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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO

DE JANEIRO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

A “ALUCINAÇÃO” DE BELCHIOR:
Delírio e Nordestinidade nas canções de um migrante
nordestino na metrópole

HEITOR ZAGHETTO

ORIENTADOR: VALTER SINDER

COORIENTADOR: JONAS LANA

RIO DE JANEIRO

Julho, 2017.
A “ALUCINAÇÃO” DE BELCHIOR:
Delírio e Nordestinidade nas canções de um migrante
nordestino na metrópole

HEITOR ZAGHETTO

Monografia apresentada ao Departamento de


Ciências Sociais da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) como
requisito parcial para obtenção do título de
Licenciado em Ciências Sociais.

Orientador: Valter Sinder

Coorientador: Jonas Lana

Segundo Leitor: Felipe Süssekind

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Julho, 2017
AGRADECIMENTOS

Contribuiu com esse trabalho uma bolsa de iniciação científica concedida pela
FAPERJ. A bolsa, porém, nunca foi paga pontualmente e, no momento da publicação
deste texto, são mais de três meses de atraso.

Devo agradecer, antes de tudo, ao meu professor, orientador e amigo Jonas


Soares Lana, que me tratou com total atenção e carinho desde a primeira vez que o
procurei. Sem ele, esse trabalho não existiria.

Às funcionárias e funcionários do Departamento de Ciências Sociais da PUC-


Rio, fontes inesgotáveis de atenção e bom humor: Eveline, Mônica, Ana e todas as
outras.

Às professoras e professores do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio,


principalmente Valter Sinder e Felipe Süssekind, por terem me apresentado uma
antropologia que merece a nossa profunda dedicação.

À professora Rita Morelli, que me recebeu tão bem na UNICAMP e me cedeu


tão gentilmente a documentação que utilizei para a realização desta pesquisa.

A meu avô, minha mãe, meu pai, meus irmãos e toda a minha família, a qual
tenho o privilégio de pertencer.

Às amigas e amigos petropolitanos, minha segunda família querida que me


acompanha desde criança: Fred, Bê, Gabrielzinho, Pão, Victoria, Rodrigo, Arthur,
Belão, Di Mello e todas as outras.

Às amigas e amigos cariocas, pela companhia e carinho nesses cinco anos, em


quem descobri aliadas como nunca imaginei: Flora, Igor, Kauã, Idjahure, Gabriel, Caio
Mendes, Danielle, Yeza, Bruno, Juliana, Phelipe, Daniel, Caio Rodrigues e todas as
outras.

À Laura, companheira e cúmplice que tanto me apoia e que fui descobrir há


pouco, quem diria, no interior do Tocantins.
E, claro, ao Belchior, que sabia que a música é um ofício diário, constante,
inevitável. Infelizmente, Belchior faleceu enquanto eu escrevia esse trabalho: que essas
páginas sirvam, então, como uma singela homenagem.
RESUMO

Este trabalho é uma tentativa de pensar o disco “Alucinação”, do cancionista


Belchior. Para tal, no primeiro capítulo foram elaboradas relações entre as canções de
Belchior e a MPB, tentando delimitar a sua obra em relação ao contexto do rock pós-
tropicalista. No segundo capítulo, as relações entre as canções de Belchior e a tradição
nordestina são analisadas buscando ferramentas teóricas apropriadas, rediscutindo o
tema da invenção das tradições.

Palavras-chave: Belchior; Música Popular Brasileira; Tradição nordestina.

ABSTRACT

This essay is an atempt to understand the long play “Alucinação”, recorded by


Belchior. For that purpose, in the first chapter the relations between Belchior’s songs
and the MPB (Brazilian Popular Music) were underlined, as a way to comprehend his
songs in the contexto of the post-tropicalist rock. In the second chapter, the relations
between Belchior’s songs and the Northeastern tradition, debating the theme of the
invention of traditions.

Keywords: Belchior; Brazilian Popular Music; Northeastern tradition.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................08

CAPÍTULO 1: Belchior, MPB e “Alucinação”..........................................................12


1.1 O excesso na Era do Rádio.....................................................................................12
1.2 A simplicidade na Bossa Nova................................................................................13

1.3 O engajamento nas Canções de Protesto...............................................................13


1.4 Tropicalismo: um curto-circuito na MPB.............................................................14
1.5 O rock pós-tropicalista............................................................................................16
1.6 Belchior: situando “Alucinação” e o delírio com coisas reais..............................18
1.7 Inserindo Belchior no rock pós-tropicalista..........................................................20
1.8 O cotidiano e o cidadão comum..............................................................................21

1.9A metrópole e o imigrante nordestino....................................................................22


1.10 O sonho acabou......................................................................................................23
1.11 Individualização: O dinheiro, a censura e a migração.......................................25
1.12 O Novo e os “mitos” cristalizados.......................................................................27
1.13 Crise geracional e o migrante na cidade.............................................................28
1.14 O canto torto de Belchior......................................................................................28

1.15 Hora do Almoço e Panis et circenses...................................................................32


1.16 Abordagem das relações entre Belchior e o tropicalismo..................................33
1.17 Continuidades tropicalistas..................................................................................35
1.18 “Nada é divino, nada é maravilhoso”: Tensões com o tropicalismo...............36

CAPÍTULO 2: A tradição nordestina segundo Belchior...........................................39


2.1 A invenção de Hobsbawn........................................................................................39

2.2 A invenção da Roy Wagner....................................................................................40


2.3 Nordeste: A história de uma invenção...................................................................43
2.4 Voz e música nordestina.........................................................................................45
2.5 Luiz Gonzaga: um capítulo à parte ......................................................................47

2.6 Porque Belchior não quis virar um Luiz Gonzaga...............................................49


2.7 Belchior e Foucault..................................................................................................50
2.8 A nordestinidade enquanto contingência..............................................................53
2.9 Belchior, Luiz Gonzaga e o cantar nordestino......................................................57
2.10 João Cabral de Melo Neto....................................................................................58
2.11 Citações nordestinas..............................................................................................60

2.12 Tropicalismo, identidade e tradição....................................................................61


2.13 Belchior e o tropicalismo: Da crítica do discurso às contingências..................63

CONCLUSÃO...............................................................................................................66
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................68
ANEXO: Material de Imprensa...................................................................................70
“eu achava que cabia aos estudantes pensar as alternativas
para uma mobilização política que não fosse capitalista ou
socialista. Queria uma experiência anarquista, no sentido
mais rígido da palavra, uma experiência desordenadora.
Imaginava que podíamos aproveitar a oportunidade do
movimento estudantil pra ser algo mais que caudatário do
movimento político institucional. Pretendia uma coisa
mais concreta e inovadora que fazer passeatas de 'abaixo o
imperialismo'. Mas ao ultrapassar o movimento retórico
fui vencido.”

Belchior
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INTRODUÇÃO

A motivação inicial desta pesquisa foi a sensação de que a obra de Belchior


detém algo de peculiar, algo que afetou a mim e muitos outros de minha geração,
mesmo já fazendo mais de 40 anos da gravação de seus primeiros discos. Juntou-se a
essa motivação a percepção de que não havia quase nada escrito sobre os temas que me
saltaram aos olhos em sua obra. Na bibliografia sobre Música Popular Brasileira, a
década de 70 parecia consistir em um vácuo pós-tropicalista, já que as análises de longo
prazo dos elementos da Música Popular Brasileira pareciam se encerrar todos com o
tropicalismo, tendo-o como uma espécie de último ato da MPB, a desconstruindo e
desestabilizando completamente. Assim, começou a me parecer importante rever essa
abordagem.

É verdade que minha monografia poderia ser mais acurada historicamente ou


sociologicamente se abordasse um grupo de artistas no contexto pós-tropicalista (como
o “Pessoal do Ceará” ou os artistas “malditos”), por exemplo. Possivelmente, retrataria
melhor o momento e não correria o risco de cair em vícios biográficos ao contribuir
para a criação de ícones imutáveis e geniais. Escolhi, porém, para tratar o período,
centrar a análise em Belchior, e, na obra do cancionista, tratar especificamente do disco
“Alucinação” (1974), como uma forma de reduzir o recorte para poder realizar uma
análise minimamente satisfatória. Além disso, o LP “Alucinação” é o disco no qual os
elementos políticos da obra de Belchior se veem mais explicitamente colocados, é o seu
momento politicamente mais incisivo, como demonstrarei mais a frente.

Vale ressaltar também o aspecto particular desta pesquisa, na medida em que ela
se encontra em um ponto intersticial entre diversas áreas como a antropologia e a
sociologia da arte. Por mais que haja uma dificuldade adicional no agenciamento entre
diversas áreas do conhecimento, parece haver uma qualidade importante que deriva
desta união: uma possibilidade de criar conexões inusitadas, gerando resultados
criativos que não surgiriam de outra forma. É nesse sentido que trarei, talvez
inadvertidamente, autores que tratam do ofício etnográfico, por exemplo, para uma
discussão acerca de um cantor de MPB, com a esperança de que possa significar uma
abordagem no mínimo diversa.

A bibliografia disponível acerca das canções de Belchior não é muito vasta, o


que, ao mesmo tempo, amplia o caráter exploratório do trabalho, sua originalidade e seu
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risco em se precipitar nas conclusões. Rita Morelli, em seu livro “Indústria Fonográfica:
Um Estudo Antropológico”, aborda o início da carreira de Belchior e a de Fagner
comparativamente, e se interessa por questões relacionadas ao mercado fonográfico e
suas relações com as artes, que não são o foco aqui, mas servem como baliza para o
presente trabalho e podem ser úteis enquanto análise de algumas questões aqui
levantadas a partir de outro ponto de vista.

A dissertação de mestrado e a tese de doutorado de Josely Cardoso também me


serviram como referência para situar o debate: o cansativo trabalho que a autora teve ao
mapear as citações que Belchior realiza, por exemplo, me abriu os olhos para relações
antes imperceptíveis. Nossas ferramentas teóricas, porém, são muito distintas e nossas
abordagens bastante conflitantes, e, portanto, muitas vezes, tangenciamos o mesmo
tema,mas eu optei por seguir outro caminho, em geral não utilizando o trabalho da
autora como referência.

Além dos trabalhos acadêmicos, há muito publicado acerca das canções de


Belchior, centenas de documentos ainda inexplorados. Assim, ao longo do texto, o uso
muitas vezes exaustivo das documentações, se dá com o objetivo duplo de divulgar o
material e apresentar evidências de minhas reflexões. A recente morte do cancionista,
nos últimos meses, fez com que surgisse muito material novo na mídia acerca de sua
obra, desde documentos e canções inéditas até a biografia sobre o cancionista que, nos
próximos meses, Jotabê Medeiros publicará. Assim, não ouve muito tempo para digerir
todas as informações e notícias novas que surgiram, mas acredito que elas poderão
integrar, com o tempo, as discussões aqui propostas.

Nosso “sujeito” de pesquisa, Belchior, nasceu em Sobral, interior do Ceará, no


dia 26 de Outubro de 1946. É o décimo terceiro de uma família de 23 filhos, e aos 16
anos vai estudar filosofia com os frades capuxinhos, no Mosteiro de Guaramiranga,
região serrana do Ceará. Depois de três anos em regime de internato, decide abandonar
a igreja e ingressar na faculdade de medicina, já vivendo em Fortaleza. Não cessa de
estudar música e, no 4º ano abandona a faculdade para tentar a vida de artista,
participando de festivais de música e programas de televisão Aos 25 anos, decide que é
no Sudeste que as artes estão em efervescência e migra para tentar a sorte como
cancionista: vence no mesmo ano, de 1971, o 4º Festival Universitário de MPB da TV
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Tupi, com a canção “Na Hora do Almoço”. Entre o Rio de Janeiro e São Paulo,
Belchior tenta construir sua carreira musical.

Em 1972, grava um compacto pela Copacabana, que não o lança a um sucesso


amplo. Em 1974 grava o LP “A palo seco”, que começa a dar alguma visibilidade para o
cantor, mas é em 1976 que Belchior faz sucesso, com o seu LP “Alucinação” e a
gravação de Elis Regina de sua música “Como nossos pais”. Belchior vai tornando-se
um compositor e um cantor popular consolidado, e segue sua carreira, seguindo uma
proposta bastante linear. Continua seu trabalho, mas vai desaparecendo
progressivamente dos programas de televisão e das páginas dos jornais até seu
desaparecimento dos canais midiáticos. Em 2009, um fato marcante: O “Fantástico”
anuncia o sumiço de Belchior e pergunta por onde andaria o cancionista. Longe dos
palcos, ele seguia uma vida simples, na verdade bastante coerente com suas canções.
Em 2017, faleceu em Santa Cruz da Serra – RS, deixando centenas de canções não
gravadas.

Para dar conta de alguns pequenos trechos dessa história, situarei, no primeiro
capítulo, o disco “Alucinação” dentro da MPB, do momento histórico dos anos 70 no
Brasil e da carreira de Belchior, tentando escolher mecanismos adequados para analisar
suas obras. Analisarei aspectos de suas canções com o objetivo de fornecer ferramentas
para compreender os múltiplos sentidos das canções que integram o disco, explorando
as proposições políticas que ele carrega e relacionando-o com outros momentos da
MPB.

No segundo capítulo, a obra de Belchior será abordada em relação à tradição


musical nordestina. Apresentarei como pretendo abordar a ideia de tradição, situarei
historicamente a tradição nordestina e mostrarei as relações de Belchior com elementos
dessa tradição, extraindo de sua obra e de seus depoimentos uma proposta própria para
lidar com os elementos da tradição nordestina, confrontando-o também com outras
abordagens nessa tradição musical.

No texto, depoimentos, músicas e letras terão o mesmo peso: foram as principais


fontes de informação e devem nortear as reflexões. O trabalho levantam questões que,
acredito, demonstram que as relações entre canção popular e as ciências sociais no
Brasil ainda estão muito aquém do esperado, e que esse campo de estudos ainda pode
ser muito frutífero. E quando digo isso, não é para afirmar a riqueza do campo dos
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cantores populares enquanto objeto de estudo, mas como sujeitos de reflexões, que a
academia tradicionalmente ignora.
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CAPÍTULO 1: Belchior, MPB e “Alucinação”

“Se você tem uma ideia incrível, escreva uma canção.

Está provado que só é possível filosofar em alemão”

Caetano Veloso, em “Língua”

Para poder dar início a uma imersão na obra de Belchior na década de 1970,
apresentarei antes brevemente alguns elementos para compor um cenário da canção
popular do Brasil à época, permitindo que tenhamos ferramentas para ler a sua obra. É
bem verdade que esse cenário possa parecer, à primeira vista, um quadro por demais
coerente e mecânico, mas tal fato se dá por esta apresentação conter um caráter
centralmente introdutório e contextual, de modo que se possa analisar mais de perto as
nuances de meu objeto de pesquisa. A seleção de certos acontecimentos em detrimento
de outros se justifica, portanto, pela relevância que eles virão a ter em minha análise, o
que pode resultar em ignorar fenômenos importantes (como a Jovem Guarda), e em
destacar excessivamente certas características. A função dessa contextualização não é,
assim, a de propor um retrato fiel da história da MPB, mas a de servir como uma base à
qual poderemos recorrer posteriormente durante a reflexão. As interpretações que
utilizarei a seguir são, majoritariamente, derivadas das análises de Santuza Cambraia
Naves (NAVES, 2001) e de Celso Favaretto (FAVARETTO, 2000), obras escolhidas
pela capacidade dos dois autores de sintetizar a história da Música Popular Brasileira
sem perder a acuidade analítica.

1.1 O excesso na Era do Rádio

Comecemos tentando delinear como o cenário musical no Brasil chegava à


metade do século passado: até o fim dos anos 50, havia no Brasil um formato de canção
bastante consolidado, composto por diversos elementos que se encontravam nos palcos
da Rádio Nacional. Os arranjos, ricos de sopros e cordas, serviam de suporte para vozes
exuberantes como a de Ângela Maria e Emilinha Borba, que destilavam dores-de-
cotovelo dramáticas, acompanhadas por performances e melodias igualmente
exageradas. Podemos dizer que, entre boleros e sambas-canção, já estava consolidada
nos anos 50 toda uma tradição musical e uma sensibilidade centrada no excesso nas
melodias, nas performances e nas letras das canções. Em certo momento, porém, essa
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estética começa a ser percebida como pobre e ultrapassada, e começa-se a propor uma
nova estética que pudesse corresponder à realidade da juventude da época. Surgia,
assim, a Bossa Nova.

1.2 A simplicidade na Bossa Nova

O fato é que, do ponto de vista bossa-novista, essas canções eram por demais
melodramáticas e inadequadas aos novos tempos. Para esses jovens, era necessária uma
pesquisa experimental de novas linguagens que se adequassem a esta nova sensibilidade
que surgia nos apartamentos da zona sul carioca nos fins dos anos 50. Assim, surgia a
nova forma de João Gilberto de colocar a sua voz, de forma um tanto quanto intimista e
que estava intrinsecamente conectada com sua maneira inovadora de tocar o violão,
realizando uma releitura do samba tradicional. Assim, em sua leitura, Santuza nos
apresenta uma noção central para pensar a bossa nova: a de simplicidade, ideia que vai
substituir os tons exagerados da era do rádio no canto, na instrumentação e na
performance, acompanhadas por uma crescente complexidade harmônica. Assim, o
excesso, de forma geral, é rejeitado pelos bossa-novistas*. Vale comentar, ainda, em que
medida a bossa nova convergia fortemente com as propostas da poesia concreta, em
seus ideais de concisão, objetividade e racionalidade, em um heroísmo modernista que
pregava a necessidade de uma arte brasileira que fosse adequada à nova realidade
nacional. Influenciados pelo Jazz, a bossa nova surge como um impulso modernizador:
agrega ritmos regionais (baião, samba, etc.) e os incorpora e reinterpreta,
transformando-os a partir da visão da jovem elite carioca, em sua empolgação moderna.

