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Otávio Rios2
Estudar documentos ainda é prioridade na investigação histórica; ler uma imagem como
escrita é um desafio para os historiadores, visto que, ao interpretá-la, sugerimos uma possibilidade
individual, subjetiva e parcial, de criação de significados. Porém, isso não exclui ponderar sobre
suas condições de produção e inserção social. Por conseguinte, imagens carregam mais que traços
da individualidade do artista, proveniente de suas concepções ideológicas, filosóficas, culturais e
políticas, e assume um caráter coletivo, pois toda obra implica recepção. Da mesma forma sucede
com aquele que escreve a História e com aquele a quem se destina uma obra literária, o leitor, uma
vez que o discurso a que ambos se submetem está carregado de parcialidade.
O discurso da macro-história, como nos ensina Walter Benjamin (1994) em suas Teses3,
rejeita os fatos que alteram a vida das pessoas, sob a justificativa de que se preocupa apenas com os
acontecimentos que afetam a sociedade. A individualidade que a História refuta, a Literatura toma
para si. Por outro lado, os atos coletivos que a História condensa sob a figura de um único herói,
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Aluna do curso de graduação em Letras da Universidade do Estado do Amazonas, sob orientação do Professor Otávio
Rios. Goza de bolsa de Iniciação Científica concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas
(Fapeam) para o período 2009/2010, tendo sido bolsista da mesma instituição no biênio anterior. Para contato, escrever
para deborarenatabraga@yahoo.com.br.
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Professor Assistente de Literatura Portuguesa da Universidade do Estado do Amazonas e Doutorando em Literaturas
Portuguesas e Africanas no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. É bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian/Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-
Brasileiros. Para contato, otaviorios@gmail.com.
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A macro-história, segundo Walter Benjamin (1994) é o discurso da história que se preocupa com grandes feitos, com a
história tradicional.
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como se as transformações por que passa uma nação fossem realizadas pela vontade de uma única
pessoa, a Literatura desfaz e vira do avesso, revelando homens sem nome debaixo de grandes feitos:
lembremo-nos, como ilustração, do romance Memorial do Convento, de José Saramago.
Preenchendo lacunas, uma imagem, um romance, um conto e um épico auxiliariam na compreensão
não do real, tampouco do passado, mas do imaginário da época em que foram produzidos. Sendo
assim, ocupando os vácuos que foram deixados pela História, uma imagem permitiria pensar
aspectos da trajetória e do destino de um povo; a Literatura poderia mostrar o que foi silenciado.
Viagens além-mar
Luís de Camões
Há um quadro no Museu Nacional de Belas Artes que se chama Elevação da Cruz em Porto
Seguro, pintado por Pedro Peres em 1879. Ato simbólico na época, elevar uma cruz de madeira era
uma das primeiras ações dos ibéricos ao desembarcar nas terras que descobriam. A cruz era o marco
da conquista de novos cristãos, imagem da dominação católica que aparece em várias partes da
figura.
Ao centro da tela, há a cruz que lhe dá título. No fundo, Cabral está com os braços abertos
ao lado de uma bandeira com o símbolo de Portugal: a cruz de Cristo. Um pouco à frente, na mesma
direção, um jesuíta distribui cruzes aos índios. Uma imagem como esta nos leva a refletir acerca do
significado das conquistas de novas terras: os portugueses foram os pioneiros na empreitada
marítima, e assim fizeram para enfrentar seu baixo desenvolvimento interno e a ameaça de Castela,
como nos lembra Otávio Rios (2009, p. 84-85), no texto “O outro lugar: os viajantes descobrem o
Paraíso”.
A presença lusa e do crucifixo nos locais conquistados era um indício exterior, como afirma
Eduardo Lourenço (1999) em Portugal como destino, da existência messiânica de Portugal como a
nação eleita para divulgar o reino de Cristo. Portugal se viu e viveu como o povo ungido por Deus,
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fechando-se em si, colocando-se à margem dos acontecimentos que ocorriam no restante da Europa.
Contudo, ao assumir o pioneirismo nas Grandes Navegações, firmou-se no contexto europeu como
nação cujas descobertas marcaram o início de uma nova era na história ocidental: a Era Moderna.
As mudanças que ocorreram após a expansão ultramarina afetaram não só os povos conquistados,
mas a imagem de Portugal. O pequeno país constituiu-se em um grande império, que controlava
terras nos quatro continentes, expandiu sua língua e sua cultura. Seus mitos se dispersaram pelo
mundo, sobretudo em terras brasileiras. Anos depois, já sob o domínio espanhol, Portugal passou a
olhar melancolicamente para trás, mergulhou em nostalgia de um povo para o qual o futuro é o
passado.
