Você está na página 1de 4

<resenha>

AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019.

Rafael de Souza

Estaríamos incorrendo numa trajetória lenta, gradual e inexorável de declínio


da democracia brasileira? Segundo Leonardo Avritzer em seu novo livro – O
pêndulo da democracia –, a questão sobre o destino das instituições é mais
complexa. Em seu entender, o que melhor captura a dinâmica política nos
últimos anos é a metáfora do movimento pendular, pois os regimes brasileiros
vêm oscilando entre duas polaridades: o autoritarismo e a democracia. Isso
ocorre, porque elementos autocráticos e democráticos coexistem lado a lado na
nossa institucionalidade, o que vem produzindo a alternância entre períodos de
expansão de direitos (1945-1964, 1989-2013) e de retrocessos institucionais
(1964-1988, 2013-2018). Não se trata, portanto, de uma degradação irreversível
ou de um pendor puramente autoritário na cultura nacional. Há uma adesão
circunstancial tanto aos valores democráticos quanto aos valores autoritários.

O autor elabora os argumentos a partir de três premissas. A primeira delas é


levar em consideração as experiências políticas de 1945 a 2018. Desse modo,
Avritzer demarca que o consenso em relação à democracia é fortuito e vem
titubeando volta e meia. O segundo momento analítico consiste em olhar as
relações entre as classes sociais, o mercado e o Estado brasileiro. E, por fim, o
autor procura analisar os efeitos desses fatores na institucionalização dos
direitos civis e nas políticas de bem-estar social no Brasil.

A fim de demonstrar esse caráter pendular, o livro está recheado de episódios


sintomáticos da conjuntura política recente: as manifestações de junho de 2013,
a ascensão da Operação Lava-Jato e a política de combate à corrupção, a
conturbada reeleição de Dilma Rousseff (PT) em 2014, os protestos contra o
governo petista em 2015 e 2016, as constantes intervenções do Poder Judiciário
na rotina política, o processo de impeachment da presidente, a posse de Michel
Temer (PMDB) na Presidência e, por fim, a escalada do conservadorismo
expresso no apoio a candidatos da extrema direita, como Jair Bolsonaro (PSL),
nas eleições de 2018 etc. Todos esses episódios são olhados à luz da perspectiva
do pêndulo e são contextualizados em um panorama mais amplo de
desenvolvimento de nossa delicada institucionalidade.

O primeiro capítulo apresenta um resumo desses argumentos


relacionando-os à compatibilidade entre a formação cultural nacional e valores
democráticos. Em diálogo com teses clássicas de Sergio Buarque de Holanda
(Holanda, 2016), Avritzer argumenta que houve escassa institucionalização da
igualdade civil e da cidadania. Deste modo, as sucessivas crises democráticas
decorreram do atrito entre uma ordem constitucional e um liberalismo parcial e
pouco afeito à garantia de direitos civis. Essa tradição liberal inconclusa e
peculiar foi incapaz de sedimentar as bases legais da igualdade civil e muitas
vezes é propensa a arroubos autoritários. Avritzer cita as elites do Judiciário e
os atores do mercado como portadores desse espírito liberal corporativista, que
tende a capturar o Estado em prol de interesses particulares.

No segundo capítulo, o autor caracteriza a debilidade institucional


brasileira e o que a torna tão exposta à ação predatória de certos atores. Dois
elementos centrais são analisados nessa parte: o intervencionismo do Judiciário
nas eleições e a ausência de clareza na aplicação da regra do impeachment
presidencial. Esses traços do Estado promoveram a construção de uma ordem
jurídica “antissoberana” que ajudou a erodir a legitimidade do rito eleitoral.
Um exemplo do desgaste eleitoral foram os questionamentos inconsistentes de
fraude nas eleições de 2014 à Presidência, quando o candidato derrotado Aécio
Neves (PSDB) questionou a lisura do processo e a qualidade das urnas junto ao
Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A regra do impeachment, por outro lado, traz
problemas relativos à acentuada personalização do rito. O acolhimento do
pedido de impeachment, sendo prerrogativa do presidente da Câmara dos
Deputados, transforma a democracia em refém dos interesses corporativos de
atores políticos e econômicos avessos aos resultados eleitorais. Assim, para
Avritzer, a crise política recente de 2013-2018 tem sua raiz no esboroamento do
pleito eleitoral, causado por arranjos institucionais frágeis.

No terceiro capítulo Avritzer aposta em dois argumentos contra as teses


de um suposto inchaço estatal brasileiro e seus efeitos na crise política. De um
lado, ele elenca elementos para a constituição histórica de um Estado dual, isto
é, o convívio entre a Constituição de 1988 e a permanência de interesses
patrimonialistas no Estado. Por outro lado, a constitucionalidade pós-1988,
trouxe avanços importantes quanto à previsão e implementação de novas
estruturas de dotação de cidadania (políticas educacionais, de saúde, de
assistência social, combate à pobreza etc.). Ao longo do capítulo, Avritzer
aponta que esses fatores impactaram a crise de 2014 em diante. A
impossibilidade de manter o padrão dual do Estado devido ao choque entre os
interesses patrimonialistas incrustados e a gestão fiscal produziram uma crise
sem precedentes. O aumento das despesas com o Judiciário e outros setores
patrimonialistas é um dos exemplos que aparecem no livro. O crescimento
acelerado da crise fiscal, por sua vez, facilitou a eclosão de atores interessados
no desmantelamento do aparato de proteção social e na instalação daquilo que
Avritzer chamou de choque do “liberalismo jabuticaba” voltado somente para
os interesses do setor financeiro.

