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Rio de Janeiro
2012
DAS CONSEQUÊNCIAS DA “ARTE” MACABRA DE FAZER
DESAPARECER CORPOS:
violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento forçado
Rio de Janeiro
2012
ARAÚJO, Fábio Alves.
Das consequências da “arte” macabra de fazer desaparecer corpos: violência,
sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento forçado / Fábio
Alves Araújo. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2012.
xvi, 268f.:il.; 31 cm.
Orientador: Luiz Antonio Machado da Silva.
Tese (doutorado) – UFRJ / Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2012.
Referências Bibliográficas: f. 285-293.
1. Sociologia e Antropologia da Violência. 2. Desaparecimento Forçado de
Pessoas. 3. Familiares de Vítima de Violência. 4. Política. I. Machado da Silva, Luiz
Antonio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais. III. Das consequências da “arte” macabra de fazer desaparecer
corpos: violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de
desaparecimento forçado.
Para Vera Flores,
que partiu, sem desaparecer
de nossas lembranças.
AGRADECIMENTOS
Ao longo do processo de pesquisa que resultou nesta tese, muitas pessoas contribuíram
de diferentes maneiras, é hora de agradecê-las. Embora correndo sempre o risco do
esquecimento, gostaria de registrar algumas lembranças fundamentais. Primeiramente a todos
os familiares entrevistados que aceitaram compartilhar comigo suas histórias de dor e luta.
Entre as instituições agradeço a acolhida do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ, ao seu corpo docente, pelos cursos que fiz e pelo
incentivo, e seus funcionários, especialmente Cláudia e Denise, que facilitaram sempre as
questões burocráticas. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) agradeço pela bolsa de doutorado que proporcionou o apoio financeiro para a
realização da pesquisa. A recepção que tive no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e o
convívio com profissionais e estudantes de diferentes áreas disciplinares tem sido um
aprendizado e um diálogo interdisciplinar intenso.
Sou muitíssimo grato a meu orientador Luiz Antonio Machado da Silva pelo
acolhimento desde os tempos do mestrado. A liberdade de pensamento, mesmo quando
discordava, foi uma marca do diálogo e das trocas acadêmicas, por outro lado, liberdade não
significou abrir mão do rigor do pensamento, servindo-me de estímulo a elaborar com maior
precisão meus argumentos. Agradeço também a Machado a oportunidade enriquecedora, pelo
aprendizado e amadurecimento intelectual que me tem proporcionado, de participar do grupo
de pesquisa por ele coordenado, atualmente registrado no cadastro do CNPq como CEVIS –
Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade.
No CEVIS encontrei um espaço intenso e estimulante de discussão e realização de
pesquisas. Aprendi muito com Machado, Márcia Leite, Luis Carlos Fridman, Jussara Freire,
Wânia Mesquita, Lia Rocha, Christina Vital, César Pinheiro Teixeira, Carla Mattos, Dinaldo
Almendra, Palloma Meneses e Juliana Farias.
Beneficiei-me da boa amizade e discussão de Jussara Freire e César Teixeira, que
foram interlocutores diretos de muitas das questões desta tese. Agradeço as leituras atentas e
rigorosas de César sobre alguns capítulos da tese e as sugestões e comentários preciosos de
Jussara que muito contribuíram no desenho da pesquisa. Com eles também compartilhei
prazeres e angústias da vida acadêmica.
Agradeço aos professores Michel Misse e Márcia Leite as contribuições, durante o
exame de qualificação. Agradecimento que se estende aos professores Luis Carlos Fridman,
Elina Pessanha e Adriana Vianna por terem aceitado o convite para participar da banca
examinadora da tese e pelas contribuições.
Tive a oportunidade de apresentar partes do trabalho em eventos acadêmicos e receber
os comentários de Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Telma Camargo da Silva, Maria Luiza
Rodrigues, Hernán Armando Mamani, a quem registro meus agradecimentos.
Dijaci David de Oliveira gentilmente me enviou sua tese de doutorado sobre os
“desaparecidos civis” logo que ficou pronta e ainda disponibilizou materiais e uma boa
conversa durante uma visita minha a Goiânia para participar de um seminário. Agradeço a
Dalva Souza por ter propiciado o encontro. Helena, advogada do Centro pela Justiça e Direito
Internacional (Cejil), e Isabel Mansur e Rafael Dias da Justiça Global deram dicas e pistas
para a pesquisa.
Marilene Lima, além de uma das primeiras familiares de vítima com quem tive
contato, me auxiliou como assistente de pesquisa e percorreu juntamente comigo instituições,
arquivos, documentos e entrevistou familiares. Sempre admirei sua luta, coragem e
perseverança, que sempre me serviram de estímulo. Fernanda Caroline, Patrícia Guimarães,
Hildebrando Saraiva e Déborah Martins de Souza, participaram e contribuíram em diferentes
momentos da pesquisa como bolsistas ou voluntários em um projeto de iniciação científica.
Hugo Araújo auxiliou com transcrições de entrevistas e organização do material. A Céline
Spinelli agradeço pela tradução, assim como a Leonardo Marona, que além de traduzir o
resumo fez a revisão da tese.
Aos companheiros da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
agradeço pelo convívio e pela confiança. Com eles e através deles me aproximei do mundo
dos familiares de vítimas de violência. É admirável a coragem de todos em lutar contra a
violência policial e por justiça. Um agradecimento especial a Patrícia Oliveira e Ana Lúcia
pelas mediações e pelos contatos que me possibilitaram realizar algumas entrevistas com
familiares.
A meus irmãos Hugo, Avana e Avanísio, e à minha mãe, Rosa, pelo apoio e incentivo.
A Thimoteo e Luíza, Ronaldo Soares, Jefferson Gonçalves, Sandro Juliati, Thiago
Carminatti, Márcio Filgueiras, Camilla Lobino, Igor Vitorino, Luciane Soares, Zé Luis, pela
amizade.
Valéria Aquino acompanhou cada momento da pesquisa e continua compartilhando a
vida e me dando força para seguir adiante.
RESUMO
Esta tese aborda as relações entre sofrimento, violência e política, a partir da experiência e do
protagonismo de familiares de vítima de violência, particularmente através do estudo de uma
modalidade de casos abarcados pela categoria desaparecimento forçado. Para apreendê-las
descrevo e analiso o que denomino narrativas sobre o terror e o sofrimento, a partir das quais
é possível acessar as gramáticas morais e políticas dos familiares de vítima. O
desaparecimento forçado corresponde, dentro da problemática geral dos desaparecimentos, na
expressão de Bachelard, a um “caso particular do possível”. Ele é tomado como um evento
crítico e uma prática do repertório da linguagem da violência urbana. A partir das histórias
de desaparecimento forçado são construídos pequenos mapas da dor que contam as trajetórias
dos familiares diante do evento. Ao percorrer essas histórias, várias categorias vão se
construindo, entre elas as de vítima, familiar de vítima e desaparecimento forçado. As
histórias tratam de experiências desenraizadoras, cujo limite é a percepção e o sentimento de
não pertencer a uma humanidade comum. Morte violenta, dor, sofrimento, terror, luto, e
também amor e justiça compõem o repertório temático desenvolvido ao longo da tese. São
experiências que se situam entre a resignação e a esperança, entre um tempo do choque e um
tempo da política. O tempo é um agente que “trabalha” nas relações, transformando sentidos e
significados para as experiências de violência e dor vividas pelos familiares. Estas
experiências, se por um lado, destroem ou impõem obstáculos à capacidade de comunicar, por
outro, também criam comunidades morais, emocionais e políticas a partir de quem padece o
sofrimento. Estas comunidades morais alentam a recuperação das pessoas enquanto sujeitos e
se convertem em um veículo de recomposição cultural e política. É neste contexto de
liminaridade, de tensão entre voz e silêncio, de passagem de um tempo do choque para um
tempo da política, que os familiares de vítima se constroem enquanto sujeitos da dor e
agentes da dignidade. É da dimensão moral da vida e da morte, e dos significados elaborados
para estes acontecimentos a partir da maternidade, da religião, de percepções de justiça e
injustiça, que se constituem as gramáticas morais e políticas e os modos de fazer política dos
familiares. Diante do desaparecimento, as práticas de luto transformam-se em práticas
reivindicativas de justiça e, enquanto a justiça não se realiza, não para de crescer a “família
dos familiares de vítima”
Rio de Janeiro
Agosto de 2012
ABSTRACT∗
ARAÚJO, Fábio Alves. From the consequences of the sinister “art” of making bodies
disappear: violence, suffering and politics between families victims of forced
disappearing.
Academic Advisor: Luiz Antonio Machado da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2012.
Doctoral degree thesis (postgraduate degree in Sociology and Anthropology).
This thesis broaches the relationship between suffering, violence and politics, parting from the
victim’s relatives violence experience and leading role, particularly through the study of a
modality of cases approached enclosed by the category forced disappearing. To apprehend
them I describe and analyse what I denominate narratives about terror and suffering. , from
which it is possible to access the victim’s relatives’ moral and political grammars. The forced
disappearing correspond, inside the disappearances general problematic, using a Bachelard’s
expression, to a “particular case of possible”. It is taken as a critical event and a practice of
urban violence language repertoire. From the forced disappearing stories, little maps of pain
are built up which tell the relatives paths before the event. Following these stories, many
categories builds themselves up, between them the victim, the victim relative and forced
disappearing. The stories approach uprooted experiences, whose limit is the perception and
feeling of not belonging to a common humanity. Violent death, pain, suffering, terror,
mourning, and also love and justice arrange a thematic repertoire developed through the
thesis. Experiences localized between resignation and hope, between a choc period and one
political period.
The time is an agent that “works” in relations, transforming senses and meanings to the
experiences of violence and pain lived by the relatives. These experiences, if on the one hand
destroy or impose obstacles to the capacity of communicate, on the other, it also creates
moral, emotional and political communities through the ones who feel the suffering. These
moral communities encourage the recovering of people as individuals and convert themselves
into a vehicle of cultural and political recomposing. In this context of liminarity, of tension
between voice and silence, of passage from a chock period to a political period, the victim’s
relatives build themselves as pain individuals and dignity agents. It is from the life and death
moral, and from the meanings elaborated to these happenings through maternity, religion,
justice and injustice perception, that the moral and political grammars and the ways of doing
the relatives’ politics are constituted. Before the disappearing, the mourning practices
transform themselves into revendicative practice of justice, and while justice does not happen,
the “family of victim’s relatives” does not stop increasing.
Rio de Janeiro
Agosto de 2012
∗
Versão de Leonardo Marona.
Lista de imagens e reportagens inseridas no texto
Capítulo 1
Foto 1: Mães da Cinelândia – Manifestação na escadaria da Câmara de Vereadores do
Rio de Janeiro ........................................................................................................ 62
Capítulo 2
Foto 2: Manifestação da ONG Rio de Paz – “Desaparecidos – Onde estão nossos
mortos?”................................................................................................................. 92
Reportagem 1: Corpos achados na Baía de Guanabara podem ser indício de desova ........... 100
Reportagem 2: Polícia encontra ossadas em campos de execuções da milícia na Zona
Oeste .................................................................................................................... 101
Reportagem 3: Policiais do Bope escavam Piscinão de Ramos a procura de corpos............. 102
Capitulo 3
Figura 1: Carta de Izildete ao então presidente Lula: a mobilização do sofrimento em
busca de ajuda ........................................................................................................ 120
Foto 3: Jogadores do Fluminense entraram em campo no Maracanã com uma faixa de
protesto - 20/05/2009 ............................................................................................ 164
Foto 4: Manifestação no Cristo Redentor............................................................................... 164
Capítulo 6
Figura 2: Logo do Tribunal Popular – O Estado brasileiro no banco dos réus –
Charge de Diego Novaes ..................................................................................... 239
Figura 3: Cauê armado – charge do cartunista Latuff criticando a militarização da
segurança pública durante o período de realização dos jogos Pan-
Americanos no Rio de Janeiro, em 2007, e utilizada nos protestos
políticos dos movimentos sociais. ....................................................................... 254
Figura 4: Mãe com filho baleado por policial no colo e o caveirão ao fundo.
Charge do cartunista Latuff utilizada por movimentos sociais em
campanhas contra o uso do caveirão pela polícia do estado do Rio de
Janeiro.................................................................................................................. 256
Foto 5: Concentração do ato em memória das vítimas da violência estatal em
frente à Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, cidade
de São Paulo. Faixas e murais com fotografias das vítimas de ontem e
de hoje.................................................................................................................. 274
Foto 6: Faixa da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência/RJ,
com os dizeres: “Nem caveirão nem remoção, favela é cidade”. ....................... 274
Foto 7: Faixas de protesto....................................................................................................... 275
Foto 8: Fotografias, cartazes, bandeiras e instrumentos musicais: objetos do
protesto ................................................................................................................ 275
Foto 9: Luto e protesto: fotos de mortos e desaparecidos de ontem e de hoje ....................... 276
Foto 10: Maicon X Justiça...................................................................................................... 276
Foto 11: O cenário do protesto ............................................................................................... 276
Foto 12: Criança observa e participa da vigília ...................................................................... 277
Foto 13: Colocando uma foto no mural.................................................................................. 277
Foto 14: Ajeitando a foto ........................................................................................................ 277
Foto 15: Uma ajuda da mãe e o interesse do fotógrafo .......................................................... 277
Foto 16: Mural com fotos de presos políticos da ditadura ..................................................... 278
Foto 17: Moradora de rua se junta à vigília............................................................................ 278
Foto 18: Mural com fotos dos mortos e desaparecidos de hoje ............................................. 278
Foto 19: Vela e foto – símbolos do protesto ........................................................................... 278
Foto 20: A cobertura midiática do ato .................................................................................... 278
Foto 21: A chama da esperança .............................................................................................. 278
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 17
Catarse da dor: a morte violenta e o luto como protesto público ............................................. 17
Violência, sofrimento e política: a experiência dos familiares de vítima ................................. 22
A pesquisa: estratégias de trabalho de campo, fontes e procedimentos ................................... 24
Estrutura e organização da tese ................................................................................................ 31
ANEXOS
Anexo 1 – Relação de entrevistados....................................................................................... 295
Anexo 2 – Parecer e projeto substitutivo de lei do Senado sobre desaparecimento
forçado ................................................................................................................. 297
Anexo 3 – Nota de esclarecimento e solicitação de retificação da Rede contra a
Violência ao jornal O Dia .................................................................................... 301
Anexo 4 - Caderno de Imagens .............................................................................................. 303
Me llaman el desaparecido
Que cuando llega ya se ha ido
Volando vengo, volando voy
Deprisa deprisa a rumbo perdido
Cuando me buscan nunca estoy
Cuando me encuentran yo no soy
El que está enfrente porque ya
Me fui corriendo más allá
Me dicen el desaparecido
Fantasma que nunca está
Me dicen el desagradecido
Pero esa no es la verdad
Yo llevo en el cuerpo un dolor
Que no me deja respirar
Llevo en el cuerpo una condena
Que siempre me echa a caminar
****
19
O caso que acabo de descrever jamais saiu de minha memória. Eu mesmo não cheguei
a presenciar o protesto da mãe, nem acompanhei de perto os desdobramentos do caso. Para
usar a expressão cunhada por Boltanski (2007), mantive uma relação com o sofrimento à
distância, através de relatos de amigos que lá estiveram e da cobertura midiática. Embora não
tenha estado lá, o caso provocou em mim um estado de perplexidade.
Naquele momento, eu estava preparando minha mudança para a o Rio de Janeiro, a
fim de cursar o mestrado, e há tempos a imagem da cidade maravilhosa havia sido manchada
de sangue em razão da violência policial e da violência criminal, associadas ao tráfico de
drogas que assolava e ainda assola a cidade. Em temos gerais, eu tinha interesse em estudar o
tema da violência urbana, a partir de um enfoque que buscasse investigar as formas como as
pessoas afetadas lidam com esse tipo de evento, o impacto na vida e na sociabilidade.
Após o estado de perplexidade, tentando compreender a morte macabra do jovem em
Vila Velha e o sofrimento escandaloso da mãe e sua repercussão pública, mas agora já
morando no Rio de Janeiro, cheguei a pensar na possibilidade de realizar um estudo de caso
desta situação. Mas em pouco tempo a cidade do Rio de Janeiro mostrou que o que não falta
por aqui são casos igualmente macabros e escandalosos de violência, figuras de vítimas e
familiares de vítimas da violência. O vocabulário e a linguagem da violência urbana se
complexifica a cada dia, novas categorias, como chacina e massacre, passam a ser utilizadas
para nomear e qualificar a escala e a proporção da violência. Como se verá adiante nesta tese,
para pensar o regime da violência urbana, faz sentido até falar em relativização da
humanidade
Neste sentido, optei durante o mestrado por trabalhar com um caso que também teve
uma grande repercussão e cujas narrativas do terror e do sofrimento recolocavam com
intensidade todas as questões que eu desejava estudar: tratava-se da chacina de Acari, um dos
episódios que inaugurou, em certo sentido, a era das chacinas, no Rio de Janeiro. A chacina
de Acari ocorreu em 1990. Segundo as denúncias que circularam, na época do caso, ela foi
cometida por um grupo de extermínio, formado por policiais, cujo resultado foi o
desaparecimento forçado de onze jovens, que jamais reapareceram ou foram encontrados,
vivos ou mortos. No entanto, isso não significa afirmar que outras chacinas não tivessem
ocorrido antes deste episódio de violência, mas este se tornou um marco na memória da
cidade, passou a fazer parte do calendário de lutas dos movimentos de direitos humanos,
juntamente com as chacinas da Candelária (1993) e de Vigário Geral (1993).
Na dissertação de mestrado, intitulada Do luto à luta: a experiências das Mães de
Acari (Araújo, 2007), investiguei as relações entre luto, sociabilidade e modos de se fazer
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política, a partir da experiência das “Mães de Acari”, como ficaram internacionalmente
conhecidas as mães dos jovens. Embora o “Caso Acari” seja emblemático, principalmente em
razão da grande quantidade de vítimas e do desaparecimento dos corpos, ele não é único. O
que constatei no decorrer da pesquisa foi uma coleção de casos semelhantes. Neste sentido, a
pesquisa de doutorado teve como objetivo dar continuidade às questões inicialmente
formuladas durante o mestrado, procurando ampliar o horizonte empírico e o conjunto de
questões teóricas e analíticas a ser investigado.
Desde então passei a acompanhar e partilhar o mundo dos familiares de vítimas de
violência na região metropolitana do Rio de Janeiro. Encontrei nos familiares de vítimas de
desaparecimento forçado um campo empírico adequado para realizar minha pesquisa. O
sofrimento é a matéria-prima por excelência da experiência desses familiares. Muito me
chamou atenção as formas da morte e do desaparecimento, o uso político das emoções nas
gramáticas morais e políticas. O sofrimento, nesse contexto, circula dentro de uma economia
política das emoções, entre uma política da piedade e uma política da justiça (Boltanski,
2007).
Durante boa parte do período de realização da pesquisa não soube definir com
precisão sobre o que exatamente tratava minha tese. Muitos temas surgiam, mas não sabia
exatamente qual era o fio condutor que alinhavava as várias camadas de questões que
emergiram no decorrer do trabalho de campo e das elaborações teóricas. Ao me debruçar
sobre o material de campo, lendo e relendo os relatos dos familiares, revendo fotos de
manifestações, analisando documentos, repassando a memória dos eventos e, sobretudo,
fazendo o trabalho analítico de interpretação, associando empiria e teoria, fui aos poucos
tecendo os fios condutores para narrar a pesquisa realizada.
Em várias ocasiões em que pude falar sobre a tese, ou em textos que escrevi, eu dizia
que a tese tratava do desaparecimento forçado de pessoas. Isso era verdade, mas só em parte.
A questão ainda estava mal formulada, ou formulada de maneira incompleta. Sempre
alimentei um interesse em estudar o desaparecimento forçado de pessoas, mas, sem muita
clareza disso no começo, descobri implícita uma questão central, que girava em torno do
sofrimento e da política. O desaparecimento forçado de pessoas aparece aqui como uma
forma social, a partir da qual é possível apreender as dinâmicas de destruição e sofrimento
social. Lembro-me que nos relatos de familiares de pessoas desaparecidas que registrei havia
sempre uma comparação entre desaparecimento e execução. Esta comparação consistia numa
espécie de hierarquização dos sofrimentos, cujo critério era a ausência do corpo, ou melhor,
do cadáver. O familiar do desaparecido, em algum momento, dizia: “No caso da execução
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você ainda tem o corpo para enterrar. Você sofre, chora, enterra e acabou. Sabe que morreu e
pronto. E no caso do desaparecimento que nem isso a gente pode fazer?”.
O tema central era o sofrimento, mas não qualquer sofrimento. Tratava-se de um
sofrimento que precisava ser qualificado sociologicamente e antropologicamente. Era preciso
demarcar e apresentar a dimensão moral e política em que este sofrimento se situa. Para isso,
começo argumentando que se trata de um sofrimento que está diretamente associado a uma
variedade de temas, conceitos e categorias com forte conotação moral e política, como:
desaparecimento forçado, favela, crime violento, vítima, familiar de vítima, polícia, milícia,
tráfico e traficantes de droga, denúncia, protesto, comunidades morais.
Esta tese trata das relações entre violência, sofrimento e política, a partir da
1
experiência de familiares de vítimas de violência . Detenho-me sobre uma modalidade
particular de violência que, segundo meu ponto de vista, passou a fazer parte do repertório da
linguagem da violência urbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e também de
outros lugares: o desaparecimento forçado de pessoas. Interrogo-me sobre o repertório de
ações possíveis para os atores sociais diante de eventos críticos e que falam (quando falam) a
partir de uma condição de subordinação social, buscando sempre jamais perder de vista que a
vítima é definida pelo contexto e pode gerar novos contextos.
Os trabalhos de Veena Das, citados ao longo da tese, foi uma inspiração central,
principalmente suas reflexões sobre as relações e tensionamentos entre violência e sofrimento,
ao estudar o silenciamento do sofrer e também as linguagens da resistência e seus usos, que
performam a experiência da dor. Esta tese revisita algumas das questões e dos temas de
trabalho de Veena Das a partir de outro contexto histórico e sociológico: a experiência dos
familiares de vítimas no contexto da chamada violência urbana, no Rio de Janeiro.
Quais são os obstáculos para se reconhecer a dor dos familiares de vítima de
violência? Quais são os modos como as vítimas (diretas e indiretas) e os familiares de vítima
padecem, percebem, experimentam e resistem à violência? Como recordam as perdas, fazem
1
Alguns trabalhos sobre a experiência e o protagonismo dos familiares de vítimas de violência podem ser
encontrados, entre outros, em: Birman e Leite (2004); Leite, (2004), Araújo (2007, 2008); Soares, Moura e
Afonso (2009), Freire (2011)Vianna e Farias (2011). Sobre o contexto argentino relacionado aos familiares da
violência política durante a ditadura conferir Catela (2001), e sobre os familiares do período democrático, ou do
gatillo fácil, conferir (Pitta, 2010). Para uma discussão sobre experiências de violência na Colômbia pode-se
consultar Uribe ( 2004, 2008) e Jimeno (2008).
22
o luto e absorvem os acontecimentos violentos na ordem do cotidiano? Do ponto de vista das
vítimas e dos familiares de vítimas, como falar do sofrimento provocado pela violência e usá-
lo em benefício próprio? Como elaborar o trauma e o sofrimento? Como reabitar o mundo
após a degradação da violência extrema? De que forma eventos extraordinários, como o
descrito anteriormente, passam a habitar o cotidiano e a subjetividade daqueles que foram
afetados por tamanha desgraça?
Que repertório de ações se apresenta ou é criado no agir daqueles que passam por
experiências traumáticas? Quais as possibilidades de engajamento possíveis para aqueles que
são alcançados diretamente pelos eventos críticos e, por outro lado, que novos vínculos
sociais pode o sofrimento criar? Que respostas podem ser dadas à experiência de violência e
como os diversos atores sociais se engajam politicamente na apropriação do sofrimento para
usos políticos? Como o Estado, ao ser interpelado, age em benefício ou prejuízo das vítimas,
conforme os contextos? Como se dão os jogos de disputa que vão definir a legitimidade ou
não de um sofrimento, e, consequentemente, a necessidade de uma ação urgente para fazê-lo
cessar? E como nós mesmos, pesquisadores, nos engajamos nesses tipos de acontecimento?
Um dos argumentos centrais de Veena Das, é que a vítima de violência pode se auto
reconstruir em seu cotidiano, a partir de práticas e ações diárias e não a partir de um passado,
de uma história escrita. Assim, a vítima expressa suas reivindicações não através da fala, do
dizer, mas sim pela via do gesto, do ato de mostrar, expresso nas relações desenvolvidas no
cotidiano. Neste sentido, Das descreve que o potencial da antropologia, em oposição ao
potencial dramático dos relatos que aparecem na mídia, não é o de centrar a atenção em um
acontecimento catastrófico, mas sim mostrar “como é que algo pode converter-se numa crise”
e como se pode levar os acontecimentos atrás e adiante no tempo (Das, 2008d). O argumento
de Veena Das é o de que a reconstrução do eu, diante de eventos críticos, se dá não pelo
retorno a uma sombra de algum passado fantasmagórico, mas no contexto de habitar a
cotidianidade, de intentar redimir a vida através do cotidiano.
Veena Das defende uma imagem do conhecimento antropológico em relação ao
sofrimento “como algo que está atento à violência onde quer que ocorra no tecido da vida, e
do corpo de textos antropológicos como algo que rechaça a cumplicidade ao abrir-se à dor do
outro” (Das, 2008d: 153). Isso, no entanto, não significa que o antropólogo, como argumenta
ainda Veena Das, deva se contentar com uma ideia simplista das vítimas. Pelo contrário, abrir-
se para a dor do outro significa acompanhar os tensionamentos nas relações entre sofrimento e
violência, evitando o dualismo entre “vítima” e “agressor”.
No caso das experiências dos familiares de vítimas, o que se tem é o acionamento da
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autoridade moral da maternidade e dos laços primordiais para falar das relações entre
sofrimento e direito, formas de luto, protesto e política. A maternidade e os laços de
parentesco constituem o lugar onde se busca significar a perda e o luto, para reabitar o
cotidiano e a vida.
A pesquisa que deu origem a esta tese foi realizada entre 2008 e 2012. As estratégias e
possibilidades de trabalho de campo sobre o tema do desaparecimento de pessoas são tão
diversas quanto as possibilidades de enquadramento do problema a ser investigado. Meu
interesse, desde o início, foi realizar um estudo sobre “desaparecimento forçado de pessoas”.
O primeiro problema enfrentado foi o de que as categorias “desaparecido” ou “pessoa
desaparecida”, englobam uma diversidade semântica e situações empíricas variadas. Tive que
percorrer certas trajetórias destas categorias, para tentar encontrar o que eu procurava, ou seja,
casos que se enquadrassem dentro de uma modalidade particular de desaparecimentos. O
segundo obstáculo, foi a não disponibilidade ou o caráter fragmentário dos dados.
Meu objetivo inicial, em termos de trabalho de campo, era registrar histórias de
desaparecimento forçado, “boas para pensar”, e me possibilitassem analisar as relações entre
violência, sofrimento e política. Com o passar do tempo, minha perspectiva tornou-se, em
algum sentido, próxima ao enquadramento que a antropóloga Teresa Caldeira adotou para
estudar o que ela denomina de a fala do crime. Em seu livro Cidade de muros (Caldeira,
2004), ela escreve que a observação participante, método por excelência de um estudo
etnográfico, nem sempre é viável para estudar a violência e o crime. As opções metodológicas
e estratégias de trabalho de campo dependem diretamente da questão que se deseja investigar.