A obsessiva imagem que os portugueses criaram para si, frágil e esperançosa, adotou a
glória dos tempos passados como expressão máxima da nacionalidade, criando o estereótipo de
povo viajante e explorador, alicerçada pela literatura, da qual Os Lusíadas são o exemplar mais
significativo. Eduardo Lourenço (1999) afirma que:
No épico camoniano, um destino grandioso coube à nação eleita: Júpiter vaticinou glórias
para os lusos, povo cuja sina estava entrelaçada ao mar e às viagens. Com Almeida Garrett, quando
surge a necessidade de (re)conhecer a pátria, uma nova tentativa de identificação nacional instaura-
se nas terras portuguesas: Lourenço, no ensaio antes referido, resume a experiência garrettiana em
relação à pátria e às viagens: “viaje lá fora cá dentro” (1997, p. 143).
Por outro lado, Gustavo de Freitas (1977), em 900 textos e documentos de história, afirma
que as viagens marítimas sempre foram muito arriscadas, tanto que a partir do século XV havia o
costume de um padre dar a extrema-unção a todos os viajantes pouco antes de embarcarem. Os
naufrágios eram comuns, não havia esperança no retorno de navegantes. O sacrifício a que a
população teve que se submeter para a travessia do mar foi imortalizado nos versos da Mensagem,
de Fernando Pessoa (1934). Há, inclusive, duas estâncias em Os Lusíadas (V, 81-82), que
descrevem os efeitos do escorbuto, doença que acometia os marinheiros daquela época.
Todavia, Eduardo Lourenço (2001) afirma que as emigrações foram uma busca por melhor
sorte, porém, havia entre eles o desejo constante de regressar à terra. A miséria e a fome, na Europa,
eram a causa principal do esvaziamento de Portugal: “é a eterna miséria que se esconde sob todas as
emigrações que as empurra, mas elas são já ricas da privação dos outros. Quando se parte como
senhor não se veste a pele dolorosa do emigrante [...]” (p. 46). O êxodo, sina portuguesa, ajudou a
forjar o alicerce da cultura e da alma lusitana.
Viagens aquém-mar
Eça de Queirós
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Lembremos os versos do Fado Tropical, de Chico Buarque de Holanda: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal,
ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”.
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Se a glória foi cantada n’Os Lusíadas, (CERDEIRA, 2000. p.35) como caráter exemplar do
povo português, qual o propósito de uma narrativa que se opõe ao símbolo máximo da cultura
lusitana: as viagens além-mar? De que forma Almeida Garrett, em Viagens na minha terra,
concedeu ao povo a tarefa de re-construir um novo país? Em meio à estagnação histórica de
Portugal, as idéias revolucionárias e o engajamento político de Garrett fizeram com que o autor
fosse considerado, por Cerdeira, como “pontual quando pretende acordar o país da falsa imagem
gloriosa que criara para si mesmo ao assinalar irônica e sutilmente o fim da épica dos mares em
nome de uma terra por reconhecer” (2000, p. 160). Podemos, então, identificar no pensamento de
Garrett a ressignificação do papel exercido pela população, que passou a ser ideal de igualdade,
homens identificados pela idéia de pátria e de nação.
aparece mais como uma experiência, ficcional ou não, de um viajante que partiu,
desta vez não em direção ao mar como outrora, mas agora por dentro de sua
própria terra, em busca do Portugal histórico que, àquela época, necessitava ser
resgatado e idealizado dentro dos preceitos estético-culturais do romantismo.
Juntos, Os Lusíadas e as Viagens entraram para a mentalidade cultural portuguesa
como dois textos paradigmáticos de temática das aventuras e deslocamentos
lusitanos, e foram, sobretudo a partir do movimento romântico, elevados ao
patamar de textos de fundação da pátria (p. 85).
Eduardo Lourenço (1988), em “Da Literatura como interpretação de Portugal”, declara que
“é sob a pluma de Garrett que pela primeira vez, e a fundo, Portugal se interroga, ou melhor, que
Portugal se converte em permanente interpelação” (p. 83). Garrett rememora, resgata o que ficou
desviado pela finalidade de mitificar uma glória que não pôde residir no lar. Em Viagens na minha
terra salta aos olhos uma releitura às avessas do épico camoniano, empenhada em “fazer desmontar
a máscara do falso conhecimento nacional” (CERDEIRA, 2000, p. 37).
Por sua vez, no ensejo da tradição literária, pode-se recorrer a José Saramago com o fito de
aprofundar, com as lentes de quem viveu na virada do milênio, o debate acerca das viagens na
formação de uma mentalidade portuguesa, a representação desse tema no contexto artístico. O
diálogo que Saramago estabelece com Garrett apresenta uma semelhança fundamental para a
compreensão de Viagens na minha terra: nos dois textos, a decadência do país é enfatizada, apesar
da posição de Saramago ser mais otimista quanto à paisagem e aos monumentos, por exemplo. Em
Viagem a Portugal (2001), o viajante que espera encontrar o berço da nacionalidade portuguesa
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depara-se com uma paisagem artificial, com excessivas restaurações, o que denota uma
preocupação do autor em preservar a memória do país. O narrador das Viagens garrettianas
descreve um país fantasmático, onde os monumentos nacionais estão arruinados:
E tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto! Cuida-se entrar na grande metrópole
de um povo extinto, de uma nação que foi poderosa e celebrada, mas que
desapareceu da face da terra e só deixou o monumento de suas construções
gigantescas (1997, p. 162).
