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DE JANEIRO
A “ALUCINAÇÃO” DE BELCHIOR:
Delírio e Nordestinidade nas canções de um migrante
nordestino na metrópole
HEITOR ZAGHETTO
RIO DE JANEIRO
Julho, 2017.
A “ALUCINAÇÃO” DE BELCHIOR:
Delírio e Nordestinidade nas canções de um migrante
nordestino na metrópole
HEITOR ZAGHETTO
Julho, 2017
AGRADECIMENTOS
Contribuiu com esse trabalho uma bolsa de iniciação científica concedida pela
FAPERJ. A bolsa, porém, nunca foi paga pontualmente e, no momento da publicação
deste texto, são mais de três meses de atraso.
A meu avô, minha mãe, meu pai, meus irmãos e toda a minha família, a qual
tenho o privilégio de pertencer.
ABSTRACT
INTRODUÇÃO.............................................................................................................08
CONCLUSÃO...............................................................................................................66
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................68
ANEXO: Material de Imprensa...................................................................................70
“eu achava que cabia aos estudantes pensar as alternativas
para uma mobilização política que não fosse capitalista ou
socialista. Queria uma experiência anarquista, no sentido
mais rígido da palavra, uma experiência desordenadora.
Imaginava que podíamos aproveitar a oportunidade do
movimento estudantil pra ser algo mais que caudatário do
movimento político institucional. Pretendia uma coisa
mais concreta e inovadora que fazer passeatas de 'abaixo o
imperialismo'. Mas ao ultrapassar o movimento retórico
fui vencido.”
Belchior
8
INTRODUÇÃO
Vale ressaltar também o aspecto particular desta pesquisa, na medida em que ela
se encontra em um ponto intersticial entre diversas áreas como a antropologia e a
sociologia da arte. Por mais que haja uma dificuldade adicional no agenciamento entre
diversas áreas do conhecimento, parece haver uma qualidade importante que deriva
desta união: uma possibilidade de criar conexões inusitadas, gerando resultados
criativos que não surgiriam de outra forma. É nesse sentido que trarei, talvez
inadvertidamente, autores que tratam do ofício etnográfico, por exemplo, para uma
discussão acerca de um cantor de MPB, com a esperança de que possa significar uma
abordagem no mínimo diversa.
risco em se precipitar nas conclusões. Rita Morelli, em seu livro “Indústria Fonográfica:
Um Estudo Antropológico”, aborda o início da carreira de Belchior e a de Fagner
comparativamente, e se interessa por questões relacionadas ao mercado fonográfico e
suas relações com as artes, que não são o foco aqui, mas servem como baliza para o
presente trabalho e podem ser úteis enquanto análise de algumas questões aqui
levantadas a partir de outro ponto de vista.
Tupi, com a canção “Na Hora do Almoço”. Entre o Rio de Janeiro e São Paulo,
Belchior tenta construir sua carreira musical.
Para dar conta de alguns pequenos trechos dessa história, situarei, no primeiro
capítulo, o disco “Alucinação” dentro da MPB, do momento histórico dos anos 70 no
Brasil e da carreira de Belchior, tentando escolher mecanismos adequados para analisar
suas obras. Analisarei aspectos de suas canções com o objetivo de fornecer ferramentas
para compreender os múltiplos sentidos das canções que integram o disco, explorando
as proposições políticas que ele carrega e relacionando-o com outros momentos da
MPB.
cantores populares enquanto objeto de estudo, mas como sujeitos de reflexões, que a
academia tradicionalmente ignora.
12
Para poder dar início a uma imersão na obra de Belchior na década de 1970,
apresentarei antes brevemente alguns elementos para compor um cenário da canção
popular do Brasil à época, permitindo que tenhamos ferramentas para ler a sua obra. É
bem verdade que esse cenário possa parecer, à primeira vista, um quadro por demais
coerente e mecânico, mas tal fato se dá por esta apresentação conter um caráter
centralmente introdutório e contextual, de modo que se possa analisar mais de perto as
nuances de meu objeto de pesquisa. A seleção de certos acontecimentos em detrimento
de outros se justifica, portanto, pela relevância que eles virão a ter em minha análise, o
que pode resultar em ignorar fenômenos importantes (como a Jovem Guarda), e em
destacar excessivamente certas características. A função dessa contextualização não é,
assim, a de propor um retrato fiel da história da MPB, mas a de servir como uma base à
qual poderemos recorrer posteriormente durante a reflexão. As interpretações que
utilizarei a seguir são, majoritariamente, derivadas das análises de Santuza Cambraia
Naves (NAVES, 2001) e de Celso Favaretto (FAVARETTO, 2000), obras escolhidas
pela capacidade dos dois autores de sintetizar a história da Música Popular Brasileira
sem perder a acuidade analítica.
estética começa a ser percebida como pobre e ultrapassada, e começa-se a propor uma
nova estética que pudesse corresponder à realidade da juventude da época. Surgia,
assim, a Bossa Nova.