Neste sentido, Caldeira, ao falar sobre a realização de sua pesquisa, relata que “não estava
especialmente interessada na etnografia de diferentes áreas da cidade, mas sim na análise
etnográfica de experiências de violência e segregação...” (Caldeira, 2010: 14).
Para explicar melhor minha perspectiva e meu enquadramento do problema sugiro
acompanharmos o desdobramento da argumentação de Teresa Caldeira quando se refere à fala
do crime. Ela argumenta que assim como aumentou o crime violento, também amplificou-se o
medo do crime. A vida cotidiana e a cidade mudaram por causa do crime violento. O crime
tornou-se um tema central e “a fala do crime - ou seja, todos os tipos de conversas,
comentários, narrativas, piadas, debates e brincadeiras que têm o crime e o medo como tema –
é contagiante” (p. 27). A fala do crime alimenta um circuito em que o medo é trabalhado e
24
reproduzido, e a violência “é a um só tempo combatida e ampliada”.
O argumento de Caldeira é o de que as narrativas de crimes recontam experiências de
violência e, ao fazer isso, organizam e dão novo significado às experiências individuais e ao
contexto social no qual ocorrem.
A narração, diz De Certeau, é uma arte do falar que é “ela própria uma arte do agir e
uma arte do pensar”. As narrativas de crime são um tipo específico de narrativa que
engendram um tipo específico de conhecimento. Elas tentam estabelecer ordem num
universo que parece ter perdido o sentido. Em meio aos sentimentos caóticos
associados à difusão da violência no espaço da cidade, essas narrativas representam
esforços de restabelecer ordem e significado. Ao contrário da experiência do crime,
que rompe o significado e desorganiza o mundo, a fala do crime simbolicamente o
reorganiza ao tentar restabelecer um quadro estático do mundo. Essa reorganização
simbólica é expressa em termos muito simplistas, que se apóiam na elaboração de
pares de oposição óbvios oferecidos pelo universo do crime, o mais comum deles
sendo o do bem contra o mal. A exemplo de outras práticas cotidianas para lidar com
a violência (…), as histórias de crime tentam recriar um mapa estável para um
mundo que foi abalado. Essas narrativas e práticas impõem separações, constroem
muros, delineiam e encerram espaços, estabelecem distâncias, segregam,
diferenciam, impõem proibições, multiplicam regras de exclusão e de evitação, e
restringem movimentos. Em resumo, elas simplificam e encerram o mundo. As
narrativas de crime elaboram preconceitos e tentam eliminar ambiguidades.
(Caldeira, 2000: 28)
2
“A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência é um movimento social independente do Estado, de
empresas, partidos políticos e igrejas, que reúne moradores de favelas e comunidades pobres em geral,
29
participar das atividades da Rede e providenciou vários contatos com familiares para serem
entrevistados. Todas as suas indicações eram de mães, suas vizinhas, cujos filhos estavam
desaparecidos, na verdade mortos pela milícia local. Segundo Maria do Rosário, onde ela
mora há muitos e muitos casos de desaparecimento, atribuídos à milícia, mas as pessoas têm
medo de falar. Ainda assim, apesar do medo, ela conseguiu fazer com que alguns desses
familiares aceitassem o convite para uma entrevista.
A qualidade dos relatos variou muito conforme as informações que o próprio familiar
tinha sobre o caso. Em alguns casos a entrevista não durou muito porque o familiar
praticamente não tinha informações mais detalhadas sobre o acontecimento. O que tinham
para dizer, nesses casos, praticamente se limitava a contar que a pessoa havia saído para
trabalhar ou para fazer qualquer outra coisa e não voltara mais. Em outras ocasiões – como a
descrita no capítulo 4 – o relato é tão detalhado que parece até que o familiar assistiu a tudo.
As entrevistas foram estruturadas a partir dos seguintes eixos: apresentação do familiar e da
vítima (quem eram, o que faziam); o caso (as circunstâncias, como ficou sabendo, as
primeiras providências, a quem recorreu, as buscas); o impacto do acontecimento no ambiente
familiar (mudanças nas rotinas, impactos na saúde e nos projetos familiares, a reação dos
pais); as interações dos familiares com outros atores (poder público, atores políticos, mídia e
outros familiares); território, religião e política (o estigma da favela, relação entre território e
crime violento, e engajamento religioso e político).
A construção do desaparecimento como um problema social se dá através da polifonia
de vozes que falam sobre o assunto. São as várias formas de falar sobre o desaparecimento de
pessoas que vão construindo as várias possibilidades semânticas do termo e o enquadramento
da questão. Eu mesmo, durante o período de realização da pesquisa, participei diretamente
desta construção na medida em que fui demandado a falar e a escrever sobre o assunto, em
diversas ocasiões, seja através da produção de relatos para os próprios familiares, seja
participando de programas de televisão e reportagens jornalísticas sobre o assunto, ou ainda,
de audiência pública na Assembléia Legislativa. Essas próprias ocasiões iam abrindo
possibilidades para o trabalho de campo.
Quando comecei a pesquisa eu sabia que seria difícil reunir o material que eu
desejava, mas ao final da pesquisa eu havia coletado um material satisfatório e suficiente para
escrever a tese. Uma parte do material não chegou sequer a ser explorada, ficando para
30
incursões futuras.
33
PARTE I
A categoria “familiar de vítima”, central nesta tese, nos remete exatamente a essa
“criação de fronteiras em diversas regiões do self e da sociabilidade”, a que se refere a
antropóloga indiana. A primeira fronteira que se estabelece nesse caso se conforma partir da
diferenciação entre aqueles que tiveram parentes mortos, vitimados pela violência, e aqueles
que não têm. Consequentemente, a categoria demarca uma distinção entre aqueles que sofrem
diretamente a perda de um ente querido e aqueles que não sofrem. O sofrimento decorrente da
violência impacta a sociabilidade daqueles que estão imersos direta e indiretamente no
acontecimento, obviamente de modos e intensidades diferenciadas.
Em relação à experiência dos familiares de vítimas a violência provoca rupturas e
reorganizações das rotinas, das formas de vida, da relação com o trabalho, das relações no
interior da família, e também gera adoecimento e mais mortes. Por outro lado, se a violência
desorganiza o tecido social, em torno dos eventos críticos pode também surgir laços de
solidariedade a partir da dor e do sofrimento, produzindo novos vínculos sociais e circuitos de
sociabilidade. A violência é atualizada nas várias esferas da vida social: na familiar, no
trabalho, na sociabilidade local, nos meios de comunicação, na religião, etc.
Segundo Veena Das, há uma forma de conhecimento que se constitui pelo sofrimento.
A este conhecimento ela dá o nome de conhecimento venenoso. Trata-se de um “conhecer
pelo sofrimento” em que o tempo “não é algo meramente representado”, é um agente que
“trabalha” nas relações, “permitindo que sejam reinterpretadas, reescritas, modificadas, no
embate entre vários autores pela autoria das histórias nas quais coletividades são criadas ou
recriadas” (Das, 1999: 37). Neste sentido, a violência enquanto evento/acontecimento é
construída através da experimentação de diversas vozes e, ao se falar de experiência, está-se
falando necessariamente de subjetividade e da produção de sujeitos. A experiência do
sofrimento engendra não só a destruição do corpo e da linguagem, mas também a produção de
sujeitos da dor e comunidades morais, que se conformam e se transformam com o “trabalho”
do tempo. O relato a seguir, de uma mãe de vítima, expressa exatamente a argumentação de
Veena Das a respeito do conhecimento venenoso:
O que aconteceu num primeiro momento pra gente tomar uma atitude? Bom, vamos
para as ruas! Ou a gente ficava dentro de casa chorando ou a gente tinha que ir para
as ruas. No meu entendimento, no meu sentimento, eu achava que alguma coisa saía
de dentro da comunidade, eu não sei porque. Ainda não caiu esse dado claro, mas eu
acredito que se antes de eu morrer eu vir a saber eu vou ficar chocada com alguns
participantes. Bom, e aí nós fomos para as ruas, levamos cartazes, fomos pra frente
da Secretaria de Segurança, eu nem sabia que [podia entrar lá]... A gente fica vendo
televisão, você tá lá cuidando dos seus filhos, você vê televisão e não é contigo,
então você num tá nem aí, você vê, sente a dor, se emociona no momento, mas passa,
você vai pro seu dia-a-dia, porque nós estamos assim.
Neste relato, a mãe trata de duas formas de conhecer a dor. Uma seria através do
“sofrimento à distância” (Boltanski, 2007), assistindo televisão, e outra seria através do
36
conhecimento venenoso (Das, 2008c). Seu argumento é que uma coisa é assistir o sofrimento
do outro na televisão, outra coisa é “sentir na pele”. E cada tipo propicia possibilidades de
engajamento diferentes. Foi através do conhecimento venenoso, ou seja, quando “sentiu na
pele”, que essa mãe, que fala através do relato acima, descobriu, por exemplo, que podia
entrar no prédio da Secretaria de Segurança Pública.
O conhecimento venenoso, aquele que se dá pela via do sofrimento, nos coloca diante
de uma questão que é a da distância. Distância entre aqueles que acessaram, através da
experiência direta do sofrimento da perda, esse tal conhecimento venenoso, e aqueles que não
sofreram. O tempo, nesse sentido, aparece como um agente que “trabalha” essa distância, que
“atua” no encontro entre a disposição de falar e expressar o conhecimento venenoso e a
possibilidade desta fala ser acolhida, de encontrar escuta. Neste aspecto, é possível aproximar
o pensamento de Veena Das das interpretações de Michael Pollak e Natalie Heinick (Pollak e
Heinick, 2006) no que diz respeito à reflexão sobre o significado e as condições de
testemunhar diante de eventos críticos e situações extremas. Tanto numa interpretação como
na outra a questão da distância tem a ver com a dificuldade de compartilhar uma experiência
traumática que coloca em risco a integridade física e moral daqueles que estão imersos no
acontecimento, e um abismo então se estabelece entre aquele que viveu a experiência e
aqueles que não (lembrando que a experiência pode ser vivida direta ou indiretamente,
portanto, com alcances diferenciados).
Pollak e Heinick (2006) chamam atenção para a dificuldade de se manter intacto o
sentimento de identidade diante de situações limite e para o fato de que o testemunho põe em
jogo não só a memória, mas também uma reflexão sobre si mesmo, e essa reflexão é dolorosa,
exatamente porque coloca em risco a própria imagem de si, a própria identidade. É esse risco
de fragmentação do próprio self que impede vítimas e sobreviventes – e, no caso desta tese, os
familiares de vítimas – de narrar os traumas vividos. Por isso, o ato de testemunhar
experiências traumáticas implica sempre lidar com o problema do silêncio. Como afirmam
Pollak e Heinick em relação à experiência concentracionária:
Se a situação-limite é o que muitas vezes faz falar aqueles que sofreram a experiência
37
traumática e “em princípio dá a sua história particular um interesse mais geral e justifica uma
atenção especial”, por outro lado, “não é menos certo que sua tomada de palavra, longe de
'engrandecê-los', como é o caso de outros grandes testemunhos históricos, corre o risco de
reativar as experiências traumáticas dos acontecimentos desse passado, que resultam
incompatíveis com a imagem que eles têm de si mesmos ou com seu sentimento de
identidade”. (Pollak e Heinick, 2006: 56).
Pollak e Heinick, quando refletem sobre o testemunho, o fazem a partir da experiência
dos sobreviventes dos campos de concentração nazista, mas as questões que colocam servem
para pensar de modo mais amplo a produção da memória traumática em outros contextos.
Questões similares às levantadas por esses autores também fazem parte, por exemplo, das
reflexões de Veena Das ao analisar os conflitos ocorridos durante a Partição da Índia. Tal
como Pollak e Heinick, Das se preocupa com a dignidade daqueles que sofrem e,
consequentemente, com a dimensão ética que se coloca no trabalho em contextos de
violência. Afinal, como se interrogam Pollak e Heinick (2006: 56), “como descrever com
pudor e dignidade atos que tem degradado e humilhado a pessoa?”.
Em vários momentos e ocasiões de seu trabalho, Veena Das tem colocado o problema:
A dor destrói a capacidade de comunicar, como muitos têm argumentado, ou se cria uma
comunidade moral a partir de quem tem padecido do sofrimento? Se a dor destrói a
capacidade de comunicar-se, “como pode alguma vez transladar-se à esfera da articulação
pública”? A hipótese de Das é que “a expressão da dor é um convite a compartilhá-la”. Neste
sentido, portanto, a dor não é uma experiência estritamente pessoal (Das, 1995; 2008). E se a
dor não é uma experiência apenas pessoal, a questão que se apresenta é: “Como pode minha
dor residir no corpo do outro?”
Para Veena Das quem melhor formulou este argumento foi o filósofo Wittgenstein,
uma de suas principais fontes inspiradoras3. Das dialoga com a análise de Wittgenstein sobre a
linguagem privada, segundo a qual, o filósofo “considerou a dor como um exemplo
privilegiado de objeto privado e se perguntou se era possível falar da existência de uma
linguagem privada para descrever essa classe de objetos” (Das, 2008b: 432). Segundo a
análise de Das sobre Wittgenstein, é possível distinguir dois aspectos da dor: sua
comunicabilidade e seu caráter inalienável. Em relação à comunicabilidade da dor, a pergunta
a ser feita é se é possível comunicar a experiência em torno da dor de um indivíduo a outro
indivíduo. “O conhecimento dos objetos privados, como a dor, é possível apenas para o
3
Outro autor de referência para Veena Das é o também filósofo Stanley Cavell, principalmente no que diz
respeito à sua leitura da obra de Wittgenstein.
38
sujeito individual ou é comunicável?”. E a segunda pergunta, relativa ao caráter inalienável da
dor é: “O que significa 'ter' dor?”
O argumento de Wittgenstein, retomado por Das, é o de que a afirmação “tenho dor”
não é um enunciado declarativo que pretenda descrever um estado mental, mas sim uma
queixa.
Sobre o caráter inalienável da dor, Veena Das destaca que Wittgenstein se pergunta
sobre o que significa “ter uma dor”. “São minhas dores aquelas unicamente experimentadas
em meu corpo?”. E a resposta que ele oferece é: “Minhas dores são aquelas as quais lhes dou
uma expressão” (Das, 2008b: 432). A dor, portanto, não é algo estritamente individual e
incomunicável. Wittgenstein dá vários exemplos de como é possível apreender a dor do outro
através dos jogos de linguagem, e é valendo-se de um jogo de linguagem que constrói a
seguinte imagem:
Con el fin de ver que es concebible que una persona pueda experimentar dolor en el
cuerpo de otra, deve examinar-se qué clase de hechos llamamos criterios para que un
dolor se encuentre en un lugar determinado… Supongamos que siento un dolor que
basándome solo en la prueba de ese dolor (es decir, con los ojos cerrados) debería
denominar como um dolor en mi mano izquierda. Alguien me pide que me toque el
punto doloroso con mi mano derecha. Lo hago, y al abrir los ojos percibo que estoy
tocando la mano de mi vecino… Eso sería sentir el dolor en otro cuerpo.
(Wittgenstein, 1953: 43 apud Das, 2008b: 433)
É possível apreender a dor do outro através dos jogos de linguagem, de modo que
“negar a dor do outro não é algo atribuível a deficiências do intelecto, senão a deficiências do
espírito”, afirma Das. Portanto, a questão da dor coloca-nos diante de uma situação radical de
alteridade, em que é possível através dos jogos de linguagem nos aproximarmos ou nos
afastarmos do outro. Como escreve o filósofo Stanley Cavell, em um comentário a um texto
de Das, “o que está em jogo é o futuro entre nós” e daí derivam duas consequências. A
primeira é que se não se responde ao pedido de reconhecimento da dor do outro quando esta
39
vem dirigida à nossa pessoa, se nega sua existência e é, portanto, um ato de violência (sem
importar sua fugacidade e que seja em grande medida imperceptível). A falta de resposta é um
silêncio que perpetua a violência da dor em si, como afirma Cavell. A segunda consequência é
que “se o estudo de uma sociedade requer um estudo de sua dor, então, na medida em que
exista uma ausência de linguagens da dor nas ciências sociais, estas participam do silêncio e,
por conseguinte, aumentam a violência que estudam”. Cavell (2008: 377) lembra o texto de
Das, no qual ela diz que as “linguagens da dor são as linguagens pelas quais se reconhece a
dor, as linguagens pelas quais se vem a saber de sua existência”; e o termo que Das utiliza é
“testemunhar” .
No caso dos familiares de vítimas de violência o testemunho configura uma das
modalidades principais de comunicação e politização do sofrimento. O testemunho dos
familiares e sua presentificação pública através de atos e manifestações de protesto, eventos
comemorativos, circulação na mídia, é uma das principais fontes de comunicação desse
sofrimento, um elo através do qual se constitui uma “comunidade emocional”.
Walter Benjamin possui um aforismo, intitulado “Narração e Cura”, em que ele fala do
poder do fluxo da narração de levar consigo a dor até sua foz. Ele escreve que “assim como a
dor é uma barragem, que resiste ao fluxo da narrativa, do mesmo modo é claro que ela é
rompida onde a correnteza se torna forte o suficiente para levar consigo tudo o que encontra
para o mar do esquecimento feliz” (Benjamin, 2002).
A comunicação das experiências de sofrimento – entre elas a morte violenta dos filhos
e as humilhações sociais a que são submetidos os familiares – permite criar uma comunidade
emocional capaz de alentar a recuperação do sujeito e sua recomposição cultural e política.
Recomposição política no sentido de reconstrução dos laços políticos que tornam aqueles que
foram submetidos a experiências de subjugação partícipes de uma comunidade política e
sujeitos de direito. Este argumento, desenvolvido por Jimeno (2008), ao analisar as relações
entre linguagem, subjetividade e experiências de violência, no contexto colombiano, expressa
o entendimento de que um dos efeitos da violência – seja ela de qualquer ordem – é que ela
afeta a confiança da pessoa ou de um grupo social em si mesmo e provoca rupturas nas redes
sociais. O processo que permite ultrapassar a condição de vítima passa, por conseguinte, pela
recomposição do sujeito como ser emocional e ser político.
40
1.2. Desaparecimento, evento crítico e sofrimento social
Yo, por mi parte, he insistido en otras partes en que el concepto puede ser útil para
concebir los modos en que el sufrimiento social trastorna las redes simbólicas (en
especial aquellas asociadas con la ley, el colectivo y la espiritualidad) e imaginarias
(autoridad, nación, religión) que le dan sustento a la vida social. (Ortega, 2008: 28)5.
41
– por exemplo, a fome, doenças sexualmente transmissíveis, violência política, mutilações
corporais, tortura e tratamentos degradantes, violência doméstica e familiar, estresse pós-
traumático, etc. –, experiências que envolvem, simultaneamente, situações de saúde, bem-
estar, justiça, moralidade e religião.
Neste sentido, o sofrimento é compreendido não como um problema médico ou
psicológico, mas como uma experiência social. Esta abordagem tem enfatizado a dimensão
moral envolvida no sofrimento social, em que, a partir de situações históricas determinadas,
são vividas experiências sociais marcadas pela humilhação social, pela vergonha e pela ofensa
moral. O conceito de sofrimento social abrange, portanto, um conjunto de experiências
disruptivas e uma complexa dimensão moral.
O desaparecimento de pessoas é tomado nesta tese como um evento crítico, tal como
este conceito é trabalhado por Veena Das (Das, 1995). A autora seleciona um conjunto
heterogêneo de eventos críticos como o desastre industrial de Bhopal, a Partição da Índia, a
prática do sacrifício feminino entre os hindus e o apelo ao exercício da violência entre os
militantes Sikh, para compreender algumas das categorias nativas que hoje são centrais na
política indiana como as de “vítima”, “memória”, “tradição”, “honra”, “sacrifício” e “pureza”.
A seleção destes eventos visa mostrar como a irrupção da violência no cotidiano da sociedade
indiana provoca o aparecimento na esfera pública de agentes sociais que até então levavam
uma vida anônima e que passam a interpelar o Estado pelas consequências de um sofrimento
percebido como “repentino”, “inexplicável” e “injusto”.
Como momentos de “quebra do cotidiano”, estes eventos permitem explicitar as
transformações ocorridas nas práticas da política contemporânea, quando as “comunidades”,
ao se confrontarem com o Estado, se constituem como agentes políticos, e como o Estado, ao
reconhecer essas “comunidades” como “vítimas”, assume a responsabilidade de atuar “em
favor” de seus interesses. Esses agentes sociais não estão ligados exclusivamente a um
território local, mas constituem-se a partir do sentido que Benedict Anderson (Anderson,
1991, apud Das, 1995) dá à expressão “comunidades imaginadas”.
De maneira análoga à análise de Das (1995), pode-se pensar no caso dos familiares de
vítimas de violência, que vem se constituindo no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. Ou
seja, trata-se da constituição de agentes sociais e políticos que passam a interpelar o Estado
em razão do sofrimento provocado, seja pela violência direta e aberta do Estado, seja pela
incapacidade deste Estado de promover a segurança pública. Sobretudo, no que diz respeito
aos territórios sócio-espacialmente segregados, que passam a sofrer com o exercício da força
protagonizado pelas facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas ou por milícias.
42
O sofrimento e a dor têm seu papel na criação de "comunidades morais"; ao exigirem
justiça e ao se relacionarem com o sistema burocrático e jurídico do Estado, tais comunidades
são deslocadas do mundo privado e "criadas" como comunidades políticas, passando a
questionar a legitimidade de um Estado incapaz de monopolizar a violência e garantir a
segurança de todos. Neste sentido, violência não é só destruição, ela influi na construção de
novos engajamentos políticos. Leite, por exemplo, ao analisar as experiências de mães de
vítimas de violência, assim as descreve:
A morte violenta, enquanto evento crítico que é, suscita entre aqueles que são
alcançados pelo acontecimento (os familiares e amigos das vítimas) uma experiência marcada
pela dor e pelo sofrimento. Em alguns casos tal sofrimento tende a ganhar uma expressão
maior, sendo vivido de maneira pública, chegando a constituir aquilo que em outro trabalho
chamei de práticas de luto reivindicativas de justiça (Araújo, 2008). Noutros casos, implica
uma vivência silenciosa, principalmente nos casos em que a vítima possuía alguma ligação
com o chamado mundo crime. Depois de submetidos a eventos críticos, os atores sociais
assumem novas formas, inclusive de expressão, inscrevendo nos seus próprios corpos aqueles
acontecimentos, quando as palavras falham e o próprio corpo torna-se o único meio de
45
expressão.
Há várias formas de lidar com a perda de um filho e com o luto que ela provoca.
Desde a indiferença, passando pela superação até a imersão numa dor profunda a ponto de ela
se tornar uma linguagem através da qual suas vidas vão sendo reconstruídas ou que pode levar
até à morte. E estas formas de lidar com o acontecimento e os sentimentos diferenciados que
produzem também geram variações na produção dos relatos. Em muitas das entrevistas
notava-se nos familiares certo “engasgo” para falar de suas histórias. Em todas as entrevistas
realizadas os entrevistados choraram. O choro geralmente acontecia no momento em que
rememoravam as boas qualidades dos filhos e a saudade batia.
Pessoas e grupos sociais afetados por eventos críticos, como é o caso dos familiares de
vítimas de violência, vivenciam tempos de silêncio e tempos de voz. Há momentos em que é
preciso se fazer calar, se recolher, se silenciar para esconjurar o sofrimento e evitar o mal
entendido e o constrangimento moral. Noutros momentos, a necessidade e o imperativo do
ato de denunciar uma injustiça, uma violência sofrida, uma humilhação social, de fazer
circular uma versão de um acontecimento exige que se fale, que se proteste, que se dê
publicidade aos fatos e que se dispute o significado político dos acontecimentos. Tempos de
silêncio e tempos de voz se alternam na experiência dos familiares de vítimas de violência.
Dois conceitos que integram um modelo analítico elaborado por Albert Hirschman,
transpostos e ajustados para o contexto desta pesquisa, são muito úteis para se pensar a atitude
dos “familiares de vítimas” diante dos eventos críticos marcados pela morte violenta dos
entes queridos: são os conceitos de saída e voz. Hirschman parte de uma perspectiva que
analisa como mecanismos de mercado e não mercado interagem ou se excluem. A questão
principal, a partir da qual Hirschman elabora seu modelo de análise, é descobrir como é
possível identificar as falhas e os desvios de um sistema antes que ele entre em colapso total e
seja ainda capaz de reagir.
Segundo este modelo, é possível pensar as falhas e os desvios que ocorrem em
qualquer sistema econômico, social ou político e sua possibilidade de reação a partir do
comportamento dos agentes envolvidos. Para o autor, existem duas maneiras através das quais
é possível tomar conhecimentos das falhas. “Os clientes de uma empresa param de comprar
um produto ou os membros de uma organização deixam a organização: é a opção de saída”. A
outra maneira é a expressão da insatisfação diretamente à direção ou a alguma autoridade,
“através de protestos gerais, dirigidos a quem estiver interessado em ouvi-los: é a opção de
voz”. Decorre daí que o autor se dedica a uma análise comparativa entre as opções saída e
voz, de como uma influencia a outra, de como uma exclui a outra, de como uma prevalece
46
sobre a outra, de como as duas entram em jogo simultaneamente.
Embora a análise de Hirschman focalize o âmbito da economia, o próprio autor
reconhece e destaca que os conceitos desenvolvidos são aplicáveis não apenas a agentes
econômicos, “mas também a uma grande variedade de organizações e sistemas não
econômicos”. Neste sentido, inspirado pelas noções de saída e voz , mas ajustando-as ao
“objeto empírico” desta pesquisa, é possível pensar as formas de engajamento ou não
engajamento dos familiares em situações e processos de denúncia de mortes violentas
relacionadas à violência policial e à violência criminal.
No caso desta pesquisa, a ideia geral que a noção de saída transmite talvez pudesse ser
pensada através de uma associação com a questão do silêncio. Saída aqui significa silêncio, e
silêncio significa saída. Enquanto voz significa publicização, protesto, visibilidade. São duas
maneiras diferentes de lidar com a dor, o sofrimento e a indignação. Enquanto a opção saída,
neste contexto, significa silenciamento e isolamento, vivendo o drama no âmbito privado, a
opção voz, como escreve Hirschman, “é ação política por excelência”, experimentada no
espaço público.
Duas situações de como duas mães lidam com o desaparecimento de um filho servem
como exemplos extremos de como a opção saída e a opção voz são acionadas: a primeira mãe
dá graças a Deus pelo fato de o corpo do filho, depois de assassinado, ter “desaparecido”,
porque ela não teria dinheiro para pagar os custos do enterro. Na segunda situação uma mãe
questiona a autoridade que um grupo de extermínio tem para desaparecer com sua filha,
mesmo que ela fosse bandida: “Eu tenho essa raiva, essa indignação. Porque você além de ser
injustiçada, porque era minha filha, problema se era bandida, eu quero ela presa, não quero
ela morta. Ninguém julga ninguém aleatoriamente, quem é esse grupo de extermínio pra
julgar esses jovens e condená-los?”.
Na primeira situação a mãe que perde o filho não vê o fato sob o olhar da gramática da
justiça, por isso não se engaja e escolhe a opção saída. Enquanto no segundo caso a mãe
compreende a perda do filho como fruto de uma injustiça grave e se engaja na luta por justiça.
Neste caso a opção voz entra em ação. No primeiro caso não há nenhuma manifestação de
indignação, mas sim de conformismo e resignação. Diante da vida dura e precária que leva,
marcada pela pobreza e pela miséria material, o desaparecimento do corpo do filho é visto
como um gasto a menos. A violência engendra tensionamento entre silêncio e voz.