1.3 O engajamento nas Canções de Protesto

Os primeiros anos da década de 60 agregariam, então, novas informações à


canção popular, quando o cosmopolitismo da bossa nova começou a ser substituído pela
preocupação com a realidade nacional no plano político, a partir de artistas fortemente
influenciados pela bossa nova. Em termos estéticos, o Beco das Garrafas, em
Copacabana, passa a ser o centro dos encontros entre os músicos. Lá, os instrumentistas
poderiam tomar a centralidade das vozes, reincorporar instrumentos abandonados pela

*
A autora destaca, porém, que o excesso, tão rejeitado pela bossa, foi nova muito presente de
alguma forma na obra de um de seus principais personagens, Tom Jobim. Inspirado por Villa-
Lobos, o excesso para Jobim desempenharia um papel importante de representação da
exuberância do Brasil, o que o colocava de forma muito interessante entre a simplicidade
inegociável da bossa nova e o excesso nacionalista de Villa-Lobos.
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bossa-nova e cantores poderiam abandonar o estilo comedido da geração de João


Gilberto. Com o canto de Elis Regina, por exemplo, a estética bossa-novista convive
recuperação do excesso. Surgiam, no início dos anos 60, os Centros Populares de
Cultura (CPCs) da UNE (União Nacional dos Estudantes), que pretendiam acessar as
massas e criar uma transformação social através de uma estética clara: a música deveria
ser simples para que o as massas pudessem apreciá-la, e serviria como mecanismo de
emancipação das classes populares. Fazendo uma arte com o objetivo de retirar os
pobres de sua posição de submissão, surgiam os compositores engajados. Com eles, o
experimentalismo começava a dar espaço a um novo tipo de fruição estética. Os
ambientes, agora, eram os universitários, politizados, cercados por um ideal nacionalista
de autenticidade. Nomes como o do cantor e compositor Geraldo Vandré pregavam uma
crença utópica de transformação nacional, associada a um otimismo em um futuro
messiânico, redentor. A incorporação de sambistas por parte da cantora Nara Leão, por
exemplo, parece ser um bom exemplo de como os ideais de participação popular de uma
cultura autenticamente brasileira eram centrais para essa geração, se manifestando nas
canções com a incorporação de elementos tidos como tipicamente oriundos das massas,
como o samba e o forró.

O fato é que os anos 60 foram bastante agitados, tanto pela pujança cultural
quanto pelo cenário político: não podemos esquecer que ocorria, em abril de 1964, o
golpe militar, e que, cada vez mais, o cenário político se agravava. Se, de um lado,
crescia progressivamente a censura, é também verdade que cada vez mais os cantores se
engajavam, as músicas de protesto nasciam e a música popular, em grande medida, se
indissociava do movimento universitário nacionalista de esquerda. Pelo menos até o
tropicalismo.

1.4 Tropicalismo: um curto-circuito na MPB

O tropicalismo nasceu, em 1967, como um rompimento radical com as canções


engajadas: instaurou, em muito pouco tempo (o tropicalismo durou apenas três anos),
uma nova forma de pensar e uma nova sensibilidade. Moderna, debochada, com
influências comportamentais hippies e influências dos procedimentos artísticos pop. Em
um rompimento radical com as canções engajadas, os tropicalistas não tinham qualquer
temor em descaracterizar uma cultura supostamente nacional. Criavam formas de
combinação que não cabiam nas classificações musicais dos cantores engajados com
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suas categorias rígidas. Para os tropicalistas não faria mais sentido rejeitar uma música
por suas influências estadunidenses, por exemplo. Tentava-se, ao reformular as formas
de recepção da canção, uma tentativa de revisão das manifestações críticas surgidas a
partir do golpe de 1964, não se restringindo ao campo da música, mas centrando todo o
debate em torno de linguagens e posições políticas na canção popular. Procurava, assim,
substituir o imperativo de falar do país pela retomada do experimentalismo,
pretendendo, no fundo, reformular os critérios da apreciação da canção, gerando uma
nova linguagem: dar um curto circuito na canção brasileira.

Isso não quer dizer, porém, que o tropicalismo tenha sido um movimento de
vanguarda, o que implicaria dizer que rejeitou o passado e a tradição musical brasileira
em nome da pretensão de uma arte inteiramente nova. Na verdade, ele pode ser visto
como um movimento que rompe com a própria ideia de movimento, na medida que
adota uma “atitude incorporativa com relação a grande parte do repertório popular
musical” (SANTUZA, op. cit.). Quero destacar que, nesse sentido, a atitude
incorporativa tropicalista frente aos objetos da tradição musical popular se dá de um
modo muito particular, o que será aprofundado no próximo capítulo, onde tratarei
inclusive de delimitar melhor os significados da palavra tradição.

O fato é que os tropicalistas propõem uma revisão da tradição musical brasileira


ao submeter as tradições a um processo de desconstrução. Pretendem “redescobrir e
criticar a tradição, segundo a vivência do cosmopolitismo dos processo artísticos”
(FAVARETTO, op. cit.), ao submeter os arcaísmos da música brasileira à luz do
ultramoderno. Operam um processo de dessacralização dos ícones tradicionais,
tornando possível operações que antes seriam inimagináveis. A modernidade, então, não
era mais vista como ameaça à nobre cultura popular. Assim, os tropicalistas pretendiam
deslocar a tradição de seu lugar convencional, propondo novos arranjos possíveis
(artísticos, sociais, políticos etc.). Sobre estes novos arranjos propostos, gostaria de
ressaltar brevemente um último aspecto que passará, com o tropicalismo, a integrar o
debate acerca da canção popular brasileira: a apropriação dos elementos contraculturais.

Os tropicalistas estavam, durante os anos 60, bem atentos aos jovens europeus e
estadunidenses que abraçavam a “contracultura”. Nos Estados Unidos, os hippies
propunham uma fuga definitiva à sociedade e à racionalidade ocidentais, cercados por
um sentimento de positividade: os cabelos longos, as roupas coloridas, o psicodelismo e
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a liberdade sexual. Enquanto isso, na França, em Maio de 1968, estudantes pararam o


país com greves gerais e escreviam nos muros da cidade mensagens como “É Proibido
Proibir”, frase que não por acaso virou título de uma música de Caetano Veloso. Os
tropicalistas não estavam alheios e se empolgavam com estes movimentos, apesar de
saber que a situação no Brasil ainda era bem diferente.

Retomando o cenário das canções de protesto, ocorria em 1968 ano a "Marcha


contra a guitarra elétrica", caricatura do cenário das canções engajadas contra o
imperialismo yankee e em defesa da verdadeira cultura popular brasileira. Desse ponto
de vista, a guitarra elétrica simbolizava o movimento de corrupção da “cultura popular”
pelo “lixo cultural” norte-americano. Os tropicalistas se encontravam nessa
encruzilhada: ao mesmo tempo em que estavam profundamente interessados nos
movimentos de vanguarda euro-estadunidenses, encontravam-se em um cenário da
MPB no qual assumir qualquer elemento estrangeiro pareceria tomar parte do
imperialismo. Discutir o uso da guitarra elétrica, então, significava na verdade discutir
questões muito mais amplas referentes ao nacionalismo e ao posicionamento político do
artista. Nesse, contexto, os tropicalistas escolhem assumir a guitarra elétrica. Devemos
entender, nesse sentido, que os tropicalistas buscavam na guitarra elétrica um elemento
de libertação das categorias de apreciação da música engajada, vistas como
ultrapassadas. Como aponta Duprat, integrante do grupo e arranjador dos principais
trabalhos tropicalistas:

Nós sentimos que o uso da guitarra não era um negócio puramente


musical e sim um novo tipo de comportamento pop que vinha
envolvendo o mundo desde 1960. Decidimos incluir em nossas
atividades musicais os elementos desse novo comportamento. Não
usamos a guitarra simplesmente para irritar a Elis Regina, Edu Lobo
ou qualquer um que pertencesse à ortodoxia musical brasileira.
Queríamos mudar as coisas (FAVARETTO, op. cit., p. 46)

O tropicalismo, nesse sentido, desloca a crítica dos cantores engajados ao


imperialismo para a crítica ao conservadorismo comportamental, como faziam os jovens
da “contracultura”. Contra as certezas ideológicas, surge a ironia afetuosa tropicalista,
cercada de uma atitude positiva. O tropicalismo, porém, dura muito pouco.

1.5 O rock pós-tropicalista

O problema era que vivíamos em uma ditadura militar e, em 1968, era aprovado
o Ato Institucional número 5 (AI-5). Este ocasionou no controle quase total dos meios
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de comunicação pelos militares e na censura, obrigando artistas a, no mínimo, repensar


seus caminhos criativos. Logo, alguns dos principais nomes da música popular
brasileira estariam no exílio (Gilberto Gil e Caetano Veloso inclusive, dando fim ao
tropicalismo). Nesse momento político, que tem o AI-5 como principal marco, gerou,
mais que uma impossibilidade prática de criar canções engajadas, uma sensibilidade
particular que não condizia nem com o engajamento das canções nacionalistas e nem
com a alegre carnavalização tropicalista. Nas palavras de Arnaldo Jabor,

A barra pesa a partir de 1969 em diante. Não só a barra física da


morte, do assassinato, da tortura etc., como a barra da proibição, da
censura, do perigo que deriva em desespero. Eu nunca vi nada igual
nos anos de 1969/70/71. Quem viveu sabe disso, era uma loucura
generalizada. Foi um trauma psicológico, uma coisa terrível, drogas, o
desespero, o niilismo que se instalou, que deu nos guerrilheiros
suicidas e que deu na arte. (JABOR, 2003)

Com a breve exceção do tropicalismo, a chegada da "contracultura" no Brasil,


portanto, coincide com o surgimento de uma sensação de desespero: desânimo e
individualização. A seleção dos elementos contraculturais, portanto, se deu a partir
desse novo ponto de vista, gerando um resultado muito diverso. Os temas do rock pós-
tropicalista, no começo dos anos 70, então, apesar da influência hippie, não são o amor
livre ou o uso libertador das drogas, mas a loucura, o medo e a solidão. Ao invés do
colorido, o cinzento noturno da cidade. O que ocorre, então, é a “inversão da temática
social da canção dos anos 60; é a transformação em pesadelo da ideia utópica de uma
nova ordem social mais justa” (BRITTO, 2003). São muitas as músicas que descrevem
este momento. Canções de Sérgio Sampaio, Jards Macalé, Milton Nascimento e muitos
outros aos quais P.H. Britto se refere podem ser enquadradas nesta categoria de canções
que passam a privilegiar temas como medo, a viagem sem volta, o tema da separação, a
imagem da cidade noturna, a ideia de loucura e o fim do sonho.

É este o cenário ao qual P.H. Britto se refere como o rock pós-tropicalista. Há


uma ressalva, porém, que podemos fazer. Herom Vargas (VARGAS, 2012) realiza
algumas críticas a estas reflexões aqui propostas: o fato, por exemplo, de o rock pós-
tropicalista tratar-se, na verdade, de um movimento interno à MPB, e não de rock
propriamente, crítica que podemos levar em conta com uma rápida observação dos
artistas citados. Ressalta, também, algo central: a importância de não tratarmos essas
canções como mera consequência das circunstâncias do governo militar. Para ele, o
cenário pós-tropicalista seria caracterizado por três circunstâncias: “o tropicalismo e sua
18

abertura à pesquisa estética em sintonia com a contracultura, as pressões das ações


censórias dos governos militares e o contexto de expansão das indústrias midiáticas”
(VARGAS, op. cit.). É nesse cenário que pretendo inserir o personagem central deste
trabalho, o cancionista Antônio Carlos Belchior.

1.6 Belchior: situando “Alucinação” e o delírio com coisas reais

Em 1971, Belchior deixa a cidade de Fortaleza, migrando para o Sudeste no


mesmo ano em que Caetano Veloso e Gilberto Gil iriam para o exílio, dando fim ao
tropicalismo. Além disso, é um dos anos finais da chamada “Era dos Festivais”, e é
justamente em um desses festivais que Belchior começa sua carreira formal no Sudeste
do país. Sua canção “Na Hora do Almoço” venceu o 4º Festival da TV Tupi. O
cancionista passava, então, a ganhar alguma visibilidade, e gravaria ainda em 1971 a
canção que venceu o festival. Em 1973, grava um compacto pela Chantecler e em 1974
lança o seu primeiro Long Play, “A palo seco”. Aos poucos, Belchior começa a ganhar
notoriedade e, em 1976, Erasmo Carlos gravaria “Paralelas”, Elis Regina gravaria
“Como Nossos Pais” e Belchior, após cinco anos vivendo como migrante nordestino
entre Rio de Janeiro e São Paulo, lançaria “Alucinação” e alcançaria o almejado
sucesso.

É das canções compostas neste período e, principalmente, deste último disco que
pretendo tratar, demonstrando como Belchior, aos poucos, parece ir chegando a uma
unidade política e estética que encontra sua síntese em “Alucinação”. Depois desse
disco, surgem outras variações na obra de Belchior, como a substituição da sua figura
enquanto contestador político pela de ícone sensual, processo que Rita Morelli descreve
minuciosamente em seu livro “Indústria Fonográfica: um estudo antropológico”
(MORELLI, 2009).

De qualquer forma, a impressão que temos ao ouvir as primeiras obras de


Belchior em sequência cronológica é que, aos poucos, Belchior encontra um tom
singular enquanto cancionista, em um processo que se dá por alguns fatores que estão
interligados entre si, como o abandono dos ritmos nordestinos e o abandono dos
experimentalismos linguísticos. No seu LP “A Palo Seco” (1974), os experimentalismos
com a linguagem ainda eram muito comuns. O disco é carregado de procedimentos
provenientes da poesia concreta e de influência tropicalista (as músicas “Mote e Glosa”,
“Máquina I”, “Cemitério” e “Máquina II” são os exemplos mais claros) e, além disso,
19

os ritmos tipicamente nordestinos ainda eram presentes (como na canção “Mote e


Glosa”). Vale destacar, também, que os elementos que P.H. Britto atribui ao rock pós-
tropicalista já estão presentes nas letras das músicas, como em “Senhor dono da casa”
(‘juntei as economias/ pra gastar só nos maus dias/ e gasto hoje afinal”), em “Todo Sujo
de Batom” (“eu estou muito cansado/ de não poder falar palavra/ sobre essas coisas sem
jeito/ que eu trago em meu peito”) ou ainda em “Cemitério” (o cemitério é geral/ a
morte nos faz irmãos”), apenas para dar alguns exemplos.

Assim, em “A palo seco”, parecem coexistir o interesse pela pesquisa em


linguagens e o engajamento na experiência da vida cotidiana, ideia que vai ser muito
importante na obra de Belchior, como veremos a seguir. Em “Alucinação”, dois anos
depois, parece que esses elementos “cotidianos” são radicalizados e ampliados em
detrimento do interesse pelos experimentalismos linguísticos. Essa escolha pelos
elementos cotidianos é bastante evidente tanto na escuta dos elementos musicais quanto
é expressa abertamente nas letras e declarações de Belchior. É uma escolha ativa e, para
o autor, de caráter político coerente com a sensibilidade do período, o que pode ser
comprovado por diversos versos. Abrindo a música “Como Nosso Pais”, Belchior
afirma: “Não quero lhe falar meu grande amor/ das coisas que aprendi nos discos/ quero
lhe contar como eu vivi/ e tudo que aconteceu comigo”; canta, ainda, que “qualquer
canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Em outra canção, “Apenas um rapaz
latino americano”, Belchior ressalta mais uma vez a divisão entre a arte e a vida real,
experienciada em sua concretude: “não se preocupe meu amigo com os horrores que eu
lhe digo/ isso é somente uma canção, a vida, a vida realmente é diferente/ quer dizer, a
vida é muito pior”.

Diz, ainda, algo que vai no mesmo sentido quando o perguntam sua opinião
sobre o misticismo, em entrevista: “sou completamente desinteressado. Não acredito,
não quero nenhuma nova teoria que me decepcione depois. Sou um cara mais
preocupado com toques imediatos, do presente. A arte não pode viver de ilusões” 1. É
também o que declara no início da música “Alucinação”, como um manifesto:

Eu não estou interessado em nenhuma teoria,

em nenhuma fantasia, nem no algo mais

nem em tinta pro meu rosto ou oba oba ou melodia

1
Revista Hitpop, junho de 2016.
20

para acompanhar bocejos, sonhos matinais

eu não estou interessado em nenhuma teoria

nem nessas coisas do oriente, romances astrais

a minha alucinação é suportar o dia-a-dia

e meu delírio é a experiência com coisas reais

A ideia de delírio com coisas reais parece ser um modo de pensar próprio que
Belchior adota como opção política. “Antes do fim”, por exemplo, é outra canção onde
Belchior trata o tema, desejando aos amigos que aprendam esta sensibilidade, e essa
preocupação aparece também na entrevista já citada: “Sabe, viver é mais importante que
pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende?”.

Quero destacar que tanto nas entrevistas, em “Alucinação” e em “Apenas um


rapaz latino americano”, a mudança de escopo da canção como reflexão sobre as
diversas linguagens artísticas para a canção submetida à vida está relacionada ao tipo de
vida que o autor e sua geração viviam nesse período. O que quero dizer é que a ideia de
delírio com coisas reais, então, constitui certa unidade reflexiva ao conjugar dois
termos: diante de uma vida em desespero, exausta, a perda de sentido dos
experimentalismos linguísticos, e a constituição da vida em sua concretude como
intragável, o que acaba por gerar, digamos, um sistema circular delirante (vida exausta
leva à menos interesse em pesquisas linguísticas, que leva a maior imersão na vida
exausta, etc.).

1.7 Inserindo Belchior no rock pós-tropicalista

Assim, é importante prover alguns exemplos do exame que Belchior faz dessa
vida, deste real experimentado ao qual ele tanto se refere no disco “Alucinação”, de
1976. Nele, o cancionista manifesta profundamente as sensações que P.H. Britto
caracterizou como características do rock pós-tropicalista (medo, solidão, derrota,
exílio, loucura), em todas as dez músicas, sem exceção. Em “Antes do fim”, (“viver é
que é o grande perigo”), em “Sujeito de Sorte” (“tenho sangrado demais, tenho chorado
pra cachorro”) ou em “A palo seco” (“sei que assim falando pensas/ que esse desespero
é moda em 76/ mas ando mesmo descontente/ desesperadamente eu grito em
português”), por exemplo. Também em suas declarações Belchior manifesta sensações
que podemos enquadrar como típicas do rock pós-tropicalista, tanto quando fala de sua
vida pessoal (“Eu não sou uma pessoa feliz, pois tenho o sentido muito agudo das coisas
21

que estão acontecendo e isto me atinge muito”2) quanto quando faz uma leitura de sua
geração como um todo (“A juventude está ofendida, humilhada, dilapidada. Foi-lhe
negado o dom da palavra. Vivemos um tempo negro”3).