Em Portugal e na Espanha, ouro e prata eram usados como adorno nas igrejas e, uma vez
que a religiosidade era (e ainda o é) marca da cultura ibérica, a história de Portugal e da Igreja
Católica são indissociáveis, como afirma Eduardo Lourenço (1999, p. 53) no ensaio “Portugal como
cultura”. A religiosidade estava incutida de tal forma que só era aceito e incorporado à cultura o que
ia ao encontro dos dogmas da igreja. Tal era a dimensão das crenças, que a própria história da
conquista da independência portuguesa assumiu um caráter de irrealidade, sonho e misticismo,
como na vingança divina que recaiu sobre Afonso Henriques em Badajoz, por este ter aprisionado
sua própria mãe, D. Teresa. A ironia garrettiana transformou o antigo esplendor das igrejas em
degradados edifícios:
Mas era, era essa. A antiga capela-real, a veneranda igreja da Alcáçova foi
passando por sucessivos reparos e transformações, até que chegou a esta miséria
(1997, p. 164-165).
Eduardo Lourenço
Uma viagem no interior da terra portuguesa, como a que foi empreendida pelo narrador-
protagonista da obra de Garrett, constituiu-se como experiência que possibilitou o aprendizado e a
“paragem”, assim como o sentimento de permanência na própria terra, contra o “colossal fenômeno
de expatriação” (LOURENÇO, 2001, p. 45). As Viagens de Garrett procuraram resgatar o passado
glorioso ilustrando o presente decadente, em que a morte de Joaninha, a cegueira da avó Francisca e
a perda dos valores de Carlos são a representação simbólica mais expressiva.
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Na tela de Peres, evocada no início deste trabalho, encontramos ecos de um pensamento que
se disseminou em Portugal com o padre António Vieira: o clérigo acreditava que o Quinto Império
estaria assegurado pelo Brasil, como endossa Eduardo Lourenço (1999): “Durante mais de dois
séculos, Portugal [...] inventa o Brasil, e o Brasil assegura a Portugal, por vezes em sentido literal, a
sua sobrevivência” (1999, p. 101). Paradoxalmente, a nação que projetou sua esperança de
sobrevivência e seu destino messiânico no Quinto Império confiou no retorno de um rei que há
muito desaparecera (no tempo e no espaço) para instaurá-lo.
Na tela Elevação da Cruz em Porto Seguro notamos o símbolo que carrega o imaginário de
um povo que pautou sua nacionalidade fora de casa: a cruz, sacrifício; para Portugal, o sacrifício de
deixar a casa para se estabelecer em terras desconhecidas, em ânsia constante de regresso. Durante
séculos, o lusitano foi o emigrante, o marinheiro, inclusive o protagonista português de A Selva, do
escritor Ferreira de Castro, atende pela alcunha de marinheiro, o que poderíamos tomar como uma
antonomásia, em que o nome da personagem é substituído pelo que ela (ou seu povo) simboliza.
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Considerações finais
Referências
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin.
7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222-232. (Obras escolhidas; v.1).
CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Introdução, fixação do texto e notas por Vítor Ramos. 2. ed.
Rio de Janeiro: Cultrix, 1972.
CERDEIRA, Teresa. De viagens a viajantes: Camões, Garrett, Saramago; Partes da minha terra:
romances em eco no avesso das viagens portuguesas. In: O Avesso do Bordado. Lisboa: Editorial
Caminho, 2000.
FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de história. Lisboa: Plátano, 1977. v. 2.
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. (Edição dirigida e apresentada por Antônio Soares
Amora). São Paulo: Publifolha, 1997 (Biblioteca Folha, 14).
__________. Portugal como destino: dramaturgia cultural portuguesa. In: Mitologia da Saudade
seguido de Portugal como destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 87-152.
__________. A Nau de Ícaro ou o fim da emigração; Portugal como cultura. In: A Nau de Ícaro e
Imagem e miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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QUEIRÓS, Eça de. LI. In: Uma campanha alegre: de As Farpas. Lisboa: Edição Livros do Brasil,
s/d. p. 234-240.
RIOS, Otávio. Os viajantes descobrem o paraíso. In: O Amazonas deságua no Tejo: ensaios
literários. Manaus: UEA edições, 2009. p. 84-98.