No quarto capítulo, o autor apresenta ainda hipóteses acerca das


conexões entre esse quadro e o ambiente de forte polarização. Segundo o autor,
a violência política e social é parte estruturante na formação nacional. Nesse
capítulo, Avritzer rebate as ideias de que o brasileiro tende a ser cordial,
generoso e pacífico (Freyre, 2019). A violência estrutural ganha contornos de
raça, gênero e sexualidade, o que, somada à incapacidade do sistema judicial de
garantir a ordem cidadã de amplos setores da população, desfavorece ainda
mais o estabelecimento da igualdade civil. O encarceramento em massa e a
violação de uma série de procedimentos legais e democráticos são sintomas do
que o autor chama de um Judiciário “anticidadão”. No capítulo, Avritzer
também detalha dois novos componentes que radicalizaram esse contexto de
violência estrutural: o fundamentalismo religioso e seu ativismo contra as
minorias, e a “política do ódio” nas mídias sociais.

Por fim, o último capítulo detalha os episódios que foram significativos


de 2013 a 2018 para a reversão do pêndulo democrático. Avritzer assinala a
formação de uma parcela conservadora pequena, mas militante, capaz de
mobilizar-se tanto nas ruas quanto nas redes sociais em prol de causas
“anticidadãs” e de deslegitimação da ordem democrática. Concomitante a esse
ambiente de mobilização conservadora, a adesão em torno da democracia vem
sofrendo desgastes. Uma parte significativa das elites e das classes médias tem
rejeitado procedimentos democráticos e legais, argumentando que estes
representam entraves ao combate à corrupção, à política de segurança pública e
a uma agenda liberal modernizadora. Avritzer tem cuidado ao dizer que esse
fenômeno é recente e que, em diversos momentos de avanço democrático na
história nacional, as classes médias e mesmo as elites manifestaram apoio a uma
agenda progressista de direitos. Essa relação entre classes médias e
antidemocracia não é estrutural, tal como assevera, por exemplo, Jessé Souza
(Souza, 2017).

Pode-se dizer que, apesar dos diagnósticos pessimistas, há razões para


crer que esse panorama não é irreversível. Avritzer oferece vários argumentos
para isso, já que o livro tem o mérito de afastar o catastrofismo de algumas
análises, ao demonstrar o caráter ambíguo do consenso democrático nacional.
Além disso, ao inserir os eventos recentes em uma trajetória de longa duração,
retira o imediatismo de certos diagnósticos que enfatizaram a ruptura drástica
do “golpe” de 2016 com o impeachment. Outro mérito é o fato de que retira das
análises do bolsonarismo certo viés personalista, ao focar menos na figura de
Jair Bolsonaro, e mais nas condições de emergência desse fenômeno.
Contudo, alguns pontos empíricos poderiam ter sido explorados ao
longo do texto. Como se deu, por exemplo, a lenta adesão de setores das classes
populares às agendas conservadoras e liberais durante os últimos anos? Ou
ainda, como parcela significativa dos evangélicos passou, progressivamente, de
apoiadores do PT durante os anos 2000 a opositores do petismo? Além do
neopentecostalismo de caráter fundamentalista, quais repertórios culturais
foram mobilizados no que o autor chama de “ódio cibernético” nas redes
sociais? Quais vetores sociais e políticos facilitaram a difusão de ideias
conservadoras e liberais entre diferentes setores da sociedade?

Tais pontos não prejudicam de maneira séria o andamento da


argumentação. O autor não ataca essas questões empíricas específicas, mas
mesclando análise de estrutura e análise conjuntural, oferece uma base sólida
para o exame desses temas. De todo modo, o livro retoma uma agenda
importante de investigação dos limites do otimismo democrático de
determinadas épocas e recusa a narrativa da calamidade após a derrapagem
autoritária por que o Brasil vem passando. Para o autor, apesar da situação
nublada e desoladora, os eventos recentes ensinam que a democracia deve ser
protegida a todo instante através de uma vigilância infatigável. A democracia,
portanto, não é nunca um ponto de chegada garantido e seguro contra as
intempéries autocráticas, mas sempre algo a ser defendido e pelo que vale a
pena lutar.

Referências bibliográficas

Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2016.
Freyre, Gilberto. Casa-grande & senzala. São Paulo: Global Editora e
Distribuidora Ltda, 2019.
Souza, Jessé. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

Rafael de Souza é pós-doutorando no International Postdoctoral Program (IPP)


do Cebrap e vem desenvolvendo trabalhos sobre a relação entre ciclos de
confronto político e espacialidade urbana. É doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.

Você também pode gostar