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Os governos e as ruas

Angela Alonso
Rafael de Souza
Hellen Guicheneyvechy
Rafael de Souza

Na avenida Paulista, 15 de março, músicos tocaram o trecho "Fortuna", de


Carmina Burana, seguidos pelo coro de milhares de vozes que entoavam "Fora Te-
mer, Fora Te-mer" na exata mesma cadência.os músicos tocaram o trecho
"Fortuna", de Carmina Burana, e o coro de milhares de vozes foi no ritmo: "Fora
Temer, Fora Temer." O governo pós-impeachment começou sob protestos como
este, que prolongam a campanhas anteriores e derivam de um intrincado contexto
de mobilizações em defesa do governo petista.
Tanto o "Fora Dilma" como o "Não Vai Ter Golpe" decorreram dos
megaprotestos de 2013. Lá estava em germe o que, desde então, se desdobrou em
grandes ciclos de mobilização, que puxam o país em direções opostas.
O de junho de 2013 foi colcha de retalhos de movimentos, que se
condensava em três setores dominantes na mobilização. Os “autonomistas”, como o
Movimento Passe Livre, trouxeram dos movimentos por justiça global as novidades:
estilo performático de ativismo, ação direta e negação da liderança política. Outro
setor era o que dominara as ruas da redemocratização à eleição de Lula:
movimentos, sindicatos e pequenos partidos socialistas, que vieram com bandeiras
vermelhas, tônica redistributiva, liderança centralizada. Pela forma de ação que
manifestam, podemos chamá-los, digamos, de “socialistas”. Estes dois campos, à
esquerda do governo, pediam mais e melhores políticas públicas e expansão de
direitos. O terceiro setor era o dos manifestantes sem experiência de ativismo,
críticos das políticas sociais petistas e do sistema político como um todo. O
nacionalismo os unia. Cartazes e pinturas faciais retomavam a simbologia do
Diretas-já e do Fora Collor, do qual herdaram também a agenda: "a ética na
política". Denominaremos este terceiro grupo “patriotas”.
No segundo ciclo, de 2014, o lado "patriota" ganhou a hegemonia das ruas.
Avolumou-se e se diferenciou em grupos liberais, conservadores e reacionários.
Sua agenda do estado mínimo se adensou com moralismo, autoritarismo e ataque a
minorias. E a crítica antes difusa “aos políticos” confluiu para um foco, o
impeachment de Dilma.
Em março de 2015 começou um terceiro ciclo, que recuperou agentes e
agendas de 2013, mas em mobilizações sucessivas e em oposição entre si. O setor
patriotapatriótica criou a Aliança Nacional dos Movimentos Democráticos, com
apoio do empresariado, cujos eventos difundiram uma retórica da moralização
pública (anticorrupção) e do moralismo (pátria, religião, família). Ao antipetismo
somou-se a heroização do juiz Moro. Seus grandes eventos em São Paulo em 2016
(a depender da fonte, entre 500 mil e quase um milhão e meio de participantes 500
mil e um milhão e quatrocentos participantes, em 13 de março, e entre 215 e 800
mil pessoas, a depender da fonte, em 17 de abril) mantiveram por o fulcro o
antiDilma.
Neste ciclo, os outros dois setores inverteram posições entre si. O
socialista, que, desde 2013, via ameaçada sua supremacia tanto pelas inovações dos
autonomistas quanto pela força dos patriotas, recuperou protagonismo na
campanha anti-impeachment. Pequenos partidos, sindicatos e movimentos nessa
linha investiram em atos disruptivos do cotidiano das cidades (bloqueios,
ocupações, acampamentos) e do sossego da família Temer (eventos à sua porta no
Alto dos Pinheiros). As coalizões Frente Povo sem Medo e Frente Brasil Popular,
com apoio da base do PT e de sindicatos, especialmente a CUT, assumiram então a
liderança e produziram em São Paulo o evento mais volumoso de defesa do governo
petista em São Paulo, em 18 de março de 2016, que teve entre 95 e 800 mil
participantes, conforme a fonte.
Assim, socialistas encorparam, autonomistas encolheram. Mas não sumiram.
Houve uma soma de pautas: estado de direito e direitos sociais com demandas
identitárias, de gênero e outras da velha (estado de direito e direitos sociais) e da