O fato é que, do ponto de vista bossa-novista, essas canções eram por demais
melodramáticas e inadequadas aos novos tempos. Para esses jovens, era necessária uma
pesquisa experimental de novas linguagens que se adequassem a esta nova sensibilidade
que surgia nos apartamentos da zona sul carioca nos fins dos anos 50. Assim, surgia a
nova forma de João Gilberto de colocar a sua voz, de forma um tanto quanto intimista e
que estava intrinsecamente conectada com sua maneira inovadora de tocar o violão,
realizando uma releitura do samba tradicional. Assim, em sua leitura, Santuza nos
apresenta uma noção central para pensar a bossa nova: a de simplicidade, ideia que vai
substituir os tons exagerados da era do rádio no canto, na instrumentação e na
performance, acompanhadas por uma crescente complexidade harmônica. Assim, o
excesso, de forma geral, é rejeitado pelos bossa-novistas*. Vale comentar, ainda, em que
medida a bossa nova convergia fortemente com as propostas da poesia concreta, em
seus ideais de concisão, objetividade e racionalidade, em um heroísmo modernista que
pregava a necessidade de uma arte brasileira que fosse adequada à nova realidade
nacional. Influenciados pelo Jazz, a bossa nova surge como um impulso modernizador:
agrega ritmos regionais (baião, samba, etc.) e os incorpora e reinterpreta,
transformando-os a partir da visão da jovem elite carioca, em sua empolgação moderna.
*
A autora destaca, porém, que o excesso, tão rejeitado pela bossa, foi nova muito presente de
alguma forma na obra de um de seus principais personagens, Tom Jobim. Inspirado por Villa-
Lobos, o excesso para Jobim desempenharia um papel importante de representação da
exuberância do Brasil, o que o colocava de forma muito interessante entre a simplicidade
inegociável da bossa nova e o excesso nacionalista de Villa-Lobos.
14
O fato é que os anos 60 foram bastante agitados, tanto pela pujança cultural
quanto pelo cenário político: não podemos esquecer que ocorria, em abril de 1964, o
golpe militar, e que, cada vez mais, o cenário político se agravava. Se, de um lado,
crescia progressivamente a censura, é também verdade que cada vez mais os cantores se
engajavam, as músicas de protesto nasciam e a música popular, em grande medida, se
indissociava do movimento universitário nacionalista de esquerda. Pelo menos até o
tropicalismo.
suas categorias rígidas. Para os tropicalistas não faria mais sentido rejeitar uma música
por suas influências estadunidenses, por exemplo. Tentava-se, ao reformular as formas
de recepção da canção, uma tentativa de revisão das manifestações críticas surgidas a
partir do golpe de 1964, não se restringindo ao campo da música, mas centrando todo o
debate em torno de linguagens e posições políticas na canção popular. Procurava, assim,
substituir o imperativo de falar do país pela retomada do experimentalismo,
pretendendo, no fundo, reformular os critérios da apreciação da canção, gerando uma
nova linguagem: dar um curto circuito na canção brasileira.
Isso não quer dizer, porém, que o tropicalismo tenha sido um movimento de
vanguarda, o que implicaria dizer que rejeitou o passado e a tradição musical brasileira
em nome da pretensão de uma arte inteiramente nova. Na verdade, ele pode ser visto
como um movimento que rompe com a própria ideia de movimento, na medida que
adota uma “atitude incorporativa com relação a grande parte do repertório popular
musical” (SANTUZA, op. cit.). Quero destacar que, nesse sentido, a atitude
incorporativa tropicalista frente aos objetos da tradição musical popular se dá de um
modo muito particular, o que será aprofundado no próximo capítulo, onde tratarei
inclusive de delimitar melhor os significados da palavra tradição.
Os tropicalistas estavam, durante os anos 60, bem atentos aos jovens europeus e
estadunidenses que abraçavam a “contracultura”. Nos Estados Unidos, os hippies
propunham uma fuga definitiva à sociedade e à racionalidade ocidentais, cercados por
um sentimento de positividade: os cabelos longos, as roupas coloridas, o psicodelismo e
16
O problema era que vivíamos em uma ditadura militar e, em 1968, era aprovado
o Ato Institucional número 5 (AI-5). Este ocasionou no controle quase total dos meios
17
É das canções compostas neste período e, principalmente, deste último disco que
pretendo tratar, demonstrando como Belchior, aos poucos, parece ir chegando a uma
unidade política e estética que encontra sua síntese em “Alucinação”. Depois desse
disco, surgem outras variações na obra de Belchior, como a substituição da sua figura
enquanto contestador político pela de ícone sensual, processo que Rita Morelli descreve
minuciosamente em seu livro “Indústria Fonográfica: um estudo antropológico”
(MORELLI, 2009).
Diz, ainda, algo que vai no mesmo sentido quando o perguntam sua opinião
sobre o misticismo, em entrevista: “sou completamente desinteressado. Não acredito,
não quero nenhuma nova teoria que me decepcione depois. Sou um cara mais
preocupado com toques imediatos, do presente. A arte não pode viver de ilusões” 1. É
também o que declara no início da música “Alucinação”, como um manifesto:
1
Revista Hitpop, junho de 2016.
20
A ideia de delírio com coisas reais parece ser um modo de pensar próprio que
Belchior adota como opção política. “Antes do fim”, por exemplo, é outra canção onde
Belchior trata o tema, desejando aos amigos que aprendam esta sensibilidade, e essa
preocupação aparece também na entrevista já citada: “Sabe, viver é mais importante que
pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende?”.