Um leitor e ouvinte atento notará, porém, que as canções de Belchior e a


categoria de P.H. Britto se encaixam de maneira muito curiosa, já que o cancionista
manifesta muitos elementos elencados pelo autor, como ressaltado acima, mas também
apresenta características que podem não se encaixar exatamente nesta categoria, como a
manutenção de uma esperança ressentida no novo que é manifesta por todo o disco e a
expressão constante de uma agressividade que resulta do fim do sonho. Para enquadrar
Belchior nesta categoria sem perder a acuidade analítica, portanto, é preciso detalhar as
ênfases particulares que o cancionista assume no disco. Vejamos.

1.8 O cotidiano e o cidadão comum

Todo o disco “Alucinação” aparece imerso nesse contexto pós-tropicalista, e a


referência à loucura em seu título já sugere o tom que lhe será predominante. No próprio
realese do disco, ele é descrito como “quase um caderno de memórias de um jovem que
sofreu todas as crises de sua geração e não se conformou com elas” 4. A canção que abre
o disco, “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, traz já no título um elemento
interessante para análise, o uso do advérbio “apenas”, revelando sua identidade
enquanto sujeito menor*, .

Enuncio, assim, um tema caro ao cantor: a ideia de cidadão comum. A ideia de


um sujeito apequenado pela metrópole, marcado justamente pela sua normalidade. É o
caso do rapaz do interior que vive em constante tensão na cidade grande, “sem dinheiro
no banco/ sem parentes importantes/ e vindo do interior” (“Apenas um Rapaz Latino
Americano”). Mas é também o caso de “um preto, um pobre, um estudante”
(“Alucinação”), estas pessoas que se aventuram a “suportar o dia-a-dia” e a encarar a
“solidão dessas capitais”. Belchior não pretende, porém, apenas falar sobre estas

2
Revista Última Hora, 12/07/1977
3
Jornal de Música, Revista do Rock nº 13, 1975.
4
Realese do disco Alunicação, lançado pela Philips-Phonogram.
*
Utilizo o sentido menor no sentido que deleuziano, segundo o qual a minoria é sobretudo,
uma questão de desvio a uma média, metro-padrão que lhe serve de instrumento avaliador, e
não uma questão de minoria quantitativa apenas. Viveiros de Castro apresenta uma síntese
interessante em seu artigo “Sobre a Noção de Etnocídio, com especial atenção ao caso
brasileiro”.
22

pessoas, mas está entre elas, como em “Fotografia 3x4”, onde insiste: “a minha história
é talvez/ igual a tua/ jovem que desceu do norte e que no Sul viveu na rua”. A
insistência nessa identidade no fim desta canção através da repetição da frase “eu sou
como você/ que me ouve agora” não é por acaso, e é presente também em declarações
como: “Olha, eu tenho medo de muitas coisas, sabe? Eu acho que, como cidadão
comum que eu sou e como homem do meu tempo, claro que eu tenho diversos medos,
né?”5. Vale comentar, ainda, que a centralidade que a vida cotidiana adquire na obra do
compositor é também evidente em suas falas, como na declaração: “Minha música é
antimetafórica. É clara, direta e crua. Fala das condições do cidadão comum, da nossa
morte cotidiana, da nossa esperança”6. Ou na declaração à Revista Veja, quando coloca
entre as contribuições de suas canções o fato de elas serem “um chamado violento,
talvez até cruel, para a realidade cotidiana das pessoas”7.

1.9A metrópole e o imigrante nordestino

O cidadão comum de Belchior tem um lar específico: a cidade grande. Segundo


P.H. Britto, a “imagem da cidade noturna vazia é recorrente” neste momento, e com ela
o tema da solidão na cidade. Em “Alucinação” a noite urbana é citada (“a noite fria me
ensinou/ a amar mais o meu dia”, em “Fotografia 3x4”) associada à experiência de viver
na rua (“a minha história é talvez/ igual a tua/ jovem que desceu do norte/ e que no sul
viveu na rua”, in idem). A cidade aparece como uma agressão em si, contraposta
constantemente ao sertão, lugar de origem. A cidade é o lugar do desnorteamento (nos
dois sentidos da palavra), do desapontamento e da violência. É o lar, por excelência, da
fixação pelo dinheiro e da solidão das “pessoas cinzas, normais”, dos humilhados, o
palco do desespero de sua época. Mas não é só isso, a cidade também é onde se
manifesta a paixão de Belchior. Há certa associação entre o futuro e a cidade, e, apesar
de toda a adversidade que lhe é característica, parece ser dela que vai sair o novo, essa
fixação de Belchior que detalharei mais à frente (“Eu vou ficar nessa cidade/ não vou
voltar pro sertão/ pois vejo vir vindo no vento/ um cheiro de nova estação”, em “Como
Nossos Pais”)

A canção “Fotografia 3x4”, citada acima, é inteiramente dedicada à descrição do


paradigma urbano do ponto de vista da chegada do imigrante nordestino na cidade,

5
Folha de S. Paulo, em 27/08/1978
6
Jornal de Brasília, 21/10/1977
7
Veja, 23/06/1976
23

diante do difícil cenário que este sujeito tem pela frente. Essa canção converge com um
depoimento de Belchior, no qual narra sua experiência pessoal também no momento de
sua chegada no Rio de Janeiro: “nesse período era tudo muito complicado. Mesmo
problema assim de segurança, a gente era constantemente parado pela polícia na rua,
problema de documento, problema de você andar à noite na rua sem ter pra onde ir.” 8

Em um programa televisivo, comenta o sentimento do imigrante se agregando às


massas da metrópole, relacionado a perda de “qualquer sentimento de vinculação” com
outras pessoas, em um processo no qual o cidadão comum fica “profundamente
individualizado”, gerando o sentimento de “solidão da grande cidade”9.

1.10 O sonho acabou

Outro tema central para entender o disco “Alucinação” me parece ser a sensação
de fim do sonho de transformação social. Isto é, do fim da sensação característica dos
anos 60 de que uma ação coletiva poderia resultar em uma reviravolta comportamental.
Em 1971, com o fim dos Beatles, John Lennon já anunciara: “The dream is over”. No
Brasil, a aceitação de que a situação não ficaria melhor como sugeria a empolgação
contracultural já era percebida, como podemos ressaltar, por exemplo, na canção de Gil
também denominada “O sonho acabou”, de 1972. O fato é que esta sensação assume um
caráter central na obra de Belchior, o que torna importante uma pergunta: como esse fim
do sonho aparece nas obras e declarações de Belchior? Por que ela é tão central?

Em “A palo seco”, Belchior anunciava: “Se você vier me perguntar por onde
andei/ no tempo em que você sonhava/ de olhos abertos lhe direi/ amigo eu me
desesperava”. No programa “MPB Especial”, de 1974, o cancionista a descreve como
uma canção “para depois do sonho”. Em “Como Nossos Pais”, Belchior canta que
“viver é melhor que sonhar” e que “eles venceram/ e o sinal está fechado para nós/ que
somos jovens”. Em “Velha Roupa Colorida”, Belchior interroga, em referências aos
Beatles: “Como Poe, poeta louco americano/ eu pergunto ao passarinho: Black Bird, o
que se faz?/ [...] Black Bird me responde/ tudo já ficou pra trás”. A impressão que temos
ao ouvir essas canções é de que o fato do fim do sonho, apesar de consolidado, não é
notado por muitos, e é necessário afirmar frontalmente este fato. Parece, então, que a
formulação de uma arte adequada para a década de 70 dependeria inteiramente da

8
Folha de S. Paulo, 27/08/1978
9
MPB Especial, 02/10/74
24

necessidade da delimitação clara do fim dos anos 60 com seu clima de rebeldia. É nesse
sentido que Belchior , em entrevista, declara ser enfaticamente contra

qualquer trabalho que pense que ainda estamos nos anos 60.
Qualquer trabalho que não saiba definitivamente que o sonho
acabou e que há pessoas que não tiveram condições de sonhar. Eu
não sonhei porque fui acordado tarde da noite para me despedir dos
amigos que estavam partindo para longe, tive que ir ao porto para
me despedir de pessoas que talvez não voltassem nunca mais. A
gente não pode ver a realidade como puramente um sonho. Existem
coisas muito mais concretas, mais reais, e a arte tem que estar
presente nisso. Não pode ser só um projeto colorido.10

Esta declaração é central. Associa a ênfase no real experimentado como fonte de


reflexões, a necessidade de uma nova sensibilidade por parte do cancionista e o caráter
tanto coletivo quanto pessoal desse sentimento. Citando essa despedida dos amigos,
Belchior tangencia outro tema importante quando tratamos deste conflito geracional: um
clima de nostalgia dos tempos em que se podia sonhar. É bem verdade que em “A palo
seco” e no trecho supracitado da entrevista à revista “Veja”, Belchior se coloca como
desesperado durante o sonho dos outros. De qualquer forma, diante da impossibilidade
de um sentimento coletivizante, se instaura esse caráter nostálgico, mesmo não tendo
vivido plenamente este momento, e esse sentimento é expresso em diversas letras. Isso é
notado em “Como Nossos Pais” (“Já faz tempo eu vi você na rua/ cabelo ao vento,
gente jovem reunida/ na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais”) e
em “Velha Roupa Colorida”:

Nunca mais meu pai falou “She’s leaving home”

E meteu o pé na estrada “Like a Rolling Stone”

Nunca mais eu convidei minha menina

Para correr no meu carro, loucura, chiclete e som

Nunca mais você saiu a rua em grupo reunido

O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, quero cartaz

Aqui, ao fazer referencias contraculturais, Belchior acaba por explicitar o caráter


diverso da contracultura, seja se referindo a Bob Dylan, aos Beatles ou aos hippies.
Todos integram o coletivo que podemos denominar “contracultura” e despertam o
saudosismo do autor. Fazem, porém, parte de um tempo que para Belchior já não faz

10
Veja, 23/06/1976
25

mais sentido. Para ele, não restavam dúvidas de que no início dos anos 70 o sonho havia
acabado.

1.11 Individualização: O dinheiro, a censura e a migração

Não podemos esquecer, como ressaltado por Herom Vargas (VARGAS,


op. cit.), que vivíamos na época do “milagre econômico”, o boom capitalista que
empolgava a juventude em seus delírios de sucesso financeiro. A empolgação com a
economia de mercado ganhava espaço durante o início dos anos 70, tomando cada vez
mais espaço na vida da juventude. Podemos pensar, então, na importância em ressaltar
esse ponto, na medida em que confere uma perspectiva sincrônica das opções da
juventude à essa época.

Assim, vemos que nas canções de Belchior o fim do sonho coletivo corresponde
a um processo de individualização, processo no qual muitas vezes o sonho coletivo de
transformação social transforma-se em projetos individuais de sucesso pessoal. É o caso
de “Como Nossos Pais”, onde afirma que “quem me deu a ideia/ de uma nova
consciência e juventude/ está em casa/ guardado por deus/ contando os seus metais”.
Em “Não Leve Flores”, Belchior associa a falha na mudança à crueldade do dinheiro:
“Tudo poderia ter mudado, sim/ pelo trabalho que fizemos tu e eu/ mas o dinheiro é
cruel/ e um vento forte levou os amigos/ para longe das conversas, dos cafés e dos
abrigos/ e nossa esperança de jovens não aconteceu”. Em contraposição aessa sensação
coletiva de empolgação pela riqueza, Belchior se identifica como um rapaz “sem
dinheiro no banco”, e ressalta em “Fotografia 3x4”: “esses casos de família e de
dinheiro eu nunca entendi bem”. Em declaração, ele resume:

Em 68 eu entrei para a universidade, começou outra barra. E o que


havia no ar? Uma maravilhosa rebeldia universal contra todos os
poderes paternos, maternos, políticos, partidários, universais,
culturais, escolares. Era um levante encabeçado com grande força e
beleza pelos jovens. E eu me comovia – era um deles. Os hippies
pregavam: faça o amor, não faça a guerra. Porra, isso é um trabalho,
uma coisa a construir com as mãos. Mas não deixaram. O sistema
transformou isso em grana. Pegou nossa liberdade e deu-lhe uma
bolacha. O rei da grana, e dono do mundo, pegou tudo isso e viu a
possibilidade de transformar tudo em merda. Não deixaram a gente
pegar a idéia e botar em prática. Ninguém deixou chegar na prática11

Outra declaração caminha no mesmo sentido:

11
Jornal de Música, revista do rock nº 15, 1976
26

Na década de 60, a grande explosão da juventude foi no sentido da


libertação de preconceitos, da multiplicação da consciência, da
alteração de padrões de comportamento, de relacionamento e de
hierarquia. Então, para mim, os anos 60 foram uma grande forma de
rebeldia. Mas toda essa experiência foi solapsada, aproveitada pelo
sistema e transformada em mercadoria. Não acho que não valeu a
pena, que não se modificaram coisas. Porém me dói muito, me
decepciona, ver que nossos projeto mais caros deram nisso e agora
temos que começar tudo de novo. Todas as nossas perspectivas de
libertação, de transformação, foram engolidas pelo sistema e
transformadas em lixo, em dinheiro. O que me parece é que esta
geração é que ela está apta a falar disso, de seu próprio sofrimento,
de sua própria opressão, de seu próprio exílio. Eu opto por essa
promessa que está na cara das pessoas.12

Assim, se relacionam o fim do sonho, a nostalgia da utopia coletiva e o


surgimento do dinheiro como elemento desintegrador dos grupos sociais da década de
1960. Elemento que, no Brasil, se associou a outro que merece ser destacado: a censura.

Se a sensação de fim da utopia perpassa o fim da contracultura em todo o mundo


no início dos anos 70, no Brasil a promulgação do AI-5 contribui para radicalizar este
movimento, torná-lo mais enfático e dramático. Os “anos de chumbo” atingiram a
geração de Belchior, influenciaram sua música e o atingiram pessoalmente. Segundo o
Jornal do Brasil13, duas músicas foram censuradas no disco “Alucinação”, e, além disso,
“Apenas um Rapaz Latino Americano” e “Não Leve Flores” sofreram alterações pelos
censores. Por motivos óbvios, é bastante difícil encontrar referências à censura de forma
direta nas canções de Belchior. Talvez a referência mais próxima seja em “Apenas um
rapaz latino americano”, onde o autor diz: “sei que tudo é proibido/ aliás, eu queria
dizer que tudo é permitido”.

Em declarações, aparecem referências mais explícitas, como quando


Belchior afirma ser “profundamente injusto ter o que falar e não poder. Respirar a
insegurança de conviver com seus semelhantes”14. ou quando diz à Veja que se sente
“profundamente ferido, humilhado” pela censura15. Diz também que “faz parte do
testemunho humano e estético do artista de nosso tempo lutar pela abolição total da
censura”16, e completa, sobre sua geração: “Nós, os novos, surgimos num tempo

12
Veja, 23/06/1976
13
Jornal do Brasil, 04/04/1976
14
Manchete, 30/9/78
15
Veja, 20/04/77
16
Revista Íris, 1976
27

singular. Vivendo num regime de exceção, fazemos uma arte de exceção” 17. Assim,
insegurança, opressão e humilhação surgem como algumas palavras para tentar delinear
o estado de exceção que a ditadura militar instaurou. A repressão, então, na criação da
desconfiança entre amigos, instaurou um individualismo decorrente da repressão,
manifesto pela opção pela fuga e pelo recolhimento individual.

Gostaria apenas de ressaltar algo já comentado: na obra de Belchior, a


posição do migrante nordestino na cidade grande o insere também neste regime de
individualização em relação a uma comunidade interiorana anterior, ao qual este
pertencia. Agora, esse sujeito se encontra em uma posição dupla: se integra às massas
das grandes cidades, mas nunca completamente, relação de exterioridade e interioridade
simultânea: não forma com seus conterrâneos imigrantes uma nova comunidade
agradável. Se marginaliza, se individualiza. E assim se constitui um ou fator na
constituição do processo de individualização, ao lado da censura e das ideologias de
sucesso pessoal. Esse fator (a migração do nordestino), porém, é específico ao grupo de
migrantes ao qual Belchior pertence e converge com os outros dois destacados.

1.12 O Novo e os “mitos” cristalizados

O processo descrito até agora, então, é o de uma geração pós-sonho


contracultural, onde um processo de individualização e repressão causam sensações
como medo, desespero e desânimo. O novo panorama que surge nesse processo faz com
que as ações, sensações, ideias e, logo, canções dos anos 60 fiquem ultrapassadas.
Assim, faz-se necessário, para Belchior, a geração de novas ideias que possam se opor,
dialeticamente, aos sonhos de realização individuais dos yuppies e às ideias de fuga
gestadas no clima pós-tropicalista.

Esta última é uma especificidade da obra de Belchior, um debate interno ao


clima do rock pós-tropicalista: Belchior se opõe radicalmente a uma estética da fuga,
como explicita em depoimento: “Até agora, em música, se tem feito, de modo geral,
uma arte evasiva, uma arte de fuga. Eu quero que meu trabalho seja um confrontação
mais nua, mais direta e violenta com a realidade. 18”. Ou, em outra, na qual afirma querer
passar de um estado musical passivo para uma atitude musical ativa: “Não gosto de
músicas ou letras apenas contemplativas, passivas. Eu falo – e devo falar – dos enganos

17
Folha de S. Paulo, 31/07/76
18
Veja, 23/06/76
28

que nós, os jovens, sofremos por ver as nossas esperanças caírem por terra. Assim, não
abro mão da agressão”19. Para ele, o desespero se recoloca em termos de violência, na
criação de um cantar amargo que possa abrir as portas para novas ideias que se
oponham a essas duas perspectivas indesejadas. Assim, o canto fala constantemente da
necessidade de que se possam abrir caminhos para que estas novas ideias possam surgir,
um novo ainda indefinido. É este o “cheiro de nova estação” de “Como Nossos Pais”,
canção na qual atesta também que “o novo sempre vem”. Sentimento presente também
em “Como o diabo gosta”, onde diz que “o que transforma o velho no novo/ bendito
fruto do povo será”. Ana Maria Bahiana, em 1976, diz sobre Belchior que ele “continua
falando, acreditando, pregando a mudança, a novidade, a juventude” 20. O realese do LP
Todos os sentidos carrega uma citação, na qual Belchior diz que só consegue ver o seu
cantar como “uma forma de provocar reações e mudanças”21.