A partir da distinção introduzida por Albert Hirschman entre saída e voz, Boltanski
argumenta que, diante do espetáculo do sofrimento de um infeliz, o espectador se vê diante de
um dilema que pode ser qualificado de moral: se engajar ou não ao sofrimento do outro. Com
47
efeito, face ao sofrimento do outro, o espectador pode escolher a opção fácil de deserção, mas
então correria o risco de ser acusado de indiferença. Saber do sofrimento do outro aponta em
direção à obrigação de assistência. Por que não atrair a atenção de pessoas não concernidas no
espetáculo de seres humanos que sofrem com uma cobrança para que se orientem no sentido
de uma ação que cesse o sofrimento de quem sofre. A opção que se coloca àquele que deseja
se engajar, segundo a distinção de Hirschman apropriada por Boltanski, é a de “dar voz”
(Boltanski, 2007: 50-51). Esse “dar voz” é uma forma de aproximação à dor do outro,
principalmente quando o outro encontra-se em situação subalterna e tem o direito de falar
cerceado, deste modo condenado ao cerceamento da palavra e ao silêncio. “Dar voz” é uma
forma de agir no sentido de dar visibilidade ao ato de sofrer, e consiste em uma palavra
pública que visa um número ilimitado de parceiros, apoiadores. Boltanski qualifica a palavra
pública como sendo aquela que se distingue de um modo de olhar orientado face à
exterioridade e animado pela intenção de ver cessar o sofrimento, e que corresponde a uma
maneira de olhar desinteressada e altruísta.
No caso dos familiares de vítimas de violência a tensão entre voz e silêncio
corresponde a uma disputa “atípica” nos termos do modelo de Boltanski: é disputa, mas como
não está voltada para o acordo, está bem mais perto de um conflito no “regime de violência”,
embora se mantenha na fronteira com o “regime de paz”. Exatamente porque a disputa se
mantém na fronteira entre um “regime de violência” e um “regime de paz” é que os familiares
ora operam com a opção silêncio, ora com a opção voz, além de poderem simplesmente se
ajustar a opção saída, ou seja, simplesmente sair do “caso”, não levá-lo adiante. O que
pretendo argumentar aqui é que no curso de suas ações os familiares podem lançar mão de
argumentos de diferentes ordens. O silêncio, por exemplo, não é apenas repertório de um
regime de violência (Boltanski), pode ser transformado em uma forma de estar no mundo
após um evento violento e um protesto. O silêncio aparece para os familiares como uma
competência, que consiste em denunciar a violência sofrida mostrando o silêncio. Nesse
sentido, ele não está associado apenas a destruição e apagamento, mas também a um
“trabalho do tempo” de reconstrução das maneiras de habitar o mundo após as tragédias
pessoais e/ou coletivas e de falar não apenas discursivamente, mas performativamente.
A experiência do desaparecimento tal como vivida pelos familiares os insere
inicialmente em um tempo do choque, marcado pela dor e pela destruição, e, com o “trabalho
do tempo,” suas práticas passam a inscrever-se no tempo da política. (Araújo, 2007: 59), ou
seja, o sofrimento passa por um processo de politização. É nesta passagem do tempo do
choque ao tempo da política que ocorre a politização da dor, o que envolve muitas vezes a
48
construção de redes de solidariedade para lutar em torno de uma causa, através da relação dos
familiares com outros atores políticos, como entidades e movimentos de direitos humanos e a
mídia, entre outros.
A noção de tempo é muito importante para os familiares de vítimas, principalmente
nos casos de desaparecimento, porque com o passar do tempo fica mais difícil reunir provas
para levar o caso adiante. O relato a seguir é exemplar nesse sentido:
Eu tenho uma dificuldade muito grande comigo mesma, porque eu sou aquela que
gosta de ver pra crer. Então viver com a possibilidade é terrível. Eu te digo, que hoje
eu me vejo obrigada a viver com a possibilidade. Então, eu num primeiro momento
eu queria saber porque que ia, eu achava que o tempo ia ser completamente
desfavorável a nós, como foi. [Relato de uma mãe de desaparecido]
A relação com o caso é uma relação de angústia que se prolonga no tempo. Cada caso
tem uma temporalidade: o tempo da dor, de absorver a ideia da morte do parente, de tentar
esquecer ou buscar explicações para as formas desumanas das mortes; o tempo da maturação
das ações, da mobilização de apoios, da denúncia; assim como também há o tempo do
cansaço, do abatimento e da falta de esperança que leva ao desespero; há o tempo de ocupar
as praças, as ruas, com fotografias dos filhos; o tempo de aparecer nos jornais; mas há
também o tempo das ameaças, que faz como que seja preciso se recolher, não se expor.
6
Para uma apresentação e análise mais detalhada e bastante esclarecedora do pensamento de Boltanski conferir
(Castro, 2009).
49
por aquelas ações desenvolvidas em regime de crítica.
O quadro analítico proposto pelos autores visa, dentro de uma perspectiva pragmatista
francesa, examinar a lógica situada na passagem do particular ao geral, isto é, a tensão entre o
juízo moral e o contexto prático no qual se dá o curso da ação, dentro de uma tradição de
pensamento da filosofia política e da noção clássica de prudência (Boltanski e Thévenot,
1991: 187). A proposta dos dois autores é de uma sociologia que permita considerar as
pretensões de justiça dos atores, suas formas de denúncia das injustiças das quais se acham
vítimas e a capacidade que possuem de se abstrairem de seus casos particulares e chagarem a
formas gerais.
O tema genérico da obra são as relações e os jogos de disputa que levam a produção
de acordos e desacordos e, para realizar este estudo, os autores constroem um quadro que
permite analisar com a ajuda de instrumentos teóricos as diferentes lógicas de ação através
das quais os atores se movimentam. Dentre as principais questões colocadas por Boltanski e
Thévenot estão: Quais são as operações críticas das quais os atores buscam lançar mão
quando desejam manifestar seu desacordo sem recorrer à violência? Quais são as operações
por meio das quais eles conseguem construir, manifestar e selar acordos mais ou menos
duráveis? Todo desenvolvimento das ciências sociais deve necessariamente se inscrever numa
alternativa de determinação coletiva ou escolha individual?
Breviglieri e Stavo-Debauge (1999) consideram que a obra “De la justification”, de
Luc Boltanski e Laurent Thévenot, inaugura, por assim dizer, “o gesto pragmático da
sociologia francesa”. Segundo estes comentaristas, a obra apresentou um modelo capaz de
considerar tanto a gênese como a pluralidade de ferramentas convencionais que servem de
base às atividades humanas. Este modelo pragmatista de Boltanski e Thévenot visa os
momentos de disputa, de conflitos e de controvérsias públicas em que as pessoas realizam
críticas ou justificações pretendendo uma validade geral. Exemplos de situações com tal
processo argumentativo são: denúncias jornalísticas, assembléias políticas, escândalos,
debates institucionais, conflitos em torno de regras jurídicas e normas de qualidade e
segurança, litígios profissionais.
Um ponto importante para Boltanski e Thévenot e interessante para esta pesquisa é a
afirmação de que a legitimidade pública dos argumentos utilizados nas disputas é função de
suas capacidades para se referir a formas de bem comum. Estas formas de bem comum
garantem a generalização dos argumentos e dos julgamentos. É justo aquilo que se refere ao
bem comum e, deste modo, é generalizável.
Os autores definem/identificam seis princípios de justiça legítimos. Cada um refere-se
50
a uma concepção de justiça em uma cidade (cité), na qual apoiaram suas justificações ou suas
críticas. A noção de cité é utilizada em um sentido político, fazendo referência a uma forma de
convivência política. Boltanski e Thévenot “propõem a ideia de cidade para pensar o tipo de
metafísica comum que os atores mobilizam na prática para fundamentar o vínculo social em
torno de uma mesma noção de justiça e bem comum” (Castro, 2009: 7-8). As cidades visam
modelar os gêneros de operações aos quais os atores se entregam no curso de uma ação.
As seis cites, com seus princípios de equivalência, são derivadas da tradição filosófica
política francesa, ou seja, para elaborar os princípios que organizam o “bem comum” e
construir suas cites, Boltanski e Thevénot usaram de repertório obras de autores como
Rousseau, Voltaire e Adam Smith. Não encontraram suas referências em objetos empíricos,
construiram seu modelo teórico a partir de obras clássicas, e é a partir delas que retiram os
registros léxicos e semânticos específicos do que se entende ser justo e bom na cidade (p.2-
3).7
Estes princípios de justiça são os elementos suscetíveis de fundar as “ordens de
grandeza”, de estabelecer uma hierarquia entre os seres presentes e fornecer padrões de
mediação durante as disputas e os conflitos sociais (p. 3). Os seis princípios de justiça são os
seguintes8.
Cité cívica: uma cidade cívica onde a grandeza supõe o esquecimento dos estados particulares
em nome da vontade geral e da igualdade.
Cité mercado: a grandeza está relacionada com a aquisição de riquezas constituídas de bens
raros e desejáveis.
Cité industrial: onde a grandeza se baseia na eficácia e competência profissional.
Cité inspirada: aquela onde a grandeza é adquirida através do acesso a um estado de graça;
Cité doméstica: onde a grandeza corresponde a um lugar na ordem hierárquica.
Cité de opinião: na qual a grandeza é baseada no reconhecimento e no crédito de opinião
acordado pelos autores.
Os registros de justificação de cada cité não dependem apenas dos princípios de
justiça, mas também dos mundos feitos de objetos e de dispositivos convencionais. Os objetos
podem assim ancorar o modelo de justificativa na realidade. Eles podem figurar como
elementos de prova e apoiar as críticas e justificativas. A preparação do julgamento envolve
7
É preciso neste ponto ponderar que o modelo teórico de Boltanski e Thevénot foi pensado a partir do
imaginário de república francês, que como se sabe, é muito diferente do imaginário republicano brasileiro. Neste
sentido, quais seriam, por exemplo, as obras da filosofia ou do pensamento social e político brasileiro que
ofereceriam um bom repertório para se inventariar registros de “justo” e “bom”?
8
Em desdobramentos futuros de sua obra, Boltanski, juntamente com Ève Chiapello, formularam um novo
modelo de cidade, que é a cité por projetos (cf.. Boltanski e Chiapello, 2009).
51
um trabalho de qualificação das coisas e dos seres. Coisas e seres que estão sempre em
posições intercambiáveis no processo de qualificação. Ora são grandes, ora são pequenos. Ora
fazem críticas, ora se defendem. Ora acusam, ora são acusados. Ora perseguem, ora são
perseguidos. Neste sentido, como esclarece Castro (2009), ao apresentar e analisar a teoria de
Boltanski:
52
momento em que os princípios de justiça entram em conflito. Neste contexto, em que a
denúncia é a expressão da crítica, certas gramáticas de engajamento e de julgamento público
são necessárias para a coordenação das ações dos atores. Na passagem de uma situação para
outra é possível compreender as competências mobilizadas para a ação. A crítica possui um
caráter eminentemente discursivo da justificação. Para não ficar só na crítica, é importante
considerar também os objetos e os dispositivos mobilizados na ação. Os objetos e os
dispositivos são os recursos para a crítica e para a constituição do acordo ou do caso (affaire).
As formulações teóricas da sociologia pragmatista de Boltanski e Thévenot (1991), ao
proporem uma sociologia da justificação, dos regimes de engajamento e das competências,
levam em conta a capacidade de os atores (individuais ou coletivos) produzirem críticas e
repertórios para agir, e revelam como a grandeza ou a pequenez de cada um é acionada para
justificar suas ações e interesses. Ao analisar como se constitui uma gramática da denúncia,
Boltanski (2000) constrói um modelo analítico para interpretar como os atores se ajustam às
situações sociais e performam o mundo através da crítica. Para isso, desenvolvem
competências diante de situações concretas – como, por exemplo, uma situação de
desaparecimento forçado –, que podem ser entendidas como a capacidade de discernimento
que permite apreender e avaliá-las moral e emocionalmente, além de organizar suas
orientações subjetivas segundo esta compreensão. Tal modelo analítico permite refletir sobre
as críticas, competências e ajustamentos elaborados por familiares de vítimas de
desaparecimento.
Deve-se levar em conta que a teoria de Boltanski sobre os modelos de justiça, os
regimes de engajamento e os processos de justificação foi elaborada a partir da tradição
republicana francesa em que existe um espaço público baseado em um “princípio superior
comum”, ou seja, no “bem comum”. O “bem comum” seria um componente do dispositivo de
justificação visando a “humanidade comum”. Em relação à realidade brasileira, a própria
idéia de “bem comum” não chegou a se institucionalizar e as experiências de colonização,
escravidão, ditaduras e outros processos políticos relacionados à formação da nação são
alguns elementos históricos cuja herança ainda hoje pesa na construção da cidadania e do
espaço púbico brasileiro.
Ao refletir sobre o caso brasileiro, o sociólogo francês Bruno Lautier formulou um
conceito que contribui analiticamente para pensar tal realidade: o conceito de cidadania de
geometria variável (Lautier, 1997). Enquanto em grande parte da Europa vigoraria uma
cidadania plena, baseada no postulado da universalidade, segundo a qual haveria uma
igualdade de direitos entre indivíduos pertencentes a um mesmo Estado nacional, no caso
53
brasileiro a institucionalização dos direitos não seguiu o mesmo postulado da universalidade,
constituindo-se aqui uma cidadania de geometria variável.
A observação anterior é importante porque dentro deste quadro da cidadania de
geometria variável as condições de formalidade e informalidade seriam um importante
aspecto definidor da forma pela qual o cidadão se inscreveria em um sistema de direitos-
deveres. No mais, o horizonte político daqueles que se encontram em situação de
subalternidade é mais estreito e reduzido, de modo que a legitimidade e circulação de suas
reivindicações e críticas são limitadas. É neste contexto de “cidadania de geometria variável”
que os familiares dos desaparecidos travam suas lutas e buscam recompor equivalências que
distribuem grandes e pequenos em um continuum de posições intercambiáveis (Boltanski;
Thévenot, 1991).
9
“Une politique de la justice s´appuie donc, de façon plus ou moins explicite, sur une théorie de la justice qui
tient compte elle-même d`un sens commun de la justice” (Boltanski, 2007: 22).
55
política da justiça apazigua as disputas ativando a convenção de equivalências
numa prova (èpreuve). Não é porque as pessoas no curso de um conflito são
levadas a fazer valer objetos de um mundo comum, que seu estado de grandeza
está revelado. É porque suas pretensões são afrontadas pela realidade que a
ordem revelada pela prova pode ser qualificada de justa. Nesta lógica da
justiça, que o pequeno seja feliz ou infeliz não é o que importa, pois qualquer
que seja seu estado de felicidade, ele tem o que merece. Na política da justiça
não é a consideração do infortúnio que importa, mas sim a adequação das
provas à convenção das equivalências.
Ao contrário de uma política da justiça, em que o sofrimento reporta-se ao
merecimento ou não, à sua justificação, numa política da piedade o merecimento do
sofrimento fica na retórica, não é colocado à prova. Para a política da piedade não importa se
a infelicidade e o sofrimento são justos; formular tal questão corresponde a sempre fornecer
uma resposta negativa. Por esta perspectiva, seria apenas em um mundo onde o sofrimento
tivesse sido banido que a justiça faria valer seus direitos (Boltanski, 2007: 18).
O desenvolvimento de uma política da piedade, como já referido anteriormente, divide
os homens não sob o prisma do mérito como na política da justiça, mas entre aqueles que
sofrem e aqueles que não sofrem, entre infelizes e felizes, ou seja, unicamente sob o aspecto
da felicidade. Estas duas classes devem permanecer suficientemente em contato, ainda que à
distância, para que a miséria dos infelizes possa ser observada, direta ou indiretamente, pela
classe dos felizes. Mas – diz Hannah Arendt recuperada por Boltanski – o espetáculo da
miséria não conduz necessariamente a uma política da piedade.
A miséria dos infelizes pode não inspirar piedade. Felizes e infelizes podem habitar a
mesma terra sem que os primeiros vejam os segundos (Arendt, 1967 apud Boltanski, 2007:
26). Engajar-se a uma ação visando o fim do sofrimento pode significar o fim da política da
piedade, na medida em que é o sofrimento que serve como mediação entre os que sofrem e os
que não sofrem. Se por um lado é possível que haja um fosso separando os que sofrem dos
que não sofrem, por outro lado, existe a possibilidade de que as pessoas felizes manifestem
atenção e benevolência diante da dor do outro – agora para usar a expressão de Susan Sontag
(Sontag, 2003).
56
É neste sentido que dois casos de figura se apresentam na análise de Hannah Arendt
para pensar como a atenção benevolente ao sofrimento do outro pode se manifestar no
“quadro das tradições ocidentais”, particularmente no cristianismo primitivo, como piedade e
compaixão. Arendt desenvolve a oposição entre as duas figuras. Assim como Boltanski
percorre as obras de filosofia política para construir as metafísicas de suas cités, Arendt
recorre à análise, neste caso particular, de duas obras romanescas (Billy Budd, de Melville, e
O Grande Inquisidor, de Dostoievski) para descrever a compaixão, colocando ênfase sobre os
traços que destacam uma análise da noção de ágape em oposição à justiça. A característica
principal da compaixão seria que esta se endereça ao singular, aos seres singulares, sem
buscar desenvolver a “capacidade de generalização” (Boltanski, 2007: 26). A compaixão
possui um caráter prático, no sentido de que ela pode se realizar em situações práticas, que
promovam o encontro e a presença entre os que sofrem e os que não sofrem. Boltanski chama
atenção para a fixação de Hannah Arendt na relação entre compaixão e presença. Em seu
modo de ver, Arendt tem razão em sua insistência porque ela tem duas consequências
importantes na distinção com relação à piedade: diferentemente da piedade, a compaixão não
é “loquaz” e não incide grande interesse nas emoções. Na medida em que não visa a
generalização, a compaixão, segundo Arendt, se satisfaz com uma “curiosa mudez”, em
oposição à eloquência da piedade.
Mais exatamente, a compaixão não é muda, mas sua linguagem “consiste em gestos
e expressões do corpo mais que em palavras” : “(...) a 'compaixão' só fala na medida
em que ela precisa responder diretamente aos sons e gestos expressivos pelos quais o
sofrimento torna-se audível e visível diante e no mundo (pp. 123-124). Resposta
direta à expressão do sofrimento, a compaixão não é “faladora” e é pelo mesmo
motivo que a emoção ocupa pouco espaço. Pode ser necessário postular a existência
de uma emoção da compaixão, mas na medida em que ela faça imediatamente se
mover aquele do qual ela se apodera, não lhe sobra nenhum lugar para se desdobrar
enquanto o que é/ ou enquanto tal. Ao contrário, a piedade que, para poder encarar a
distância, generaliza e, para generalizar, se torna “eloquente”, se “reconhece” e se
“descobre” enquanto emoção, enquanto sentimento (p.126). (Boltanski, 2007: 26-
10
27– Revisão da Tradução: Jussara Freire)
Boltanski não perde de vista a sugestão que a análise de Arendt faz de que a oposição
10
“Plus exactement, la compassion n´est pas muette, mais son langage 'consiste en gestes et expressions du corps
plutôt qu´en mots' : '(...) la compassion ne parle que dans la mesure où il lui faut répondre directement aux sons
et gestes expressifs par lesquels la souffrance se fait audible et visible au monde' (pp. 123-124). Réponse directe
à l`expression de la souffrance, la compassion n´est pas "bavarde" et c´est pour la même raison que l´émotion y
tient peu de place Peut-être faut-il postuler l´existence d´une émotion de compassion, mais dans la mesure où
elle fait immédiatement se mouvoir celui dont elle s´empare, il ne lui reste aucune place pour se déployer en tant
que telle. Au contraire la pitié, qui, pour faire face à la distance, généralise et, pour généraliser, se fait 'éloquente',
se 'reconnaît' et se 'découvre' 'en tant qu´émotion, que sentiment'” (p. 126). (Boltanski, 2007: 26-27 – os trechos
entre aspas e as páginas indicadas referem-se a citações do texto de Hannah Arendt feitas por Boltanski).
57
entre compaixão (pressupondo presença e sendo local) e piedade (pressupondo ausência e
distância) é analiticamente operativa sob a condição de não se perder de vista a posição a
partir da qual ela é obtida. É apenas em um mundo onde o operador principal da generalidade
é político que tal distinção faz sentido, porque a compaixão, em sua compreensão teológica,
se apoia sobre um princípio de generalidade que é diferente: esse princípio é a união dos
batizados, nesse sentido ultrapassando os limites de tempo e espaço. O interesse de Boltanski,
portanto, ao recuperar a distinção de Hannah Arendt, é apontar para a introdução do
argumento da piedade na política. Seguindo Louis Dumont, em sua definição de política,
Boltanski a define como sendo a operação de generalização que permite um movimento do
local ao global e vice-versa, de modo que os indivíduos díspares possam ser reunidos em
torno de uma causa comum, a fim de envolvê-los em uma ação.
Susan Sontag, em seu ensaio Diante da dor dos outros, se interroga sobre questões
similares às colocadas por Boltanski. Sua preocupação está centrada principalmente na
recepção que podem ter as imagens da dor e do sofrimento, sobretudo a fotografia e as obras
de arte. É verdade que as “informações fotográficas” são capazes de suscitar nas pessoas “a
atordoada consciência de que coisas terríveis acontecem” (Sontag, 2003: 16). Mas o fato de se
tomar consciência de que fatos terríveis acontecem não diz muita coisa sobre as possibilidades
dos usos políticos da dor à distância de outras pessoas. As imagens da dor e do sofrimento
podem ser usadas tanto para um “apelo em favor da paz”, como para um “clamor de
vingança”. Sontag adverte que, além de nos sentirmos obrigados a olhar as imagens dos
crimes e crueldades, deveríamos igualmente nos sentir estimulados a refletir sobre a
capacidade de assimilar efetivamente o que elas mostram:
Podemos nos sentir obrigados a olhar fotos que recordam graves crimes e
crueldades. Deveríamos nos sentir obrigados a refletir sobre o que significa olhar
tais fotos, sobre a capacidade de assimilar efetivamente aquilo que elas mostram.
Nem todas as reações a tais fotos estão sob a supervisão da razão e da consciência. A
maioria das imagens de corpos torturados e mutilados, suscita, na verdade, um
interesse lascivo. (As desgraças da guerra constituem, de forma notável, uma
exceção: as imagens de Goya não podem ser vistas com um ânimo lascivo. Elas não
se alicerçam na beleza do corpo; os corpos estão cobertos por roupas pesadas e
grossas.) Todas as imagens que exibem a violação de um corpo atraente são, em
certa medida, pornográficas. Mas imagens do repugnante também podem seduzir.
Todos sabem que não é a mera curiosidade que faz o trânsito de uma estrada ficar
mais lento na passagem pelo local onde houve um acidente horrível. Chamar tal
desejo de “mórbido” sugere uma aberração rara, mas a atração por essas imagens
não é rara e constitui uma fonte permanente de tormento interior. (Sontag, 2003: 80)
Em seu belo ensaio, Sontag retoma vários autores como o Sócrates de Platão, Edmund
Burke, William Hazlitt e Georges Bataille, para insistir numa dimensão de seu argumento que
58
eles ajudam a reforçar: o de que “o amor à crueldade é tão natural aos seres humanos como a
solidariedade”. Sontag conta uma história de Bataille, um dos principais teóricos do erótico,
segundo a qual consta que ele tinha sobre sua escrivaninha uma foto, tirada em 1910, na
China, que podia olhar todos os dias, em que um prisioneiro padecia a “morte dos cem
cortes”. A foto aparece no último livro de Bataille publicado em vida, em 1961, As lágrimas
de Eros. Sontag cita Bataille, que afirma sobre a foto: “Essa fotografia teve um papel decisivo
na minha vida. Nunca deixei de me sentir obcecado por essa imagem de dor, a um só tempo
extasiante e intolerável”.
Segundo Bataille, contemplar essa imagem constitui tanto uma mortificação dos
sentimentos como uma libertação do conhecimento erótico assinalado como tabu –
uma reação complexa que muitos devem julgar difícil de acreditar. Para a maioria, a
imagem é simplesmente insuportável: já sem braços, a vítima sacrificial de diversas
facas em movimento contínuo, no estágio terminal do esfolamento – uma foto, não
uma pintura; um Mársias real, e não mítico -, ainda está viva, na imagem, com uma
expressão tão extática em seu rosto voltado para cima quanto a de qualquer são
Sebastião do Renascimento italiano. Como objetos de contemplação, imagens de
atrocidades podem atender a diversas necessidades. Podem nos enrijecer contra a
fraqueza. Tornar-nos mais insensíveis. Levar-nos a reconhecer a existência do
incorrigível. (Sontag, 2003: 83)
Sontag destaca ainda que Bataille não chega a dizer que tem prazer com a visão desse
martírio, mas diz que pode “imaginar o sofrimento extremo como algo mais do que o mero
sofrimento, como uma espécie de transfiguração”. Para finalizar a apresentação do argumento
de Sontag: a compaixão é uma emoção instável, deve ser traduzida em ação, do contrário
definha. O sentimentalismo pode ser perfeitamente compatível com a brutalidade ou coisas
piores. E não é que as pessoas se insensibilizam com aquilo que lhes é mostrado. Anestesia
moral ou emocional, assim como apatia, são estados repletos de sentimentos como raiva e
frustração. “É a passividade que embota o sentimento” (Sontag, 2003: 83-85). E, como afirma
Boltanski, as exigências morais frente ao sofrimento convergem a um só imperativo: a ação.
O caso (affaire) tornou-se a fórmula política para a denúncia pública de uma injustiça.
Apoiando-se numa crítica social que aponta uma injustiça no que ela tem de geral, a denúncia
pública supõe a designação de um culpado ou de um responsável contra quem o denunciante
busque mobilizar o máximo de apoio: convencer outras pessoas, mostrar que não está só na
crítica e na denúncia, provar que o que diz é verdade. E a prova moral do denunciante passa
por mostrar que a denúncia não visa um interesse particularista, mas um bem comum. O
denunciante deve mostrar que a causa que defende encerra uma universalidade. O risco de
fracasso da denúncia reside na possibilidade de o denunciante não ser seguido por outras
pessoas em sua acusação (Boltanski, 2000: 237-238).
61
1.8. Falar a partir de uma condição subalterna
62
histórias de dor dessas mães em razão de ter vivido experiência similar com o assassinato da
filha. A diferença é que a maior parte das Mães da Cinelândia era pobre, composta por
moradoras de favelas ou outros territórios da pobreza, e cujas denúncias apontavam o
envolvimento de policiais nos crimes. Essa tripla condição, de falar a partir de um lugar de
despossuído, de um território criminalizado e denunciar a participação de agentes estatais,
principalmente policiais, tornava-se uma barreira à ação dessas mães. Implicava falar de um
lugar subalterno, marcado pelo estigma e pela criminalização e, portanto, tratava-se de uma
fala que tinha tudo para ser desacreditada no espaço público.
Pela discussão apresentada até aqui, através de um diálogo principalmente com o
pensamento de Veena Das e Luc Boltanski, é possível identificar uma questão que aproxima
estes dois autores e é importante para se pensar o desafio da fala em contextos de
subalternidade. A questão aparece em termos diferentes para cada um deles, mas próximos no
que diz respeito à preocupação com a possibilidade de ação que se apresenta aos sujeitos ou
atores (conforme a preferência terminológica) diante de situações específicas. Enquanto
Veena Das se pergunta sobre o processo de silenciamento do sofrer e sobre as formas
possíveis de o sofrimento humano ganhar visibilidade, Luc Boltanski se interroga sobre as
condições de uma denúncia pública para que seja aceita como legítima. Das reflete sobre a
invisibilidade de certos tipos de sofrimento e a agência dos sujeitos em busca de visibilidade,
enquanto Boltanski defende a necessidade de se levar a sério a capacidade dos atores
produzirem críticas e se engajarem na denúncia das injustiças sociais. Ambos autores tratam,
de certo modo, as possibilidades do acesso ao espaço público quando se fala de uma condição
de inferioridade ou subalternidade.