Assim, é importante prover alguns exemplos do exame que Belchior faz dessa
vida, deste real experimentado ao qual ele tanto se refere no disco “Alucinação”, de
1976. Nele, o cancionista manifesta profundamente as sensações que P.H. Britto
caracterizou como características do rock pós-tropicalista (medo, solidão, derrota,
exílio, loucura), em todas as dez músicas, sem exceção. Em “Antes do fim”, (“viver é
que é o grande perigo”), em “Sujeito de Sorte” (“tenho sangrado demais, tenho chorado
pra cachorro”) ou em “A palo seco” (“sei que assim falando pensas/ que esse desespero
é moda em 76/ mas ando mesmo descontente/ desesperadamente eu grito em
português”), por exemplo. Também em suas declarações Belchior manifesta sensações
que podemos enquadrar como típicas do rock pós-tropicalista, tanto quando fala de sua
vida pessoal (“Eu não sou uma pessoa feliz, pois tenho o sentido muito agudo das coisas
21
que estão acontecendo e isto me atinge muito”2) quanto quando faz uma leitura de sua
geração como um todo (“A juventude está ofendida, humilhada, dilapidada. Foi-lhe
negado o dom da palavra. Vivemos um tempo negro”3).
2
Revista Última Hora, 12/07/1977
3
Jornal de Música, Revista do Rock nº 13, 1975.
4
Realese do disco Alunicação, lançado pela Philips-Phonogram.
*
Utilizo o sentido menor no sentido que deleuziano, segundo o qual a minoria é sobretudo,
uma questão de desvio a uma média, metro-padrão que lhe serve de instrumento avaliador, e
não uma questão de minoria quantitativa apenas. Viveiros de Castro apresenta uma síntese
interessante em seu artigo “Sobre a Noção de Etnocídio, com especial atenção ao caso
brasileiro”.
22
pessoas, mas está entre elas, como em “Fotografia 3x4”, onde insiste: “a minha história
é talvez/ igual a tua/ jovem que desceu do norte e que no Sul viveu na rua”. A
insistência nessa identidade no fim desta canção através da repetição da frase “eu sou
como você/ que me ouve agora” não é por acaso, e é presente também em declarações
como: “Olha, eu tenho medo de muitas coisas, sabe? Eu acho que, como cidadão
comum que eu sou e como homem do meu tempo, claro que eu tenho diversos medos,
né?”5. Vale comentar, ainda, que a centralidade que a vida cotidiana adquire na obra do
compositor é também evidente em suas falas, como na declaração: “Minha música é
antimetafórica. É clara, direta e crua. Fala das condições do cidadão comum, da nossa
morte cotidiana, da nossa esperança”6. Ou na declaração à Revista Veja, quando coloca
entre as contribuições de suas canções o fato de elas serem “um chamado violento,
talvez até cruel, para a realidade cotidiana das pessoas”7.
5
Folha de S. Paulo, em 27/08/1978
6
Jornal de Brasília, 21/10/1977
7
Veja, 23/06/1976
23
diante do difícil cenário que este sujeito tem pela frente. Essa canção converge com um
depoimento de Belchior, no qual narra sua experiência pessoal também no momento de
sua chegada no Rio de Janeiro: “nesse período era tudo muito complicado. Mesmo
problema assim de segurança, a gente era constantemente parado pela polícia na rua,
problema de documento, problema de você andar à noite na rua sem ter pra onde ir.” 8
Outro tema central para entender o disco “Alucinação” me parece ser a sensação
de fim do sonho de transformação social. Isto é, do fim da sensação característica dos
anos 60 de que uma ação coletiva poderia resultar em uma reviravolta comportamental.
Em 1971, com o fim dos Beatles, John Lennon já anunciara: “The dream is over”. No
Brasil, a aceitação de que a situação não ficaria melhor como sugeria a empolgação
contracultural já era percebida, como podemos ressaltar, por exemplo, na canção de Gil
também denominada “O sonho acabou”, de 1972. O fato é que esta sensação assume um
caráter central na obra de Belchior, o que torna importante uma pergunta: como esse fim
do sonho aparece nas obras e declarações de Belchior? Por que ela é tão central?
Em “A palo seco”, Belchior anunciava: “Se você vier me perguntar por onde
andei/ no tempo em que você sonhava/ de olhos abertos lhe direi/ amigo eu me
desesperava”. No programa “MPB Especial”, de 1974, o cancionista a descreve como
uma canção “para depois do sonho”. Em “Como Nossos Pais”, Belchior canta que
“viver é melhor que sonhar” e que “eles venceram/ e o sinal está fechado para nós/ que
somos jovens”. Em “Velha Roupa Colorida”, Belchior interroga, em referências aos
Beatles: “Como Poe, poeta louco americano/ eu pergunto ao passarinho: Black Bird, o
que se faz?/ [...] Black Bird me responde/ tudo já ficou pra trás”. A impressão que temos
ao ouvir essas canções é de que o fato do fim do sonho, apesar de consolidado, não é
notado por muitos, e é necessário afirmar frontalmente este fato. Parece, então, que a
formulação de uma arte adequada para a década de 70 dependeria inteiramente da
8
Folha de S. Paulo, 27/08/1978
9
MPB Especial, 02/10/74
24
necessidade da delimitação clara do fim dos anos 60 com seu clima de rebeldia. É nesse
sentido que Belchior , em entrevista, declara ser enfaticamente contra
qualquer trabalho que pense que ainda estamos nos anos 60.