1.13 Crise geracional e o migrante na cidade

Acredito, neste momento, ser importante destacar um ponto: se podemos


enquadrar a obra de Belchior na categoria de rock pós-tropicalista de P.H. Britto, como
espero ter demonstrado, é bem verdade que isto só pode ser feito levando em conta o
tom particular que Belchior adota e a sua situação de imigrante nordestino entre Rio e
São Paulo. O que eu quero demonstrar, em suma, é que a exaustão, o desespero e o
desnorteamento parecem entrelaçar profundamente a situação de migrante nordestino de
Belchior e sua “crise geracional”: esses dois contextos no qual Belchior se insere
parecem se encontrar na exaustão cantada em suas músicas. Não percebi, em minha
análise, nenhuma separação de sensações, sentimentos ou declarações que possam
diferenciar as atitudes frente a estes dois aspectos, tendo concluído que eles se fundem
acumulativamente nas canções de Belchior: são tratados nas palavras das mesmas
canções e despertam emoções similares, que resultam na experiência complexa que o
autor vive.

1.14 O canto torto de Belchior

Um ponto que merece destaque na obra de Belchior é a sua voz, traço marcante
em sua obra musical, notada de forma ampla pela imprensa à época de seu surgimento

19
Revista Pop, 1977
20
O GLOBO, 09/02/1976
21
Realese do LP “Todos os Sentidos”
29

no cenário musical profissional. Mauricio Kubrusly, por ocasião do lançamento do LP


“Mote e Glosa”, caracteriza sua voz como “fanhosa e áspera” 22. Tárik de Souza23, ao
comentar o lançamento do LP “Alucinação”, descreve sua voz como “metálica” e seu
canto como “meio torto”, por exemplo.

Muitos viram na voz e no canto de Belchior uma simples manifestação de mau


gosto e incapacidade vocal. Wladimir Soares afirma, por ocasião do lançamento do LP
“Paraíso”, de Belchior: “Em vez de deixar que cantores interpretem sua obra, Belchior,
monocordicamente, se empenha em cantá-la. Ao contrário de outros compositores sem
voz, Belchior não vem amadurecendo seu estilo interpretativo”, e diz também que há
“um pequeno problema de dicção a atrapalhá-lo” 24. Sobre o show “Todos os Sentidos”,
Edmar Pereira destaca a “insuficiência vocal” do cantor e o sua insistência em
“inutilmente fazer modulações com sua ausência de voz”25. Ana Maria Bahiana faz uma
concessão, ao dizer que, no show “Todos os Sentidos”, que “sua voz fanhosa e rude está
se disciplinando ao ponto de conseguir dois momentos excelentes no show” 26

Para outros, sua voz é traço marcante e positivo, como aponta o obviamente
comprometido release do LP “Era uma vez o homem e seu tempo”, de 1979, que
propõe outra mirada sobre sua voz: “A voz do cantor não é de ouro, não é de prata: é de
lata. Ácida, rascante, contundente. Belchior não está para brincadeiras. O forte do seu
trabalho é exatamente a crueza com que ele dá o seu recado” 27. Não é só o realese que
tem essa opinião, e, para desespero de alguns críticos, em votação popular do “Jornal de
Música e Som”, Belchior foi eleito pelo público como 2º colocado na categoria
“Revelação Vocal” do ano 28.

Há, claro, alguns comentários mais interessantes. Em 1978, Nelson Motta


apontou que o caráter feroz e rasgado da voz de Belchior se relacionava com sua
situação geracional e compartilhava essa característica com outros cantores da mesma
época, como Luis Melodia29. Outra observação bastante perspicaz é a de Eda Romio,

22
Jornal da Tarde, 06/05/74
23
Veja, 31/03/1976
24
Jornal da Tarde, 02/09/82
25
Jornal da Tarde, 05/08/78
26
O GLOBO, 02/09/78
27
Realese do LP ”Era uma vez o homem e seu tempo”
28
Jornal de Música e som, 26/12/76
29
O GLOBO, 14/03/78
30

em que nota que a agressividade é uma característica específica do canto de Belchior, e


não da voz: “Sua voz, que numa conversa é serena, ganha aquela aspereza, quase
violência, que todos conhecem. De pouquíssimos gestos, normalmente, ele maneja o
microfone e o violão como se fossem armas”30. Ou o comentário de Walter Silva que
aponta: “Em Belchior dá-se o reencontro da voz da terra com o som da cidade. A voz,
não; o grito. Pungente sofrido e real. Firme, seco e justo” 31.

Também em suas canções existem apontamentos que devem ser considerados


para a análise de seu canto, como na canção “Não leve flores”, na qual aponta: “A voz
resiste/ a fala insiste/ você me ouvirá/ A voz resiste/ a fala insiste/ quem viver verá”. Já
em “A Palo Seco”, Belchior anuncia: “Desesperadamente eu grito em português”. E
esclarece suas intenções: “Eu quero é que esse canto torto/ feito faca/ corte a carne de
vocês”. Em “Apenas um Rapaz Latino Americano”, uma declaração que segue a mesma
linha:

Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve

Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve

Sons, palavras, são navalhas

E eu não posso cantar como convém

Sem querer ferir ninguém

Acredito, ter, assim, alguns elementos para sublinhar algumas características do


canto de Belchior com alguma segurança. O que quero destacar é que sua forma de
cantar não é “espontânea” ou casual, fruto de um acaso biológico. Seu canto tampouco
está envolvido com uma noção de fruição estética, buscando a beleza; e está situado
entre dois critérios. O primeiro é o de “presentidade”32, isto é, Belchior trabalha para ser
um repórter, revelador de seu tempo. O outro é busca a por afecção, causar afetos,
provocar mudanças. Nas palavras de Belchior, “arte não é uma questão de gosto, mas de
eficiência”33.

O desagrado causado pela aspereza ou ruidosidade de sua voz é intencional,


como Belchior afirma, ao citar Marcus Vinicius e Torquato Neto: “eu acho é pra se

30
Nova, 1977
31
Folha de S. Paulo, 07/06/76
32
Jornal de Brasilia, 21/10/77
33
Última Hora, 11/04/78
31

desafinar de novo [...], é preciso desenrolar o carretel da linguagem até onde dá, sabe,
desafinar o coro dos contentes”34. Podemos notar, assim, que a produção do ruído vocal
é, também, a produção de ruído social nos que insistem em acreditar no sonho dos anos
60, na estética da fuga ou nos sonhos de realização pessoal. O trecho já citado da canção
“Não leve flores”, por sua vez, permite que notemos a relação entre o canto e a
anunciação do novo que deve vir a preencher esta lacuna deixada pelo fim do sonho e
que os capitalistas e covardes insistem em reivindicar.

Situamos, assim, o papel que o excesso cumpre no LP “Alucinação”. Para isso,


devo retomar as observações de Santuza Cambraia Naves, onde afirma que o excesso na
música brasileira é geralmente associado ao nacionalismo, no processo histórico que
resumi acima, ressaltando a forma com que cada momento da MPB lidou com o tema.
Além de notar o excesso no canto de Belchior, gostaria de ressaltar que o excesso em
sua entoação é uma variante particular do mesmo, que não resulta nem de dores-de-
cotovelo melodramáticas nem do nacionalismo em uma vertente derivada de Villa-
Lobos. Trata-se, na verdade, do excesso que deriva da convergência entre a crise
geracional e a situação do migrante nordestino, excesso ligado ao desespero e à
violência do início dos anos 70. O canto excessivo, agressivo e ruidoso é o
desaguadouro próprio desses sentimentos, o canto “a palo seco”, enfim, definição que
Belchior foi buscar na poesia de João Cabral de Melo Neto:

A palo seco é o cante

de grito mais extremo:

tem de subir mais alto

que onde sobe o silêncio;

é cantar contra a queda,

é um cante para cima,

em que se há de subir

cortando, e contra a fibra.*

34
Programa MPB Especial, 1974
*
Disponível em: <http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2010/11/palo-seco-joao-cabral-de-melo-
neto.html>
32

1.15 Hora do Almoço e Panis et circenses

Já tendo destacado alguns pontos importantes da obra de Belchior e tendo


explicitado o papel que cada um deles cumpre em sua obra, acredito agora poder
contribuir com uma breve análise da letra de uma canção específica, “Na hora do
almoço”, em uma perspectiva comparativa com a da canção tropicalista “Panis et
Circenses”. Assim, será possível estabelecer um contraste entre a perspectiva de
Belchior e o ponto de vista tropicalista.

“Panis et circenses”, composta por Gilberto Gil e Caetano Veloso e interpretada


pelo grupo Os Mutantes no LP “Tropicalia ou panis et circenses” traz alguns elementos
tipicamente tropicalistas. Os primeiros versos (Eu quis cantar/Minha canção iluminada
de sol) já anunciam o aspecto solar com que os tropicalistas vão tratar a figura das
“pessoas na sala de jantar”, figura caricatural da família e, nesse caso, do
conservadorismo comportamental. A letra opõe, a todo momento, a ocorrência de
eventos surrealistas por parte do sujeito ficcional (soltar tigres e leões nos quintais,
plantar folhas de sonho no jardim do solar) à inércia dos conservadores, no qual este
não se inclui. Faz alusão a uma situação de rebeldia jovem, que quer se colocar como
contraponto radical a esta ideia de família.

Já a canção “Na Hora do Almoço”, de Belchior, aborda a mesma cena, a mesa


onde a família come, de uma perspectiva completamente diversa. Em primeiro lugar,
porque o sujeito encontra-se dentro da mesa, integrando a família e imerso nesta
situação depressiva (No centro da sala, diante da mesa/No fundo do prato, comida e
tristeza/A gente se olha, se toca e se cala/E se desentende no instante em que fala). A
descrição da sala de jantar, assim, é outra: se os tropicalistas tratavam com deboche as
salas de jantar, tendo suas preocupações como irrelevantes, podendo até ser resumidas
em nascer e morrer, para Belchior a sala de jantar é o locus do desconforto, do desajuste
e de uma situação consolidada da qual não parece haver muita saída. Nesse cenário, a
juventude do autor parece se realizar não como a rebeldia libertadora tropicalista, mas
como um medo de morrer sem viver adequadamente, manifestando certa indignação
ressentida com este panorama de tristeza enquanto jovem (Eu inda sou bem moço pra
tanta tristeza/Deixemos de coisas, cuidemos da vida/Senão chega a morte ou coisa
parecida/E nos arrasta moço sem ter visto a vida). Nunca é demais comentar o quanto
33

esta sensação está conectada com um panorama social mais amplo, nas referências ao
medo, ao silêncio e ao segredo. O silêncio e o segredo parecem se aplicar,
simultaneamente, ao desentendimento da família em sua incapacidade de um diálogo e à
repressão imposta pelos militares (Cada um guarda mais o seu segredo/A sua mão
fechada, a sua boca aberta/O seu peito deserta, sua mão parada/Lacrada e selada/E
molhada de medo). A repetição quase compulsiva da palavra medo na música não é por
acaso: ele parece ser um dos sentimentos que atravessam música, a vida pessoal e o
momento político.

1.16 Abordagem das relações entre Belchior e o tropicalismo

Para concluir esta análise acerca com algumas possíveis relações da obra de
Belchior com a MPB, destacarei suas relações específicas com o tropicalismo. Isso
porque à época do surgimento de Belchior como artista, o modo tropicalista de
percepção (de escutar, ver, etc) era uma das moedas correntes no cenário da MPB,
paralelamente, é claro, a outros procedimentos musicais. Porém, foi o tropicalismo que
Belchior decidiu reivindicar, tentando propor outras possibilidades para seus
procedimentos gestados a partir da vivência dos novos tempos:

A música de protesto estava dividida entre o político-institucional, do


qual Vandré é a melhor expressão, e o nível do projeto estético, com
Gil e Caetano. Pretendi dar continuidade a este segundo,
criticamente, e consegui levar as propostas ao sucesso – e à
discussão. Discussão até mesmo do tropicalismo35

Para analisar esta discussão instaurada por Belchior, porém, gostaria de


fazer alguns esclarecimentos acerca da abordagem utilizada. Um método possível seria
influenciado pela sociologia crítica como a de Bourdieu, por exemplo, cuja contribuição
central Antoine Hennion resume:

Ela reintroduziu, de maneira irreversível, as práticas culturais e os


gostos num mundo real feito tanto de possibilidades quanto de
restrições, relacionando-os simultaneamente às circunstâncias e às
condições (materiais, técnicas, econômicas e institucionais) e a
fatores determinantes (HENNION, 2011)

Ao procurar um método adequado para o estudo de uma sociologia do gosto,


porém, Hennion traz críticas importantes a esta abordagem, que pretendo incorporar,
como a observação de que o método da sociologia crítica, ao buscar explicações para a

35
Última Hora, 06/08/82
34

obra de arte, acaba por encontrar em determinantes ocultos (classes econômicas,


hierarquias sociais) explicações para as obras de arte; uma contribuição sem dúvida
relevante. Porém, a adoção de um método deste tipo tenderia a apagar o que há de
específico do que Belchior tenta propor em sua obra: a mudança a partir da arte, sua
possibilidade de gerar tensão, reflexão e mudança. Hennion defende que “insistindo no
caráter pragmático e performativo das práticas culturais, a análise pode colocar em
evidência a capacidade dessas pessoas de transformar e criar novas sensibilidades, em
vez de somente reproduzir silenciosamente uma ordem existente” (HENNION, op. cit.).

Posso recolocar os termos desse debate. Tanto no sentido mercadológico quanto


no sentido do reconhecimento do artista e de sua sensibilidade, os tropicalistas já eram
amplamente consolidados à época do surgimento de Belchior no cenário musical. E é
claro que, do ponto de vista de um artista novo, fazia todo o sentido se afirmar como
oposto ou mais à frente de algo consolidado, isto é, do tropicalismo (influência
modernista, sem dúvida). Não nego a possibilidade de pensar a problemática que integra
canções, depoimentos e atitudes nesse sentido, procurando examinar as relações
econômicas e institucionais, por exemplo. Tendo a pensar, porém, que reduzir essas
declarações ao seu caráter funcional seria diminuí-las em sua potência: seria o
equivalente, por exemplo, a presumir o conteúdo de uma tese apenas pela facilidade que
o autor teve em conseguir financiar sua escrita. Não quero subestimar a influência
desses aspectos, mas demonstrar que existem evidências o bastante para julgar que
existe algo mais em jogo, aspectos propriamente propositivos (filosóficos, políticos,
estéticos) que pretendo focalizar e ampliar, e que eles fogem a este esquema. Só com
uma outra mirada, podemos ver significados mais amplos em declarações como:

nós somos de uma geração esvaziada. Durante várias gerações


seguidas os ídolos foram os mesmos. Na faixa de alguns estamos
entrando no mercado para por em cheque suas proposições, pois se
o tropicalismo atacou o “bom gosto” oficial da música brasileira, ele
mesmo criou um novo critério, que hoje está envelhecido e envilicido
ao longo de várias gerações. E é contra esse velho “bom gosto” deles
que estamos chegando com nosso trabalho, dialeticamente36

O que pretendo é delimitar com o quê, exatamente, nesse “bom gosto


tropicalista”, Belchior pretende romper ou dar continuidade. O que precisava ser

36
Folha de São Paulo, 14/09/73
35

substituído nesses novos tempos e o que ele devia aos tropicalistas? Para isso,
procurarei buscar nas canções e declarações de Belchior as zonas de tensão que ele cria.

É preciso destacar, antes, que este “bom gosto” não é composto apenas pelos
produtores de arte, mas por uma sensibilidade mais ampla do público, da imprensa, etc.
Minha abordagem reconhece, como defende Blacking, que

a análise das composições e das performances musicais deve [...]


levar em conta tanto o trabalho dos críticos e “leitores de textos”
como dos performers e recriadores da “música” (BLACKING, 2007)

Nesse sentido, é interessante a declaração que Belchior realiza 10 anos depois da


gravação do seu primeiro Long Play: “a minha geração [...] não tem críticos. O nosso
trabalho ainda está sendo visto com uma ótica tropicalista”37.O que quero defender é
que, quando os tropicalistas surgiram, o que eles propunham era o rompimento não
apenas com a produção musical dos artistas engajados, mas uma ruptura com uma
sensibilidade corrente que predominava, substituindo-a pela sensibilidade tropicalista,
que tentei mapear no início do capítulo. E, da mesma forma, o que Belchior propõe é
demonstrar o caráter ultrapassado de uma sensibilidade tropicalista, substituindo-a por
uma sensibilidade nova. Vejamos.

1.17 Continuidades tropicalistas

Existe um número considerável de declarações onde Belchior trata dos


tropicalistas em tom carinhoso, nas palavras dele:

Eu, como todo mundo da minha geração, vivo e trabalho no espaço


aberto pela Tropicália. Hoje esse espaço é muito maior que antes de
Gil e Caetano. Nós fomos influenciados por eles, pelas propostas
deles. E por isso mesmo não é possível ficar parado, é preciso
continuar, ir adiante no que os baianos fizeram. 38

Acredito ser evidente o reconhecimento de Belchior da importância do


tropicalismo e de sua posição quando se coloca como um sucessor da mesma forma
como os tropicalistas fizeram antes: “O tipo de contestação ao tropicalismo que eu fiz
seguia exatamente as lições tropicalistas de rebelar-se contra as escolas estéticas
anteriores”39. Porém, as afirmações de continuidade não são tudo, é claro.

37
Folha de S. Paulo, 28/03/84
38
O Globo, 26/04/77
39
Jornal do Brasil, 15/06/82
36

Belchior pretende muito mais que dar continuidade ao trabalho tropicalista,


pretendendo criar uma “tensão crítica”40 com o tropicalismo, como evidencia quando
declara: “Toda a minha geração faz uma bela revisão crítica do trabalho do pessoal
tropicalista”.41 Na mesma entrevista, afirma que acompanhou “com maior carinho e
maior cuidado” todo o desenvolvimento do grupo e, sobre as críticas, diz que “é através
das tensões dialéticas, que a gente pode progredir, fazendo as revisões críticas, tratando
toda a tradição, anterior a você, como um material criativo”. Tentarei mapear
brevemente, então, alguns elementos desta revisão crítica para demonstrar como,
exatamente, o tropicalismo é usado enquanto material criativo por Belchior, já que me
parece que a criatividade deste último está profundamente relacionada com a
sensibilidade do momento em que ele compunha.