Qual a possibilidade de acessar o espaço público a partir de uma condição subalterna?
Um dos obstáculos que se colocam para aqueles que se encontram em uma condição
subalterna é a ausência de um mundo comum sobre o qual apoiar-se para fazer uma crítica e
dar seguimento às suas denúncias.
A experiência de converter-se em sujeito, argumenta Veena Das, está vinculada de
maneiras importantes a experiências de subjugação. Neste sentido, qualquer esforço para
apreender e compreender as relações entre violência, sofrimento e política - a partir da
experiência dos familiares de vítimas - e os obstáculos para se reconhecer suas dores exige
uma compreensão do processo histórico de subordinação da favela na cidade e a influência
das interpretações que, a partir da década de 90, dominaram o debate público no Rio de
63
11
Janeiro, vinculando de formas diversas a violência às favelas .
Para exemplificar melhor o argumento, tomemos um caso concreto de denúncia,
publicizado através da nota pública de um movimento social que luta contra a violência
policial no Rio de Janeiro. Esta nota é assinada pela Rede de Comunidades e Movimentos
Contra a Violência e apresenta uma denúncia pública de ameaças sofridas por uma militante
de direitos humanos. Um trecho da nota traz o seguinte texto:
11
Sobre a associação entre violência e favelas, conferir, entre outros: Machado da Silva (2008, 2004b, 2002),
Valladares (2005), Leite (2001), Zaluar (1985), Araújo (2007), Rocha (2009), Farias (2007).
64
militantes/entidades/movimentos de defesa dos direitos humanos são os acusadores. A
grandeza ou a pequenez de cada um depende, em uma política da justiça, da qualificação das
pessoas, e os moradores de favela têm de enfrentar o preconceito e o estigma que
historicamente foram constituindo a favela e seus moradores como um “problema”,
impedindo-os de participar de um mundo cívico comum. O reverso dessa moeda é a
12
“permissão para matar” concedida aos aparatos repressivos, principalmente a polícia, como
se esta fosse a única forma possível de combater o problema da violência. Porém, a
construção da favela como um problema vem de longa data.
Desde seu surgimento, no final do século XIX, as favelas são vistas pela percepção
social dominante como local “infestado de vagabundos e criminosos que são o sobressalto das
famílias” e “cidadelas de miséria”. Valladares (2000, 2005) argumenta que desde seu
surgimento as favelas foram lidas por médicos, jornalistas, engenheiros e políticos como
significado de “doença, moléstia contagiosa, uma patologia social”, até que, em 1930, a favela
é reconhecida oficialmente e “passa gradativamente a ser vista como um problema a ser
administrado”. A perspectiva médico-higienista que orientou a política do governo Pereira
Passos apontava a favela como uma ameaça à saúde da cidade, em razão das habitações
precárias e insalubres. A favela, enquanto local de moradia dos pobres, foi vista como lugar de
pobreza e miséria, marcado pela promiscuidade e pela vadiagem dos moradores. A
representação negativa das favelas estendia-se aos seus moradores.
Valladares reconstrói em seu livro “A invenção das favelas” as formas pelas quais a
favela foi sendo construída como um “problema”. Ao analisar escritos e documentos que
retratavam a favela como um “problema”, ela cita um trecho dos escritos de Augusto Mattos
Pimenta, uma das figuras responsáveis pela “primeira grande campanha contra as favelas” em
que as características negativas da favela são associadas aos moradores:
12
“Nas atuais condições de desigualdade econômica, precariedade institucional e desagregação do tecido social
no Brasil, o sonho de uma cidade a salvo transfigura-se em uma mentalidade que é leniente com a permissão
'permissão para matar' exercida pelos organismos de repressão ao crime. Essa pena de morte, consagrada na
prática do combate à delinquência, conta com a tolerância de grandes parcelas da população e não é repelida de
forma enérgica pela justiça, pelos meios de comunicação de massa ou por uma parte dos formadores de opinião”
(Fridman, 2008: 77).
65
O urbanista francês Alfred Agache, contratado para elaborar o Plano Diretor do Rio de
Janeiro, fundamentado em uma concepção higienista e de embelezamento da cidade, mesmo
antes de ver as favelas declarava que a favela era uma espécie de cidade satélite, de formação
espontânea, que escolheu o alto dos morros, e cuja população era avessa a qualquer regra de
higiene (Valladares, 2005:47).
Em 1937, O Código de Obras classificava a favela como uma “aberração” e defendia a
necessidade de eliminá-la do mapa da cidade. Era o aparecimento da política de remoções de
favelas, que até os dias atuais não sumiu totalmente do repertório das políticas direcionadas às
favelas.
O objetivo das remoções de favelas não era apenas eliminar do mapa um espaço físico
marcado pela falta de higiene e pelas habitações insalubres. A preocupação era também de
controle social dos pobres, de “ajustamento moral”, para que a condição de pobreza e
precariedade habitacional não tornasse o trabalhador revoltado ou preguiçoso. O pobre era
caracterizado como aquele que não se aproximava dos valores burgueses partilhados pelo
poder público e pela sociedade carioca em geral, e que se recusava ao assalariamento
(Valladares, 2005).
Como alternativa às favelas e solução para o disciplinamento das classes
trabalhadoras, na década de 1940 apareceram os parques proletários, uma alternativa de
intervenção pública que visava afastar para longe do centro da cidade a pobreza urbana, de
modo a torná-la ao mesmo tempo administrada pelo poder público e invisível aos olhos da
sociedade. Os moradores de favelas não eram considerados cidadãos, mas vistos como
marginais à sociedade, fora do mundo do trabalho e da política. Como afirma Burgos (1998),
os parques proletários constituíram uma “pedagogia civilizatória” que buscava transformar os
hábitos pessoais dos favelados.
Apesar de todas as investidas contra as favelas, elas resistiram e venceram. Esta é a
conclusão geral apresentada em uma coletânea organizada por Alba Zaluar e Marcos Alvito
em 1998 e intitulada Um século de favela. Machado da Silva (2002: 223), por sua vez, refere-
se a esta coletânea dizendo que “No conjunto, trata-se de uma tentativa de rejeitar as
66
concepções que definem as favelas e seus moradores pelas carências materiais, simbólicas,
políticas, etc., realçando sua criatividade, sua capacidade de ação e suas conquistas políticas e
simbólicas”. Machado da Silva complementa seu raciocínio dizendo que o argumento de que
“a favela venceu” é uma “posição séria e defensável”, mas que não se sentiria “confortável
adotando-a em bloco”, e articula suas ideias a partir de um “diálogo implícito” com essa tese
geral, mas buscando qualificá-la.
Toda a população moradora de favelas passou a ser vista como composta por
67
bandidos ou quase bandidos, em razão da contiguidade territorial inescapável com a
minoria que integra os bandos armados. Emparedada, vive uma vida sob cerco. De
um lado, pela violência criminal e policial que desestabiliza a sociabilidade em seus
territórios de moradia (e de trabalho, para muitos) e dificulta o prosseguimento
regular das interações nas diferentes localidades. Afetada a confiança interpessoal
que se fundamenta na estabilidade de suas rotinas, torna-se problemático articular
coletivamente uma compreensão orgânica e proativa das condições de vida
compartilhadas. A agregação em movimentos de base local escasseia, limitando a
capacidade de influência nas arenas públicas. De outro lado, o medo e a
desconfiança generalizados das camadas mais abastadas da cidade obrigam os
moradores de favelas a um esforço prévio de “limpeza simbólica” - isto é, a
necessidade de demonstrar ser “pessoa (ou grupo) de bem”, a fim de ganhar a
confiança do Outro -, poucas vezes bem-sucedido, antes mesmo que possam
apresentar no espaço público suas demandas como interlocutores legítimos. O
confinamento geográfico cerceia-lhes também a palavra (Machado da Silva,
2008b:14-15).
Como tem demonstrado toda uma linha de pesquisa e estudo, a história das favelas
68
cariocas está fortemente associada à sua identificação enquanto “problema”, mudando a
ênfase na dimensão do problema conforme o período histórico e o contexto político: problema
“sanitário”, “habitacional”, de “ordem pública”, de “segurança”, enfim, problema “social”
(Machado da Silva, 2002; Valladares, 2005; Rocha, 2009). Diante do exposto até aqui, meu
argumento é que, no imaginário da cidade, a favela foi historicamente sendo fixada como um
lugar-trauma e seus moradores como o outro da cidade, o avesso da figura do cidadão. A
atualização mais recente dessa marca-trauma, como argumentado acima, está relacionada às
mortes violentas e experiências traumáticas decorrentes da violência criminal e policial. A
concentração da maior parte das mortes violentas nas favelas ou em lugares próximas a
favelas (Rivero e Rodrigues, 2009) as transformaram na representação social dominante em
um espaço da morte (Taussig, 1993). A representação da favela como um espaço da morte
reforça o imaginário da favela como lugar-trauma e, logo, reforça o preconceito e o estigma
que impedem a tomada de voz de seus moradores.
Para concluir este capítulo, desejo apenas dizer que, diante do histórico que descrevi
da constituição da favela como um lugar-trauma e do favelado como uma categoria social
subalterna, a “favela” introduz uma barreira à generalização da denúncia e à participação dos
moradores em um “mundo comum” em condições de igualdade. Favela converte-se em um
dispositivo do repertório de poder que impede a “transformação da força em grandeza”,
deixando de haver um “equivalente” que distribua grandes e pequenos em um continuum de
13
posições intercambiáveis .
13
Embora eu tenha me referito a questão da favela, é importante chamar atenção para a necessidade de
realização de estudos sobre outros “pedaços da cidade”. Nesse sentido, gostaria desde já de indicar que não estou
querendo indicar uma exclusividade da relação entre desaparecimento e favela. Acho mais últi pensar o
desaparecimento forçado como dispositivo de governo-gestão de certos territórios, sobretudo os locais de
moradia populares.
69
2. O DESAPARECIMENTO FORÇADO DE PESSOAS COMO PRÁTICA DO
REPERTÓRIO DA LINGUAGEM DA VIOLÊNCIA URBANA
A perspectiva desenvolvida nesta tese orienta-se sobretudo por uma interrogação sobre
as relações entre desaparecimento forçado14 e violência urbana. Meu interesse central é
investigar em que medida o desaparecimento forçado de pessoas corresponde a uma prática
do repertório da linguagem da violência urbana15. E, mais especificamente, em que medida o
14
Utilizo a noção de desaparecimento forçado tal como esta aparece nas normatizações internacionais
apresentadas adiante.
15
Nesse ponto, acompanho a definição de Machado da Silva sobre violência urbana (2008c: 36-37):
“Considerada em seus conteúdos de sentido mais essenciais, a representação da 'violência urbana' indica um
complexo de práticas legal e administrativamente definidas como crime, selecionadas pelo aspecto da força
física presente em todas elas, que ameaça duas condições básicas do sentimento de segurança existencial que
costumava acompanhar a vida cotidiana rotineira – integridade física e garantia patrimonial. 'Violência urbana' é,
portanto, uma representação que interroga basicamente o crime comum, mas o foco de atenção não é o estatuto
legal das práticas consideradas, e sim a força nelas incrustada, que é interpretada como responsável pelo
rompimento da 'normalidade' das rotinas cotidianas, ou seja, da certeza sobre o fluxo regular das rotinas em
todos os aspectos: cognitivo, instrumental e moral. Esta é a razão pela qual 'violência urbana' não é simples
sinônimo de crime comum nem de violência em geral. Ademais, é de se considerar que este núcleo, mais ou
menos consensual, não impede a polissemia da noção, e com isso sua extensividade. De fato, a violência urbana
configura um campo semântico particular – e, na atualidade, decisivo – que, por um lado, não tem fronteiras
definidas; dependendo do contexto, pode incorporar todo tipo de atitudes e condutas que simplesmente
'incomodam', afetando apenas superficialmente a continuidade das rotinas diárias”. Machado da Silva chama a
atenção ainda para o que considera uma novidade na representação da “violência urbana”: ela reconhece a
presença de uma ordem social. A categoria, construída coletivamente, designa “um complexo de práticas do qual
a força é um princípio de coordenação, responsável por sua articulação e relativa permanência ao longo tempo.
Além de atitudes e condutas, “identifica um ator, ou seja, reconhece a presença de uma ordem social”. O ator
típico tem sido identificado com os traficantes de drogas, eles seriam uma espécie de “portadores” da violência
desaparecimento corresponde a práticas de extermínio e a situações em que o desaparecido
provavelmente foi morto. Foi a partir desse enquadramento que busquei conduzir o trabalho
de campo e registrar histórias, situações, entrevistas, eventos, protestos, manifestações,
julgamentos. Os principais protagonistas são os familiares dos desaparecidos, por um motivo
até certo ponto óbvio, são eles os mais interessados em falar sobre o assunto, em dar
visibilidade a seus casos, em denunciar, em reivindicar e lutar por justiça.
O desaparecimento de pessoas compreende uma variedade de tipos, situações e
circunstâncias, mas é possível afirmar que parte dos casos é composta por desaparecimentos
forçados, muitos inclusive envolvendo as forças policiais. Há desaparecimentos forçados que
ocorrem durante operações policiais oficiais e outros em situações extraoficiais. Os dados
coletados para esta pesquisa indicam (como se verá nas histórias relatadas na Parte III desta
tese) a participação de policiais, milicianos e traficantes em casos de desaparecimento. Pode-
se inclusive sugerir que há uma espécie de divisão do trabalho, em alguns casos, entre
policiais, milicianos e traficantes de drogas, no ato de desaparecer com corpos16. Pode-se
também dizer que há uma espacialização dos desaparecimentos forçados, ou seja, eles
ocorrem, majoritariamente, nos territórios da pobreza (favelas e periferias), entre outros, em
momentos de lazer – especialmente durante saídas de bailes funk, ou de outros tipos de festa,
como festa junina – sendo os jovens do sexo masculino as principais vítimas, ou ainda durante
situações de confronto armado.
Embora compreendam que há uma diversidade de situações de desaparecimento as
autoridades policiais tendem a generalizar os casos afirmando que geralmente são ocasiões de
briga familiar ou que o desaparecido era doente mental e por isso desapareceu. É verdade que
essas circunstâncias correspondem a uma parte considerável de casos, mas não à sua
totalidade. Por outro lado, são muito comuns reclamações de familiares de pessoas
desaparecidas em relação ao atendimento feito pelos órgãos policiais. Não sendo o
desaparecimento em si um crime, é comum os familiares se queixarem de que ouvem muitas
vezes das autoridades policiais, como justificativa ou desculpa para não investigarem os
casos, expressões como “não tem corpo não tem crime”. E não havendo crime, não há
urbana “porque sua atitude, mais ou menos estável e duradoura do que as outras modalidades de crime, exerceria
sobre ela uma ação centrípeta”. Para maiores detalhamentos do ponto de vista desse autor, pode-se consultar
entre outros, Machado da Silva (1993, 2004, 2004b, 2008b, 2008c).
16
Um exemplo disso que estou chamado de espécie de divisão do trabalho foi o caso, em junho de 2008, de três
jovens moradores do Morro da Providência detidos por soldados do Exército e entregues a traficantes de drogas
de uma favela rival, que se encarregaram de matar e desaparecer com os corpos. Posteriormente os cadáveres dos
três jovens foram encontrados no lixão de Gramacho, em Duque de Caxias. Segundo informações do Comando
Militar do Leste, os jovens teriam sido detidos porque teriam desacatados os soldados. Onze militares do
Exército foram presos na ocasião.
71
motivos para a realização de investigações.
Neste capítulo apresento um quadro panorâmico com o objetivo de contextualizar as
figurações das categorias desaparecido e desaparecimento, mapeando a pluralidade de
construções do fenômeno enquanto um problema social e sociológico. As categorias
desaparecido e desaparecimento são categorias em disputa, e seus significados estão
diretamente associados à pluralidade de vozes que falam ou deixam de falar sobre o assunto,
envolvendo familiares, autoridades, pesquisadores, movimentos sociais, mídia, entre outros
tipos de organização. Mais recentemente, o assunto tem despertado o interesse crescente de
acadêmicos que vêm produzindo diferentes olhares e perspectivas.
Eu diria que a trajetória do debate sobre o tema, no Brasil, poderia ser enquadrada em
dois contextos históricos: o primeiro refere-se ao desaparecimento político e o segundo diz
respeito à forma contemporânea marcada por uma pluralidade de percepções sobre o assunto.
Enquanto o desaparecimento político é compreendido a partir da noção de desaparecimento
forçado e reporta-se ao período da ditadura civil-militar, o segundo engloba modalidades
diversas e remete-se ao período pós-ditadura. Minha proposta, portanto, é acompanhar
algumas trajetórias das categorias desaparecido e desaparecimento, a partir de uma
perspectiva histórica e sócio-antropológica, partindo do desaparecimento político às
figurações contemporâneas dessas duas categorias. Para alcançar tal propósito, busco, neste
capítulo, dialogar com dois tipos de literatura, uma que trata do desaparecimento político e
outra que trata dos desaparecimentos contemporâneos, bem como analiso leis, tratados,
convenções, estatísticas, relatórios e reportagens jornalísticas.
Uma das imagens mais marcantes que ficaram das ditaduras latinoamericanas foi a figura do
desaparecido. Durante os regimes militares latino-americanos o desaparecimento forçado
tornou-se instrumento de repressão e dominação política da ditadura (Padrós, 2007). Quando
os militares latino-americanos começaram a utilizar a prática de desaparecimento forçado de
pessoas como um método repressivo, acreditavam ter encontrado a chave para um crime
perfeito: dentro da sua lógica inumana, não havendo vítimas, não haveria perseguidos e,
portanto, também não haveria crime (Molina Theissen, 1998).
O desaparecimento forçado se inicia com a captura violenta e arbitrária da pessoa, que
em seguida é levada para lugares desconhecidos, onde, na maioria dos casos, é torturada e
72
assassinada, sem que se deixem vestígios ou rastros do corpo, nem dos lugares onde esteve
detida, nem de quem perpetrou o crime. Em muitos casos os corpos são mutilados para
dificultar sua identificação ou as características da morte. As pessoas podem ser levadas a
prisões clandestinas onde podem ser objeto de agressões físicas. E, ainda com o objetivo de
se desfazerem do cadáver, os responsáveis podem enterrar os corpos em cemitérios
clandestinos ou jogá-los em rios. De acordo com a primeira manifestação da ONU, cunhada
nesse momento histórico, em 1978, desaparecimento forçado
Em outro artigo deste mesmo livro, desta vez de autoria de Barbosa Lima Sobrinho, lê-
se:
73
O desaparecido não deixa esposa, nem filhos, nem amigos. Há que apagar tudo que
possa recordar sua memória ou sua vida, pois que, na verdade, responde pelo maior
dos crimes possíveis, o crime de haver nascido, para o qual não existe perdão, nem
piedade, num regime em que todas as práticas tenham o direito de cobrir-se com a
bandeira sagrada da Segurança Nacional. Foi em nome dela que veio a surgir, na
crônica dos povos que se supunham civilizados, o rosto sem feições e a figura sem
nome dos desaparecidos, a quem se nega até mesmo o direito a uma lápide funerária
ou, ainda menos do que isso, o direito a um atestado de óbito. (Sobrinho, 1979: 29)
Uma abordagem antropológica sobre os desaparecidos políticos foi dada por Ludmila
da Silva Catela, que realizou uma pesquisa sobre a reconstrução do mundo dos familiares dos
desaparecidos argentinos (Catela, 2001). O trabalho de Catela toma como uma de suas fontes
de análise os relatos dos familiares para refletir sobre a forma como estes familiares reagiram
diante da situação limite do desaparecimento.
Uma nova categoria classificatória surgia então: o desaparecido. Em torno desta figura
emergiu todo um novo sistema simbólico:
Como sustenta Catela, na medida em que não há corpo, não há sepultura e não há um
momento específico de realização do luto, o desaparecimento pode ser pensando como uma
morte inconclusa (Catela, 2001: 141-142).
O terror produzido pelos regimes militares deixou marcas em praticamente todos os
países da América Latina. Ariel Dorfman, citado por Taussig (1993: 26), conta que existe no
campo chileno uma história sobre o que acontece quando uma criança é raptada por uma
74
bruxa. A fim de quebrar a vontade da criança, as bruxas quebram os ossos e costuram as
partes do corpo de maneira anormal. “A cabeça é virada para trás, de um tal modo que a
criança tem de andar de ré. As orelhas, os olhos e a boca são costurados. Essa criatura recebe
o nome de Imbunche, e Dorfman sente que a junta militar sob Pinochet fez cada chileno e o
próprio Chile em um Imbunche.” Ainda que os ossos de cada chileno não tenham sido
quebrados, cada chileno se sente como um Imbunche.
17
Para uma discussão dos aspectos normativos do desaparecimento forçado como crime, ver Jardim (1999) e
Perruso (2010).
75
2.3.1. O Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados da ONU e a Declaração
sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado
76
concernentes ao desaparecimento forçado ou involuntário de pessoas” (parágrafo operativo
1º). Para isso, era autorizado a “buscar e receber informações de governos, organizações
intergovernamentais, organizações humanitárias e outras fontes confiáveis” (parágrafo
operativo 3º). Para definir seus métodos de trabalho, o Grupo era convidado a “ter em mente a
necessidade de ser capaz de reagir de maneira efetiva diante das informações” que lhe
chegassem e a realizar seu trabalho “com discrição” (parágrafo operativo 6º).
Segundo Alves (1997), a redação um tanto vaga da Resolução 33/173 foi o resultado
da tentativa de conciliação de posições entre as delegações que desejavam atribuir ao
mecanismo meios concretos de ação em defesa de pessoas desaparecidas e os representantes
de países que se consideravam, real ou potencialmente, mais vulneráveis. Estes, sobretudo do
Leste europeu e da América Latina, desejavam que o Grupo de Trabalho apenas realizasse
estudos.
Segundo o autor, a imprecisão da linguagem da resolução revelou-se, posteriormente,
positiva para o Grupo, pois propiciou ampla margem de autonomia para a definição dos
métodos de trabalho. O Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimento Forçado ou Involuntário
se reúne regularmente três vezes por ano, procura esclarecer casos antigos e buscar proteção
para as vítimas em casos de desaparecimentos recentes. Em relação a este tipo de ocorrência,
não há necessidade de reunir-se para deliberar caso a caso sobre a maneira de agir. Em
atuação denominada procedimento urgente, tão logo o Presidente do Grupo obtém informação
sobre um novo caso de desaparecimento, por delegação dos demais membros, entra em
contato imediatamente (por telex, fax ou qualquer outro veículo de comunicação) com o
respectivo governo, solicitando ações e esclarecimentos em defesa da(s) vítima(s).
O esclarecimento de casos antigos também é buscado através de contatos com os
governos e com os familiares ou representantes das vítimas, de maneiras diversas, incluindo
visitas in loco, quando para isto são autorizados. As missões in loco podem decorrer de
iniciativa do Grupo, com anuência do respectivo governo, de resoluções da Comissão dos
Direitos Humanos, ou a convite do próprio país, cujo governo deseja demonstrar sua boa-fé.
Em 1995, um representante do Grupo visitou o Sri Lanka. No mesmo ano, o Grupo de
Trabalho foi convidado para visitar a Colômbia, aceitando o convite para 1996. Pedidos de
autorização foram endereçados pelo Grupo a outros países, em muitos não obtendo resposta.
Alves (1997) considera apolítica a atuação do Grupo de Trabalho, no sentido de não
manifestar juízo de valor sobre os governos contatados, ainda que a mudança da ordem
política tenha sido profunda. Também não dá por encerrados casos registrados sob governos e
regimes anteriores. Os casos são dados como finalizados apenas quando os familiares ou
77
representantes das vítimas consideram que o objetivo chegou ao fim. Isto se dá com o
reaparecimento da pessoa, pela identificação do cadáver, ou por outro tipo de satisfação aceito
pelos interessados, como por exemplo, certidão de óbito ou indenização financeira fornecida
pelo Estado.
Segundo a interpretação do autor que estou tratando, a suposta atuação apolítica do
Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimento Forçado ou Involuntário da ONU muitas vezes
irrita oposições e governos legítimos: as oposições, porque gostariam de ver os ocupantes do
poder acusados internacionalmente; os governos sucessores de regimes de força, porque têm
que arcar com a responsabilidade pelo esclarecimento de casos de desaparecimentos
praticados por seus antigos adversários.
O Grupo de Trabalho foi inicialmente estabelecido para o exercício de um ano, mas
acabou tornando-se permanente. Segundo Alves (1997), o Grupo tinha tratado, até 1993, de
cerca de trinta e cinco mil casos distintos em cinquenta e oito países. A partir dos casos
examinados o Grupo tem a tarefa de identificar elementos e situações que costumam levar à
prática dos desaparecimentos nos diversos países. Com base nesses dados formula
recomendações gerais de natureza preventiva, punitiva e compensatória à Comissão dos
Direitos Humanos, a serem adotadas nacional e internacionalmente.
Antes da Comissão de Direitos Humanos da ONU estabelecer, em 1980, a criação do
Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimento Forçado ou Involuntário para monitorar casos
concretos de desaparecimento de pessoas, o assunto já vinha sendo estudado havia anos pela
Subcomissão Para a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias. Foi dessa
Subcomissão que resultou um primeiro anteprojeto de declaração sobre a questão dos
desaparecimentos forçados. Refeito em 1987 e acolhido em 1991, como base para as
negociações de um Grupo de Trabalho da própria Comissão de Direitos Humanos da ONU, o
anteprojeto foi discutido e modificado até que, transformado em projeto de declaração, o texto
foi aprovado pela Comissão em 1992 e adotado pela Assembleia Geral da ONU no mesmo
ano.
Em 18 de dezembro de 1992, foi proclamada pela Resolução 47/133, da Assembléia
Geral da ONU, a Declaração Sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra Desaparecimentos
Forçados, consolidando pela primeira vez em documento normativo internacional as
referências e recomendações do Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimento Forçado ou
Involuntário, respaldadas pelas experiências de doze anos de atuação na questão dos
desaparecimentos forçados. Importante lembrar que a Declaração foi aprovada no início dos
anos 1990, período em que muitos países latino-americanos viviam a transição de regimes
78
ditatoriais para regimes democráticos. No texto da Declaração, a definição de
desaparecimento forçado aparece ao se manifestar a preocupação de que o desaparecimento
ocorre de maneira sistemática em muitos países:
Desde a sua adoção pela Assembleia Geral da ONU, em 1992, a Declaração Sobre a
Proteção de Todas as Pessoas Contra Desaparecimentos Forçados ou Involuntários é o
principal documento normativo a orientar o Grupo de Trabalho. Uma das principais
atribuições atuais do Grupo consiste em acompanhar a implementação da Declaração.
Segundo o relatório submetido à Comissão dos Direitos Humanos, em 1996, pelo
Grupo de Trabalho, o número total, naquela ocasião, de casos mantidos sob sua consideração
em 1995 era de 43.508, envolvendo casos recentes e antigos em sessenta e três países, de
todas as regiões. Somente em 1995 o Grupo registrou e comunicou a ocorrência de oitocentos
e vinte e quatro casos novos, trezentos e cinquenta e nove ocorridos nesse mesmo ano.