Qualquer trabalho que não saiba definitivamente que o sonho
acabou e que há pessoas que não tiveram condições de sonhar. Eu
não sonhei porque fui acordado tarde da noite para me despedir dos
amigos que estavam partindo para longe, tive que ir ao porto para
me despedir de pessoas que talvez não voltassem nunca mais. A
gente não pode ver a realidade como puramente um sonho. Existem
coisas muito mais concretas, mais reais, e a arte tem que estar
presente nisso. Não pode ser só um projeto colorido.10
10
Veja, 23/06/1976
25
mais sentido. Para ele, não restavam dúvidas de que no início dos anos 70 o sonho havia
acabado.
Assim, vemos que nas canções de Belchior o fim do sonho coletivo corresponde
a um processo de individualização, processo no qual muitas vezes o sonho coletivo de
transformação social transforma-se em projetos individuais de sucesso pessoal. É o caso
de “Como Nossos Pais”, onde afirma que “quem me deu a ideia/ de uma nova
consciência e juventude/ está em casa/ guardado por deus/ contando os seus metais”.
Em “Não Leve Flores”, Belchior associa a falha na mudança à crueldade do dinheiro:
“Tudo poderia ter mudado, sim/ pelo trabalho que fizemos tu e eu/ mas o dinheiro é
cruel/ e um vento forte levou os amigos/ para longe das conversas, dos cafés e dos
abrigos/ e nossa esperança de jovens não aconteceu”. Em contraposição aessa sensação
coletiva de empolgação pela riqueza, Belchior se identifica como um rapaz “sem
dinheiro no banco”, e ressalta em “Fotografia 3x4”: “esses casos de família e de
dinheiro eu nunca entendi bem”. Em declaração, ele resume:
11
Jornal de Música, revista do rock nº 15, 1976
26
12
Veja, 23/06/1976
13
Jornal do Brasil, 04/04/1976
14
Manchete, 30/9/78
15
Veja, 20/04/77
16
Revista Íris, 1976
27
singular. Vivendo num regime de exceção, fazemos uma arte de exceção” 17. Assim,
insegurança, opressão e humilhação surgem como algumas palavras para tentar delinear
o estado de exceção que a ditadura militar instaurou. A repressão, então, na criação da
desconfiança entre amigos, instaurou um individualismo decorrente da repressão,
manifesto pela opção pela fuga e pelo recolhimento individual.
17
Folha de S. Paulo, 31/07/76
18
Veja, 23/06/76
28
que nós, os jovens, sofremos por ver as nossas esperanças caírem por terra. Assim, não
abro mão da agressão”19. Para ele, o desespero se recoloca em termos de violência, na
criação de um cantar amargo que possa abrir as portas para novas ideias que se
oponham a essas duas perspectivas indesejadas. Assim, o canto fala constantemente da
necessidade de que se possam abrir caminhos para que estas novas ideias possam surgir,
um novo ainda indefinido. É este o “cheiro de nova estação” de “Como Nossos Pais”,
canção na qual atesta também que “o novo sempre vem”. Sentimento presente também
em “Como o diabo gosta”, onde diz que “o que transforma o velho no novo/ bendito
fruto do povo será”. Ana Maria Bahiana, em 1976, diz sobre Belchior que ele “continua
falando, acreditando, pregando a mudança, a novidade, a juventude” 20. O realese do LP
Todos os sentidos carrega uma citação, na qual Belchior diz que só consegue ver o seu
cantar como “uma forma de provocar reações e mudanças”21.
Um ponto que merece destaque na obra de Belchior é a sua voz, traço marcante
em sua obra musical, notada de forma ampla pela imprensa à época de seu surgimento
19
Revista Pop, 1977
20
O GLOBO, 09/02/1976
21
Realese do LP “Todos os Sentidos”
29
Para outros, sua voz é traço marcante e positivo, como aponta o obviamente
comprometido release do LP “Era uma vez o homem e seu tempo”, de 1979, que
propõe outra mirada sobre sua voz: “A voz do cantor não é de ouro, não é de prata: é de
lata. Ácida, rascante, contundente. Belchior não está para brincadeiras. O forte do seu
trabalho é exatamente a crueza com que ele dá o seu recado” 27. Não é só o realese que
tem essa opinião, e, para desespero de alguns críticos, em votação popular do “Jornal de
Música e Som”, Belchior foi eleito pelo público como 2º colocado na categoria
“Revelação Vocal” do ano 28.
22
Jornal da Tarde, 06/05/74
23
Veja, 31/03/1976
24
Jornal da Tarde, 02/09/82
25
Jornal da Tarde, 05/08/78
26
O GLOBO, 02/09/78
27
Realese do LP ”Era uma vez o homem e seu tempo”
28
Jornal de Música e som, 26/12/76
29
O GLOBO, 14/03/78
30
30
Nova, 1977
31
Folha de S. Paulo, 07/06/76
32
Jornal de Brasilia, 21/10/77
33
Última Hora, 11/04/78
31
desafinar de novo [...], é preciso desenrolar o carretel da linguagem até onde dá, sabe,
desafinar o coro dos contentes”34. Podemos notar, assim, que a produção do ruído vocal
é, também, a produção de ruído social nos que insistem em acreditar no sonho dos anos
60, na estética da fuga ou nos sonhos de realização pessoal. O trecho já citado da canção
“Não leve flores”, por sua vez, permite que notemos a relação entre o canto e a
anunciação do novo que deve vir a preencher esta lacuna deixada pelo fim do sonho e
que os capitalistas e covardes insistem em reivindicar.