1.18 “Nada é divino, nada é maravilhoso”: Tensões com o tropicalismo

Uma canção do LP “Alucinação” que faz alusão aos tropicalistas é “Apenas um


Rapaz Latino Americano”, onde Belchior canta: “trago, de cabeça, uma canção do
rádio/ em que um antigo compositor baiano me dizia/ tudo é divino, tudo é
maravilhoso”. Aqui, uma citação de Caetano e “Divino, Maravilhoso”, composta por
ele, lançada em 1969. Tratar Caetano, ainda jovem, como antigo parece ser,
principalmente, uma forma de manifestar o seu caráter ultrapassado de suas ideias,
antiquadas para os tempos atuais. Como ele afirma em entrevista: “a mentalidade
‘divina, maravilhosa’ é uma coisa antiga”42. Nos idos dos anos 70, a mentalidade já é
outra, como explicita em outro momento da música: “sei que nada é divino/ nada, nada
é maravilhoso/ nada, nada é sagrado/ nada, nada é misterioso, não”. Nesses trechos,
Belchior se opõe à ideia de sonho tropicalista (um sonho alegre e delirante), onde,
apesar de tudo ser perigoso, tudo ainda pode ser divino e maravilhoso.

Contra essa concepção, a afirmação do delírio com coisas reais, onde estes
outros delírios tidos agora como irreais (divinos, maravilhosos, sagrados, misteriosos)
passam a ser vistos como formas menores de delírio, desimportantes. O delírio com
coisas reais impossibilita o uso do deboche ou da ironia tal qual pensada pelos
tropicalistas, já que corresponde a outro procedimento delirante e estético: é através da
crueza antimetafórica, decorrente ela própria da rudeza da experiência de vida, que o

40
Folha de S. Paulo, 27/08/78
41
Jornal de Brasília, 21/10/77
42
Jornal do Brasil, 08/08/76
37

artista perde a sanidade. É como se Belchior radicalizasse a afirmação de que “tudo é


perigoso”: é onde tudo se torna realmente perigoso, a ponto de desafiar os limites
lógicos da razão.

Outra canção do Long Play que faz referência, desta vez direta a Caetano
Veloso, é “Fotografia 3x4”. Nela, Belchior explicita a lacuna que há entre uma
percepção tropicalista, segundo a qual a ida do nordestino para a cidade grande está
cercada de uma empolgação urbana, e a experiência do migrante, cidadão comum,
fadado a viver o lado amargo da cidade. Se um saía do interior para se integrar a um
grupo jovem antenado às novas tendências, gerando uma certa empolgação em ser
incomum, moderno, o segundo vive uma experiência desintegradora ao migrar para a
cidade. É nesse sentido que Belchior manda o recado: “Veloso, o sol não é tão bonito
pra quem vem do norte e vai viver na rua”.

No texto já exaustivamente citado de P.H. Britto, o autor ressalta que no


tropicalismo predomina “o motivo da partida, da viagem sem volta”, onde “o jovem se
afasta da família para ir começar vida nova na cidade grande”, enquanto que, no período
pós-tropicalista, “a partida aparece associada ao exílio, e não a qualquer projeto de
futuro”. No caso de Belchior, há um fenômeno interessante: suas canções se associariam
à primeira categoria, onde um jovem deixa o interior para tentar uma vida nova na
cidade grande. Isto ocorre, porém, de uma forma diferente dos tropicalistas: para
Belchior, uma espécie de fé melancólica ou esperança ressentida no novo parece fazer
muito mais sentido que a empolgação irônica dos tropicalistas com a cidade, diante de
uma impossibilidade prática de criar esta novidade. Não é que não haja alguma
empolgação pela cidade, mas a realidade objetiva parece contrariar qualquer
possibilidade de felicidade.

Demonstrei, no início do capítulo, que os tropicalistas procuraram substituir o


imperativo de falar do país pela retomada do experimentalismo em suas canções. Assim,
substituíram a busca de elementos autenticamente brasileiros pela pesquisa linguística
sem fronteiras, e rompendo, ainda, com identidades fixas. Belchior propõe outro
processo, como delimitei acima comentando a citação à canção “Divino Maravilhoso”:
a passagem para um momento no qual a experimentação linguística deixa de fazer
sentido e passa a dar lugar a um projeto de imersão nas contingências que cercam o
cidadão comum. Esse processo permanece, porém, mal delineado, e acredito poder
38

explicar melhor as relações entre identidade, o tropicalismo e a obra de Belchior ao


confrontar estes elementos com a tradição nordestina.
39

CAPÍTULO 2: A tradição nordestina segundo Belchior

2.1 A invenção de Hobsbawn

“Que mais se pode dizer disso, senão que


algumas pessoas sempre tiram a sorte
grande histórica? Quando são os europeus
que inventam suas tradições - com os
turcos às portas - trata-se de um
renascimento cultural genuíno, o início de
um futuro de progresso. Quando outros
povos o fazem, é um signo de decadência
cultural, uma recuperação factícia, que não
pode produzir senão simulacros defum
passado morto.”

Marshall Sahlins, em “Esperando Foucault,


ainda”.

Me dedicarei, agora, a estabelecer alguns debates situando a obra de Belchior


criticamente em relação a uma tradição: a música nordestina. Para isso, será necessário,
preliminarmente, explorar o tema da “tradição”, para poder, mais adiante, situar a
tradição nordestina nesse panorama, podendo tratar especificamente de Belchior,
contrapondo-o ao tropicalismo. Começar por uma abordagem bastante consolidada
acerca das tradições pode ser um bom primeiro passo.

Em 1983, os historiadores Eric Hobsbawn e Terence Ranger publicam o livro “A


Invenção das Tradições”, para tentar desvendar o mistério das tradições inventadas. O
livro é composto por textos de seis autores, que escreveram estudos de casos específicos
que se enquadram nesta categoria, desde a África Colonial até o Reino Unido, e é
introduzido por um capítulo de Eric Hobsbawn, que serve como resumo teórico do
grupo, e, por isso, serve como referência para tentar explicar essa abordagem.

A motivação para a escrita do livro é a tentativa de compreensão destas


“tradições, que, apesar de parecerem ou serem consideradas antigas, são bastante
recentes, quando não inventadas” (HOBSBAWN, 2008). Hobsbawn define seu objeto
de estudo, a tradição inventada, como

um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou


abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica,
visam inculcar certos valores e normas de comportamento através de
repetição, o que implica, automaticamente, numa continuidade em
40

relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer


continuidade com um passado histórico apropriado (HOBSBAWN, op.
cit.)

Sobre esse passado, o autor adiciona ainda que as tradições inventadas “caracterizam-se
por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial” e destaca ainda que “o
termo “tradição inventada” [...] inclui tanto as “tradições” realmente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais
difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo [...] e se estabeleceram
com enorme rapidez” (HOBSBAWN, op. cit.).

Hobsbawn afirma, ainda, que “toda tradição inventada, na medida do possível,


utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal”, e
destaca que “a invenção das tradições é essencialmente um processo de formalização e
ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição
da repetição”, além de sublinhar “a utilização de elementos antigos na elaboração de
novas tradições para fins bastante originais” (HOBSBAWN, op. cit.).

2.2 A invenção da Roy Wagner

“Mas como toda cultura é inventada,pois toda


cultura é invenção,a ‘invenção da tradição’ é
apenas o modo pelo qual o olhar curto do
sociólogo objetivista apreende a tradição da
invenção”

Eduardo Viveiros de Castro, em “Etnologia


Brasileira”

Em 1975, Roy Wagner publica “A Invenção da Cultura”, como uma tentativa de


pensar uma antropologia a partir da ideia central de que

todas as simbolizações dotadas de significado mobilizam a força


inovadora e expressiva dos tropos ou metáforas, já que mesmo
símbolos convencionais (referenciais), os quais não costumamos
pensar como metáforas, têm o efeito de “inovar sobre” [...] as
extensões de suas significações para outras áreas. (WAGNER, 2015)

O que quero ressaltar é que Wagner está preocupado em propor uma


antropologia que não negue a criatividade que nos atribuímos também aos povos que
estudamos. Uma antropologia que possa mapear as formas de invenção e localizá-la no
centro de toda vida social, enquanto “componente positivo e esperado da vida humana”.
41

Se realizo uma descrição por demais sintética do livro de Roy Wagner, é porque,
em geral, ele não traz considerações diretas acerca da invenção das tradições, inclusive
devido à data de sua publicação; propõe, porém, uma virada teórica que nos obriga a
repensar completamente a proposição de Hobsbawn. Podemos, então, ler o processo de
invenção das tradições a partir da “Invenção da Cultura”.

Se, como Wagner sublinha, a antropologia tem uma larga dificuldade em


assimilar a invenção dos povos que estuda, o mesmo (e muito mais...) poderia ser dito
da sociologia e da história tal como usadas pelos autores de “Invenção das Tradições”,
com suas pretensões de objetividade absoluta. Assim, a partir da antropologia
wagneriana e sua outra forma de lidar com as invenções, podemos elaborar algumas
críticas pontuais a Hobsbawn.

Em primeiro lugar, a própria ideia de invenção deve ser repensada. Hobsbawn


cai na armadilha apontada por Marcio Goldman:

Ao ouvir a palavra “invenção”, somos quase invariável e


inevitavelmente conduzidos a noções como a de “artifício”, no mau
sentido da palavra, ou seja, como aquilo que é “artificial” e se opõe
ao “real”. [...] Assim, quando se fala na “invenção das tradições”,
imagina-se imediatamente que estas são “falsas”, no sentido de não
corresponderem à história que contam de si mesmas, e que
certamente foram engendradas por alguém com objetivos pouco
confessáveis (GOLDMAN, 2011)

É com base neste equívoco – que não ocorre por acaso, mas pelo seu
comprometimento com certo tipo de visão da objetividade científica, para dizer o
mínimo – que o historiador opõe as “tradições inventadas” às “tradições genuínas”,
como se estas últimas não fossem resultado de um processo de invenção por serem mais
antigas. Outro elemento questionável é a ideia que a repetição desempenha no
paradigma de Hobsbawn: segundo ele, a invariabilidade e a repetição são definidoras da
tradição inventada, a delimitam enquanto tal. Wagner possui uma outra visão, para ele,
o que devemos ter em mente quando falamos da repetição é que as “tradições são tão
dependentes de contínua reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes”
(WAGNER, op. cit.). Como aponta Goldman, isso

significa que “invenção” e “inovação” não são a mesma coisa


[...] que toda tradição é inventada e que, em uma expressão como
“invenção das tradições”, o primeiro termo (processo de invenção)
42

deveria ser muito mais importante do que o segundo (o que acabou


sendo inventado) (GOLDMAN, op. cit.)

Assim, podemos começar a abandonar os vícios de uma ciência que se crê


absoluta, da qual Hobsbawn parece ser partidário, acreditando poder ditar que as
relações de certas tradições com o passado são ou não “artificiais”, ou que estabelecem
uma relação maniqueísta ou meramente funcional com o mundo e a história. Podemos
substituir esta visão por outra segundo a qual a invenção é da ordem da “metamorfose
contínua” (GOLDMAN, op. cit.), e, principalmente, de uma espécie que possa
reconhecer “naqueles que estuda o mesmo nível de criatividade que crê possuir”,
passando, assim, da postura de um analista que enxerga processos invisíveis que os
agentes são incapazes de perceber (como sentidos ou funções) para um estudioso capaz
de estabelecer relações que tendam à simetrização das antropologias realizadas por nós
(estudiosos) e eles (povos estudados).

2.3 Nordeste: A história de uma invenção

É assim que quero tratar a invenção da tradição nordestina, como um processo


de invenção contínua, e, assim, a sua gênese pode ser vista como o surgimento de uma
forma de invenção. É como uma descrição profunda desse processo, em suas nuances
artísticas e institucionais, que pretendo tratar a tese de doutoramento de Durval Muniz
de Albuquerque Júnior, denominada “O Engenho Anti-moderno: A invenção do
Nordeste e outras artes”.

Vale comentar que Albuquerque Júnior utiliza o próprio Hobsbawn enquanto


referência teórica. Acredito ser importante destacar, então, que, se dispenso as
perspectivas teóricas de “Invenção das Tradições”, acredito que, ainda assim, há algo de
particular nessas invenções de que Hobsbawn trata: avelocidade de sua consolidação e
institucionalização no século XX. Assim, se os referenciais teóricos do historiador
inglês nos são inadequados, mas sua percepção do caráter particular de certas invenções
faz com que sua obra continue tendo alguma relevância para nós enquanto uma
cartografia dessas invenções.

No caso nordestino, é Albuquerque Júnior quem nos proverá um mapa dessa


invenção. O autor foi escolhido como referência pela minuciosidade com que descreve
o processo de formação da ideia de Nordeste e sua obra servirá como guia e contexto
para podermos situar Belchior e outros personagens que integrarão a reflexão.
43

Albuquerque Júnior decide por centrar a sua análise, além de fatos históricos e
documentos acadêmicos, nas obras de arte, por abordá-las enquanto produtoras não
apenas de discurso, mas de realidade. Assim surgem algumas questões: quando o
“Nordeste” passa a ser uma unidade de análise e uma região geográfica? Quando
surgem o nordestino e o sertanejo enquanto arquétipos centrais para a região? No que
consistem essas figuras? Essas são algumas perguntas que Durval tenta responder em
sua tese e que pretendo resumir introdutoriamente, destacando que não se trata apenas
de uma questão de discurso ou representação, mas da interlocução dessas camadas com
uma vida concreta, com um modo de vida que foi criado desde a segunda metade do
século XIX, na negociação entre diversas fontes de poder (o Estado, os artistas, o
“povo”...). O que quero destacar, novamente, é o aspecto criativo desta invenção, sua
potência de vida, o modo como estas obras de artes e discursos são, mutuamente, uma
expressão e uma contribuição para instaurar uma certa realidade, uma forma de ver e
viver no mundo, uma possibilidade de existência. E também um estereótipo.

A ideia de Nordeste e o regionalismo nordestino são corolários do nacionalismo.


O problema das regiões decorre das tentativas de formar uma nação brasileira: surge
como um entrave ao Brasil, uma nação fundada em concepções racistas, naturalistas,
com seus problemas situados nas teorias da mestiçagem e nos determinismos
biológicos. Nesse contexto, consideram-se “as diferenças, entre os espaços do país,
como um reflexo imediato da natureza, do meio e da raça”, e, assim, “variações de
clima, de vegetação, de composição racial da população explicavam as diferenças de
costumes, hábitos, práticas sociais e políticas” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1994). O
que pretende-se, aqui, é a construção de uma unidade: uma raça nacional, uma língua
brasileira, uma identidade. Nesse panorama, o regionalismo surge como um entrave
reacionário, uma resistência a esse processo nacionalizante e homogeneizante.

Com o passar do tempo, essas ideias naturalistas que nos fundaram passaram a
coexistir com abordagens culturalistas, com seus problemas de diversidade e integração
cultural. Nasce o problema de estabelecer uma identidade cultural nacional; e, de
qualquer forma, os aspectos culturais regionais continuam sendo um entrave às
pretensões nacionalistas. A fricção entre uma nacionalidade pensada como hipertrofia
de uma região, principalmente se considerarmos o modernismo paulista dos anos 20, e o
sentimento de marginalização dos nordestinos frente a este movimento gera uma
produção literária e discursiva voltada à reflexão acerca de suas questões regionais. Na
44

verdade, há alguns fatores que contribuem para o delineamento deste quadro, no qual o
regionalismo paulista e o regionalismo nordestino se constituem por alteridade: o
primeiro como espaço da imigração europeia e das cidades, do desenvolvimento e do
futuro. O segundo, lugar da saudade, dos mestiços e da continuidade com o passado.

Antes, as regiões (Norte e Sul, no caso) eram praticamente desconhecidas,


devido às dificuldades tecnológicas no transporte e nos meios de comunicação. O
desenvolvimento da imprensa, o estímulo nacionalista ao conhecimento da nação ao
financiar viajantes e especialistas e, principalmente, a migração nordestina para São
Paulo decorrente do desenvolvimento industrial na região começam a produzir a
imagem do Nordeste como o conhecemos hoje.

Segundo Albuquerque Júnior, o termo Nordeste é primeiro utilizado para


designar a área de atuação da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (IFOCS), em
1919. De Norte para Nordeste: nasce um “espaço reativo ao espaço moderno”, em um
“temor diante de mudanças e transformações que pareciam desordenar o mundo,
fazendo-o ruir em suas coordenadas”, enfim, vale destacar, um “produto reacionário à
sensibilidade moderna” [grifo meu] (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.). É este medo
de não ter lugar em uma nova ordem que resulta na ênfase na tradição, na valorização
dos elementos de um passado em crise: passado recém-criado, mas não por isso menos
verdadeiro. Surge também a idealização do popular, em um período no qual os
folcloristas começam a enxergar nos elementos da cultura popular um retrato antigo de
um passado ligado a uma ideia de autenticidade, desconsiderando suas bricolagens e
aspectos criativos: a cultura popular surge como império da identidade absoluta, da
manifestação fechada, da estabilidade. Os tradicionalistas impedem a criatividade no
interior desse elemento “folclórico”, o colocam no reino do imutável e do sagrado, da
tradição suspensa no tempo.

Assim, seja na literatura, nas pinturas ou na música, se constrói o Nordeste como


o conhecemos hoje. Entre o beatismo e o cangaço, o coronel e o jagunço, Deus e o
Diabo, o moderno e o tradicional, o mar e o sertão. O inferno da seca e a profecia da
salvação. É o Sertão o cenário deste Nordeste, é o baião a sua música. Um nordeste
vitimado, um povo forte e inocente: um nordeste que resiste, dos homens de honra e das
mulheres de fibra. O lugar da autêntica sociabilidade comunitária e familiar. Na visão
dos tradicionalistas, esta sociabilidade se opõe fundamentalmente à ética burguesa,
45

individualizante e mercantilizante que ameaça o Nordeste com o desenvolvimento


capitalista. A extinção da ordem comunitária, da vida espontânea, natural, sucumbindo
para a moderna e artificial: é este o rumo que a história segue e que os tradicionalistas
querem congelar. Recusa da história e defesa da tradição: o presente que precisa ser
salvo pelo passado. “Um nordeste que se liga diretamente ao passado medieval, da
Península Ibérica” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.), um passado utópico. Um
cenário que se constrói na nostalgia das elites de um passado colonial, escravocrata, mas
também da memória dos insubordinados de Canudos.