A respeito do Brasil, o Grupo de Trabalho registrava no relatório, que circulou em
janeiro de 1996, três novos casos (um ocorrido em 1994 e dois em 1995) e um total de
cinquenta e sete casos, sendo a maioria referente ao período de 1969 a 1975. Conforme o
registro no relatório, os três novos casos “teriam sido executados no Rio de Janeiro por
membros da Polícia Militar. Uma das pessoas desaparecidas seria um advogado e líder do
sindicato de funcionários da Biblioteca Nacional. Os outros dois casos dizem respeito a
pessoas alegadamente detidas por membros uniformizados da Polícia Militar e conduzidas
num veículo para destino ignorado”. Os casos descritos são os de Jorge Antônio Carelli,
detido no Morro da Varginha em 10/08/1993 e, em seguida, desaparecido, e também os de
Alexandre Santos Cunha e José Francisco do Rosário Filho, detidos em Belford Roxo, em
11/03/199518.
O relatório registrava também uma observação em louvor à iniciativa do Governo
Federal brasileiro de submeter ao Congresso Nacional projeto de Lei “relativo ao
18
Estas informações estão contidas no Report of the Working Group on Enforced or Involuntary
Disappearances, documento E/CN. 4/1996/38, 15 de Janeiro de 1996, p. 22-23, e citadas no livro de Alves
(1997: 226).
79
procedimento de declaração de morte presumida das pessoas sujeitas a desaparecimento
forçado por motivos políticos no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979”.
O relatório foi preparado antes da promulgação da Lei 9.140, de 4 dezembro de 1995, que
“reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação de
participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de
1979”.
A Lei 9.140 certamente representou algum avanço, mas não “resolveu” definitivamente
a questão. Os conflitos entre familiares dos desaparecidos e o Estado brasileiro continuam
latentes, sobretudo em razão da não identificação e localização ainda hoje dos desaparecidos
na Guerrilha do Araguaia, da não abertura de todos os arquivos da ditadura e principalmente
em razão do ônus da prova ter ficado com os familiares dos desaparecidos.
80
ou sequestrado uma ou mais pessoas, negado a reconhecer tal ato e prestar informações sobre
o paradeiro e destino do desaparecido. Estipula ainda que o desaparecimento tenha ocorrido
com a autorização ou aquiescência do Estado ou organização política, com a intenção de
manter o desaparecido fora do amparo da lei. Outro fator de caracterização de
desaparecimento forçado é “que a conduta tenha sido parte de um ataque generalizado ou
sistemático, dirigido contra a população civil, e o agente saiba desse fato” (Perruso, 2010:
34).
81
pertinentes.
Artigo 10º
Em nenhum caso poderão ser invocadas circunstâncias excepcionais, tais como
estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer
outra emergência pública, para justificar o desaparecimento forçado de pessoas.
Nesses casos, será mantido o direito a procedimentos ou recursos judiciais rápidos e
eficazes, como meio de determinar o paradeiro das pessoas privadas de liberdade ou
seu estado de saúde, ou de identificar a autoridade que ordenou a privação de
liberdade ou a tornou efetiva. Na tramitação desses procedimentos ou recursos e de
conformidade com o direito interno respectivo, as autoridades judiciárias
competentes terão livre e imediato acesso a todo centro de detenção e a cada uma de
suas dependências, bem como a todo lugar onde houver motivo para crer que se
possa encontrar a pessoa desaparecida, inclusive lugares sujeitos à jurisdição militar.
Artigo 11º
Toda pessoa privada de liberdade deve ser mantida em lugares de detenção
oficialmente reconhecidos e apresentada, sem demora e de acordo com a legislação
interna respectiva, à autoridade judiciária competente. Os Estados Membros
estabelecerão e manterão registros oficiais atualizados sobre seus detidos e, de
conformidade com sua legislação interna, os colocarão à disposição dos familiares
dos detidos, bem como dos juízes, advogados, qualquer pessoa com interesse
legítimo e outras autoridades.
Estes dois artigos tratam de situações muito comuns de violações com as quais os
familiares dos desaparecidos têm de confrontar-se nos processos de busca: ausência de
procedimentos judiciais, ausência de registros e informações sobre os desaparecidos, não
82
acesso a lugares suspeitos para realização de buscas etc. São comuns tanto nos relatos de
familiares de presos e desaparecidos políticos como nos relatos de familiares de presos e
desaparecidos dos dias atuais.
19
Da mesma forma que Ferreira (2011) assume que, ao colocar a pergunta do “gestar e gerir”, o objeto que está
em foco não é por princípio o desaparecimento e sim os embates que se dão entre os vários atores na construção
daquilo que se entende como tal, meu interesse também é menos sobre o desaparecimento em si, e mais sobre as
relações entre violência, sofrimento e política que se expressam a partir das histórias e experiências dos
familiares dos desaparecidos.
84
e seu interesse partiu de sua experiência trabalhando no Projeto Caminho de Volta, do
Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social, e do Trabalho da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo. Neumann integrou desde o início a equipe e vem
colaborando na articulação junto ao Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do
Adolescente. Outra motivação, segundo Neumann (2010), que o levou ao tema foi o
desaparecimento de seu avô da vida de seu pai, quando este tinha aproximadamente três anos
de idade.
A perspectiva de Neumann vem do campo da assistência social e preocupa-se
principalmente com o desaparecimento de crianças e adolescentes. Assim como outros autores
e outros atores sociais envolvidos nessa problemática, Neumman chama atenção para o fato
de que, embora os registros de desaparecimentos de pessoas sejam altos, há uma
subnotificação dos casos. Muitos casos chegam aos serviços de proteção social, mas não são
encaminhados aos sistemas formais de notificação. Este autor cita como exemplo o caso dos
Conselhos Tutelares, que muitas vezes atendem um caso de fuga, mas não consideram que se
trate de um caso de desaparecimento e, por esta razão, não o encaminham para uma delegacia
de polícia. A fuga é tratada, dessa forma, como um problema estritamente familiar. Outro fator
que contribui para a subnotificação é a cultura policial de considerar que os registros só
devem ser feitos quarenta e oitos horas após o desaparecimento (Oliveira, 2007; Neumann,
2010; Ferreira, 2011). Embora em 2005, durante o governo Lula, tenha sido promulgada uma
lei indicando que a busca deve ser imediata, o entendimento policial e o próprio volume de
trabalho nas delegacias ainda fazem com que a prática seja outra.
Neumann destaca que a falta de políticas públicas é um problema a ser enfrentando no
que diz respeito aos desaparecimentos de crianças e adolescentes. Não há uma política global
que trate do tema a partir de seus vários ângulos, o que se tem são iniciativas pontuais e
fragmentadas, dentre as quais se destaca a criação da Rede Nacional de Identificação e
Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (REDESAP). O objetivo desta Rede é
criar e articular serviços de atendimento ao público e coordenar em âmbito nacional o esforço
coletivo para a busca e localização de desaparecidos, além de disponibilizar em seu site fotos
de crianças e adolescentes desaparecidos. Uma das frentes de trabalho da REDESAP foi a
criação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas.
Sobre o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas vale a pena retornar ao trabalho
de Ferreira (2011), que acompanhou durante seu trabalho de campo a REDESAP e apresenta
as seguintes ponderações:
85
O Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, iniciativa que congrega agentes
envolvidos com desaparecimento de pessoas e foi formulada, em conjunto, pelo
comitê gestor da REDESAP e uma equipe da SENASP, também coloca em cena
processos de atribuição e isenção de responsabilidades. Contudo, em torno do
Cadastro as unidades às quais são associadas obrigações em relação ao
desaparecimento correspondem a recortes de áreas temáticas da administração
pública: as searas da segurança pública, da assistência social e dos direitos humanos.
Antes mesmo que fosse lançado e até o presente momento, quando ainda não está
em pleno funcionamento, o Cadastro é alvo de duas dúvidas centrais: A quem deve
caber sua gestão? Que instituições poderão preenchê-lo e consultá-lo? Tais
interrogações suscitam debates sobre a natureza do desaparecimento de pessoas que,
por um lado, remetem a reflexões de policiais do SDP, mas, por outro, delas se
diferenciam. Enquanto no SDP evoca-se a oposição “problemas de família” versus
“problemas de polícia”, entre os agentes dedicados ao Cadastro Nacional de Pessoas
Desaparecidas paira a seguinte pergunta: o desaparecimento, afinal, é questão de
segurança pública ou de assistência social? (Ferreira, 2011: 236).
Nesse sentido, a plataforma de dados em que consiste o Cadastro demanda que todo
desaparecimento nele registrado seja classificado no próprio ato do registro. Se nas
repartições policiais os casos são intitulados, indiferenciadamente, “Fato atípico –
Desaparecimento (Outros)”, o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas
apresenta um leque de possibilidades de especificação desse título comum. Todos os
casos são registrados como desaparecimentos, como se desaparecimento fosse um
gênero de acontecimento, mas é necessário determinar a espécie de desaparecimento
em que cada caso consiste. Às espécies constitutivas desse leque são associadas, de
modo excludente, instituições que devem responsabilizar-se por cada caso: ou
instituições de segurança pública, ou instituições de assistência social.
86
Secretaria de Segurança Pública do Paraná e, originalmente, era utilizado no setor de retrato
falado que trabalhava com a alteração de fotografias de indivíduos procurados pela polícia e,
posteriormente, com o aumento do número de crianças desaparecidos, passou a ser utilizado
também nesses casos.
A Faculdade de Medicina da USP criou, em setembro de 2004, uma ação de
enfrentamento do desaparecimento de crianças e adolescentes denominada “Projeto Caminho
de Volta”. Segundo Neumann (2010: 6), o projeto “faz uma junção da biologia molecular, da
bioinformática e do atendimento psicossocial para construir sua intervenção”. Ainda segundo
Neumann, a inovação do projeto é a integração sistemática de dados por meio de entrevistas
psicossociais, encaminhamentos de famílias para acompanhamento especializado e coleta de
material biológico para a determinação do DNA20.
Outras experiências no enfrentamento e prevenção do problema do desaparecimento
têm sido elaboradas a partir da experiência dos familiares dos desaparecidos, como foi o caso
em São Paulo, da criação da Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças
Desaparecidas, popularmente conhecida como “Mães da Sé”. Inicialmente criada para tratar
do desaparecimento de crianças e adolescentes, diante da intensa procura de familiares cujos
parentes desapareceram em diversos contextos, rapidamente estendeu seu campo de atuação
para a busca de qualquer pessoa desaparecida.
20
Uma proposta recorrente no debate sobre a questão dos desaparecimentos tem sido a necessidade de se fazer
um banco nacional de DNA dos familiares de desaparecidos como forma de facilitar o processo de identificação.
Nesse sentido, existem algumas experiências isoladas em andamento, como na Uerj, e projeto de lei no
congresso.
87
tem certeza de sua morte e supostamente está viva, enquanto “desaparecido”, no sistema
jurídico, refere-se àquele cuja morte é certa.
Oliveira e Geraldes (1999) afirmam que a forte confusão entre o fenômeno do
desaparecimento e outras ocorrências seja uma das suas dificuldades conceituais. O conceito
de desaparecido possui fronteiras muito frágeis. Para diminuir tal fragilidade, o primeiro
passo, segundo estes autores, seria conceituar e distinguir os termos considerados próximos
ou sinônimos: desaparecido, perseguido, fugitivo, foragido, sequestrado, raptado, indigente e
migrante.
90
2.4.2. A relação entre desaparecimentos e homicídios: ligações perigosas
Fonte: www.riodepaz.org.br
No dia 29 de junho de 2009 foi a vez do teólogo Antônio Carlos Costa, presidente da
ong Rio de Paz, publicar um artigo no jornal O Globo colando a questão dos
desaparecimentos aos homicídios. O título do artigo era a pergunta “E os desaparecidos?”, e
em certo momento se lia:
92
No registro oficial de assassinatos não aparecem, por exemplo, os milhares de
desaparecidos registrados e não registrados que foram assassinados. Pessoas estão
sendo incineradas vivas, devoradas por animais como porcos, jacarés e
caranguejos que habitam lagoas e manguezais no entorno das favelas, gente
dissolvida em ácido ou enterrada nos cemitérios clandestinos que estão espalhados
pela Região Metropolitana do Rio. (Antônio Carlos Costa)
93
pesquisa sobre desaparecimento. A pesquisa foi realizada e a principal conclusão a que se
chegou era a de que não havia uma relação direta entre desaparecimentos e homicídios. No
dia 13 de novembro de 2009 foi a vez do consultor da pesquisa, o professor e sociólogo
Gláucio Soares, publicar um longo artigo também no jornal O Globo, apresentando alguns
resultados da pesquisa e defendendo que “desaparecimentos e homicídios não são farinha do
mesmo”. Em um trecho do artigo lia-se:
Do ponto de vista político, esta conclusão teve como principal objetivo desqualificar
as críticas que buscavam apontar o desaparecimento como uma forma de encobrimento de
homicídios. A seguir, no quadro abaixo, apresento alguns dados e algumas problematizações
da pesquisa do ISP:
94
preencher o Registro de Ocorrência de forma completa. A pesquisa
constatou que, mesmo possuindo campos específicos que consideram os
contatos dos comunicantes, as características elementares da vítima
(sexo, idade, nome completo) e a descrição da dinâmica do
desaparecimento, estes dados muitas vezes não são preenchidos de
maneira adequada.
• Na publicação, os policiais são orientados a tentar extrair o máximo de
informações relevantes do comunicante do desaparecimento e transferi-
las para o Registro de Ocorrência com o objetivo de facilitar o
reconhecimento da vítima e as buscas por seu paradeiro. Ressalta ainda
que é importante que sejam mencionadas marcas de nascença,
cicatrizes, tatuagens, cor e corte de cabelo, se a pessoa usava óculos, a
roupa com a qual a pessoa foi vista pela última vez, se houve uma briga,
se a pessoa estava deprimida, se tomava algum remédio e qual era essa
medicação, se fazia uso de substâncias ilícitas ou de álcool.
• Os policiais também são orientados a evitar julgamentos pessoais “na
medida do possível” e a não esperar para registrar o desaparecimento. A
Lei Federal nº 11.259, de 30 de dezembro de 2005, acrescenta
dispositivo à Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e
do Adolescente), para determinar a investigação imediata em caso de
desaparecimento de criança ou adolescente.
• Os dados da pesquisa foram provenientes das ocorrências registradas
pela Polícia Civil, referente ao ano de 2007: 4.423 casos.
• Com base nas entrevistas realizadas foi selecionada uma amostra de 456
casos (10% do banco de dados) de desaparecidos de 2007.
• A distribuição das vítimas na cidade do Rio de Janeiro ocorreu da
seguinte forma: Zona Norte: 46,2%; Zona Oeste: 37,4%; Centro: 8,7%;
e, Zona Sul: 7,6%.
• 71,3% dos desaparecidos haviam reaparecido vivos; 14,7% não
reapareceram; 6,8% reapareceram mortos; 4,4% sem informação; e
2,9% a família informou não ter havido desaparecimento (mesmo
constando um Registro de Ocorrência). Cabe ressaltar que, dos 6,8%
(31 casos) que reapareceram e estavam mortos, 18 foram casos de
homicídios dolosos. Destes casos, 9 homicídios foram verificados nos
registros de ocorrência da polícia civil do Estado do Rio de Janeiro
(ROweb). Outros 5 foram verificados através do banco de dados de
mortalidade fornecido pela Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil
do Estado do Rio de Janeiro. Os demais (4) não possuem registros,
sendo baseados na fala dos comunicantes durante as entrevistas.
95
• Segundo os dados apresentados pelo ISP, 6,8% dos desaparecidos
reapareceram mortos. De 31 desaparecidos que reapareceram mortos, 18
foram vítimas de homicídio doloso. Acrescente-se que 14,7% não
reapareceram. O que aconteceu com esta fração de desaparecidos que
não reapareceu? Os desaparecidos que apareceram mortos mas não
foram vítimas de homicídio doloso foram vítimas de quê? Quais as
circunstâncias destas mortes?
• O universo amostral pesquisado leva em consideração apenas o ano de
2007 e aponta que 6,8% apareceram mortos. Por comparação e
considerando mais ou menos estas mesmas taxas para os outros anos
(lembrando que a comparação pode não corresponder à realidade na
medida em que há uma subnotificação de casos), poderíamos, de forma
hipotética, aplicar esta mesma taxa de 6,8% ao número total de registros
correspondente ao período de janeiro de 1991 a abril de 2012. De
maneira estimativa 6,8% equivaleria ao número absoluto de
aproximadamente 5.790 casos de desaparecimentos equivalentes a
desaparecidos-mortos ou não encontrados, de um total de 85.151. Ou
seja, ainda assim um número altíssimo.
96
2.4.3. A polícia que mata e oculta os corpos e a perícia que não consegue identificar
21
O trabalho de recuperar a identidade de despojos humanos anônimos deu origem, em 1984, a uma organização
hoje mundialmente famosa de peritos, a Equipe Antropológica Forense da Argentina (EAFA), que tem atuado
desenterrando e identificando os restos mortais de argentinos “desaparecidos” durante a ditadura militar dos anos
de 1970 e 80. A partir da experiência argentina, a equipe, ou membros dela, tem sido convidada para atuar em
vários cenários de guerra e violência política. Um registro muito interessante desse tipo de trabalho foi feito pela
antropóloga forense inglesa Clea Koff, que integrou a EAFA e participou como técnica forense de várias missões
para o Tribunal Penal Internacional das Nações Unidas em Ruanda e na antiga Iugoslávia. Eis um trecho do
relato de Koff sobre seu trabalho: “Tornara-me antropóloga forense por dois motivos: um, porque fazer os ossos
falar era o que mais queria; o outro, porque a primeira vez que me encontrei confrontada com um corpo morto
para análise antropológica senti muitas emoções, mas angústia não. Quando analiso despojos humanos, estou
interessada, não sinto repulsa. Os ferimentos excitam uma curiosidade em mim a respeito dos instrumentos que
os terão provocado – não me assustam. Até as larvas – embora não sejam a minha forma de vida preferida – num
corpo morto têm para mim significado, apesar do meu conhecimento mínimo de entomologia forense (de facto, a
ciência de fazer com que os 'insetos' falem sobre o tempo desde a morte à localização do corpo). Não se
perturbar com os ossos, corpos e ferimentos é uma espécie de exigência básica da tarefa. Ao trabalhar no terreno,
perturbam-me as escavações infrutíferas, mas assim que desenterramos despojos humanos, sinto-me revitalizada
e até feliz. Pensava que estes sentimentos positivos surgiam naturalmente; não tinha tido consciência de envolver
activamente o meu espírito num manto de distância antes de analisar restos mortais humanos ou de exumar
cadáveres de valas comuns. É certo, por vezes sentira-me perturbada depois do trabalho porque começava a
ruminar assuntos de dor ou medo ou do que quer que fosse que marcasse os últimos momentos de alguém antes
de o conhecer como corpo morto. Mas ter assuntos da vida a imiscuírem-se tão dolorosamente nos meus
pensamentos enquanto estava a trabalhar preocupava-me profundamente. A dupla visão era perigosa, fazia com
que olhasse para um esqueleto como sendo o parente desaparecido de alguém com quem me poderia cruzar na
rua: iria pôr em causa a minha resistência para o trabalho que tínhamos de fazer, especialmente se em qualquer
altura baixasse um véu sobre os meus olhos. Sabia que a minha perturbação era característica dos antropólogos
forenses a executarem o volume de trabalho de assistência social que eu estava a fazer e a exumar na cena dos
assassínios em massa que deram azo ao trabalho de assistência. Era a combinação destes factores que me levava
a sentir que os ossos quase me estavam a gritar e era o cansaço baseado no stress sob que estava a trabalhar que
98
e dois procedimentos foram abertos, um para analisar o laudo da perita e outro para avaliar a
atuação policial no caso. Após a chefe da Polícia Civil receber o primeiro laudo e afirmar
publicamente que não se tratava do garoto Juan, ela teve que voltar atrás e admitir os erros.
Segundo o deputado Marcelo Freixo (PSOL), integrante da Comissão de Direitos Humanos
da Alerj, ainda faltava explicar se Juan havia sido torturado, já que a perícia havia identificado
pancadas na cabeça do corpo encontrado à beira do rio. Outro problema era que a perícia não
havia encontrado marcas de tiros no corpo, mas duas testemunhas ouvidas pelo deputado
afirmaram categoricamente terem visto Juan baleado.
Após tantos desencontros, a família de Juan só veio a ter conhecimento da
confirmação de que os restos mortais encontrados realmente eram de Juan através de
telefonemas de jornalistas. Ao confirmar a morte de Juan, a chefe de Polícia Civil lamentou
informar à imprensa antes que a família: “Eu queria ter dado essa notícia pessoalmente à
família. Mas como ela ingressou em um programa de proteção a Secretaria de Direitos
Humanos ficou responsável pela comunicação”. A mãe e o irmão de Juan, Wesley, voltariam
ao Rio para acompanhar o sepultamento.
O caso Juan poderia ter sido mais um a figurar nas estatísticas de desaparecimento e
permanecer escondido em um dos muitos cemitérios clandestinos da cidade, como ocorre em
diversas outras situações. No dia 09 de outubro de 2007, o jornal O Dia, por exemplo,
publicou uma reportagem em que noticiava que investigadores da 62ª Delegacia de Polícia
haviam localizado um cemitério clandestino em um terreno na esquina das ruas Roberto
Silveira e Ataulfo Alves, na Favela Santa Lúcia, em Imbariê, Duque de Caxias, Baixada
Fluminense. A notícia informava ainda que dois corpos haviam sido desenterrados e os
policiais consideravam a possibilidade de um dos corpos ser de um adolescente desaparecido
há três semanas. Cogitava-se ainda a possibilidade de que outros seis corpos estivessem
enterrados no mesmo cemitério clandestino22. Notícias como esta não são raras e incomuns.
Selecionei três delas que apontam a relação entre desaparecimento/cemitérios
clandestinos/encontro de ossadas:
99
Reportagem 1: Corpos achados na Baía de Guanabara podem ser indício de desova
Corpos achados na Baía de Guanabara podem ser indício de desova
Jornal O Dia
Fonte:http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2009/11/corpos_achados_na_baia_de_
guanabara_podem_ser_indicio_de_desova_48066.html
Data de acesso: 23/11/2009.
100
Reportagem 2: Polícia encontra ossadas em campo de execuções da milícia na Zona
Oeste
Polícia encontra ossadas em campo de execuções da milícia na Zona Oeste
Por Marco Antonio Canosa – O Dia
Rio - A Polícia Civil fez uma grande operação para localizar um campo de execuções
e cemitério clandestino, nesta quarta-feira, em Sulacap, na Zona Oeste do Rio.
A ação envolveu pelo menos 60 agentes das polícias Civil e Militar e do Corpo de
Bombeiros, com auxílio de cães farejadores. Cinco ossadas foram encontradas no
alto do Morro Cosme e Damião. Segundo delegado titular da Delegacia de Repressão
ao Crime Organizado e Inquéritos Especiais (Draco-IE), Cláudio Ferraz, todas
apresentavam sinais de execução por tiros. O delegado disse que as investigações
apontaram que o local era usado por milicianos e traficantes ligados à facção Amigos
dos Amigos (ADA). "Estamos trabalhando agora para descobrir a identidade das
vítimas, mas já temos algumas pistas importantes e em breve vamos desvendar os
casos", garantiu.
O policial também disse ter certeza de que algumas das vítimas seriam bandidos
ligados ao Comando Vermelho, sequestradas por milicianos sob encomenda de
traficantes da ADA.
As ossadas estavam espalhadas por uma grande extensão do terreno, em local de
difícil acesso. "Como o local é muito ermo, eles nem tinham o trabalho de enterrar.
Os corpos ficaram expostos à ação do tempo e de animais. Se fosse um período de
chuvas, com certeza não encontraríamos", revelou o delegado. Pelas roupas e
calçados das vítimas a polícia acredita que todos eram homens. A polícia ainda não
sabe há quanto tempo o terreno vinha sendo usado para desova de corpos, mas
acredita que não seja há muito e que as vítimas tenham sido executadas no local e
seus corpos abandonados em diferentes ocasiões. O delegado disse que, com a
identificação das vítimas, poderá determinar o período de uso do local pelos
assassinos.
Fonte:http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2010/7/policia_encontra_ossadas_em_
campo_de_execucoes_da_milicia_na_zona_oeste_92915.html
Data de acesso: 01/07/2010.
101
Reportagem 3: Policiais do Bope escavam Piscinão de Ramos a procura de corpos
Policiais do Bope escavam Piscinão de Ramos a procura de corpos
102
direitos humanos Leonado Chaves, o mesmo me afirmou que era muito difícil fazer uma
denúncia de desaparecimento forçado em razão da falta de provas. Para ilustrar a dificuldade
ele me contou um caso que ouvi outras vezes durante o trabalho de campo, que consistia, mais
ou menos, na história de um homem rico que foi visitar os primos numa cidade do interior e,
após a visita, repentinamente sumiu sem deixar vestígios e sem que ninguém soubesse de seu
paradeiro. Diante de sua riqueza e da condição de pobreza dos primos que foi visitar logo se
iniciaram as suspeitas de que os primos pobres o teriam matado e desaparecido com o corpo.
Os primos pobres chegaram a ser presos, porém, posteriormente, o primo rico reapareceu
vivo, desfazendo a suspeita. Por outro lado, o subprocurador Leonardo Chaves chamou
atenção para o fato de que os dados sobre desaparecimento devem ser cruzados com outros,
como encontro de ossadas e encontro de cadáveres, argumentando que, apesar das
dificuldades para construção de provas legais, não se pode afirmar que os desaparecimentos
forçados não existam.
Uma pesquisa recente conduzida por Patrícia Rivero e Ruth Rodrigues, no âmbito do
Ipea, também sugere a relação entre desaparecimentos e cemitérios clandestinos: “Uma
categoria que não tipifica crime mas que vem em aumento e tem sido vinculada à aparição de
cemitérios clandestinos é a de desaparição”. E ainda:
A hipótese de trabalho das autoras foi a de que as favelas e outros locais de moradia
precária seriam áreas especialmente vulneráveis como lócus de concentração das vítimas da
violência. A pesquisa buscou identificar as condições que poderiam facilitar a vitimização, as
atividades ilegais e/ou criminais em espaços territoriais de favelas, comparando estes espaços
103
com as características da cidade. Os dados da pesquisa apontaram uma correspondência entre
a disposição das áreas com maior número de vítimas e a disposição das favelas na cidade.
Neste sentido, já argumentei no início desta tese e volto a lembrar que a favela, pelo seu
histórico de constituição como “problema” e atualmente pela concentração da maior parte das
mortes violentas em seu entorno, tornou-se um lugar-trauma.
Numa visita à Defensoria Pública, à procura de dados para esta pesquisa, a defensora
que me recebeu se disse muito entusiasmada com minha pesquisa, porque, segundo ela, o tipo
de desaparecimento que eu desejava estudar vinha se tornando uma prática cada vez mais
crescente, mas ainda correspondia ao lado “invisível” dos casos de desaparecimento. Segundo
ela, a Defensoria Pública tem sido muito procurada por familiares em busca de ajuda, e os
casos que têm aparecido apontavam o envolvimento de milicianos nos desaparecimentos. Os
familiares, ao serem informados de que, para que a Defensoria Pública possa fazer alguma
coisa, eles precisam primeiro fazer um registro de ocorrência na polícia, desistem de levar o
caso adiante, por medo.
Caso 1
Relato das circunstâncias do desaparecimento: “O adolescente estava numa casa em
Jardim Bom Pastor, em Vilar dos Teles, quando ele e mais 4 adolescentes foram
levados pela polícia. Até hoje não teve nenhuma notícia dele”.
Caso 2
Relato das circunstâncias do desaparecimento: “Saiu de moto com 2 amigos.
104
Segundo informações, eles passaram por um grupo de extermínio e desapareceram”.