em que se há de subir
34
Programa MPB Especial, 1974
*
Disponível em: <http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2010/11/palo-seco-joao-cabral-de-melo-
neto.html>
32
esta sensação está conectada com um panorama social mais amplo, nas referências ao
medo, ao silêncio e ao segredo. O silêncio e o segredo parecem se aplicar,
simultaneamente, ao desentendimento da família em sua incapacidade de um diálogo e à
repressão imposta pelos militares (Cada um guarda mais o seu segredo/A sua mão
fechada, a sua boca aberta/O seu peito deserta, sua mão parada/Lacrada e selada/E
molhada de medo). A repetição quase compulsiva da palavra medo na música não é por
acaso: ele parece ser um dos sentimentos que atravessam música, a vida pessoal e o
momento político.
Para concluir esta análise acerca com algumas possíveis relações da obra de
Belchior com a MPB, destacarei suas relações específicas com o tropicalismo. Isso
porque à época do surgimento de Belchior como artista, o modo tropicalista de
percepção (de escutar, ver, etc) era uma das moedas correntes no cenário da MPB,
paralelamente, é claro, a outros procedimentos musicais. Porém, foi o tropicalismo que
Belchior decidiu reivindicar, tentando propor outras possibilidades para seus
procedimentos gestados a partir da vivência dos novos tempos:
35
Última Hora, 06/08/82
34
36
Folha de São Paulo, 14/09/73
35
substituído nesses novos tempos e o que ele devia aos tropicalistas? Para isso,
procurarei buscar nas canções e declarações de Belchior as zonas de tensão que ele cria.
É preciso destacar, antes, que este “bom gosto” não é composto apenas pelos
produtores de arte, mas por uma sensibilidade mais ampla do público, da imprensa, etc.
Minha abordagem reconhece, como defende Blacking, que
37
Folha de S. Paulo, 28/03/84
38
O Globo, 26/04/77
39
Jornal do Brasil, 15/06/82
36
Contra essa concepção, a afirmação do delírio com coisas reais, onde estes
outros delírios tidos agora como irreais (divinos, maravilhosos, sagrados, misteriosos)
passam a ser vistos como formas menores de delírio, desimportantes. O delírio com
coisas reais impossibilita o uso do deboche ou da ironia tal qual pensada pelos
tropicalistas, já que corresponde a outro procedimento delirante e estético: é através da
crueza antimetafórica, decorrente ela própria da rudeza da experiência de vida, que o
40
Folha de S. Paulo, 27/08/78
41
Jornal de Brasília, 21/10/77
42
Jornal do Brasil, 08/08/76
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Outra canção do Long Play que faz referência, desta vez direta a Caetano
Veloso, é “Fotografia 3x4”. Nela, Belchior explicita a lacuna que há entre uma
percepção tropicalista, segundo a qual a ida do nordestino para a cidade grande está
cercada de uma empolgação urbana, e a experiência do migrante, cidadão comum,
fadado a viver o lado amargo da cidade. Se um saía do interior para se integrar a um
grupo jovem antenado às novas tendências, gerando uma certa empolgação em ser
incomum, moderno, o segundo vive uma experiência desintegradora ao migrar para a
cidade. É nesse sentido que Belchior manda o recado: “Veloso, o sol não é tão bonito
pra quem vem do norte e vai viver na rua”.
Sobre esse passado, o autor adiciona ainda que as tradições inventadas “caracterizam-se
por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial” e destaca ainda que “o
termo “tradição inventada” [...] inclui tanto as “tradições” realmente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais
difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo [...] e se estabeleceram
com enorme rapidez” (HOBSBAWN, op. cit.).
Se realizo uma descrição por demais sintética do livro de Roy Wagner, é porque,
em geral, ele não traz considerações diretas acerca da invenção das tradições, inclusive
devido à data de sua publicação; propõe, porém, uma virada teórica que nos obriga a
repensar completamente a proposição de Hobsbawn. Podemos, então, ler o processo de
invenção das tradições a partir da “Invenção da Cultura”.
É com base neste equívoco – que não ocorre por acaso, mas pelo seu
comprometimento com certo tipo de visão da objetividade científica, para dizer o
mínimo – que o historiador opõe as “tradições inventadas” às “tradições genuínas”,
como se estas últimas não fossem resultado de um processo de invenção por serem mais
antigas. Outro elemento questionável é a ideia que a repetição desempenha no
paradigma de Hobsbawn: segundo ele, a invariabilidade e a repetição são definidoras da
tradição inventada, a delimitam enquanto tal. Wagner possui uma outra visão, para ele,
o que devemos ter em mente quando falamos da repetição é que as “tradições são tão
dependentes de contínua reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes”
(WAGNER, op. cit.). Como aponta Goldman, isso
Albuquerque Júnior decide por centrar a sua análise, além de fatos históricos e
documentos acadêmicos, nas obras de arte, por abordá-las enquanto produtoras não
apenas de discurso, mas de realidade. Assim surgem algumas questões: quando o
“Nordeste” passa a ser uma unidade de análise e uma região geográfica? Quando
surgem o nordestino e o sertanejo enquanto arquétipos centrais para a região? No que
consistem essas figuras? Essas são algumas perguntas que Durval tenta responder em
sua tese e que pretendo resumir introdutoriamente, destacando que não se trata apenas
de uma questão de discurso ou representação, mas da interlocução dessas camadas com
uma vida concreta, com um modo de vida que foi criado desde a segunda metade do
século XIX, na negociação entre diversas fontes de poder (o Estado, os artistas, o
“povo”...). O que quero destacar, novamente, é o aspecto criativo desta invenção, sua
potência de vida, o modo como estas obras de artes e discursos são, mutuamente, uma
expressão e uma contribuição para instaurar uma certa realidade, uma forma de ver e
viver no mundo, uma possibilidade de existência. E também um estereótipo.