nova (demandas identitárias, de gênero, etc) esquerda. Seu cerne, contudo, tornou-
se reativo: anti-impeachment, antiajuste fiscal, antiCunha.
O muro metálico, erguido na Esplanada pouco antes da votação do
Impeachment, solidificou esta polarização entre antiPT e antigolpe. As grades,
como as ruas, expressaram o racha do país.
O governo pós-impeachment nasceu neste terreno movediço: uma sociedade
mobilizada e dividida. E sem base de apoio. Muitos foram às ruas derrubar o PT,
não elevar o PMDB a mandatário. E iIsto se escancarou, por exemplo, na abertura
das Olimpíadas, quando Temer foi tão vaiado quanto Dilma tinha sido na Copa do
Mundo.
Com a troca de governo, volume e frequência das manifestações diminuíram.
Coisa comum em ciclos de protesto. Ao pico de participação se segue a ressaca dos
cidadãos, que voltam às suas rotinas (e ao Facebook), e os ativistas profissionais
retomam o controle das ruas.
O lado patriota se recolheu até que o novo governo, tentando estancar a
Lava Jato, esclarecesse que sua pauta não é a da moralidade pública. Em reação,
MBL e Vem Pra Rua organizaram, em 4 de dezembro último, manifestações em 83
cidades, reunindo cerca de 200 mil pessoas em São Paulo. Atraíram de liberais a
reacionários: ativistas antiaborto, pró-governo militar e etc. No próximo 26 de
março, insistirão na defesa da Lava-Jato e contra o “acordão” para fugir dela.
Já os anti-impeachment, com CUT e as Frentes Povo sem Medo e Brasil
Popular na liderança, se reaglutinaram no "Fora Temer". Essa foi a toada desde o
início da interinidade do vice como presidente, por exemplo, em protestos eventos
de médio porte em 10 de junho e 31 de julho – e mesmo em eventos alheios, como
aconteceu no dia internacional da mulhere mesmo nos com outra pauta, caso do dia
internacional da mulher. Mas no segundo semestre de 2016 a mobilização desinflou:
poucos eventos tiveram mais que 5 mil participantes em São Paulo (por ex.: 29 e 31
de agosto, 7 de setembro)apenas quatro eventos (em 29, dois em 31 de agosto e o
de 7 de setembro) tiveram mais que 5 mil participantes em São Paulo. Em 15 de
março de 2017, esboçou-se uma reação, com grandes atos em diversas sete
capitais, sobretudo em São Paulo, onde Lula discursou. A Paulista foi tingida de
vermelhoficou vermelha. O "anti" se consolidou como sufixo deste lado do espectro
político: agenda negativa, de resistência às reformas trabalhista e da previdência.
  Assim, até o presente momento, a luta política das ruas segue cindida em
dois campos, mas ambos perderam capacidade de arregimentação. Os atos são
menores e menos impactantes.
No interior de cada campo, houve realinhamentos. O setor patriota se
diferenciou em grupos mais liberais e reacionários, com um conservadorismo
tradicional de permeio. Vem Pra Rua e MBL competem para liderar o anseio
compartilhado por reforma política. Do outro lado, a diferenciação de 2013 entre
socialistas e autonomistas esmaeceu. O inimigo comum reunificou a esquerda das
ruas sob um uníssono Fora Temer.
Mas aA polarização do último ano de governo Dilma perdura. Mesmo se
houvesse pauta comum, o fosso que separou famílias, amigos, colegas de trabalho
em dois continentes políticos, é profundo. Alguém será capaz de lançar uma ponte?
Os partidos, estes sim, tentam a travessia. Os manifestantes de 2013 se
diziam apartidários. Agora, a cena é outra. O campo patriota namora com o sistema
político - vide o vereador Fernando Holiday. Já a mobilização de esquerda se
reaproximou do PT, tal como a presença de Lula nos atos atesta. Esta iInvestiu no
velho líder em vez de apostar num novo saído das ruas - Guilherme Boulos seria o
nome óbvio.
Dos dois lados, a mobilização foi incapaz de gerar partidos novos à maneira
do Podemos e do Ciudadanos, na Espanha. E o estrago que a Lava-Jato vem fazendo
nos partidos põe água no moinho dos candidatos "não políticos". Deu certo com
Doria, pode funcionar para Moro, ou quiçá outro...

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