Caso 3
Relato das circunstâncias do desaparecimento: “Se encontrava na Avenida Paulo de
Frontin quando foi levado por homens a paisana que se diziam policiais”.
Caso 4
Relato das circunstâncias do desaparecimento: “O adolescente estava perto de casa
quando houve uma operação policial e troca de tiros. A vizinhança viu quando um
carro vermelho parou e algumas pessoas armadas algemaram o adolescente e o
fizeram entrar no carro”.
Caso 5
Relato das circunstâncias do desaparecimento: “O rapaz estava conversando com
mais dois amigos no bairro Miguel Couto quando a polícia pegou os três. Nunca
mais a família teve notícias”.
Caso 6
Relato das circunstâncias do desaparecimento: “O adolescente foi pego com outro
rapaz por PM em Barros Filho”.
Caso 7
Relato das circunstâncias do desaparecimento: “Foi pego por um carro de polícia e
não apareceu mais”.
Caso 1
Declaração do comunicante: “A declarante comparece para fins de atender intimação
desta DP, aduzindo que soube que o seu filho tinha sido morto, mas que não tem a
certeza absoluta, sendo que soube de tal por ‘papos’ falados na comunidade onde
morava, visto que reside em outro lugar, cujo endereço já está registrado neste RO;
que não pode nomear nomes dos amigos que estavam com seu filho quando ele foi
para o baile em Duque de Caixas, nem mesmo sabe informar qual era o clube onde
tal baile se realizava; que a declarante soube que a provável morte de seu filho ter-se-
ia dado no dia 04 de novembro, na circunscrição da 59a DP, mas não sabe nada além
disso; que foi ao IMLAP de quase todos os municípios, menos o de Niterói, mas não
encontrou o corpo do seu filho, como também foi a diversos hospitais, ficando sem
sucesso na procura; que soube que seu filho, ao chegar ao baile, foi agarrado por
outras pessoas, estranhas ao grupo em que ele estava, e foi levado alhures para ser
morto, mas que, se isso aconteceu, não sabe o motivo; que, se souber de algo que
seja de interesse à investigação, virá comunicar à AP. Nada mais disse.”
Caso 2
Declaração do comunicante, que comparece nesta delegacia para comunicar o
desaparecimento de seu irmão [nome]: “Que [nome do irmão] morava sozinho,
próximo ao Piraquê, na Estrada da Matriz, em Pedra de Guaratiba; que no momento
não sabe informar o endereço completo de [nome do irmão]; que ele foi visto pela
última vez pelo dono de um bar localizado próximo à residência dele, em companhia
de uma senhora conhecida como [nome]; que não sabe dar maiores informações sobre
essa mulher; que na localidade e no local onde ele trabalha comenta-se que ele foi
morto; que no entanto não sabe informar como o fato teria ocorrido; que [nome do
irmão] trabalha como guardador de veículos na praia do Pepê; que ele é usuário de
drogas; que [nome do irmão] não tinha dívida de drogas; que [nome do irmão]
comentou que estava recebendo ameaças de morte, mas não disse de quem e nem o
porquê; que esteve na casa de [nome do irmão]; que a porta da casa estava arrombada;
que no entanto todos os objetos estavam dentro da casa; que [nome do irmão] nunca
desapareceu antes; que [nome do irmão] não se consultava regularmente com um
105
dentista; que não sabe informar se [nome do irmão] tinha algum inimigo; que [nome
do irmão] compra a droga que usa na favela da Rocinha e vai para casa; que os
amigos de [nome do irmão] são da praia do Pepê; que [nome do irmão] não tem
cicatrizes ou tatuagens; que seus olhos são verdes; que ele está sem os dentes da
arcada dentária superior; que eles foram arrancados por milicianos no início do ano;
que não sabe informar os nomes nem dizer de onde são esses milicianos; que acha
que isso deve ter ocorrido por causa das drogas; que apresenta uma fotografia recente
para ser juntada ao procedimento. E mais não disse”.
Caso 3
Declaração da comunicante: “Diz que a ultima vez que esteve com o seu filho
vitimado foi no último sábado retrasado, aproximadamente às 13h, à Avenida
Guilherme Maxwell (no conjunto do Fogo Cruzado), até hoje não apareceu em lugar
nenhum. Essa comunicante informa que o vitimado é viciado, não sabendo a
procedência do vitimado, razão de ter comparecido a essa UPJ, a fim de fazer esse
RO. De acordo com todas as alegações acima e nada mais a relatar”.
106
presentes no imaginário da violência urbana: traficantes de drogas, policiais e milicianos.
Cabe ainda ressaltar a difícil definição das fronteiras entre policiais e milicianos, na medida
em que os milicianos são policiais, ou ex-policiais, sem fardas, que utilizam dos recursos
políticos que sua condição de agente do Estado ou seus vínculos com estes proporcionam,
para vender “mercadorias políticas”23 (Misse, 1999).
Quando esta tese encontrava-se em fase final de redação tomei conhecimento de um
Projeto de Lei que se encontra em tramitação no Senado Federal que só reforça a pertinência e
a validade de meu argumento de que o desaparecimento forçado persiste como uma prática da
linguagem da violência urbana nos dias atuais. Trata-se do Projeto de Lei do Senado n.º 245,
de 2011, apresentado pelo senador Vital do Rêgo (PMDB), que objetiva acrescentar o artigo
149-A ao Código Penal brasileiro, para tipificar o crime de desaparecimento forçado de
pessoa, conforme recomendação das normatizações internacionais já existentes. Na
justificativa do projeto, destaca-se a permanência da prática do desaparecimento forçado e a
recomendação do direito internacional para que cada país elabore leis internais sobre o
assunto:
23
O conceito de “mercadoria política” é utilizado por Michel Misse, a partir de uma leitura da noção weberiana
de “capitalismo político” e, de outro lado, com as questões teóricas implicadas por noções como “clientelismo”,
“corrupção” e “extorsão”. Segundo Misse (1999: 299-300): “Mercadoria política é toda mercadoria cuja
produção ou reprodução depende fundamentalmente da combinação de custos e recursos políticos, para produzir
um valor-de-troca político ou econômico. O emprego de uso da força (ou a sua ameaça) para a realização de fins
econômicos privados é a sua modalidade historicamente mais abrangente. Caberia falar em 'capitalismo
político', como propôs Weber, quando essa atividade é exercida no interior de uma mesma formação
social hegemônica, regulada estatalmente pelo monopólio do uso legítimo da violência e caracterizada pela
mercantilização regulada e pacífica da propriedade privada dos meios de produção? Caberia também falar em
'dominação não-legítima', como propôs Weber para outro contexto histórico?”.
107
terminativo, foi apresentado pelo relator do projeto, senador Pedro Taques, um substitutivo
considerando as contribuições encaminhadas por Luis Carlos dos Santos Gonçalves e Marlon
Alberto Weichert, membros do Ministério Público Federal. O substitutivo trazia duas
mudanças em relação ao projeto original. A primeira alteração propunha o aumento da pena
“para o tipo principal” de dois a seis anos de reclusão para seis a doze anos de reclusão e
multa e a segunda previa dois tipos qualificados de desaparecimento forçado: “o primeiro,
pelo emprego de tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou se do fato resultar aborto ou
lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, com penas de reclusão de doze a vinte anos e
multa, e o segundo, qualificado pelo resultado morte, com penas de reclusão de vinte a trinta
anos”24. O texto final ficou com a seguinte redação:
24
Parecer ao Projeto de Lei do Senado Nº 245, de 2011. Comissão de Constituição e Justiça (Substitutivo).
108
§ 7º Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder a redução da
pena, de um a dois terços, ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva
e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa
colaboração
contribua fortemente para a produção dos seguintes resultados:
I – a localização da vítima com a sua integridade física preservada ou;
II – a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa e das
circunstâncias do desaparecimento.
§ 8º Os delitos previstos neste artigo são imprescritíveis.
§ 9º A lei brasileira será aplicada nas hipóteses da Parte Geral deste Código,
podendo o juiz desconsiderar eventual perdão, extinção da punibilidade ou
absolvição efetuadas no estrangeiro, se reconhecer que tiveram por objetivo subtrair
o acusado à investigação ou responsabilização por seus atos ou tiverem sido
conduzidas de forma dependente e parcial, que se revele incompatível com a
intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.
Consumação do desaparecimento
§ 10 A consumação dos delitos previstos nesse artigo não ocorre enquanto a pessoa
não for libertada ou não for esclarecida sua sorte, condição e paradeiro, ainda que
ela já tenha falecido.”
109
“constelação”, fazem parte do vocabulário benjaminiano25 e me foram muito sugestivas para
pensar uma concepção de trabalho para lidar com a questão dos desaparecimentos forçados.
Afinal, para levar meu objetivo de registrar as histórias de desaparecimento forçado dos dias
atuais adiante, o que tive que fazer foi exatamente percorrer rumores, ruínas, lidar com
fragmentos e, a partir daí, realizar minhas montagens, compor minhas constelações. Sem
qualquer intenção de amostragem estatística ou de totalidade, o que desejei fazer foi apenas
registrar um outro lado, pouco visível, da questão dos desaparecimentos. Registrar essas
histórias de desaparecimento forçado foi um trabalho antropológico e quase arqueológico, que
incluía visitar arquivos e documentos, percorrer favelas, hospitais, IMLs, delegacias, circular
em eventos, fazer contatos. São algumas dessas histórias, relatadas nos dois capítulos
seguintes, que compõem a parte II desta tese.
25
Para uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin, conferir Löwy (2005). Este livro
de Löwy inclui também uma publicação das teses de Benjamin traduzidas por Jeanne Marie Gagnebin e Marcos
Lutz Müller.
110
PARTE II
Desde o início da pesquisa, esteve muito claro que estudar um evento crítico como o
desaparecimento forçado ou a execução de uma pessoa, enquanto uma prática do repertório
da linguagem da violência urbana, implicaria lidar a todo instante, durante toda a pesquisa,
com a questão do silêncio. Afinal, falar do desaparecimento significa tocar em recordações
dolorosas e, como escreve David Le Breton:
114
O aparecimento de uma recordação dolorosa, no decorrer de uma conversa, corta o
fôlego e obriga a uma recomposição ou a deixar caminho livre a um momento de
emoção. Há então uma regra implícita que obriga o interlocutor a não insistir, a
calar-se por sua vez durante um momento, antes de exprimir a sua solidariedade
através do seu comportamento, por um olhar, uma palavra, pelo tom da sua voz... A
dor interrompe a ligação social, criando uma solidão difícil de romper, a não ser
pelo lento retorno ao prazer de viver. O sentimento dela é um factor pessoal, íntimo,
que escapa a qualquer medida, a qualquer tentativa de a limitar ou descrever. As
palavras, em relação aos outros, perdem o seu peso de conteúdo. É o embaraço de
viver à margem de si próprio sem conseguir encontrar-se. A dor é um luto provisório
ou durável do próprio eu, arrasta consigo a palavra. Fechada na obscuridade do
corpo, a dor fica reservada à deliberação íntima do indivíduo. Há um indizível que
esconde a linguagem, que prejudica a facilidade da palavra: o sofrimento, a
separação, a morte não encontram palavras para se exprimir com intensidade
suficiente. A língua fragmenta-se por momentos perante os conteúdos afectivos,
demasiado poderosos, que varrem tudo à sua passagem. A dor quebra a voz e torna-a
irreconhecível, suscita o grito, o lamento, o gemido, as lágrimas ou o silêncio, tanto
por insuficiências da fala como do pensamento. (...) O grito nunca está longe do
silêncio, duas formas próximas de assumir o luto da linguagem quando o sofrimento
persiste. (Le Breton, 1997: 235-36)
115
resposta adequada, gestos apropriados. Como se fosse impossível deixar alguém
chorar sem agir, ou seja, sem se aproximar e levar suas lágrimas em consideração.
(Vincent-Buffault, 1988: 33-34)
116
argentina, serve para pensar os familiares daqui:
Los muertos – que ni muertos han perdido su nombre – operan en este sentido como
una llave para la entrada al mundo moral de los familiares. Y ello sucede porque las
formas de presentación de los muertos y las narraciones de las circunstancias en que
han sido muertos por la policía hablan, no tanto de las relaciones sociales entre
individuos vivos y muertos sino, fundamentalmente, señalaba más arriba, sobre las
relaciones entre los vivos y, particularmente, sobre aquellas trazadas entre la
sociedad civil y la policía. Los muertos se constituyen en un territorio de resistencia,
sus nombres enarbolados son la prueba de una denuncia que no cesa, “hasta que se
haga justicia”. A través de los muertos los vivos protestan y reclaman; sus muertos
funcionan como demarcadores morales y son también generadores de nuevos
actores sociales. Así, los muertos bajo estas circunstancias dan lugar al surgimiento
del familiar (Pita, 2010: 17).
3.2. Izildete
26
Alguns familiares pediram que seus nomes verdadeiros fossem mantidos no relato, porque entendiam que era
mais uma forma de denunciar os casos. Em outras situações, principalmente quando não se tratavam de casos
envolvendo denúncias públicas, os familiares solicitaram que fosse preservado o anonimato. Portanto, quando se
tratar de casos públicos, ou quando solicitado ou permitido pelos familiares, os nomes verdadeiros serão
mantidos. Por outro lado, nomes de pessoas e lugares foram alterados, também quando solicitados por meus
informantes. Como observa Leite: “A categoria de 'mães de vítimas de violência’ também se constrói por
117
Adolescente. Manifestação que foi simbolicamente programada para o dia 23 de julho de
2008: dia de aniversário da chacina da Candelária. Essa data foi incorporada ao calendário de
luta dos movimentos de direitos humanos, tornou-se um lugar de memória (Nora, 1993) da
luta contra a violência policial. Trata-se de uma data simbólica, associada ao luto
transfigurado em protesto, em razão de ser o dia em que os jovens foram exterminados numa
chacina. O evento foi organizado por entidades e organizações ligadas ao campo dos direitos
humanos. Contou com a presença de “familiares de vítimas de violência”, ONGs de direitos
humanos, participantes de projetos sociais ligados à infância e à juventude, estudantes
universitários, pesquisadores e militantes de partidos políticos. Nesse dia, conversei
rapidamente com Izildete, que estava com o filho cadeirante participando da manifestação.
Peguei seus contatos e fiquei de ligar para marcar uma entrevista.
No dia 15 de outubro de 2008, na tarde de uma quarta-feira quente e ensolarada, fui a
Queimados realizar a entrevista com Izildete. Quando entrei na rua em que Izildete morava,
ela já se encontrava do lado de fora do portão de sua casa, esperando por mim. Logo que
cheguei, a primeira coisa que Izildete me disse foi para não reparar na casa. Ela e os filhos
estavam, naquele momento, vivendo em condições bastante precárias. Ela me contou que sua
água havia sido cortada por falta de pagamento, e que a locatária da casa havia entrado na
justiça para exigir a reintegração de posse do imóvel. Segundo Izildete, por conta das
denúncias que ela vem fazendo, a locatária está com medo de que aconteça alguma tragédia
naquela casa, caso os policiais resolvam “fazer alguma coisa” com ela e os filhos.
Seu filho Fábio e um amigo, de nome Rodrigo, estão desaparecidos desde 2003. O
desaparecimento ocorreu em um contexto de abordagem policial. Segundo ela, os jovens
foram abordados por quatro policiais que estavam numa viatura Blazer, ao voltarem de uma
festa junina realizada em um bar, no bairro São Roque. Segundo Izildete, a polícia afirma que
intermédio de uma alusão religiosa. O vínculo afetivo, que envolve intenso sofrimento com a perda do filho e
fundamenta a credibilidade da mãe tanto para reclamá-lo quanto para doá-lo em prol de uma causa, aproxima
cada uma e todas as mães de Maria, mãe de Jesus. No imaginário católico, Maria, mesmo sofrendo por seu
martírio e morte na cruz, não se revoltou, nem odiou seus algozes. Perdoou-os, pois compreendeu que era
necessário que um inocente morresse para a redenção de todos. Nesse sentido, o sacrifício de Jesus representa
também parcialmente o sacrifício de sua mãe em aceitar essa perda e experimentar a dor de sua morte como uma
doação à humanidade pecadora, mas também sofredora, que nesse movimento, é acolhida na condição de filha.
Por isso mesmo, Maria desempenha na religião católica um certo lugar de mediadora, que se traduz na crença de
que pedindo à Mãe o Filho atenderá” (2004: 159). Nesse sentido, aproveitando o simbolismo religioso presente
na categoria “mães de vítimas de violência”, adotei como estratégia, para preservar o anonimato daquelas mães
que assim o desejaram, nomeá-las por Maria e algum complemento, formando um nome composto.
118
apenas “deu dura nos meninos” e os liberou. Fato é que os corpos dos dois jovens jamais
apareceram, tampouco voltaram os jovens vivos para contar o que se passou.
Izildete conta que tem enfrentado grandes dificuldades para levar o caso adiante em
razão da falta de informações, falta de provas, ameaças dos policiais e a burocracia das
delegacias e demais instâncias estatais por onde tem peregrinado em busca de solução para o
caso. A vida de Izildete tornou-se um verdadeiro calvário em busca do filho, peregrinando
para todos os lados em busca de informações sobre o paradeiro de Fábio.
Na entrevista Izildete disse que entrou para uma igreja após o desaparecimento do
filho. Quando a entrevista foi realizada ela frequentava a Igreja Mundial, mas, em conversas
posteriores, enquanto andávamos pelas ruas do bairro à procura de uma copiadora, ela
comentou de uma passagem pela Assembleia de Deus. Disse que na Assembleia de Deus
apareciam revelações relacionadas ao destino de seu filho desaparecido. Essas revelações a
incomodavam porque, segundo elas, o filho de Izildete estaria morto. Ela, por sua vez, ainda
hoje alimenta a esperança de encontrar o filho vivo. Acredita que o filho deva estar preso “em
algum lugar de onde não pode se comunicar”.
No lugar onde mora, rumores de casos de desaparecimento são constantes, segundo
Izildete. Ela disse que tomou conhecimento da história de uma mãe, vizinha sua, que teve
quatro filhos “desaparecidos”. Esse caso foi contado a ela e à pastora da igreja que ela
frequenta por outra “irmã”. Essa “irmã” da igreja, referindo-se ao caso da mãe que perdera os
quatro filhos, citou o nome de um lugar onde eles talvez pudessem estar. É um lugar, segundo
Izildete, “onde deixam as pessoas presas”.
Izildete cedeu-me vários documentos, incluindo reportagens de jornais, o registro de
ocorrência do caso, cartas que ela enviou e recebeu da governadora Rosinha Garotinho, carta
enviada ao presidente Lula, denúncia internacional do caso realizada pela ONG Projeto Legal,
ofícios e documentos diversos redigidos e encaminhados por entidades de direitos humanos
que, de algum modo, acompanharam ou instruíram Izildete. Queixa-se, no entanto, de que
todo seu reclame não deu em nada.
Na carta enviada ao então presidente Lula, ela contou a história do caso. Buscando
despertar o sentimento de piedade e compaixão, se apresentou, na carta, como uma “mãe
desesperada”, que vive em condições precárias de moradia, correndo o risco de ser despejada
porque não tem condições de pagar aluguel, sendo que o pouco que tem mal dá para ela e os
quatro filhos se alimentarem. Impossibilitada de trabalhar, porque dedica seu tempo a cuidar
de um dos filhos, que é “portador de deficiência física”, relata que as dificuldades só se
agravaram com o desaparecimento do filho, que era quem a ajudava com as despesas.
119
Figura 1: Carta de Izildete ao então presidente Lula: a mobilização do sofrimento para
em busca de ajuda
120
121
Após a entrevista dei uma volta com Izildete pelo bairro em busca de uma copiadora
para fotocopiar os documentos. Enquanto andávamos ela me apontava os lugares e narrava os
acontecimentos violentos e traumáticos ocorridos em cada local. Apontou-me o botequim
onde os policiais, que ela acusa de terem levado seu filho, costumavam se encontrar e a casa
de vários deles. Mostrou-me também os lugares por onde os carros passaram no dia da
Chacina da Baixada, disse que da rua onde mora foi possível ver quando os carros dos
“chacinadores” estavam passando próximos a um lava-jato, no alto de um morro que fica em
frente à sua casa.
Providenciar as cópias levou muito tempo, foram folhas e mais folhas. Enquanto as
cópias eram tiradas, Izildete me contava um ou outro caso. E eu me lembrava de que, quando
estávamos nos preparando para sair da casa de Izildete, ela me havia dito que não gostava de
fazer as cópias perto de onde morava, porque as pessoas ficavam olhando o conteúdo do
material, ficavam lendo, e muitas pessoas ali tinham conhecimento do desaparecimento de seu
filho. Ela ficava receosa de que as pessoas pudessem ler o conteúdo dos documentos dos
quais ela fazia cópia, por isso andamos bastante, até achar um lugar onde as pessoas não a
conheciam e nem o caso do filho. Enquanto esperávamos pelas cópias, Izildete expressou um
comentário cético: “Se cada papel desse fosse uma palavra certa!”.
O clima que Izildete relatou foi de muito medo e tensão em sua vida cotidiana e na dos
moradores da localidade. Segundo ela, há sempre um carro rondando, sempre um policial
ameaçando sumir com o outro filho, sempre uma experiência traumática nova, sempre um
clima de suspense e morte rondando. No relato de Izildete, expressa-se aquilo que Teresa
Caldeira chamou de “a fala do crime”. Ela também fala dos impactos da violência em sua
rotina, dos hábitos que mudaram e das medidas de segurança que tomou. Hoje, ela e os filhos
evitam andar tarde da noite pelas ruas de Queimados com medo de que algo venha a
acontecer a eles. Os filhos deixaram de estudar em Queimados, mudaram de escola, passando
estudar no Rio de Janeiro. Ela fez vários pedidos para entrar para o serviço de proteção a
testemunhas, mas diz que não foi atendida.
Segundo Izildete, vários recados lhe foram enviados pelos policiais, eles passam de
carro em frente à sua casa e verbalizam ameaças. Em uma ocasião, a mãe de um dos policiais
mandou um recado para Izildete, dizendo que Izildete “pagaria” caso qualquer coisa viesse a
acontecer com seu filho. A mãe do policial disse que se seu filho fosse preso, quando saísse da
prisão, ele “acabaria com a raça” de Izildete. Izildete chegou a prestar depoimento numa
delegacia registrando as ameaças que vinha sofrendo dos policiais e da mãe de um deles:
122
A depoente tem conhecimento de que seu filho saiu de casa na companhia de três
parentes, sendo que até a presente data não tem notícias do paradeiro de seu filho
Fábio Eduardo Soares Santos de Souza, bem como de seu sobrinho de consideração
Rodrigo Abílio; que tomou conhecimento de que no dia do desaparecimento ambos
foram abordados pelo policial militar [nome do policial], fato este confirmado pelo
próprio policial militar, que revelou à declarante ter realmente abordado o seu filho e
seu sobrinho Rodrigo e os liberado a seguir; que desde então vem buscando
informações no sentido de esclarecer todo o episódio; que em razão das suas buscas
vem sendo pressionada pelo policial [nome] que vinha lhe ameaçando, mandando
parar de andar (lá embaixo), no centro do Rio de Janeiro, vez que o fato já estava
arquivado e com as suas andanças, iria acabar por desarquivar, dizendo ainda que
iria processá-la, tendo notícias de que efetivamente o policial [nome do policial] deu
início a uma notícia-crime em face da declarante, oportunidade em que deseja
acrescentar que jamais acusou qualquer pessoa pelo desaparecimento de seu filho,
cobrando apenas esclarecimento quanto ao sumiço deles: (Fábio e Rodrigo); e ainda
segundo [nome do policial], a declarante deveria pensar bem no Flavinho (seu filho
especial). Que no dia de ontem, ou seja, 20 de abril de 2005, por volta das 23 horas,
chegaram na sua residência três pessoas, sendo um deles, o primo de Rodrigo e dois
outros, cujo nome desconhece, tendo o nacional [nome] dito à declarante que a mãe
de [do policial], que sabe chamar-se [nome], teria telefonado algumas vezes para ele,
dizendo para que comparecesse na casa dela [da mãe do policial] pois desejaria que
o mesmo fosse arrolado como testemunha de seu filho, tendo a referida senhora dito
a [nome] que ainda tinha muita gente solta e que quando seu filho saísse da cadeia, a
primeira que ele iria acertar as contas seria com a própria declarante, pois ele já
acreditava que iria perder a “farda”; que dois outros que chegaram com [nome]
ficaram apenas olhando para a declarante prestando atenção na conversa, tendo ainda
[nome], ao sair, dito que iria testemunhar a favor de [nome do policial] e que era
para a declarante pensar bem e que tinha muita gente do lado dele; tendo [nome]
logo após sair do portão de sua residência atravessado a rua [nome da rua],
ingressando no bar existente no número [x], cujo imóvel é de propriedade da família
do policial, permanecendo conversando com o dono do bar Sr. [nome do dono].
(Termo de Depoimento de Izildete Santos da Silva, 21 de abril de 2005).
Izildete sempre fala da dificuldade que é viver muito próximo aos policiais acusados
de terem “sumido” com seu filho e o amigo. Ela se depara na rua com os policiais, eles
continuam ameaçando e nada os detém. Eles continuam soltos, a fazer ameaças e a intimidar
as pessoas, produzindo um clima de medo paralisante nas pessoas, que temem morrer ou
sofrer algum outro tipo de represália. Izildete recebeu vários “avisos” para não continuar
denunciando os policiais. Caso continuasse a levar à frente as denúncias poderia “ser pior”
para ela.
Ela conta também que muitos dos policiais envolvidos em grupos de extermínio se
candidatam nas eleições. A eleição é uma estratégia para adquirirem uma espécie de
“blindagem” ainda maior do que já possuem na condição de policial. Através da imunidade
parlamentar, tornam-se cada vez mais intocáveis e imunes à aplicação da lei. Muitos
conseguem se eleger e isso significa a desmedida do poder, passam a gozar de imunidade
parlamentar, tornando ainda mais difícil a investigação sobre seus crimes. Alguns dos
policiais acusados de serem os responsáveis pelo desaparecimento do filho de Izildete e de
123
27
seu amigo mais tarde seriam acusados de participação na Chacina da Baixada .
Para muitos, não seria sequer um sentimento, mas atitude, conduta, enfim, uma ação
na qual envolvem-se tanto o ator como a vítima. Por exemplo, diante de um ato de
alguém que nos coloque para baixo ou nos rebaixe, podemos sentir vergonha, por
nos sentirmos ofendidos em nosso amor próprio. O ato ou a conduta de humilhar
alguém, cria o sentimento de rebaixamento e de inferioridade. Além disso, diante da
humilhação a vítima pode desenvolver sentimentos de ódio, de revolta ou de
vingança. Por esse motivo, a humilhação assemelha-se mais a um ato de ofensa do
que a um sentimento vivenciado pela vítima à qual é imposta uma conduta de
rebaixamento. Entretanto, estamos acostumados a tratar a humilhação como um
sentimento. Talvez seja um engano de nossa parte tratá-la dessa maneira, porque
retiramos dela a intencionalidade e a responsabilidade social que ela deveria ter se
fosse tratada como uma conduta ou uma ação passível de punição e condenação
(Decca, 2005: 106).
27
A Chacina da Baixada ocorreu em 31 de março de 2005, nos municípios de Queimados e Nova Iguaçu, na
Baixada Fluminense, e deixou 29 pessoas mortas. A chacina estaria ligada à prisão de policiais militares
acusados de jogar uma cabeça dentro do 15º Batalhão de Polícia Militar (Duque de Caxias).
124
resignação; em certos momentos acha que o filho pode estar vivo, em outros, cogita a
possibilidade de ele estar morto.