Com o passar do tempo, essas ideias naturalistas que nos fundaram passaram a
coexistir com abordagens culturalistas, com seus problemas de diversidade e integração
cultural. Nasce o problema de estabelecer uma identidade cultural nacional; e, de
qualquer forma, os aspectos culturais regionais continuam sendo um entrave às
pretensões nacionalistas. A fricção entre uma nacionalidade pensada como hipertrofia
de uma região, principalmente se considerarmos o modernismo paulista dos anos 20, e o
sentimento de marginalização dos nordestinos frente a este movimento gera uma
produção literária e discursiva voltada à reflexão acerca de suas questões regionais. Na
44
verdade, há alguns fatores que contribuem para o delineamento deste quadro, no qual o
regionalismo paulista e o regionalismo nordestino se constituem por alteridade: o
primeiro como espaço da imigração europeia e das cidades, do desenvolvimento e do
futuro. O segundo, lugar da saudade, dos mestiços e da continuidade com o passado.
Dois relatos são interessantes para situarmos o que tratamos como voz e música
nordestina: o de Mário Marroquim e Mário de Andrade, dois estudiosos da
nordestinidade que podem nos ajudar a mapear os elementos que se criam com o povo
nordestino.
Já tendo mapeado alguns elementos para nos situar em nossa análise, podemos
dar outro passo fundamental que pode dar outra dimensão a compreensão do que é a
música nordestina: entender a figura de Luiz Gonzaga. É ele quem cria, ao lado de
parceiros como Zé Dantas e Humberto Teixeira, a trilha sonora do nordestino, músicas
que pretendem falar de seu povo, seja em suas letras ou em seus ritmos (o baião, o
xaxado, o xote, etc.). É na década de 40 que o Rei do Baião surge no mercado
fonográfico e é importante pincelar algumas características de sua trajetória artística.
Antes de tudo, ressalto a centralidade que o tema da migração para o Sul possui
em sua obra. A partir dos anos 20, o fluxo de nordestinos que migram para a região
Sudeste, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, começa a crescer
exponencialmente. Esses trabalhadores saem de sua terra para buscar emprego
inicialmente na agricultura comercial e, cada vez mais, nos parques industriais das
metrópoles. Com a construção da rodovia que ligava Rio e Bahia, os paus-de-arara
facilitam o processo migratório dessa massa de pessoas, que aos poucos transmutam-se
de sertanejos para uma massa de pobres urbanizados. Para eles, a migração adquire
muitas vezes um caráter libertador, de busca de novos horizontes. Uma ambígua
coincidência entre o gosto amargo de abandono de seu território tradicional e o sabor de
novas esperanças, principalmente com a acentuação da migração nos anos 40,
relacionada à radicalização do processo de decadência da economia nordestina.
A dimensão desse desejo torna-se maior com o fato de Luiz Gonzaga ter
assumido integralmente os meios de comunicação: tornou-se ativista da divulgação da
música nordestina pelo Brasil, algumas vezes em um tom de denúncia das mazelas de
sua terra e em outras na utilização de um tom saudosista. Suas músicas operam com a
dicotomia entre Sertão e cidade, sua figura é a figura do matuto, seu desejo é o de
retorno triunfante à sua terra. “Gonzaga foi, pois, o artista que, através de suas canções,
institui o Nordeste como um espaço da saudade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.).
49
Belchior
Assim, podemos dizer que Luiz Gonzaga aceitou jogar o jogo dos
tradicionalistas: assumiu a identidade que as gravadoras (e ele) precisavam. Luiz
Gonzaga encarnou uma identidade para se manter financeiramente, alcançar o sucesso,
valorizar a sua região e promover uma transformação social nela. Assumiu e limitou a
nordestinidade que, para ele, era natural, uma contingência sua, e a transformou em uma
identidade. Belchior, porém, escolheu outro caminho.
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O GLOBO, 26/04/77
51
44
Jornal de Música, 1976
*
Aqui, Belchior faz uso de uma reflexão tipicamente tradicionalista, opondo um nordeste
verdadeiro a um falso estereótipo criado pela mídia. Essa posição, porém, é bastante rara no
momento do lançamento de “Alucinação” (1974) e torna-se mais frequente mais tarde em sua
carreira.
