho claro
High up on the red rock No alto da rocha vermelha
Stands the shadow with the spear Fica a sombra com a lança

The land here is strong A terra aqui é forte


Strong beneath my feet Forte debaixo dos meus pés
it feeds on the blood Se alimenta de sangue
it feeds on the heat Alimenta-se do calor

The rhythm is below me O ritmo está abaixo de mim


The rhythm of the heat O ritmo do calor
The rhythm is around me O ritmo está em torno de mim
The rhythm has control O ritmo tem controle
The rhythm is inside me O ritmo está dentro de mim
The rhythm has my soul O ritmo tem minha alma

The rhythm of the heat O ritmo do calor


The rhythm of the heat O ritmo do calor
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The rhythm of the heat O ritmo do calor


The rhythm of the heat O ritmo do calor

Drawn across the plainland Traçada através da planície


To the place that is higher Para o lugar que é maior
Drawn into the circle Desenhado no círculo
That dances round the fire Que dança em volta do fogo
We spit into our hands Nós cuspimos em nossas mãos
And breathe across the palms E respiramos através das palmas das mãos
Raising them up high As levantamos para o alto
Help open to the sun Ajuda aberta ao sol

Self-conscious, uncertain Autoconsciente, incerto


I'm showered with the dust Estou regado com a poeira
The spirit enter into me O espírito entra em mim
And I submit to trust E eu me submeto a confiar

Smash the radio Esmagar o rádio


No outside voices here Não há vozes de fora aqui
Smash the watch Esmagar o relógio
Cannot tear the day to shreds Não se pode rasgar o dia em pedaços
Smash the camera Esmagar a câmera
Cannot steal away the spirits Não se pode roubar os espíritos
The rhythm is around me O ritmo está em torno de mim
The rhythm has control O ritmo tem controle
The rhythm is inside me O ritmo está dentro de mim
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

 BAIR, Deirdre. Jung: Uma Biografia. Vol.1. São Paulo: Editora Globo, 2006.

 HANNAH, Bair. JUNG: Vida e Obra– uma memória biográfica. Porto Alegre: Artmed,
2003

 JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006.

 ______. A prática da psicoterapia. 11ª ed. O.C. Vol. XVI/1 - Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

 SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred. Dicionário Crítico de Análise


Junguiana. Rio de janeiro: Imago, 1988.

 SILVEIRA, Nise da. Jung, vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1974.

 SHAMDASANI, S. Jung e a construção da psicologia moderna. Aparecida, SP: Ideias e


Letras, 2006.

 ZACHARIAS, José Jorge de Morais. Os Tipos Humanos. São Paulo: Paulus, 1995.

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