Outro relato de humilhação descrito por Izildete refere-se a uma situação vivenciada
por outro filho, três meses antes do desaparecimento de Fábio. Esse filho foi a uma festa no
bairro e, lá, um grupo de pessoas, que ele não soube identificar porque estava bêbado, lhe deu
uma surra, tirou-lhe a roupa e o colocou para andar nu pelas ruas.
Izildete também manifestou, em sua fala, certa queixa em relação às ONGs de direitos
humanos que, segundo ela, pedem documentos e mais documentos que “nunca dão em nada”.
Ela conta também que uma entidade de direitos humanos que está acompanhando o caso
prometeu que a tiraria da casa onde está morando, por questões de segurança, mas isso não
28
chegou a acontecer .
Uma das principais dificuldades para que se faça justiça e promova-se a reparação de
danos causados a familiares de vítimas de violência policial, mesmo que fora de serviço, é a
dificuldade de produção de provas que incriminem os acusados. Geralmente o ônus da prova é
repassado aos familiares da vítima. Quando se trata do crime de policiais a situação é ainda
mais complicada. A tarefa de investigação dos crimes é repassada para a família ou para a
própria vítima, quando esta não chegou a ser morta.
Segundo o relato de Izildete, a racionalidade da burocracia jurídico-policial consiste
em impedir e/ou destruir a construção de provas por parte dos familiares de vítimas, dando
maior margem para a impunidade e não responsabilização criminal do acusado. O caso do
desaparecimento forçado é paradigmático nesse sentido. Não havendo o corpo da vítima para
provar a materialidade do crime, torna-se quase impossível esclarecer a verdade dos casos,
fazer justiça e reparar as vítimas. Outro exemplo, nesse sentido, é o auto de resistência, onde o
policial acusado de matar é quem produz o documento que dá origem aos procedimentos
policiais e jurídicos de investigação do caso. Desse modo, a investigação tem início a partir da
versão do acusado e não da vítima que está fazendo a denúncia e a acusação.
Tendo os familiares iniciado uma denúncia pública acusando policiais de assassinato
ou desaparecimento forçado de uma pessoa e não conseguido provar as denúncias, exatamente
porque as provas são destruídas ou forjadas pelos próprios acusados, pode ocorrer um
processo de inversão, onde a vítima passa a ser acusada, tornando-se réu no processo.
Em 2010, quando o caso completou sete anos, acompanhei Izildete, com o apoio da
Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, em uma manifestação que ela
28
Em junho de 2012 fui informado por Izildete que ela havia ganhado uma casa de algum programa de
assistência social que não me foi possível identificar.
125
organizou em Queimados, em memória do filho. O protesto foi também uma cobrança por
justiça e consistiu em uma caminhada refazendo o trajeto que os jovens teriam feito pela
última vez, terminando com uma visita à delegacia. Éramos poucos, caminhando e segurando
uma faixa, sob um sol quente, e afixando cartazes em postes e bares. Enquanto parávamos
para pregar os cartazes, vez ou outra uma conversa se iniciava com moradores locais, e
ouvimos várias histórias de desaparecimento envolvendo policiais naquela área. Quando
tentávamos pegar os contatos dos familiares, entretanto, as pessoas ficavam medo, davam
uma desculpa e acabavam por não fornecer.
Maria do Retiro tem por volta de quarenta anos, é moradora de uma área popular na
zona Norte do Rio de Janeiro, por alguns considerada favela, por outros bairro. A mediação
para a realização da entrevista foi feita por outra mãe, também do local, cujo filho também
havia sido morto, e que eu já havia entrevistado. Eram vizinhas e tinham histórias similares.
Os filhos de ambas foram mortos, segundo elas, por milicianos. Uma encontrou o
corpo sem a cabeça e a outra encontrou a cabeça sem o corpo. Maria do Retiro aceitou o
convite para a entrevista, mas ponderou que, por motivo de segurança, a mesma não poderia
ser realizada em sua casa. A entrevista foi então realizada em minha casa, na Pavuna, e contou
com a participação de Marilene29.
Maria do Retiro tinha cinco filhos e dois netos, sendo que um dos filhos foi vitimado
na “comunidade”, como ela diz. Entre quinze e dezessete anos esse filho “foi envolvido no
tráfico”. Maria do Retiro faz questão de enfatizar que o filho “mudou de vida”, e lamenta que
“não estava trabalhando de carteira assinada porque não teve oportunidade”, mas trabalhava.
Era o responsável pela marcação dos jogos de futebol numa quadra construída pelo Viva Rio.
Em 2007, a milícia entrou na localidade e passou a controlar o território. Maria do
Retiro conta que, como já havia quase quatro anos que o filho encontrava-se afastado do
tráfico, ele estava “com a consciência limpa”. Muitas pessoas orientaram seu filho a retirar-se,
a ir embora da “comunidade”, porque temiam que “alguma coisa” pudesse lhe acontecer.
29
Marilene participou como assistente de pesquisa durante parte do trabalho de campo, realizando juntamente
comigo algumas das entrevistas desta tese.
126
Confiante de que nada lhe aconteceria, o filho, acompanhado da mãe, procurou os milicianos
da área, que são policiais, ex-policiais e bombeiros, para explicar sua situação.
30
“Gestão” é uma palavra que aparece na própria fala de Maria do Retiro. “No início da gestão dessa milícia lá,
algumas pessoas que eles mataram, o pessoal estava dizendo que eles levavam a pessoa lá para a [Baixada
Fluminense], que tinha um sítio que tinha um jacaré. O pessoal falava. Então, eles matavam a pessoa ou jogavam
127
“mercadorias políticas” (Misse, 1999) acessíveis para garantir seu poder local.
Segundo Maria do Retiro, o que a chateia mais é o fato de o filho não ter tido
oportunidade de mudança e, nesse caso específico, ela refere-se à corrupção policial. Diz que
entende que é preciso lutar pelos direitos, mas a corrupção policial “corta” as chances das
pessoas. No decorrer de sua fala, polícia e milícia se confundem, sua crítica é dirigida aos
dois, como querendo apontar a conexão que existe entre estes dois atores. O cerne da crítica é
que aqueles deveriam proteger, aqueles que legalmente têm essa função, valem-se do poder
para vender proteção a alguns, permitir práticas ilegais de outros, torturar, matar e desaparecer
com os corpos de outros mais. Nesse contexto, até mesmo a possibilidade de denúncia sai do
a pessoa viva”.
128
horizonte.
3.3.3. A peregrinação pelas instituições estatais: com exame de DNA, mas sem atestado de
óbito
O sofrimento de Maria do Retiro estende-se em cada passo que dá para tentar resolver
a morte do filho. Em cada visita a uma instituição ela é reencaminhada para outra repartição,
outra instância, sem que suas necessidades e seus direitos sejam garantidos. Essa reclamação
sobre a forma como as instituições estatais, através de seus agentes, lidam com a dor dos
familiares, de maneira humilhante e desrespeitosa, aparece de modo geral nas falas de todos
os parentes de vítimas que passam pelo assassinato e desaparecimento dos filhos. A luta para
conseguir fazer um exame de DNA para identificar o filho é sempre um desses momentos em
que os familiares são enviados de um lugar para outro, sem que ninguém resolva nada.
Marilene - Agora deixa eu te fazer uma pergunta. Quando você achou a cabeça do
seu filho, você teve que esperar para fazer o DNA? Você conseguiu enterrá-lo com o
nome dele?
Maria do Retiro: Não. Até hoje só tenho o DNA. Eu demorei para fazer o DNA. Esse
fato do encontro foi por volta de setembro. Eu fui fazer o exame, colher o sangue,
em março do ano seguinte. Depois, demorou mais uns meses para pegar o
[resultado]. E toda vez no telefone, eu ficava ligando, ligando e nada. Aí peguei o
resultado, deu positivo, lá na DP. Aí fui no IML. Que até então, eu achava que com
aquele DNA ali... Ele não trabalhava de carteira assinada, então não tinha essa
preocupação de correr atrás de pensão para o meu neto. Mas aí eu achei que aquele
DNA ali, fosse um documento que constasse que ele estava morto. Aí a moça falou
assim. Até a Helena que uma vez falou assim: “Eu fiz o óbito do falecido Caio”. Que
eu conhecia o filho dela desde pequeno. Aí ela disse: “Eu fui na Defensoria Pública e
lá eles me indicaram”. Aí eu fui lá na Defensoria Pública. Aí a doutora falou: “Quem
mandou a senhora vir aqui?”. Não, primeiro eu fui no IML e eles disseram: “Não, a
senhora vai ter que ir à Defensoria Pública, porque o juiz é que vai autorizar fazer o
óbito dele. Aí eu fui na Defensoria e os eles falaram que não. Falaram: “Mas a
senhora não tem que...”. E eu falei: “O que eu tenho que fazer?”. E ela: “Não sei”.
129
pendências legais que a morte do filho deixou, mas peregrina de instituição à instituição sem
que ninguém lhe dê sequer uma informação correta de como deve proceder, o que fazer,
aonde ir. Embora tenha conseguido identificar os restos mortais do filho, através do exame de
DNA, não conseguiu obter o atestado ou certidão de óbito.
Pergunto a Maria do Retiro o que ela conta, ou como ela fala, sobre o desaparecimento
do filho ao neto:
Eu falo que todo mundo que vive aqui na terra uma hora tem que ir embora. Não
falei. Se ele souber, vai ser pela boca de outra pessoa. Não falo a realidade. Que ele
já teve outras pessoas lá... A mãe do coleguinha dele ficou doente e faleceu. Aí eu
falo: Você lembra da tia Madalena? Ela ficou aqui na terra, cumpriu o tempo dela
aqui, viveu, agora ela foi lá para o céu, virou estrelinha, está lá com papai do céu”.
Aí, às vezes comentando com minha patroa que o sofrimento me fez rir muitas
vezes, sabe. Teve uma vez que indo para a casa da minha irmã com ele, aí o céu
estava cheio de estrela, com muita estrela. Aí ele viu uma maiorzinha, brilhando pra
caramba. Aí ele: “Olha lá vó, o céu está cheio de estrela. Aquela grande lá é o meu
pai. Aí eu falei: “É, está vendo, todo mundo que vai com papai do céu, vai lá para o
céu virar estrelinha”. Ele ficou andando, olhando para o céu. Aí chegou na casa da
minha irmã, ele falou: “Todo mundo que vai com papai do céu vira estrelinha, meu
pai está agora lá em cima”. Aí minha irmã, que é da igreja católica, falou: “É. Todo
mundo, eu vou, sua avó, todo mundo, uma hora vai chegar e a gente vai. “Até você
mesmo, vai viver um tempão e depois vai também”. Aí ele falou: “Mas para ficar
parado lá em cima...”. Porque ele é elétrico, né: “Para ficar parado lá em cima, não
quero não”. Quer dizer, a gente sofrendo, com o coração assim e ele vem. Quer
dizer, é o que eu falo com a [nome de uma familiar amiga]. Ela tem a netinha dela,
não é? Eles não vão substituir, não é? A gente vai ficar com os netos muito tempo.
Mas pelo menos uma alegria eles dão para a gente.
Além de correr atrás da Justiça para resolver a morte do filho e cuidar do neto, é
preciso também administrar as relações perigosas da filha, viciada em crack e vivendo em
situação de rua. “A droga é o inimigo número um”, diz Maria do Retiro. Na mesma época em
que o filho morreu, a filha também passava por uma situação difícil com o crack.
Segundo Maria do Retiro, desde quando sua filha começou a usar maconha, aos
quinze anos, seu comportamento foi mudando dentro de casa. Quando ficava dentro de casa, a
abstinência da droga a deixava irritada. A irmã de Maria do Retiro chegou a ser atacada com
uma faca pela sobrinha. Maria do Retiro conta que sua casa tem dois andares e, com o vício
da filha, passou a trancar a porta debaixo para que ela não fugisse, mas como a janela de cima
130
não tinha tranca, a filha pulava e fugia pelos telhados dos vizinhos. Ficava dois ou três dias
fora de casa, depois voltava. Tempos depois fugia novamente, até que, após vários “derrames”
onde morava, teve que se mudar da área. Para preservar a segurança e a vida da filha, Maria
do Retiro chegou a comprar uma casa em outra localidade, porque pretendia se mudar de onde
mora atualmente. Como a casa tinha muitos problemas decidiu vender, mas enquanto não
vendia resolveu colocar a filha para morar nessa casa, para retirá-la da rua e protegê-la das
ameaças que estava sofrendo de milicianos. Porém, a filha alugou a casa para pessoas
desconhecidas e a milícia local passou a exigir que o aluguel da casa fosse repassado para a
Associação de Moradores, comandada pelos milicianos.
Eu cheguei a comprar uma casa naquele lugar que eu falei, perto da Via Light.
Comprei uma casa lá. A casa é toda maquiada. Entra água de esgoto, entra refluxo
do esgoto nos ralos, falta água para caramba. E eu confiei, era uma senhora de idade,
então eu confiei nela. Eu estava doida para sair de lá. A casa deu problema. Aí, essa
minha filha é usuária de drogas. Já esteve na cracolândia, em Manguinhos. Está fora
de casa desde os quinze anos. Ela não pode ir lá porque eles querem pegar ela
também. Só para você ter uma idéia da... Aí, em uma época, ela falou assim:
“Mãe...” Ela estava no [nome do lugar]. “Mãe, eu quero sair daqui, eu quero dar um
tempo dessas drogas, não quero usar droga mais não”. Aí, cheguei no Juizado de
Menores, me deram um encaminhamento para ela fazer um tratamento. Só que não é
um lugar onde fica internado. A pessoa vai periodicamente, semanalmente, sei lá. E
vai fazer um tratamento. Aí não tive como porque eu que tenho o controle do horário
dela, né? Quantas vezes eu marquei com ela para tirar a identidade e ela não
aparecia. Aí eu falei: “Kelly, se você quiser, você fica na casa vazia até vender. E eu
vou levando as coisas para você lá”. E ela: “Ah, mãe, eu vou para lá”. E foi lá para
casa. Ficou uma maravilha. Engordou, fez amizade com as meninas, com uma
senhora lá que é vizinha. Estava uma maravilha. Aí, de repente, entro lá e cadê
Kelly. Ela alugou a casa para um casal. São trabalhadores, vendem peixe. Aí, alugou
a casa para esse casal. E eu falei: “Kelly, por que você fez isso sem minha
autorização? Errou você e erraram eles, porque eles sabem que você é menor de
idade”. E ela: “Ah, mãe, vou morar na casa da Simone, é para essa casa não ficar
vazia”. Confortável porque tinha que levar as pessoas lá para ver, não é? Em
comunidade você sabe como é. Fui lá, conversei com o casal e tal. Eles disseram:
“Não, a gente está aqui, mas na hora que tiver que sair, a gente vai e tal”. Mostrei a
documentação da casa, foi registrada em cartório e tal. Aí Kelly sumiu de lá uns
dias. E eu fui na casa dessa menina, da Simone, procurando e nada. Ela falou: “Ah,
tia, o chefe daqui estava preocupado com ela”. Quer dizer, a Kelly teve uma recaída.
Sabe o que ela fez? Ela veio para uma tal de Quitandinha, aqui para o lado da
Pavuna. Veio e tal. Quer dizer, na certa atrás de droga, porque na área de milícia não
tem. Sumiu. Aí eu fui lá. Eu falei: “Kelly, eles vão passar”. Porque eles pagavam no
final do mês, aí mudou o dia. Ela: “Mãe, eles mudaram o dia, porque o pessoal lá do
mercado mudou o dia do pagamento deles”. Aí eu falei: “Que dia?”. Ela: “Ah, eu
vou ligar para eles e vou falar com a senhora”. Aí aconteceu isso. Aí eu fui lá para
conversar com os dois [o casal que alugou a casa]. Aí, o rapaz foi me falar: “Olha,
Maria, eu vou ter que pegar o aluguel, duzentos reais, e eu vou ter que dar lá na
Associação, porque eles confiscaram o aluguel. A milícia está aqui agora”. Eles
confiscaram o aluguel porque ela saiu de lá e veio para esse lugar, Quitanda, que é
inimigo deles.
O circuito por onde circula a filha de Maria do Retiro é demarcado, de um lado, pelas
drogas e pelos traficantes de drogas, de outro, pela milícia e polícia. Mas as coisas não são tão
131
separadas assim. O que se tem são disputas, que ora resultam em acordos sempre provisórios,
ora resultam em mortes e desaparecimentos. No relato de Maria do Retiro, milícia e polícia
aparecem várias vezes como se fossem sinônimos.
Ao contar as histórias da filha, novamente aparecem as críticas à polícia, à forma
humilhante como são tratados os moradores de favelas quando precisam recorrer ao serviço
policial. Quando precisou recorrer a uma delegacia de polícia para registrar uma ameaça que a
filha vinha sofrendo, Maria do Retiro sentiu na pele o desprezo da funcionária que a atendeu.
Segundo o relato de Maria do Retiro, o olhar da atendente foi tão ofensivo que na mesma hora
ela desistiu de fazer o Registro de Ocorrência, pegou a filha e foi embora.
Para você ver a indiferença da instituição policial. Nas delegacias é a Polícia Civil
que atua, né, dentro das delegacias. Aí minha filha ficou, nesse tempo que ela ficou
em Manguinhos, na cracolândia... Até mau cheiro ela tinha. Não conseguia ficar
perto dela. Ela estava [fedendo] mesmo. Então, eu tentava levar ela para casa. Para a
casa de um conhecido, porque lá em casa não podia. Ela falava: “Não, mãe, eu vou
para a casa de uma amiga minha. Vou sair daqui e tal”. Quando foi um belo dia, eu
estava em casa. O meu netinho estava meio doentinho, e eu estava fazendo uma
sopinha para ele. Aí, toca meu celular. Atendeu e eu ouvi a voz dela assim, nervosa e
uma voz de homem no fundo. Aí, ele: “Cadê, cadê, é sua mãe?”. Aí, ela falou:
“Mãe!”.Começou a chorar e desligou o telefone. Aí, eu tentando ver [o número do]
orelhão. Aí, uns cinco minutos depois, ela ligou de novo. Aí ele: “Vai me dar, vai me
dar”. E ela: “Eu não peguei nada não”. E chorando. E eu falando: “Kelly, você está
onde?”. E ela: “Mãe, eu vou para a delegacia”. E eu: “Que delegacia?” E ela:
“[Número da delegacia]”. Eu falei: “Carla, termina aqui que eu vou lá correndo para
a DP. Ela estava descalça, toda suja, com mau cheiro, como da última vez que eu
tinha visto, dentro da delegacia. Eu entrei lá dentro e ela estava sentada, descalça.
Sentada e nervosa, olhando para fora. E eu falei: “Kelly, o que aconteceu?”. E ela:
“Mãe, eu fui pegar um táxi e... Peguei um táxi para ir para Bonsucesso, aí eu só
tinha três reais. Falei com taxista se ele podia me deixar na Escola Bahia, na Brasil,
ele tentou me agarrar, me levou para outro lugar, para uma rua deserta e tentou me
agarrar. A pessoa nem conseguia ficar perto dela com o cheiro. E eu: “Kelly, com
quem a gente vai falar aqui”. E ela: “Não, mãe, a gente vai embora”. Eu fui no
balcão, falei com a menina que atende. Falei: “Minha filha está com um problema,
me contou uma história, mas eu não estou acreditando. Ela...”. Ela perguntou: “Ah,
ela mora onde?”. Eu disse: “Ela mora em [nome do lugar], mas ela estava aqui na
cracolândia”. Aí a menina olhou para ela. Eu fiquei tão indignada com o olhar da
garota para ela, que eu não quis nem fazer Boletim de Ocorrência. Ela falou assim:
“Que problema?”. Com aquela indiferença. Eu olhei assim e falei: “Vou abrir BO
aqui sem saber o que contar?”. Eu não acreditei na história dela, eles muito menos
vão acreditar. Aí ela não queria sair, estava com medo. Eu falei: “Vamos embora,
Kelly. Vamos lá que eu vou comprar um chinelo para você”. Ela falou: “Não, mãe,
não posso ir”. Olhando para o vidro, procurando alguém. Quer dizer, pelo tempo que
ela me ligou e eu cheguei na delegacia, eu acredito que ela estava em frente à
delegacia. Ela estava sofrendo ameaça ali em frente. E entrou na delegacia,
correndo, sozinha, no estado que estava e ninguém se manifestou, viu e não ofereceu
uma ajuda. Ai, fiquei tão indignada. Aí, falei: “Então, espere aqui que eu vou lá fora
comprar um chinelo para você”. Comprei o chinelo lá perto da Estação de
Bonsucesso. Voltei com o chinelo, ela foi ao banheiro, molhou a mão, passou no
cabelo”. E para ela sair de lá da delegacia!? Não queria sair, porque ela sabia que a
pessoa que estava atrás dela estava ali fora. Aí, eu falei: “Kelly, tem alguém aqui?
Você está com problema com alguém que está aqui perto?”. E ela: “Não, mãe”.
Assim, meio desconfiada, não queria me falar. E eu: “Fala, Kelly”. E ela: “Não, mãe,
132
vamos embora”. Aí veio o ônibus 576, dei sinal. Aí, não podia levar ela lá para casa.
Na casa das minhas irmãs, ela ficou uns tempos, por causa do problema dela com
vício. Aí minhas irmãs não querem mais ajudar. Acham até que eu tenho que abrir
mão dela. Quando ela estava no apartamento, todo dia eu deixava a marmita pronta,
a minha filha tinha que levar lá. Perto da Escola, levar comida para ela. Aí, minha
irmã: “Assim ela nunca vai largar o vício, porque você fica levando comida para
ela”.
Conforme nota-se no relato, a primeira pergunta que a atendente na delegacia fez foi:
“Ela mora onde?”. Ao responder, dizendo o nome do lugar onde a filha morava, e ressalvar
que ela encontrava em situação de rua, vivendo na cracolândia, estava armado o cenário para
a desconfiança. Ao procurar o serviço policial, apenas enunciar que mora em favela já é
motivo suficiente para desconfiança e para que o policial atendente construa hipóteses para o
que provavelmente tenha ocorrido. Nesse caso específico, além de dizer que a filha morava
numa favela, a informação veio complementada pelo “estava na cracolândia”. A reputação do
reclamante ou denunciante é um artefato central na orientação do trabalho policial31. Os
usuários de crack, chamados pejorativamente de cracudos, correspondem a uma categoria que
goza de uma reputação muito negativa. São mal vistos pela sociedade e pela polícia. A
condição de usuário desautoriza e descredibiliza qualquer denúncia de um usuário de crack na
condição de vítima. Usuários de crack são antes de qualquer coisa vistos como corpos
abjetos32. (Rui, 2012).
3.4. Áureo
No dia 20 de novembro de 2008, dia da consciência negra, entrevistei Áureo. Ele teve
dois filhos assassinados pela polícia e um terceiro filho e a nora encontram-se desaparecidos.
Eu já tinha ouvido falar do caso do Áureo, porque ele é recorrentemente citado e usado
31
O desaparecimento, dentro da hierarquia das ocorrências policiais, é em si uma ocorrência vista dentro do
trabalho policial como sem importância. Associado ao local de moradia e à reputação da pessoa desaparecida, o
policial geralmente elabora seu “olhar”, constrói suas hipóteses sobre o que poderia ter acontecido em cada
situação. A esse respeito, Ferreira (2011: 148-149), em sua etnografia sobre uma delegacia especializada em
investigar casos de desaparecimento, faz a seguinte observação: “A inferioridade do desaparecimento, da favela
e de seus moradores anuncia um segundo artefato do trabalho policial em torno de casos de desaparecimento,
que destaco a seguir: a construção de reputações. No cenário de desconfiança em que os casos são registrados,
'só de olhar' policiais levantam parcos conjuntos de hipóteses sobre o que pode ter passado a certos
desaparecidos. [...], casos de homens jovens registrados como tendo ocorrido em favelas são frequentemente
encarados a partir de um leque de hipóteses ainda mais restrito que o característico da rotina burocrática
percorrida por desaparecimentos. Se [...] de modo geral, policiais trabalham com as hipóteses de morte, prisão e
internação, diante de muitos casos esses mesmos agentes afirmam ter certeza do que se passou: os jovens
estariam envolvidos com uso ou tráfico de drogas e teriam sido mortos em consequência disso. Já diante de casos
protagonizados por mulheres jovens e meninas, muitas vezes policiais expressam suspeitas de que as
desaparecidas estariam se prostituindo ou teriam sumido com seus namorados”.
32
Sobre o uso e comércio de crack, conferir a etnografia de Rui (2012).
133
politicamente por militantes da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, em
razão do grande número de pessoas assassinadas e desaparecidas numa mesma família. É
sempre relatado como um caso exemplar da política de segurança pública repressiva que, há
vários governos, é implementada no Rio de Janeiro.
Quando o entrevistei, Áureo tinha 62 anos. Teve 9 filhos, porém apenas 6 estavam
vivos. A primeira vez que o vi foi na sala da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a
Violência, numa ocasião em que alguns familiares de vítimas de violência foram convidados
pela Rede a gravarem depoimentos sobre os casos de violência que os haviam atingido. Os
depoimentos seriam apresentados em um evento organizado pelo Ministério da Justiça e
realizado em Brasília.
Enquanto esperávamos alguém chegar para abrir a porta da sala, conversávamos no
corredor Áureo, uma pesquisadora argentina e eu, quando um senhor que trabalhava em um
escritório na sala vizinha à da Rede aproximou-se de nós. Áureo nos contava sobre o caso de
desaparecimento do filho e da nora, quando este senhor se aproximou e parou perto de nós
para esperar o elevador. Notou que conversávamos sobre o desaparecimento de pessoas e quis
participar da conversa. Começou dizendo que, com o desaparecimento do corpo, o lado bom
era que a família não precisaria gastar dinheiro para fazer o enterro. E complementou, antes
de entrar no elevador, dizendo que se seus filhos sumissem ele não se incomodaria e não
perderia tempo procurando.
Alguns meses depois, encontrei Áureo novamente. Desta vez foi no enterro de Vera
Flores, uma das Mães de Acari. Foi nessa ocasião que combinei com ele de fazer a entrevista.
No dia da consciência negra, 20 de novembro, lá estava eu me dirigindo à casa de Áureo para
entrevistá-lo. Áureo combinou de encontrar comigo numa estrada próxima de sua casa.
Quando desci do ônibus, lá estava ele me esperando. Andamos alguns metros até chegarmos
no sítio onde ele mora. Há duas casas no sítio. Numa delas mora seu pai e sua mãe. Ele mora
na outra. A entrevista foi realizada na casa do pai e da mãe dele.
São todos lavradores e feirantes e Áureo se dedica a cuidar da roça do sítio. O
encontro com Áureo pode ser dividido em três momentos: primeiro, um momento de
conversas informais na cozinha da casa onde estavam presentes, além de mim e de Áureo, sua
mãe e seu pai. Enquanto eu tomava um café, eles foram me contando um pouco da história da
família. Falaram da vida de feirante, dos netos e bisnetos de dona Carlota, das filhas gêmeas
de Áureo. Seu pai ficava sempre calado, de vez em quando dava uma risada tímida.
O segundo momento foi a entrevista propriamente dita. Nesse momento nos dirigimos
para a sala da casa. Enquanto conversávamos, dona Carlota, a mãe de Áureo preparava o
134
almoço. Expliquei rapidamente a Áureo os motivos da entrevista, a pesquisa que eu estava
fazendo. Ele aceitou que a entrevista fosse gravada e conversamos por quase duas horas.
Deixei a entrevista correr o mais espontaneamente possível. Eu fazia poucas intervenções,
apenas um ou outro pedido de esclarecimento de algum ponto que havia ficado obscuro.