45
Jornal do Brasil, 08/08/76
52
de sermos seu outro lado, ponto de barragem, somos ponto de apoio, de flexão”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.). Assim, reverter esse quadro requer um
deslocamento das relações de poder, não apenas de uma inversão de seu sentido a partir
da afirmação de uma verdade em relação a uma mentira. Ora, se o poder não possui
exterioridade, recusar essa relação estabelecida não seria uma forma de deslocar essa
relação de poder? De modificá-la, inclusive ao recusar suas unidades de análise? Se o
poder emana de todos os pontos, como defende Foucault, não é possível ao oprimido
deslocar essa relação, reposicioná-la, transformá-la ao se negar a ocupar esse lugar? Isso
é, ao invés de se colocar como vencido, abrir a possibilidade de instaurar
multiplicidades que operam fora desse estereótipo? Opor a essa singularidade regional
não outra singularidade, mas a diferença em seu potencial desestabilizador?
Isso é, no caso da tradição nordestina, utilizar elementos inusitados, menos
óbvios e sem lugar estabelecido dentro dessa identidade como força de desestabilizá-la?
É esse caminho que Belchior escolhe no disco “Alucinação”: recusar o baião e o chapéu
de cangaceiro, tudo o que é típico, como forma de recusar os particularismos
identitários e em busca de uma arte para seu tempo, em contraposição a uma arte
congelada no tempo pelos estereótipos. É nisso que convergem Albuquerque Júnior,
Belchior e Foucault, mesmo operando com universos, momentos, e referenciais
distintos e o fazendo de maneiras diferentes.
é a política da identidade”
46
Folha de S. Paulo, 14/09/73
47
Jornal da Música nº 15, 1975
48
O GLOBO, 26/04/77
55
como usada por Hobsbawn, onde a invenção não tem lugar, a contingência nordestina
abraça a invenção. Ela, está relacionada com a tradição no sentido que Wagner a trata,
como repositório da criatividade. Assim, os novos elementos (no caso o rock, a
contracultura, a urbanidade) se integram à nordestinidade não como anulação de sua
pureza, mas como acréscimo de experiência:
49
Jornal de Brasília, 21/10/77
50
O GLOBO 02/09/78
51
Jornal da Tarde, 24/05/1984
56
É claro que a recusa ao regionalismo por parte do artista não quer dizer que a
imprensa ou os críticos vão exatamente entender ou aderir a sua crítica ou
posicionamento. Na verdade, apesar da recusa ativa de Belchior em fazer parte do
“Pessoal do Ceará”, a imprensa continuou tratando-o nesses termos (MORELLI, 2009).
Assim, deve-se aqui também levar em consideração o descompasso possível entre
contingências e regionalismos nos meios de comunicação, sem ignorar as relações de
poder que lhes são característicos. Belchior comenta o seu caso:
52
Jornal do Brasil, 30/08/78
53
Folha de São Paulo, 14/09/73
57
Antes de tudo, como dificuldade. Sua voz sempre fanhosa e anasalada foi
considerada pelas gravadoras um “problema musical”55 que devia ser disciplinado,
como já demonstrei. O que quero ressaltar é que Luiz Gonzaga passou pelo mesmo:
uma dificuldade de gravar pelo caráter anasalado e pelo sotaque carregado que possuía.
Para a RCA Victor, onde Luiz Gonzaga trabalhava como instrumentista, ela seria pouco
comercial. Assim, fica evidente que os “problemas musicais” da voz desses cantores
foram um problema com a sua nordestinidade, se podemos dizer assim. Foram seus
traços nordestinos que foram rejeitados enquanto pouco comerciais ou esteticamente
pobres, mas que são paradoxalmente valorizados em termos regionais, folclóricos. Não
espanta que Belchior quisesse romper com essa lógica perversa.
54
Última Hora, 03/09/76
55
Jornal de Música, 09/09/1976
58
também são presentes, assim como a caracterização geral do sotaque nordestino feita
por Marroquim, que fica muito evidente quando Belchior canta que não está interessado
em nenhuma “tiuría”. Ou quando Gonzaga, nas gravações de shows seus em que conta
suas diversas histórias, manifesta o tal “falar cantado” que, para Marroquim, caracteriza
o falar nordestino.
56
Jornal da Tarde, 06/11/79
57
Folha de São Paulo, 21/05/1973
58
Folha de São Paulo 14/09/73
59
Veja, 15/05/74
59
buscam uma linguagem que seja radicada na terra, que não seja uma
trégua ou fuga da realidade, mas que seja sua expressão
contundente. O Nordeste, mais do que ser dito pela linguagem, seria
uma forma de falar, de dizer, de ver, de organizar o pensamento,
seria o espaço da não-metáfora (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.)
A busca por uma “linguagem mais adequada à realidade: uma linguagem capaz
de fazer ver mais claramente o objeto do seu discurso” (seja o sertanejo ou o migrante
nordestino) está presente tanto em Belchior quanto no poeta. A imagem de um nordeste
como uma “região sem sonhos, sem fantasias ou evasões”, como um “conteúdo e forma
que ferem, que cortam, que perfuram, que doem e que fazem sangrar”, que “não tem
espessura de sonho, mas de sangue” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.). Sua vontade
em “ser tão cruel como a realidade que enuncia”, em sua persistência em seguir
“tentando desfazer todas as ilusões, restituir a realidade e a vida tudo o que ficou
sepultado nos sedimentos de discursos, no pó das palavras, descobrindo o mundo”. Isto
é, sua opção política por “usar aquilo que mais fere, para enfrentar a discursividade
aguada, que liquefaz a verdade do real” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, op. cit.), devido a
sua certeza de que a construção do futuro depende da “destruição das ilusões”. Todos
esses elementos são compartilhados por Cabral e Belchior, e não me parece ser por
acaso.