2.4 Voz e música nordestina

Dois relatos são interessantes para situarmos o que tratamos como voz e música
nordestina: o de Mário Marroquim e Mário de Andrade, dois estudiosos da
nordestinidade que podem nos ajudar a mapear os elementos que se criam com o povo
nordestino.

Albuquerque Júnior mapeia algumas caracterizações que Marroquim faz da


língua nordestina em seu livro publicado pela primeira vez em 1934, com o título “A
Língua do Nordeste”. Nas palavras do historiador, nele, Marroquim

caracteriza o “falar nordestino” como marcado por uma pronúncia


demorada, arrastada, em que se dizem todas as vogais marcadas e
abertas, de onde vem a impressão do falar cantando. As locuções “de
manhã”, “de tarde” e “de noite” soariam sempre com o “e”
transformado em “i”. [...] As vogais “a”, “i” e “u” seriam sempre
abertas ou nasalisadas pela presença de um “m” ou “n” posterior
(MARROQUIM, 1945, apud ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1994)

Mário de Andrade tece comentários interessantes acerca da música nordestina


em seu relato de viagem pela região nos livros “O turista aprendiz” e “Ensaio sobre a
Música Brasileira”, nos quais tenta mapear alguns elementos dessa música. Destaca o
caráter particular da música do coqueiros (cantadores de coco) nordestinos, que não se
adéquam à escala de doze tons:

Não é cantar desafinado não. Cantam positivamente “fora de tom” e


este fora de tom está sistematizado neles e é de todos. Se fixo uma
tonalidade aproximada no piano e incito os meus dois coqueiros,
cantando com eles, se... amansam, caem no ré bemol maior, por
exemplo. Se paro de cantar, voltam gradativamente pro “fora de
tom” em que estavam antes. E é um encanto (ANDRADE, 2015)
46

Nos relatos de viagem e reflexões de Mário de Andrade, vale ressaltar que a


cultura regional (a nordestina inclusive), como os cocos e emboladas, são expressões do
nacional; isto é, ele procura nessas formas particulares a expressão de um caráter
nacional oculto, o que pode ocasionar em certos mal entendidos. Temos que ter em
mente que, para Mario de Andrade, esses elementos encantadores da cultura popular
seriam o repositório do verdadeiro caráter nacional: aqui, os elementos regionalistas
passam a ser visto não mais como um obstáculo ao nacional, mas como detentores de
um fundo oculto que poderia caracterizar a cultura nacional. No seu “Ensaio Sobre A
Música Brasileira”, ele afirma:

o nordestino possui maneiras expressivas de entoar que não só


graduam seccionadamente o semitom por meio do portamento
arrastado da voz, como esta às vezes se apóia positivamente em
emissões cujas vibrações não atingem os graus da escala. São
maneiras expressivas de entoar, originais, características e dum
encanto extraordinário. (ANDRADE, 1972)

Nota também o tom anasalado do canto nordestino:

Talvez também em parte pela freqüência da cordeona (também


chamada no país de sanfona ou de harmônica), das violas, do
oficleide, por um fenômeno perfeitamente aceitável de mimetismo a
voz não cultivada do povo se tenha anasalado e adquirido um
número de sons harmônicos que a aproxima das madeiras. Coisa a
que propendia naturalmente pelas nossas condições climatéricas e
pelo sangue ameríndio que assimilamos. O anasalado emoliente, o
rachado discreto são constantes na voz brasileira até com certo
cultivo. Estão nos coros maxixeiros dos cariocas. Permanecem muito
acentuados e originalíssimos na entoação nordestina. [...] E é
perfeitamente ridículo a gente chamar essa peculiaridade da voz
nacional, de falsa, de feia, só porque não concorda com a claridade
tradicional da timbração européia. [...] No canto nordestino tem um
despropósito de elementos, de maneiras de entoar e de articular,
susceptíveis de desenvolvimento artístico. (ANDRADE, 1972)

Nesse trecho fica clara a convergência ou confusão entre os elementos regionais


nordestinos e os nacionais. Sandroni nos dá uma pista para explicar esse fenômeno na
obra de Mário de Andrade demonstrando que, para o pesquisador, o Nordeste é

uma parte do Brasil mais imune ao que seriam as influências


negativas do urbanismo e do cosmopolitismo. Suas viagens se
inserem assim em um projeto político-social no sentido lato, o de
construir um caráter brasileiro a partir da cultura
popular. (SANDRONI, 1999)
47

2.5 Luiz Gonzaga: um capítulo à parte

Já tendo mapeado alguns elementos para nos situar em nossa análise, podemos
dar outro passo fundamental que pode dar outra dimensão a compreensão do que é a
música nordestina: entender a figura de Luiz Gonzaga. É ele quem cria, ao lado de
parceiros como Zé Dantas e Humberto Teixeira, a trilha sonora do nordestino, músicas
que pretendem falar de seu povo, seja em suas letras ou em seus ritmos (o baião, o
xaxado, o xote, etc.). É na década de 40 que o Rei do Baião surge no mercado
fonográfico e é importante pincelar algumas características de sua trajetória artística.

Antes de tudo, ressalto a centralidade que o tema da migração para o Sul possui
em sua obra. A partir dos anos 20, o fluxo de nordestinos que migram para a região
Sudeste, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, começa a crescer
exponencialmente. Esses trabalhadores saem de sua terra para buscar emprego
inicialmente na agricultura comercial e, cada vez mais, nos parques industriais das
metrópoles. Com a construção da rodovia que ligava Rio e Bahia, os paus-de-arara
facilitam o processo migratório dessa massa de pessoas, que aos poucos transmutam-se
de sertanejos para uma massa de pobres urbanizados. Para eles, a migração adquire
muitas vezes um caráter libertador, de busca de novos horizontes. Uma ambígua
coincidência entre o gosto amargo de abandono de seu território tradicional e o sabor de
novas esperanças, principalmente com a acentuação da migração nos anos 40,
relacionada à radicalização do processo de decadência da economia nordestina.

É o rádio o veículo de comunicação de massa nesse momento, utilizado pelo


Estado como forma de promover a integração nacional, falando da diversidade cultural
do país e unindo suas regiões, tão distantes. Assim, não cessa a busca por “músicas que
fossem capazes de falar de nossa alma, da alma de nosso povo” (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, op. cit.): uma música autêntica para nosso país, seja ela erudita, à moda de
Villa-Lobos, ou popular, como o samba carioca.

Esse é o contexto da indústria fonográfica à época do surgimento de Luiz


Gonzaga. Filho de camponeses pobres, o cearense chega ao Rio de Janeiro em 1939 e,
já em 1940, é contratado pela Rádio Nacional enquanto sanfoneiro. Em 1943, com a
influência de Pedro Raimundo, outro artista da rádio, Gonzaga decide assumir a
48

identidade de artista regional (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit., p. 216), criando


uma indumentária típica (roupa de vaqueiro e chapéu de cangaceiro) e se assumindo
como representante do Nordeste. Nesse mesmo ano é que Gonzaga consegue “gravar
seu primeiro disco como cantor, ao vencer a resistência da gravadora RCA Victor, que
não achava comercial a sua voz anasalada e seu forte sotaque regional”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.). Em 1946, Luiz Gonzaga lança “Baião”,
instaurando o primeiro ritmo que se pretende assumidamente nordestino, acompanhado
de sua voz tipicamente nordestina, suas expressões locais, seu sotaque, sua vestimenta:
Gonzaga cria e corporifica um tipo ideal nordestino, a sua identidade absoluta.

Nesse sentido, o “Nordeste de Gonzaga é criado para realimentar a memória do


migrante” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.), o serve de consolo e como laço com
aquilo que perdeu na migração: sua terra, seu pertencimento. Esses indivíduos,
permanentemente marcados enquanto imigrantes nas capitais do sudeste, passam a se
perceber como iguais, como falantes com o mesmo sotaque, tendo os mesmo costumes
e valores, e assim, Gonzaga contribui em muito para a produção de um sentir
nordestino. Isso se hipertrofia na canção devido às características próprias da música e
seus elementos, principalmente a voz, já que, como aponta Albuquerque Júnior, “a
relação com a voz é passional, é amorosa, é da ordem do desejo, e sempre desejante”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.). O autor trata a voz de Gonzaga, particularmente,
como “anti-retórica, não operística, atualizando a forma do aboio, do repente e do
desafio nordestinos”, e se relacionando com outros elementos de sua música como o
“uso da sanfona quase como um instrumento de percussão” (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, op. cit.). O uso dos “sons onomatopaicos”, as relações prosódicas e a
instrumentação específica criada: tudo contribui para criar certa experiência musical do
migrante.

A dimensão desse desejo torna-se maior com o fato de Luiz Gonzaga ter
assumido integralmente os meios de comunicação: tornou-se ativista da divulgação da
música nordestina pelo Brasil, algumas vezes em um tom de denúncia das mazelas de
sua terra e em outras na utilização de um tom saudosista. Suas músicas operam com a
dicotomia entre Sertão e cidade, sua figura é a figura do matuto, seu desejo é o de
retorno triunfante à sua terra. “Gonzaga foi, pois, o artista que, através de suas canções,
institui o Nordeste como um espaço da saudade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.).
49

2.6 Porque Belchior não quis virar um Luiz Gonzaga

“Não sei ser outra coisa, além de nordestino.

No Sul é que as pessoas preocupam-se em definir autenticidades”

Belchior

Assim, podemos dizer que Luiz Gonzaga aceitou jogar o jogo dos
tradicionalistas: assumiu a identidade que as gravadoras (e ele) precisavam. Luiz
Gonzaga encarnou uma identidade para se manter financeiramente, alcançar o sucesso,
valorizar a sua região e promover uma transformação social nela. Assumiu e limitou a
nordestinidade que, para ele, era natural, uma contingência sua, e a transformou em uma
identidade. Belchior, porém, escolheu outro caminho.

Na época em que Belchior chegou ao Rio de Janeiro, outras artistas cearenses


estavam fazendo o mesmo percurso, o de deixar o Ceará para buscar o sucesso na
carreira musical no Rio de Janeiro, como Marcus Vinicius, Fagner, Ednardo, Roger e
Tety. Era o momento do imediato pós-tropicalismo, e a indústria experimentava o
espaço vazio que o exílio de alguns dos principais artistas nacionais deixou, procurando
novas caras que pudessem tomar a posição da geração que sucederia o tropicalismo.
Assim, em 1972, a iniciativa de Walter Siva de lançar o LP “O Pessoal do Ceará” se
concretizava, o lançamento um disco que tinha a intenção de trazer a nova música
nordestina, regional. Os cearenses que substituiriam os baianos, um grande negócio
tanto para as gravadoras, que poderiam preencher esse espaço vazio na indústria
fonográfica, quanto para os artistas, que poderiam alcançar seu sucesso profissional.

As gravadoras paulistas “esperavam naquele momento que fizessem um trabalho


tipicamente nordestino e não propriamente um trabalho de MPB” (MORELLI, 2009).
Ednardo, Roger e Tety aceitaram o esquema proposto pelas gravadoras, mas Marcus
Vinicius e Belchior estão entre os que não acharam que esse esquema era desejável.
Para falar a verdade, ambos “assumiam o caráter individual de suas respectivas
propostas de trabalho e não procuravam se apresentar como integrantes de algum novo
movimento musical” (MORELLI, op. cit.). Quero apresentar, aqui, os motivos pelos
quais eles assumiram essas atitudes, para delineá-las enquanto proposta política,
relacionando-as com alguns autores das ciências sociais.
50

Antes, um interlúdio. O papel de Marcus Vinicius vem sendo, durante essa


monografia, ignorado, de forma geral. Seu papel, porém, é fundamental para a carreira
de Belchior, já que o músico o acompanhou como arranjador e instrumentista durante os
primeiros discos de sua vida. O destaque se faz presente, nesse momento, porque
algumas de suas afirmações foram fundamentais para compreender o fenômeno de que
tratamos, e serão utilizadas paralelamente às de Belchior na medida em que ambos
compartilhavam, à época, a mesma opinião sobre o regionalismo nordestino e reagiram
de forma muito parecida ao comportamento da imprensa e das gravadoras. Podemos,
então, prosseguir para entender o porquê de Belchior, apesar das expectativas das
gravadoras e delas lhe terem oferecido um “bom negócio”, preferiu recusar a proposta
de se tornar um cantor tipicamente cearense.

2.7 Belchior e Foucault

“Nordeste é uma ficção!


Nordeste nunca houve!

Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!


Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem:
Conheço o meu lugar!”

Belchior, em “Conheço meu Lugar”

A recusa do regionalismo se dá em Belchior de várias formas. Em falas, em


escolhas, em letras e em músicas. Se observarmos seu disco “Alucinação” em relação a
outros discos de sua carreira, veremos que ele é talvez o único que não possui elementos
rítmicos tipicamente nordestinos (como o baião ou o xote). Em relação aos discos que o
antecederam e aos seus imediatos predecessores, é sem dúvida o seu disco em que a
nordestinidade é menos evidente. Quero destacar aqui que, para Belchior e Marcus
Vinicius, adotar o regionalismo seria reproduzir um estereótipo: a identidade vista como
continuidade de uma relação de poder assimétrica entre o Nordeste e o Sudeste. Nas
palavras de Belchior, “essa coisa de regionalismo só serve a quem controla o poder,
para poder controlar melhor”43. Essa posição também fica evidente também na seguinte
declaração:

43
O GLOBO, 26/04/77
51

Acho uma verdadeira tolice a crítica que aparece em revistas e


jornais definir raízes como uma coisa geográfica, folclórica. A raiz do
homem é o homem mesmo. A informação toda que está dentro dele.
[...] Não tenho preocupação de nordestinidade. Não preciso enfatizar
nada de nordestino, porque só sei ser isso. Não o nordeste mítico dos
livros, criado para enganar cada vez mais as pessoas44

Ou ainda, em outro momento:

O meu disco é o de um nordestino na cidade grande. Agora, um


Nordeste verdadeiro*, e não um nordeste mítico, dos livros, que o
eixo cultural Rio- São Paulo inventou para consumo próprio, para
explorar cada vez mais as pessoas45

Assim, assumir a identidade nordestina parece significar se enquadrar nas


relações de poder existentes e contribuir para reproduzir as relações de poder vigentes,
dando continuidade ao discurso de estereotipia. Uma posição muito semelhante a essa
foi pensada em termos acadêmicos, anos depois, por Albuquerque Júnior, ao recorrer às
ferramentas teóricas presentes na obra de Michel Foucault.
Para Albuquerque Júnior, a identidade nordestina é um estereótipo. Enquanto tal,
é um discurso assertivo, arrogante, que leva a “estabilidade acrítica”, um mecanismo de
“dominação e sujeição”. Ela é a “semelhança absoluta”, que oblitera qualquer diferença,
qualquer criatividade que a escape, condenando o nordestino sempre à posição do
pedinte, do subjulgado, de alguém a ser ajudado (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.).
O estereótipo é uma caracterização grosseira que anula as multiplicidades, restringe as
possibilidades. Na medida em que os discursos possuem também uma dimensão
criativa, e não apenas representativa, possuem concretude e criam subjetividades, uma
pergunta se impõe: Como escapar dessa relação?
Uma saída seria, como propunha Rachel de Queiroz e outros tradicionalistas,
afirmar que a mídia e outros mecanismos de dominação discursiva não veem o nordeste
como ele é. Isto é, opor uma verdade para o Nordeste que apenas os subjulgados
nordestinos conhecem a um discurso assertivo ilusório, que cerca os meios de
comunicação oficiais e impõe uma realidade acerca da região, que é falsa. Assim, o

44
Jornal de Música, 1976
*
Aqui, Belchior faz uso de uma reflexão tipicamente tradicionalista, opondo um nordeste
verdadeiro a um falso estereótipo criado pela mídia. Essa posição, porém, é bastante rara no
momento do lançamento de “Alucinação” (1974) e torna-se mais frequente mais tarde em sua
carreira.
45
Jornal do Brasil, 08/08/76
52

procedimento é o de “inverter de direção o discurso discriminatório”, demonstrando


quem mente e quem diz a verdade. A discriminação, assim, é vista como fruto de um
desconhecimento. Esse raciocínio, para Albuquerque Júnior é uma tentativa de “ler o
discurso de discriminação com o sinal trocado”, mas acaba por “a ele permanecer preso
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.). Essa visão possui dois erros intrínsecos:
permanece por tratar a região como identidade única, unidade de análise fundamental, e
está comprometida com uma visão de poder como uma relação de mão única que se
estabelece entre dominador e dominado.
A pretensão, aqui, é a de substituir essa percepção acerca de poder por outra,
segundo a qual o “poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque
provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 1997). O poder, assim, passa a ser definido
como
a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde
se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de
lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os
apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras,
formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e
contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se
originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma
corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias
sociais. (FOUCAULT, op. cit.)

Merece destaque também o fato de o poder não estar em uma relação de


exterioridade com outros tipos de relações (econômicas, discursivas, por exemplo), mas
a elas ser imanente. Isto é, não possuir um caráter meramente superestrutural, mas
possui nessas relações um caráter produtor. O poder é, também, onipresente: não é
possível estabelecer uma relação de exterioridade em relação a ele, porque ele “se
produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto
e outro” (FOUCAULT, op. cit.). Assim, Foucault vê o discurso como ponto onde se
articulam saber e poder, e, então, não se deve pensar o discurso como dividido entre
discurso admitido e discurso excluído, mas como discursos que integram redes mutáveis
e instáveis de poder. Com essas considerações, podemos voltar a pensar o caso do
Nordeste.
A partir dessa outra concepção de poder, e tendo clara a relação inextrincável
entre discurso e poder, podemos propor outra forma de lidar com o estereótipo
nordestino que seja mais adequada, da qual Albuquerque Júnior é partidário. Para ele, as
relações de poder “não são impostas de fora, elas passam por nós [discriminados], longe
53

de sermos seu outro lado, ponto de barragem, somos ponto de apoio, de flexão”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.). Assim, reverter esse quadro requer um
deslocamento das relações de poder, não apenas de uma inversão de seu sentido a partir
da afirmação de uma verdade em relação a uma mentira. Ora, se o poder não possui
exterioridade, recusar essa relação estabelecida não seria uma forma de deslocar essa
relação de poder? De modificá-la, inclusive ao recusar suas unidades de análise? Se o
poder emana de todos os pontos, como defende Foucault, não é possível ao oprimido
deslocar essa relação, reposicioná-la, transformá-la ao se negar a ocupar esse lugar? Isso
é, ao invés de se colocar como vencido, abrir a possibilidade de instaurar
multiplicidades que operam fora desse estereótipo? Opor a essa singularidade regional
não outra singularidade, mas a diferença em seu potencial desestabilizador?
Isso é, no caso da tradição nordestina, utilizar elementos inusitados, menos
óbvios e sem lugar estabelecido dentro dessa identidade como força de desestabilizá-la?
É esse caminho que Belchior escolhe no disco “Alucinação”: recusar o baião e o chapéu
de cangaceiro, tudo o que é típico, como forma de recusar os particularismos
identitários e em busca de uma arte para seu tempo, em contraposição a uma arte
congelada no tempo pelos estereótipos. É nisso que convergem Albuquerque Júnior,
Belchior e Foucault, mesmo operando com universos, momentos, e referenciais
distintos e o fazendo de maneiras diferentes.