Ler as descrições acima, resumo das páginas que o historiador dedica a Cabral,
nos permite aproximar a sua obra à de Belchior. O canto a palo seco que os une, o
60
delírio com coisas reais, já explicado, parece estabelecer grande continuidade com os
elementos da proposta do poeta. É claro que há uma mudança de cenário: do Sertão
árido de João Cabral para a metrópole igualmente dura de Belchior, projeta-se uma
continuidade de apreciação e de proposta estética. Mais um elemento da contingência
nordestina de Belchior.
Não é só João Cabral de Melo Neto que é citado durante o disco “Alucinação”.
A obra de Belchior, na verdade, tem como característica própria o uso constante de
citações, seja de artistas ou ideias. Josely Castro (CASTRO, 2007) dedicou sua
dissertação de mestrado à análise das relações que se instauram nessas citações,
tratando-as como investimentos interdiscursivos. Em minha análise, elas interessam na
medida em que constituem uma continuidade, através da referência direta, com certa
sensibilidade. Além da citação de João Cabral no título da canção “A Palo Seco”, a
música de Luiz Gonzaga é citada em duas ocasiões.
Tendo feito uma breve releitura do tema da invenção das tradições, situado o
nordeste nesse panorama e levantado questões acerca da nordestinidade na obra de
Belchior e das ferramentas para interpretá-la, como a identidade e a contingência, é
possível agora tratar de uma questão que permaneceu em aberto: como o tropicalismo se
relacionou com as tradições, em especial a tradição nordestina, e que tipo de tensão
Belchior estabeleceu com essas relações? No caso tropicalismo, ressalto que estarei
tratando das tradições em geral, nas quais o regionalismo nordestino se inclui: a forma
com que os tropicalistas lidaram com todas as identidades fixas foi através do mesmo
procedimento, que detalharei agora.
Assim, podemos dizer que, segundo o raciocínio que estruturei através das obras
de Albuquerque Júnior e Foucault, os tropicalistas teriam articulado uma proposta
válida de fuga do estereótipo, neutralizando-o e abrindo a possibilidade de muitos
outros discursos e arranjos que não caberiam nas identidades estabelecidas. As
experimentações linguísticas mostram a artificialidade do que antes era tido como uma
relação natural entre discurso e realidade. O que antes era cheio de sentido, cercado de
dualismos e maniqueísmo se complexifica e multiplica, agrega novos elementos e se
torna inesgotável, em um fluxo de transformações constantes que possui autonomia em
relação à vida experienciada.
63
Podemos tomar como ponto de partida, uma parte (e não muito mais...) da crítica
que Boal faz aos tropicalistas, que Favaretto descreve:
“Uma das coisas que mais pintava, nos papos que sempre tinha
depois dos shows, era essa história de cearenses contra baianos. E
isso é uma coisa que precisa ficar clara. Eu, como todo mundo da
minha geração, vivo e trabalho no espaço aberto pela Tropicália. Hoje
esse espaço é muito maior que antes de Gil e Caetano. Nós fomos
influenciados por eles, pelas propostas deles. E por isso mesmo não é
possível ficar parado, é preciso continuar, ir adiante no que os
baianos fizeram” 61
Assim, da mesma forma que os tropicalistas estavam de acordo com o seu tempo
ao romper com as obviedades identitárias, Belchior pretendeatualizar o tropicalismo ao
criticá-lo. O que significaria, então, ir adiante no raciocínio tropicalista? Para Belchior,
é justamente a noção que traduzi enquanto contingência que, ao mesmo tempo em que
foge à obra tropicalista, pode dar o próximo passo em seus procedimentos.
60
Jornal de música nº 33, Agosto de1977
61
O GLOBO, 26/04/77
65
CONCLUSÃO
O grupo social dos imigrantes nordestinos, dos cantores populares, dos cidadãos
comuns, grupos centrais na obra de Belchior, se constituem com base nessa dinâmica de
pertencimento por compartilhamento de experiência. O pertencimento a um grupo se dá,
portanto, como uma experiência coletiva de invenção.
Acredito ter ficado claro, também, que os debates interessantes acerca da canção
popular no Brasil não se encerram com o Tropicalismo, como muitas vezes aparentam
os resumos ou trabalhos que pretendem a síntese da música brasileira. Aqui, foram
expostas apenas algumas considerações acerca de um disco de um cantor específico,
estou certo de que muito mais pode ser dito a partir do trabalho de outros artistas
contemporâneos de Belchior.
Assim, mesmo que sinteticamente, acredito ter sido capaz de esboçar o processo
pelo qual a obra de um cantor popular pode ser tido como um foco de reflexões,
tratando sua obra como ponto de partida para a elaboração de uma teoria ao tentar
traduzir suas reflexões para termos acadêmicos. Com mais esforços desse tipo, pode ser
que comecemos a compreender que reflexões desse tipo, que se dão através outras
formas de invenção, podem ganhar uma dimensão teórica mais ampla de forma tão
legítima quanto as acadêmicas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Vila Rica;
Brasília: INL, 1972.
JABOR, Arnaldo. “Glauber Rocha: cineasta e pensador do Brasil”, In: NAVES, Santuza
Cambraia e DUARTE, Paulo Sergio (Org.). Do Samba-canção à Tropicália. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 179-190.