2.8 A nordestinidade enquanto contingência

“Téééééédio!! Na virada do milênio,

o novo eterno paradigma du jour [do dia]

é a política da identidade”

Marshall Sahlins, em “Esperando Foucault, ainda”

Está claro, então, que em “Alucinação” Belchior recusa ativamente a sua


identidade nordestina. É notório, porém, que, dentro desse procedimento de recusa,
permanecem alguns elementos que se enquadram na tradição nordestina. Como dar
conta deles? Se esses traços não somem, com que ferramentas podemos entendê-los?
Serão eles necessariamente reféns de ser manifestações de sua identidade, se reduzindo
ao seu caráter discursivo, e, portanto, perpetuando a sua posição de subjulgado?
54

Acredito encontrar as respostas para essas perguntas justamente nos depoimentos de


Belchior e Marcus Vinicius, começando pelo último:

“A nordestinidade é uma contingência natural. Mesmo que eu diga


que sou inglês, louro, de olhos azuis, não vou ser. É uma contingência
da qual não posso fugir. Se eu fosse paulista saberia assumir minha
paulistidade”.[grifo meu]46

É exatamente a ideia de contingência que pretendo usar em contraposição ao


estereótipo, como uma subdivisão da clivagem entre real experimentado e discurso. No
dicionário, a palavra contingência é assim descrita: “caráter do que ocorre de maneira
eventual, circunstancial, sem necessidade, pois poderia ter acontecido de maneira
diferente ou simplesmente não ter se efetuado”. Assim, o que é contingente é o que “que
ocorre por acaso ou por acidente; acidental, casual”. Aqui, utilizarei essa palavra como
centro reflexivo para vários depoimentos que convergem para o mesmo sentido.

Já demonstrei como a recusa em assumir uma identidade nordestina é proposta


como forma de tentar transformar uma relação assimétrica de poder. Podemos dizer
também que assumir o regionalismo seria colocar um limite à criação. Assim, recusar o
estereótipo, é, também, reivindicar uma criatividade, uma possibilidade de criação para
além das estreitas barreiras do folclore e da identidade regional, como aponta Belchior:

Nunca gostei desse lance de dar nome em função da geografia.


Quando o Walter Silva produziu o disco do “Pessoal do Ceará” (LP
Continental) eu discordei de várias ideias. Caí fora. Entre outros
motivos, eu achava o nome folclórico, diminuía a coisa. O que eu
entendo por raízes é uma coisa amplíssima, é tudo que tá dentro de
mim, não interessa de onde veio47

Belchior ressalta,também, um traço da sua nordestinidade contingente, em


contraposição ao caráter forçoso do regionalismo:

Não preciso enfatizar minha raízes, meu cearensismo. O regionalismo


é um problema da cultura oficial, não meu. Eu faço coisas cearenses
em qualquer circunstância porque tenho o Ceará dentro de mim,
simplesmente. Não preciso forçar a barra para parecer cearense,
reforçar meu cearensismo.48

É preciso entender, então, que se a ideia de regionalismo nordestino, de


tradicionalismo e de identidade nordestina estão relacionados com uma ideia de tradição

46
Folha de S. Paulo, 14/09/73
47
Jornal da Música nº 15, 1975
48
O GLOBO, 26/04/77
55

como usada por Hobsbawn, onde a invenção não tem lugar, a contingência nordestina
abraça a invenção. Ela, está relacionada com a tradição no sentido que Wagner a trata,
como repositório da criatividade. Assim, os novos elementos (no caso o rock, a
contracultura, a urbanidade) se integram à nordestinidade não como anulação de sua
pureza, mas como acréscimo de experiência:

Estou ausente do Ceará praticamente há sete anos e durante esse


tempo todo meu trabalho passou a embeber-se de outros elementos.
Não é uma questão de substituição, mas de acréscimo. Isso vem
somente enriquecer a minha música. Afinal, São Paulo é a cidade
mais populosa do Nordeste49

Assim, a nordestinidade se recoloca em outros termos. Ela é a matéria própria da


vida do nordestino, não limita a sua liberdade, mas se consolida de forma imanente à
sua experiência. É esse nordeste, experimentado, que interessa Belchior, “não o
nordeste mítico, chapéu de couro e caveira de burro, que existe na cabeça das pessoas
do sul, mas o nordeste real, vivido”50
Assim, outros elementos, como no fenômeno da migração para o Sudeste,
podem se agregar aos elementos nordestinos, como o rock ou a discothéque, sem que
isso se coloque como uma ofensa ou uma decadência, na medida em que as raízes
nordestinas não gozam de um caráter privilegiado em relação às outras, como
acreditavam, com certa fé, os tradicionalistas. Nesse sentido, a nordestinidade se coloca
no plano da metamorfose contínua, na medida em que está em constante instersecção
com outros elementos da vida em uma relação criativa. Se o estereótipo é a base onde a
singularidade se fixa, as contingências na obra de Belchior abrem possibilidades para
diversos caminhos, seja em relações de convergência ou confronto com outras
contingências:

O meu trabalho sempre teve uma raiz nordestina, não no sentido de


preservar a pureza dessa música, mas sim, sempre procurando
apresentá-la num conceito destrutivo/criativo, colocando a
experiência nordestina em confronto com a realidade urbana do sul.
51

49
Jornal de Brasília, 21/10/77
50
O GLOBO 02/09/78
51
Jornal da Tarde, 24/05/1984
56

É claro que a recusa ao regionalismo por parte do artista não quer dizer que a
imprensa ou os críticos vão exatamente entender ou aderir a sua crítica ou
posicionamento. Na verdade, apesar da recusa ativa de Belchior em fazer parte do
“Pessoal do Ceará”, a imprensa continuou tratando-o nesses termos (MORELLI, 2009).
Assim, deve-se aqui também levar em consideração o descompasso possível entre
contingências e regionalismos nos meios de comunicação, sem ignorar as relações de
poder que lhes são característicos. Belchior comenta o seu caso:

Existe toda uma mitologia sobre o Nordeste. Criou-se um estereótipo


que não pretendo atender. Há muitas versões de nordestinidade. É
difícil atender a essa nordestinidade que me cobram, se ao mesmo
tempo me chamam de Bob Dylan. Nunca fiz uma proposta de pureza
nordestina52

A escolha do artista em atender as exigências identitárias da mídia ao tornar-se


um artista regional está repleta de nuances, positivas ou negativas. Belchior se negou a
fazê-lo em prol da liberdade de sua arte. Luiz Gonzaga aceitou fazê-lo, como já apontei,
e podemos apresentar o caso de Luiz Gonzaga como o aceite em transformar a sua
contingência em identidade. A singularização de sua experiência vivida até ali como
sua marca registrada, como meio de sua divulgação e sucesso é um caminho possível,
uma escolha de encarnar definitivamente uma região e tratar sua obra enquanto
expressão dessa vivência pura, se tornar o autêntico representante de uma área
geográfica. Novamente, não foi o caminho de Belchior:

Eu não sou representante do Nordeste, do Ceará, de coisa nenhuma.


Se o Nordeste aparece na minha obra, é como raiz, matéria prima,
em termos afetivos (me afetou). Nosso trabalho não está
apadrinhado nem por região, nem por gênio nenhum53

Esse comentário anuncia também outra dimensão interessante das contingências:


elas devem ser avaliadas em termos afetivos, de afecção. Isso é, do afeto não-
representado, com que a antropologia, vale comentar, tem uma grande dificuldade em
lidar, sempre reduzindo aos aspectos representacionais ou enquanto construções
culturais (FAVRET-SAADA, 2005). Se as identidades são avaliadas na medida de sua

52
Jornal do Brasil, 30/08/78
53
Folha de São Paulo, 14/09/73
57

autenticidade, as contingências são tidas na medida de seu afeto, de sua capacidade de


transformação da pessoa, de criar um movimento, de seu potencial. No caso de
Belchior, podemos dizer, por exemplo, que as músicas tipicamente nordestinas (“Minha
formação vem toda da tradição oral do Nordeste: rádio, alto-falante, procissão, coro de
igreja, cantador, feira”54) o afetaram e tornaram-se contingências suas, mas também
assim foi com a migração para o Sudeste, a tropicália ou o rock, que estabeleceram
conexões tais que contribuíram para que ele produzisse sua obra particular.

Tendo delimitado o que entendo por contingência, posso ressaltar alguns


aspectos nordestino que aparecem na obra de Belchior. Agora, não como expressões de
sua essência sertaneja, mas como forma de exercício de sua liberdade artística.

2.9 Belchior, Luiz Gonzaga e o cantar nordestino

O primeiro é o cantar característico de Belchior. Já demonstrei, no capítulo


anterior, como seu canto e sua voz se pretendem navalhas, não comprometidas com uma
apreciação estética, mas com uma ideia de transformação. Gostaria, agora, de
demonstrar a linearidade que sua voz possui dentro da tradição musical nordestina.

Antes de tudo, como dificuldade. Sua voz sempre fanhosa e anasalada foi
considerada pelas gravadoras um “problema musical”55 que devia ser disciplinado,
como já demonstrei. O que quero ressaltar é que Luiz Gonzaga passou pelo mesmo:
uma dificuldade de gravar pelo caráter anasalado e pelo sotaque carregado que possuía.
Para a RCA Victor, onde Luiz Gonzaga trabalhava como instrumentista, ela seria pouco
comercial. Assim, fica evidente que os “problemas musicais” da voz desses cantores
foram um problema com a sua nordestinidade, se podemos dizer assim. Foram seus
traços nordestinos que foram rejeitados enquanto pouco comerciais ou esteticamente
pobres, mas que são paradoxalmente valorizados em termos regionais, folclóricos. Não
espanta que Belchior quisesse romper com essa lógica perversa.

Permanece, de qualquer forma, tanto em Gonzaga quanto em Belchior, “o


anasalado emoliente” e o “rachado discreto”, expressões que Mário de Andrade utiliza
para caracterizar o canto nordestino. O caráter arrastado dos cantos percebido por Mário
de Andrade e expresso também na análise da voz nordestina feita por Marroquim

54
Última Hora, 03/09/76
55
Jornal de Música, 09/09/1976
58

também são presentes, assim como a caracterização geral do sotaque nordestino feita
por Marroquim, que fica muito evidente quando Belchior canta que não está interessado
em nenhuma “tiuría”. Ou quando Gonzaga, nas gravações de shows seus em que conta
suas diversas histórias, manifesta o tal “falar cantado” que, para Marroquim, caracteriza
o falar nordestino.

Algumas declarações reforçam a relação entre a nordestinidade e o canto de


Belchior. Em entrevista ao Jornal da Tarde o cantor declara: “a nasalidade de minha voz
é a mais constante tradição nordestina”56.Em outra ocasião, foi assim descrito pela
imprensa: “Apesar de sua voz, anasalada e agressiva, ele consegue transferir para o
expectador toda a indolência própria do nordestino [...] A sua voz é a sua maior
bandeira” [grifo meu]. Texto a que se segue uma declaração de Belchior sobre o seu
canto: “A influência mais definitiva veio de Luiz Gonzaga”57

A imprensa também atribuiu em alguns momentos o caráter particular da voz de


Belchior a sua nordestinidade. Destacando sua “voz grossa, acostumada às vaquejadas
nordestinas”58, ou sua “voz, áspera e seca “como a dos vaqueiros do sertão”, [que] corre
pelos versos, saudavelmente influenciados por João Cabral de Melo Neto” 59Assim, a
voz de Belchior, é, ao mesmo tempo, sua arma mais cortante, expressão mais evidente
de sua nordestinidade e seu evidente defeito musical, segundo as gravadoras. O
comentário citado da revista Veja, porém, guarda mais um fator interessante ao
comentar as relações entre João Cabral de Melo Neto e Belchior, a qual eu gostaria de
me deter por um momento.

2.10 João Cabral de Melo Neto

Um aspecto interessante no que tange à nordestinidade da obra de Belchior é a


sua posição em relação à literatura de cunho regionalista. A proximidade de Belchior
com esse gênero se faz presente tanto em citações diretas quanto em aspectos éticos e
estilísticos de sua obra, como comentei brevemente no capítulo 1 ao destacar a citação a
obra de João Cabral. Parece-me, porém, que podemos pincelar brevemente mais
algumas relações entre eles, algo que fica evidente quando lemos a descrição que

56
Jornal da Tarde, 06/11/79
57
Folha de São Paulo, 21/05/1973
58
Folha de São Paulo 14/09/73
59
Veja, 15/05/74
59

Albuquerque Júnior faz do poeta e a confrontamos com as descrições que fiz de


Belchior até aqui.

O historiador, ao comentar a obra de João Cabral e Graciliano Ramos, destaca


que os autores

buscam uma linguagem que seja radicada na terra, que não seja uma
trégua ou fuga da realidade, mas que seja sua expressão
contundente. O Nordeste, mais do que ser dito pela linguagem, seria
uma forma de falar, de dizer, de ver, de organizar o pensamento,
seria o espaço da não-metáfora (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.)

Tenho a impressão de que as relações entre a obra de Graciliano Ramos e


Belchior existam, mas sejam mais escassas. Talvez valha a pena ressaltar aqui que, para
Graciliano Ramos, o “camponês nordestino é visto como um ser silenciado”, “alguém
que teve o seu direito à fala apoderado por outros”, e, assim, o autor instaura em sua
obra uma dinâmica entre silêncio e falar própria do Nordeste. Algo próximo da forma
com que Belchior vê a família em “Hora do Almoço” e também da forma com que vê o
migrante nordestino na cidade grande. De qualquer modo, Durval Muniz nos apresenta
elementos na obra de João Cabral que nos podem ser mais interessantes.

A busca por uma “linguagem mais adequada à realidade: uma linguagem capaz
de fazer ver mais claramente o objeto do seu discurso” (seja o sertanejo ou o migrante
nordestino) está presente tanto em Belchior quanto no poeta. A imagem de um nordeste
como uma “região sem sonhos, sem fantasias ou evasões”, como um “conteúdo e forma
que ferem, que cortam, que perfuram, que doem e que fazem sangrar”, que “não tem
espessura de sonho, mas de sangue” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.). Sua vontade
em “ser tão cruel como a realidade que enuncia”, em sua persistência em seguir
“tentando desfazer todas as ilusões, restituir a realidade e a vida tudo o que ficou
sepultado nos sedimentos de discursos, no pó das palavras, descobrindo o mundo”. Isto
é, sua opção política por “usar aquilo que mais fere, para enfrentar a discursividade
aguada, que liquefaz a verdade do real” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.), devido a
sua certeza de que a construção do futuro depende da “destruição das ilusões”. Todos
esses elementos são compartilhados por Cabral e Belchior, e não me parece ser por
acaso.

Ler as descrições acima, resumo das páginas que o historiador dedica a Cabral,
nos permite aproximar a sua obra à de Belchior. O canto a palo seco que os une, o
60

delírio com coisas reais, já explicado, parece estabelecer grande continuidade com os
elementos da proposta do poeta. É claro que há uma mudança de cenário: do Sertão
árido de João Cabral para a metrópole igualmente dura de Belchior, projeta-se uma
continuidade de apreciação e de proposta estética. Mais um elemento da contingência
nordestina de Belchior.

2.11 Citações nordestinas

Não é só João Cabral de Melo Neto que é citado durante o disco “Alucinação”.
A obra de Belchior, na verdade, tem como característica própria o uso constante de
citações, seja de artistas ou ideias. Josely Castro (CASTRO, 2007) dedicou sua
dissertação de mestrado à análise das relações que se instauram nessas citações,
tratando-as como investimentos interdiscursivos. Em minha análise, elas interessam na
medida em que constituem uma continuidade, através da referência direta, com certa
sensibilidade. Além da citação de João Cabral no título da canção “A Palo Seco”, a
música de Luiz Gonzaga é citada em duas ocasiões.

A primeira é quando Belchior conta seu trajeto de migração do Sertão para a


Cidade Grande (“Os pés cansados e feridos de andar légua tirana”, em “Fotografia
3x4”), citando a “légua tirana” de Gonzaga (“Ô, que estrada mais comprida/ Que légua
mais tirana”, em “Légua Tirana”). Na segunda, o Blackbird dos Beatles, o Corvo de
Edgar Allan Poe e o Assum-preto de Luiz Gonzaga se confundem, na canção “Velha
Roupa Colorida”. Além dessas citações, Zé Limeira é citado na canção “Sujeito de
Sorte”. Belchior, ao dizer “tenho sofrido pra cachorro/ ano passado eu morri, mas esse
ano eu não morro”, está citando o cordelista e repentista (“Eu já cantei no Recife/ Na
porta do Pronto Socorro / Ganhei duzentos mil réis/ Comprei duzentos cachorros/ Morri
no ano passado/ Mas esse ano eu não morro”) (CARLOS, op. cit.). Há também as
citações a Caetano Veloso já destacadas no capítulo 1.

Essas são as citações a cantores ou escritores nordestinos em “Alucinação”, há,


claro, referências a outras pessoas. Bob Dylan e os Beatles, em “Velha Roupa
Colorida”, Manuel Bandeira em “A Palo Seco”, e Fernando Pessoa em “Fotografia
3x4”. Porém, estas não nos interessam aqui no momento.

São as citações aos referenciais nordestinos que nos interessam, na medida em


que criam um cenário intrigante. Mesmo muitas vezes impregnados de estereótipos,
61

ganham importância afetiva na medida em que se relacionam com as contingências do


leitor, tornam-se também contingentes nele, acumulam-se em sua experiência e passam
a fazer parte de sua sensibilidade.

2.12 Tropicalismo, identidade e tradição

“Muita gente vem dizendo que se deve fazer música


pensando nas nossas tradições, no folclore. Eu só
entendo que se faça alguma coisa que diga o que está
acontecendo agora, no Rio, em São Paulo, no Brasil. O
meu diálogo é o de agora, é a pergunta: o que está
acontecendo?” Caetano Veloso

Tendo feito uma breve releitura do tema da invenção das tradições, situado o
nordeste nesse panorama e levantado questões acerca da nordestinidade na obra de
Belchior e das ferramentas para interpretá-la, como a identidade e a contingência, é
possível agora tratar de uma questão que permaneceu em aberto: como o tropicalismo se
relacionou com as tradições, em especial a tradição nordestina, e que tipo de tensão
Belchior estabeleceu com essas relações? No caso tropicalismo, ressalto que estarei
tratando das tradições em geral, nas quais o regionalismo nordestino se inclui: a forma
com que os tropicalistas lidaram com todas as identidades fixas foi através do mesmo
procedimento, que detalharei agora.

O tropicalismo submeteu as tradições musicais a um processo de desconstrução,


redescobriu e criticou-as “segundo a vivência do cosmopolitismo dos processos
artísticos” (FAVARETTO, op. cit.),, escolheu revisitá-las criticamente, ao invés de
folclorizá-las. Através dos procedimentos pop como a colagem, procurou evidenciar os
“muros do confinamento cultural brasileiro” através de uma “operação
dessacralizadora” (FAVARETTO, op. cit.). É esse o procedimento que se faz evidente
na canção “Tropicália”, por exemplo, na qual elementos que não se encontrariam nas
perspectivas tradicionalistas são postos em choque, retirados de seu lugar, expressos
contraditoriamente. Elementos que integram temporalidades e espaços conflitantes, que,
ao serem deslocados de seu lugar comum, perdem sua identidade, isso é, sua
singularização grosseira, e manifestam outras possibilidades até então ocultas.

À estabilidade das identidades fixas, o tropicalismo opõe um mecanismo de


constante revonação, que confronta incessantemente identidades, criando uma “visão
estranhada das manifestações culturais, que desrealiza a versão corrente dos fatos,
62

exigindo a renovação da sensibilidade” (FAVARETTO, op. cit.). Esse é o formato da


crítica tropicalista: cada painel que se monta é novamente estilhaçado, impedindo a
fixação de um estereótipo, gerando justaposições que não se cristalizam. Assim, em
uma máquina de gerar ambivalências constantes, cria um esvaziamento da realidade, a
demonstração do caráter fictício do real. Pela desrealização, libertam-se as “forças
revolucionárias ocultas” nos objetos arcaicos, fazendo “explodir a representação”,
impossibilitando a formação de um todo que o componha com um significado estável: a
fragmentação pura, “sem nunca conseguir remeter a uma imagem superior que
funcionasse como síntese abstrata do Brasil” (FAVARETTO, op. cit.). Na canção
“Geléia Geral”, por exemplo, esse procedimento de desconstrução se faz bastante
evidente.

O tropicalismo, assim, fez parte de uma sensibilidade que negou a síntese, se


recusando a resolver as tensões. Afirma a “transitoriedade do próprio sentido”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.), fazendo com que não existam “relações
necessárias entre as coisas ou entre as palavras e as coisas“, isto é, os “signos são
liberados de qualquer vinculação com um real construído anteriormente”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.). O que quer dizer que “Tudo é teatro e fantasia”.
No tropicalismo, portanto,

As tradições são carnavalescamente rebaixadas, desentronizadas,


retiradas de seus lugares convencionais para, uma vez livres,
voltarem a circular como signos disponíveis para entrar em novos
arranjos. Para os tropicalistas, a modernidade é o ponto de partida
para a releitura do tradicional (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.)

Assim, podemos dizer que, segundo o raciocínio que estruturei através das obras
de Albuquerque Júnior e Foucault, os tropicalistas teriam articulado uma proposta
válida de fuga do estereótipo, neutralizando-o e abrindo a possibilidade de muitos
outros discursos e arranjos que não caberiam nas identidades estabelecidas. As
experimentações linguísticas mostram a artificialidade do que antes era tido como uma
relação natural entre discurso e realidade. O que antes era cheio de sentido, cercado de
dualismos e maniqueísmo se complexifica e multiplica, agrega novos elementos e se
torna inesgotável, em um fluxo de transformações constantes que possui autonomia em
relação à vida experienciada.
63

2.13 Belchior e o tropicalismo: Da crítica do discurso às contingências

Acredito, porém, que o que Goldman diz sobre o pós-modernismo na


antropologia é válido também para os tropicalistas: “o melhor que se pode dizer dos
chamados pós-modernos é que foram capazes de levantar algumas questões realmente
importantes, ainda que não tenham oferecido respostas interessantes para nenhuma
delas!” (GOLDMAN, op. cit.) A realização do processo de libertação dos limites rígidos
das identidades, a demonstração de sua artificialidade resulta no tropicalismo em um
mundo performático e discursivo. Se o elo entre realidade e discurso é quebrado, o
tropicalismo abre mão da realidade e emancipa o discurso, o liberta, abre possibilidades
mil para o autor, que agora se vê livre das amarras tradicionais. Qualquer limitação para
os procedimentos artísticos, assim, é visto como caretice, retorno a um panorama
anterior já ultrapassado.

Assim, gostaria de propor o movimento que Belchior realiza no pós-tropicalismo


enquanto um movimento de reconexão entre discurso e realidade, de retomar o sentido
da obra de arte após a multiplicação tropicalista, mas que não é o de retomar das
identidades. O trabalho dos tropicalistas inaugurou uma divisão entre os herdeiros da
canção de protesto, que acreditavam que as categorias tradicionais seguiam como
centrais para a compreensão da realidade e tinham as experimentações linguísticas
como meras questões superestruturais, e os tropicalistas, com a libertação que propôs da
arte de sua função social ou revolucionária. Belchior, porém, propõe um terceiro termo
para esse debate.

Podemos tomar como ponto de partida, uma parte (e não muito mais...) da crítica
que Boal faz aos tropicalistas, que Favaretto descreve:

O tropicalismo seria inarticulado porque, prendendo-se à crítica das


aparências efêmeras e transitórias, não teria conseguido coordenar
sistema algum. Seria tímido e gentil, pois, ao invés de, pelo menos,
épater [assustar], teria conseguido apenas enchanter les bourgeois
[encantar a burguesia]. (FAVARETTO, op. cit.)

O prosseguimento da crítica de Boal ao tropicalismo o trata como apenas um


mecanismo de importação cultural de lixo cultural norte-americano. A afirmação
destacada, porém, permanece interessante: permite que tenhamos uma visão que
converge também com a de Belchior, a percepção de que o tropicalismo foi um
64

momento específico, um choque necessário, um curto-circuito, mas que precisa de uma


continuidade que possa renová-lo. Ele foi útil e radical enquanto crítica, mas é esta é
limitada na medida em que abre um ciclo sem fim, tratando tudo como discurso ou
texto, tudo como possibilidade: apesar de se iniciar com uma crítica radical do caráter
socialmente construídos dos discursos, antes tidos como naturais ou como reflexos da
realidade, os procedimentos tropicalistas terminam por despotencializar o discurso.

Já que o tropicalismo parece ter resolvido suficientemente as questões acerca do


regionalismo e do universalismo 60, é preciso dar continuidade ao seu trabalho, ir
adiante, isto é, atualizar suas questões:

“Uma das coisas que mais pintava, nos papos que sempre tinha
depois dos shows, era essa história de cearenses contra baianos. E
isso é uma coisa que precisa ficar clara. Eu, como todo mundo da
minha geração, vivo e trabalho no espaço aberto pela Tropicália. Hoje
esse espaço é muito maior que antes de Gil e Caetano. Nós fomos
influenciados por eles, pelas propostas deles. E por isso mesmo não é
possível ficar parado, é preciso continuar, ir adiante no que os
baianos fizeram” 61

Assim, da mesma forma que os tropicalistas estavam de acordo com o seu tempo
ao romper com as obviedades identitárias, Belchior pretendeatualizar o tropicalismo ao
criticá-lo. O que significaria, então, ir adiante no raciocínio tropicalista? Para Belchior,
é justamente a noção que traduzi enquanto contingência que, ao mesmo tempo em que
foge à obra tropicalista, pode dar o próximo passo em seus procedimentos.

Isto é, o tropicalismo criou um espaço de liberdade, onde qualquer tema ou


abordagem pode ser válida (seja o Umeboshi ou o Disco Voador): um efeito de
liberação. Belchior, porém, quer propor um outro critério de apreciação estética entre
esses elementos. Um critério afetivo, não-contemplativo: a contingência. Segundo esse
critério, a capacidade de mediação entre a experiência do artista de do público é que é s
critério para uma arte efetiva, boa, que, na melhor das hipóteses, manifesta no artista o
estado de delírio com coisas reais e induz o espectador também a tal estado. Segundo
essa posição, não há nenhum problema em tratar de qualquer tema ou influência (como
já havia demonstrado o tropicalismo), o artista pode selecionar o que lhe agradar, mas é
a eficácia como resultado final do procedimento artístico que deve surgir enquanto

60
Jornal de música nº 33, Agosto de1977
61
O GLOBO, 26/04/77
65

régua avaliadora da arte. Se a arte não induz a um estado de transformação, é ineficaz,


serve apenas para enchanter les bourgouise.

Assim, o procedimento que Belchior realiza, ao reinvindicar a importâncias das


raízes em sua obra, é o de retomada de um potencial político para a arte. A reinvenção
de metamorfose contínua, mas não de qualquer metamorfose contínua. A transformação
que se pretende é a transformação incessante contingente ao indivíduo, que se opera a
partir dos elementos que se instauram nele (que podem ser também experiências
literárias ou audiovisuais, por exemplo) em sua experiência que vem a constituí-lo de
acordo com a intensidade dos afetos que vão integrá-lo.

Também assim, o sujeito tropicalista, desregrado, flutuante, passa a ser situado


como matriz pelas quais as transformações se orientam. A potência da canção está
ligada justamente com a experimentação de seus elementos: Belchior só pode realizar
canções realmente incisivas, com potencial crítico, acerca do tema do imigrante
nordestino no Sudeste porque é induzido a tal por seus afetos. O seu delírio com coisas
reais gera uma “Alucinação”, que pretende alucinar os outros, produtivamente. O
Nordeste com que Belchior se compromete é um elemento nesse quadro porque o afeta,
não porque é importante a priori nem porque precisa ser revisto de um ponto de vista
mais moderno. É abordado porque é uma questão presente, inescapável.
66

CONCLUSÃO

Para concluir, retomo as reflexões que propus ao longo dessas páginas. No


primeiro capítulo, demonstrei como a obra de Belchior se insere no rock pós-
tropicalista, articulando depoimentos e letras de músicas. Nesse contexto, as ideias
como as de delírio com coisas reais e cidadão comum, gestadas do ponto de vista do
migrante nordestino na metrópole, servem como síntese da proposta artística do
cancionista. A sensação de fim do sonho dos anos 60 e a individualização que é
consequência desse processo ajudam a delinear um panorama e uma proposta caráter
propositivo que Belchior elabora. A percepção de que essa é a arte adequada para seu
tempo coloca Belchior em uma posição de romper com as cristalizações presentes na
Música Popular Brasileira, utilizando a agressividade de sua voz como meio de afetar
seus ouvintes a partir de uma estética do excesso. Concluo o capítulo evidenciando as
tensões entre Belchior e os tropicalistas como forma de aplicar e desenvolver as
interpretações que evidenciei acerca da obra de Belchior ao longo do mesmo.

No segundo capítulo, já tendo delimitado elementos para se compreender o LP


“Alucinação”, e tendo introduzido a obra de Belchior, escolhi o tema da música
nordestina como caso específico no qual Belchior faz uma proposta relevante para as
ciências sociais. Introduzi o tema da invenção das tradições, demonstrando como a
abordagem de Hobsbawn é inadequada para o tema de que trato, preferindo uma
abordagem que possa levar em consideração os aspectos inventivos dos nordestinos,
baseada na antropologia que Roy Wagner propõe. Introduzi a história do surgimento da
categoria de Nordeste, trazendo elementos que possam ajudar a entender no que
consiste a música nordestina, para poder demonstrar como Belchior nega a identidade
nordestina como um procedimento político. Encontrei na noção de contingência
nordestina uma explicação consistente para explicar a aparente contradição entre a
recusa de Belchior em assumir um estereótipo nordestino e a permanência de traços
nordestinos em sua obra, buscando dentro de seus depoimentos ferramentas teóricas
para explicar o fenômeno, e relacionando-as com a abordagem de Foucault das relações
entre discurso e poder. Descrevi alguns elementos nordestinos contingentes na obra de
Belchior e conclui analisando a abordagem que Belchior propõe e a abordagem dos
67

tropicalistas acerca das tradições e identidades em uma perspectiva comparativa,


demonstrando como Belchior propõe as contingências como um próximo passo aos
procedimentos tropicalistas de libertação das identidades fixas.

Assim, no primeiro capítulo a descrição tomou um grande espaço em um esforço


de compreensão de “Alucinação” em algumas de suas diversas facetas, o encontro entre
o tema da migração nordestina e o fim do sonho dos anos 70 foi destacado, e ele pode
ser melhor entendido se conectamos essa relação com a noção de contingência
desenvolvida no segundo capítulo. O encontro entre nordestinidade, metrópole, crise
geracional e a vida do cidadão comum se interpelam enquanto contingências, se
interpenetram afetivamente. Formam, assim, um emaranhado de forças que constituem
um indivíduo singular, na medida em que formam sua experiência, mas constituem
também os pertencimentos sociais, na medida em que esses indivíduos compartilham as
experiências.

O grupo social dos imigrantes nordestinos, dos cantores populares, dos cidadãos
comuns, grupos centrais na obra de Belchior, se constituem com base nessa dinâmica de
pertencimento por compartilhamento de experiência. O pertencimento a um grupo se dá,
portanto, como uma experiência coletiva de invenção.

Acredito ter ficado claro, também, que os debates interessantes acerca da canção
popular no Brasil não se encerram com o Tropicalismo, como muitas vezes aparentam
os resumos ou trabalhos que pretendem a síntese da música brasileira. Aqui, foram
expostas apenas algumas considerações acerca de um disco de um cantor específico,
estou certo de que muito mais pode ser dito a partir do trabalho de outros artistas
contemporâneos de Belchior.

Assim, mesmo que sinteticamente, acredito ter sido capaz de esboçar o processo
pelo qual a obra de um cantor popular pode ser tido como um foco de reflexões,
tratando sua obra como ponto de partida para a elaboração de uma teoria ao tentar
traduzir suas reflexões para termos acadêmicos. Com mais esforços desse tipo, pode ser
que comecemos a compreender que reflexões desse tipo, que se dão através outras
formas de invenção, podem ganhar uma dimensão teórica mais ampla de forma tão
legítima quanto as acadêmicas.
68

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MORELLI, Rita. Indústria Fonográfica: Um estudo antropológico. Campinas:


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<http://www.revistacontinente.com.br/conteudo/954-a-contenente/revista/especial-
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WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura.São Paulo: Cosac Naify, 2015.


70

ANEXO: Material de Imprensa

1. Revista Hitpop, junho de 2016.


2. Revista Última Hora, 12/07/1977
3. Jornal de Música, Revista do Rock nº 13, 1975.
4. Realese do disco “Alunicação”
5. Folha de S. Paulo, em 27/08/1978
6. Jornal de Brasília, 21/10/1977
7. Veja, 23/06/1976
8. Folha de S. Paulo, 27/08/1978
9. MPB Especial, 02/10/74
10. Veja, 23/06/1976
11. Jornal de Música, revista do rock nº 15, 1976
12. Veja, 23/06/1976
13. Jornal do Brasil, 04/04/1976
14. Manchete, 30/9/78
15. Veja, 20/04/77
16. Revista Íris, 1976
17. Folha de S. Paulo, 31/07/76
18. Veja, 23/06/76
19. Revista Pop, 1977
20. O GLOBO, 09/02/1976
21. Realese do disco “Todos os Sentidos”
22. Jornal da Tarde, 06/05/74
23. Jornal da Tarde, 02/09/82
24. Jornal da Tarde, 02/09/82
25. Jornal da Tarde, 05/08/78
26. O GLOBO, 02/09/78
27. Realese do disco “Era uma vez o homem e seu tempo”
28. Jornal de Música e som, 26/12/76
29. O GLOBO, 14/03/78
30. Revista Nova, 1977
31. Folha de S. Paulo, 07/06/76
32. Jornal de Brasilia, 21/10/77
33. Última Hora, 11/04/78
34. Programa MPB Especial, 1974
35. Última Hora, 06/08/82
36. Folha de São Paulo, 14/9/73
37. Folha de S. Paulo, 28/03/84
71

38. O Globo, 26/04/77


39. Jornal do Brasil, 15/06/82
40. Folha de S. Paulo, 27/08/78
41. Jornal de Brasília, 21/10/77
42. Jornal do Brasil, 08/08/76
43. O GLOBO, 26/04/77
44. Jornal de Música, 1976
45. Jornal do Brasil, 08/08/76
46. Folha de S. Paulo, 14/09/73
47. Jornal da Música nº 15, 1975
48. O GLOBO, 26/04/77
49. Jornal de Brasília, 21/10/77
50. O GLOBO, 02/09/78
51. Jornal da Tarde, 24/05/1984
52. Jornal do Brasil, 30/08/78
53. Folha de São Paulo, 14/09/73
54. Última Hora, 03/09/76
55. Jornal de Música, 09/09/1976
56. Jornal da Tarde, 06/11/79
57. Folha de São Paulo, 21/05/1973
58. Folha de São Paulo 14/09/73
59. Veja, 15/05/74
60. Jornal de música nº 33, Agosto de1977
61. O GLOBO, 26/04/77

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