Embora minha experiência de entrevistar familiares de vítimas de violência me
dissesse que geralmente essas pessoas não se incomodavam em dar entrevistas porque tinham
necessidade de falar sobre o assunto para denunciar o caso e que esse tipo de entrevista tem
sempre algo de terapêutico e quase catártico quando os familiares relatam suas dores, seus
sofrimentos e suas experiências traumáticas, no caso da entrevista com Áureo, uma questão
me apareceu mais nitidamente: até que ponto vai o nosso direito de ficar remoendo e
revirando com perguntas e mais perguntas as dores de nossos entrevistados? Digo isso porque
a estrutura narrativa da entrevista se iniciou com o caso do desaparecimento do filho e da
nora. No decorrer da entrevista ele fez comentários sobre os casos dos filhos assassinados. Em
um primeiro momento, tentei explorar o caso de um dos filhos assassinados. Mas ainda havia
outro filho assassinado e, quanto a este, não tive coragem de prosseguir com mais perguntas.
Fiquei constrangido.
O motivo de meu constrangimento era que a fala de Áureo se diferenciava dos relatos
de outros familiares de vítimas de violência. Enquanto que geralmente há um esforço de
“limpeza moral” por parte dos familiares de vítimas, com o objetivo de romper a associação
da vítima com o envolvimento no crime, no caso de Áureo não havia limpeza moral alguma.
Recorrentemente ele se referiu a envolvimentos dos filhos com a criminalidade,
particularmente com assaltos e roubos de carros. Diante da minha falta de coragem para
prosseguir perguntando sobre o terceiro caso do filho assassinado, com medo de produzir um
mal estar em meu entrevistado, limitei-me a perguntar se ele se incomodava de ficar falando
sobre esses casos. Essa pergunta foi fundamental para continuar a entrevista, porque tudo já
estava se encaminhando para um desfecho, mas, de repente, a possibilidade de continuar a
conversa se abriu novamente quando ele disse que, para ele, não era incômodo algum.
Prossegui retomando uma história que ele já havia brevemente comentado comigo, sobre suas
relações conflituosas com o Exército. Ele serviu o Exército e, depois de um tempo, já fora,
veio a ter alguns problemas, sendo inclusive preso e torturado. A entrevista é finalizada com
Áureo relatando sua experiência como militar.
Um terceiro e último momento foi o almoço. Sua mãe e seu pai já haviam almoçado
enquanto conversávamos. Enquanto almoçávamos continuamos a conversa. Um dos assuntos
foram os conflitos que ele teve com a “moçada do tráfico”. Disse que uma vez a “moçada do
135
tráfico” tentou entrar em seu sítio para pegar um porco e fazer um churrasco. Áureo disse ter
trocado tiro com os bandidos e “botado eles pra correr”. Depois disso mudou dali por um
tempo, foi morar no Lins, depois voltou de novo.
Passemos, agora, ao relato do caso em si.
28 de novembro de 2006. Áureo liga para a nora Danielle para passar uma informação
ao filho Leandro. O filho ficara de levar um mecânico para consertar um carro para Áureo e a
informação era que não precisava mais, pois ele mesmo já havia arrumado alguém para fazer
o serviço. Danielle aproveita a ligação e informa a Áureo que seu filho ligara dizendo que
estava na casa de um amigo em Quintino, e que havia se machucado, porém não sabia dizer se
era algo grave. Áureo pergunta à nora o que aconteceu, mas ela não sabe dar detalhes da
história. Ele então manifesta sua preocupação a Danielle, dizendo que Quintino é uma área de
milícia.
A nora, que trabalhava em uma creche, disse que acabaria de dar banho nas crianças,
pegaria um moto-táxi e iria para Quintino. Áureo perguntou se ela não queria que ele fosse
junto, ela disse que não precisava. Ela acabou indo e também sumiu, desapareceu. Insisto e
pergunto a Áureo o que teria acontecido ao filho, que versões teriam circulado. Sua reposta
foi que:
Não ficou esclarecido. Ficou falado que ele tinha feito um assalto e o negócio pegou.
E ele foi perseguido pela polícia, porque até um...vamos dizer assim, não vou
especificar, porque o cara é bem graduado dentro da polícia, mas ele próprio falou
para a gente, para mim e outras pessoas que estavam junto comigo no quartel.
Falando que meu filho tinha assaltado com um trinta e oito. “Pô, mas ele foi fazer
assalto com um trinta e oito”. Quer dizer, fiquei sabendo disso por intermédio da
própria polícia, que a gente não sabia de nada disso. Bom, quando chegou no outro
dia, ligaram para mim, que ele não tinha retornado, que ele tinha desaparecido. Aí as
minhas filhas indo nessa 24ª DP - Delegacia de Polícia -, que é a Delegacia de
registro, era a 24ª DP lá em Quintino e eles não estavam querendo registrar. Eles
não estavam querendo fazer o registro. Aí eu falei, ah eles não estão querendo fazer
o registro, não? Aí eu fui procurar o pessoal da... nosso pessoal da rede, né, de
direitos humanos. Não vou na delegacia sozinho. Quer dizer, eles deixaram uma
filha, né, deixaram uma filha para mim com seis anos de idade. Como é que um
casal vai abandonar o filho, vai passear, vai fazer isso e aquilo, e vai abandonar o
filho, pô? Não tem cabimento. Se fosse um casal até sozinho, a gente até poderia
[supor] que de repente eles estão num lugar, não querem falar para ninguém. Mas
um casal com filho jamais ia fazer isso. Ainda mais eu sabendo do agarramento que
ela tinha e meu próprio filho, que não estava há muito tempo na rua, tinha puxado
uma cadeia e estava com a lei, né, garantia o direito dele, ele veio para a rua. Veio
para rua, mas ainda estava devendo cadeia. Quer dizer, uma das coisas também que
eu estou querendo entender é essa parte nossa jurídica, que o cara vem pra rua
devendo. Ele chega aqui, ele arruma é mais cadeia, a gente está cansado de ver isso
136
aí. Ele não se comporta. Quer dizer, ele não vem preparado para a rua. Eu acho que
um cara desde o momento em que ele pratica um delito, para ele vir para a rua ele
tem que estar no direito, né? Tem que estar preparado. Direito tem, mas o que
adianta o direito sem a pessoa estar preparada para botar o pé aqui do lado de fora.
Ele vai fazer as mesmas besteiras que ele fez anteriormente, e foi o que aconteceu.
O tratamento policial dispensado ao caso também é criticado por Áureo. Segundo ele,
praticamente não houve investigação do caso, a responsabilidade foi repassada à família.
Além disso, quiseram resolver o caso empurrando cadáveres encontrados pela polícia para a
família, dizendo que poderia ser o casal que Áureo procurava. Outras vezes, quando aparecia
apenas um corpo, descartavam a possibilidade de ser o filho de Áureo sem que fossem feitos
procedimentos para identificação do corpo, como, por exemplo, exame de DNA. No relato
abaixo, ele conta que foram feitos dois Registros de Ocorrências, que não deram em nada:
137
juntos, né, que talvez de repente... eu, hoje em dia, tenho quase certeza que era a
pessoa que eles estavam procurando, porque a menina estava grávida, a pessoa que
eles estavam procurando estava grávida. Quer dizer, depois quando foi feito o DNA,
a menina estava com dois, três meses de gravidez, depois quando os corpos foram
para a necropsia, para fazer o exame, ai foi descoberto que a menina estava
realmente grávida. A minha nora não, que eu saiba não. Mas você também não pode
falar nada, era uma gravidez precoce, de pouco tempo, mas, eles já vieram com essa
hipótese, a minha prima, alguma coisa assim, a parente que nós estamos procurando
está grávida de três meses. Quer dizer, hoje eu tenho quase certeza de que se a gente
faz o DNA junto ali ia... Eles pelo menos tinham um [cadáver]... Eu ficava no que eu
estou, mas de qualquer forma eu voltei à estaca zero. Mas, pelo menos, teria
resolvido, porque os dois cadáveres foram colocados no cemitério de Campo
Grande, quase que enterrados como indigentes lá, ficaram lá num lugar paupérrimo
nesse cemitério. Se fosse meu filho e minha nora, a gente ia lá para realmente
consumar, fazer o enterro. O que não aconteceu.
Sem saber nada praticamente, porque não houve uma investigação, então o que o
promotor mandou é eu cobrar isso aí. É o que eu sei, né, que foi na rua, quer dizer, aí
tem um... A delegacia mandou uma intimação para a Rua da República, número 74,
pô, eu tenho que ver lá, que diz que é uma vila. Eu fui uma vez lá e não tive coragem
de parar, está me entendendo, eu fui lá cara, mas me deu uma coisa tão estranha, tão
esquisita, que eu saltei no ponto de ônibus para ir lá, quase assim como daqui para
ali perto, eu não consegui, não sei o que houve, eu peguei o ônibus e fui embora,
nunca mais nem passei nessa rua.
Outra imperícia da polícia, ou desinteresse, segundo Áureo, foi deixar de intimar uma
testemunha que dizia ter visto o filho e a nora serem presos pela polícia. Na verdade, ele não
tinha certeza se essa testemunha chegou ou não a prestar depoimento. O fato é que ela viu os
dois presos pela polícia.
Tinha uma outra testemunha. Essa menina eles não intimaram. Depois quando
intimaram ela não compareceu. Não sei se ela foi. Ela viu. Ela não conhece meu
filho, mas ela trabalhava aqui no Hospital da Marinha e ela conhecia a Danielle, a
minha nora. E realmente falou a roupa que ela estava, que ela realmente estava, ela
viu os dois presos com a polícia...
Nas várias visitas a delegacias, Áureo teve que ouvir diversas vezes dos policiais que o
filho era bandido e estava sendo procurado pela polícia. Isso era o que mais o incomodava.
Os policiais que estavam me ouvindo na delegacia falaram para mim: “Seu filho é
bandido. Seu filho está sendo procurado pela polícia”. Na segunda vez, um
delegado, um dos delegados que mais contribuiu, que deu uma assistência, mas não
demorou nada na delegacia, falou com o policial: “Ele está aqui procurando o filho
dele desaparecido, não está querendo saber se o filho dele está sendo procurado”.
Ele chamou atenção do policial, entendeu, por este fato aí. Mas eu tive esse grande
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constrangimento de na minha cara, eu estou procurando meu filho, como é que vai
falar para mim que ele está sendo procurado. Não quero saber. Eu também estou
procurando. Quero ver achar. Eu falei: “Quero ver é achar!”. “O juiz fulano de tal
também está procurando, lá em Jacarepaguá o juiz beltrano também está
procurando”. Quero ver achar ele, eu também estou procurando. Então como é que
eles vêm falar isso comigo.
Neste caso, o fato de o filho estar sendo procurado pela polícia, praticamente retira o
direito do pai de fazer um registro de ocorrência e ter seu caso investigado. A acusação de
bandido que pesa sobre o filho e a trajetória de envolvimento com o crime, conhecida pelo
pai, leva Áureo a uma quase certeza de que o filho está morto. Diferente das mães que,
mesmo após anos e mais anos do desaparecimento dos filhos, alimentam a esperança de
reencontrá-los vivos, o envolvimento do filho de Áureo com o crime não permite manter tal
expectativa.
Não tem corpo, mas eles estão mortos. Quer dizer, praticamente eu tenho essa noção
concreta que eles realmente estão mortos, não estão desaparecidos. Quer dizer, o que
eu tenho para falar para você? Já vai fazer dois anos agora, dia vinte e oito de
novembro, e estou nessa situação que eu estou falando. Sem esclarecimento nenhum.
O contato com Maria Cecília seu deu por meio de uma psicóloga que conheci quando
realizava um trabalho de campo no Bairro Peixoto, em Copacabana. Essa psicóloga foi
entrevistada por mim para uma pesquisa que, em termos gerais, tinha o objetivo de analisar as
formas como os moradores de espaços de classe média tematizam e problematizam a
violência urbana. Além de fazermos uma porção de perguntas para nossos entrevistados,
muitas vezes somos interpelados a falar de nós mesmos, o que fazemos, onde moramos, o que
pesquisamos etc. Foi numa dessas situações que falei a esta psicóloga sobre a pesquisa que eu
estava fazendo sobre desaparecimento de pessoas/pessoas desaparecidas.
A psicóloga ficou muito interessada no tema e foi nesta circunstância que me disse que
atendia em seu consultório uma mãe, cujo filho estava desaparecido, supostamente em razão
da ação de uma milícia. Disse que não poderia passar imediatamente o contato dessa mãe sem
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que fosse autorizada, mas iria conversar com ela e provavelmente ela aceitaria me conceder
uma entrevista. Também recebi convites dessa psicóloga para falar em eventos por ela
organizados no Bairro Peixoto. Foi uma situação bem diferente das que eu estava acostumado
a participar. Falar para um público não acadêmico, embora muitos tivessem passado pela
universidade ou tivessem algum vínculo com ela, basicamente sobre o desaparecimentos de
pessoas pobres, quando meu interesse ali era também pesquisar como os moradores de classe
média lidam com a temática da violência urbana. Todos ficaram muito sensibilizados e
chocadas com as histórias que ouviram.
A psicóloga, enfim, conversou com a mãe do jovem desaparecido e, após esta aceitar
me conceder a entrevista, me passou os contatos para que pudéssemos nos comunicar. A
entrevista foi realizada no local de moradia de Maria Cecília, e dela também participou sua
filha Laura.
Maria Cecília é gari, moradora de uma área popular na Zona Sul. Segundo seu relato,
o filho caiu numa “cilada”, armada pela namorada. Em muitos relatos de familiares, a figura
da namorada, ou alguma mulher com outro tipo de vínculo, é apontada pelas mães dos jovens
desaparecidos como responsável por levar o filho para alguma “emboscada”, como nesse
caso.
Segundo Maria Cecília, o filho Ramon, de 20 anos, estava namorando Kátia, uma
menina de 18 anos, moradora de Duque de Caxias. O namoro iniciara há aproximadamente
um mês e a namorada frequentava o local de moradia de Ramon porque tinha uma avó que
também morava ali. O desaparecimento começou com a história de uma festa. Era o
aniversário da mãe de Kátia e aconteceria uma festa em Duque de Caxias, à qual Kátia
desejava que Ramon comparecesse. Maria Cecília não queria que o filho fosse, porque
segundo ela, ele não conhecia o “subúrbio”, e também porque não via com bons olhos essa
namorada.
Quando foi no dia 22 de novembro [de 2008], ela veio aqui em casa buscar ele,
porque era o aniversário da mãe e eles iam. Ele ia conhecer os pais [da namorada].
Aí ele ficou naquela enrolação, que não ia, que não ia, que não ia. Estava chovendo,
estava um tempo frio e na sexta-feira ele tinha arrancado dois dentes em cima, dois
dentes em baixo. Aí, acabou, no fim, ele se arrumou, e a irmã [da namorada]
ligando, ligando: “Você não vai vir ? Você não vai vir? Vai ficar aí por causa do seu
namorado e não vai vir para o aniversário da sua mãe?”. Aí eu cheguei, falei para
ela: “Vai porque a mãe é sua. Deixa ele, porque o Ramon não conhece o subúrbio”.
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Só que o Ramon não tinha juízo e o Ramon não conhecia o subúrbio, então eu pedi
que ela [fosse]... E falei para ela: “Você vai e deixa ele aqui.” Aí ele estava com
muita dor de dente. Eles almoçaram, passaram [o dia] juntos, eu pedi para ela fazer a
minha unha. E fazendo... enrolando, enrolando. Ele tomou banho e se arrumou. Eu
estava sentada aqui, minha irmã chegou e estava sentada ali. Minha irmã sentou ali e
eu aqui. Aí ele veio me deu um abraço muito quente, um beijo muito quente. Aí eu
falei para ele: “Meu filho, você não vai, porque isso está me cheirando a uma
cilada”. Aí ele falou: “Não, mãe, eu não vou não. Vou fazer o que lá? Porque eu não
conheço nada lá.”. Aí deu sete horas, isso era seis horas da noite, do dia vinte e dois,
deu sete horas... deu oito horas. Quando foi quase nove horas da noite o telefone
tocou, aí eu vim atender era ela, a menina: “Ô tia, já chegamos está tudo bem.” Eu
falei: “Chegamos aonde?”. “Na minha casa”. Eu falei: “Não, mas eu disse para ele
não ir.” “Tia, não precisa ficar com medo não porque aqui não tem negócio de
facção não, aqui é milícia.”
Após o telefonema de Kátia, Maria Cecília e a filha Laura comentam que essa
namorada do filho é “poderosa”, porque Ramon não tinha o hábito de sair de casa para lugar
nenhum e ela conseguiu retirá-lo de casa e levá-lo para um lugar que ele nem conhecia. Maria
Cecília diz que, quando Kátia ligou, quis falar com Ramon, mas nesse momento a ligação
caiu.
No dia seguinte à festa, os dois ficaram de aparecer para almoçar com Maria Cecília.
Ela conta que preparou o almoço, fez “um monte de coisa”, e nada dos dois aparecerem.
Depois de muito esperar, ela resolveu almoçar. “Vou almoçar porque eu estou com fome,
porque eu acho que não vem mais ninguém”. Nesse momento, o telefone toca. Quem atende é
a irmã de Ramon, e quem estava do outro lado da linha era Kátia.
Eu atendi o telefone, ela: “Laura, Laura, sou eu a Kátia”. Eu falei: “Ué, Kátia, você
está bêbada?”. Porque eu pensei que ela estava no aniversário e para mim a festa
tinha continuado, né? Ela: “Não, não, o Ramon”. Eu falei: “O que aconteceu com o
meu irmão?” [em tom apreensivo]. Aí nisso, alguém tomou o telefone da mão dela,
porque a voz era masculina e disse assim: “É que aconteceu uma coisa assim, tipo
uma tragédia com o Ramon.” Eu falei: “O que aconteceu com meu irmão?”. Aí já
entrei em desespero. “Ele foi para o campo jogar bola com o irmão da Kátia e
chegou lá, simplesmente chegaram seis caras, sequestraram o Ramon e levaram.
Atiraram dentro do carro e levaram.” Eu falei: “Não, não pode ser”. [Laura]
Após ouvir a notícia Laura desmaiou. Maria Cecília pegou o telefone e ouviu a mesma
história. Começava o drama e, para piorar a situação, não tinham o telefone da casa da
namorada de Ramon. Ligaram para toda a família comunicando o ocorrido, enquanto isso
procuravam perplexos explicações para o que estava acontecendo. “Isso não pode estar
acontecendo. Como é que chegam seis pessoas, um rapaz vai num local que nunca foi,
primeira vez, chega lá e simplesmente seis pessoas sequestram ele, e eles não viram o carro,
não denunciaram, não fizeram nada”, se questiona Laura.
Entre a perplexidade e a urgência de correr em busca de informações do paradeiro de
141
Ramon, lembraram de entrar em contato com a avó de Kátia, que era vizinha, morava ao lado.
E começou a roda-viva, a peregrinação.
142
irmã.
Laura: Aí fomos para o IML, fazer o reconhecimento do tal do corpo, mas quando
chegou lá não era ele. Aí o rapaz falou: “Então vocês tem que ir para o IML no
Hospital de Saracuruna”. Aí fomos e começamos a procurar o Hospital de
Saracuruna, o Hospital antes de Caxias. Fomos procurando nos IMLs, fomos
procurando, até que a gente chegou na Meia Dois [Delegacia].
Fábio: Meia Dois é lá em Caxias?
Laura: Lá em Caxias, no Imbariê. E explicamos a situação para o investigador. Ele
falou: “Mas olha, essa história aí está mal contada”. “Não tem história, né, não tem
história”, eu falei. “Nós estamos falando o que a gente sabe, o que foi passado para a
gente por telefone. Foi passado para a gente por telefone”. Chegamos a ir até Nova
Campina, até o posto. Chegamos lá, conversamos com os policiais do posto que
falaram que não tinha havido nenhum registro, nenhuma queixa. Não tinham ouvido
nenhum caso e que na verdade a gente tinha que voltar para a Meia Dois e fazer o
registro na Meia Dois. Aí continuamos procurando, aí no dia vinte e quatro, a gente
conseguiu fazer o registro. Já era outro investigador. Aí não, desculpa. Aí voltei,
voltamos para casa, voltamos de novo na Décima Quarta. Expliquei tudo de novo
para o investigador da Décima Quarta. Ele falou: “Minha filha, essa história está mal
contada e essa família tem que dar conta. Você vai para a Cinquenta e Nove, porque
lá é a jurisdição deles para fazer o registro, porque eles têm que registrar e ver o que
eles vão resolver”. Fomos na Cinquenta e Nove, chegamos na Cinquenta e Nove
explicamos de novo ao investigador. O investigador falou: “Não, mas não é aqui, é
lá na Meia Dois”. Aí voltamos para a Meia Dois de novo. Isso já era na terça-feira,
fomos muito bem atendidos, com certeza, pelo investigador. Explicamos tudo,
contamos toda a história que nós sabíamos. Ele falou que o que precisasse ia ajudar e
ia chamar, ia intimá-los a depor, aquela coisa toda. Só que hoje já se passaram seis
meses... Não encontraram o corpo, não sabemos... Nós vimos pouco interesse da
polícia. Porque, infelizmente, é como é a realidade do mundo, né, se você tem
dinheiro, você pode tudo, se você não tem...
Aí eu fui lá e conversei com o pai dela. Passei e perguntei ao pai dela: “Você sabe
me dizer o que vocês resolveram? Vocês sabem alguma coisa? Alguém comentou?”
“Não, nós não sabemos nada, e outra coisa, a senhora pode olhar dentro da minha
cara porque nós conhecemos todos os três, mas nós não podemos falar. Meu filho
viu, mas meu filho não pode falar porque se meu filho falar... os caras voltaram lá e
falaram que vão matar a família inteira”.
No trecho a seguir, Maria Cecília assume que o filho era usuário de droga, e ainda
assim, faz uma limpeza moral do filho para, em seguida, lançar suspeitas sobre a família da
namorada, por eles morarem em favela.
Agora, como lá é uma favela, porque você não vai dizer para mim que não é, porque
eu vi, com meus olhos, muito grande, com duas facções enormes. Aí quer dizer que
a polícia não vai, porque é um qualquer, é menos um. Eu falei para ele: “É menos
um”, falei para o pai. E eu falei para ele: “E o que eu estou falando para você, eu
143
disse para o delegado”. E não menti, falei: “Olha, ele usava droga, ele usava droga,
ele fumava maconha, mas ninguém dizia que ele fumava maconha, porque ele era
uma pessoa... ele tinha um metro e oitenta, era uma pessoa tranquila, não falava
gíria, não tinha andar de malandro. Ele andava muito bem vestido, porque o pai
deixou uma pensão do INSS, então eu com o meu salário e o salário que o pai
deixou é que eu mantenho a casa. Então eu nunca deixei nada faltar, sempre
conversava com ele: “Olha muito cuidado.” Uma vez ele estava na patota, eu via,
falava para ele: “Olha, muito cuidado, porque vagabundo mata, mas a polícia
também mata.”. Só que eu disse, se fosse aqui nós saberíamos se foi vagabundo e
saberia se era polícia. Só que lá, só quem pode dar essa resposta para a família, pra
mim ter sossego, paz, botar minha cabeça no travesseiro e dormir são eles, e eles não
falam.
Em sua fala, Maria Cecília se orgulha de ser trabalhadora e de ter conseguido criar os
filhos, e por outro lado, lança suspeitas sobre o pai de Kátia, chega a dizer explicitamente que
em sua opinião ele está envolvido no desaparecimento do filho. Diz que ele ficou muito
tempo sem frequentar a localidade e, após o “sumiço” do filho, passou a reaparecer com
frequência. “Aí ele sempre está aqui na casa da mãe, ele sempre vem na casa da mãe. Eu
disse: ’Todos os assassinos voltam no lugar do crime, não é? A resposta é essa, não é?’”. Em
outros momentos da entrevista, no entanto, ela relativiza a participação dele, por falta de
provas.
Maria Cecília e a filha Laura contam ainda que vivem ligando e indo à delegacia, mas
esbarram sempre em um jogo de empurra-empurra. Em cada delegacia à qual se dirigem,
recebem a informação, ou a desculpa, de que o caso foi enviado para outra repartição e,
quando chegam à outra repartição, não há registro algum. Relatam também que os policiais
disseram que mandariam uma intimação convocando os familiares para prestarem
depoimento, o que também não chegou a acontecer.
3.5.2. “A vida para mim parou, não vejo mais graça em nada”
144
um problema muito sério. Assim, a vida parou, eu fiquei inútil, né. A vida para mim
parou. Eu não vejo mais sentido em nada, eu não vejo mais graça em nada, porque
ele era a alegria da casa. Porque ele tinha um metro e oitenta, com vinte anos. Às
vezes parecia que tinha quinze, dezesseis anos. Então a vida para mim parou. Porque
ele era aquele filho assim, ele escutava, mas não via. Eu chamava ele, eu
conversava, eu falava, eu ia na escola. Eu consegui pelo juizado de menores uma
bolsa para ele fazer curso de bombeiro. Tudo eu ficava ali, eu tomava conta. Do
trabalho tomando conta, ainda falava para ele: “Você não tem vergonha? Você já
homem, rapaz, e eu tomar conta de você?”. Eu não dormia enquanto não desse onze
horas, onze e meia, enquanto ele não chegasse em casa. Mas infelizmente eu não sei
porque aconteceu. Porque falta de tomar conta não foi. Sempre tive muito medo,
porque se eu falar que não tenho, que não tive, eu estou mentindo, porque de
acontecer... de estar ali embaixo, da polícia vir dando tiro e ele receber um tiro.
Tinha medo de os caras entrarem aqui dentro dando tiro e ele receber...
Nós não esperávamos, né? Nós não esperávamos, então nós ficamos assim sem
saber o que fazer, porque eu fiquei vai aqui, vai ali, vai aqui, vai ali, vem aqui...
Andei tudo, fiz o que pude e faria mais. Aí vai para... Como é que é o nome? Félix
Pacheco, vai para o Instituto Médico Legal, para procurar corpos, quando chega lá,
não tem corpo nenhum, não tem identificação de ossada, não tem nada. E volta e
aquilo está só me roendo, aquilo está acabando comigo. Cheguei e fiquei numa
depressão de quarenta e seis quilos. Fiquei com problema emocional. Vira e mexe
estou fazendo... Então eu estou com dois ossos daqui da perna que estourou, aí os
145
médicos querem operar, mas eu pedi que não operasse agora, porque eu estou com
um problema emocional muito grande. Tenho medo de tomar anestesia e morrer, e
falecer, não é? Aí vou agora semana que vem no outro médico para ele avaliar, para
ele fazer uma avaliação, para ver o que ele pode me ajudar. Quer dizer me
complicou toda. Porque foi o que eu falei, foi o que eu estava falando com a
Doutora. Eu falei: “Olha, eles não mataram ele. Sabe por quê? Seja qual for o tipo
da morte ele descansou, eles mataram fui eu, que estou viva. Foi a mim que eles
deram o tiro no peito, foi a mim que eles tacaram fogo.” Porque sabe o que é criar
um filho sozinho, sem pai? Só eu sou mãe e pai. Sempre fui. Dos três filhos, eu sou
pai e mãe. Sempre dei duro, sempre trabalhei, sempre tomei conta. Perdi o resto da
minha mocidade todinha para cuidar dos filhos e depois um vem e me dá um abraço.
O passado e o futuro na vida de Maria Cecília aparecem “roídos”, para usar a palavra
dela. O fio que conduz o passado ao futuro era o filho. Esse filho, junto com os outros,
representou a perda da mocidade e a experiência da maternidade que, agora, diante do drama
e da tragédia que se abatem sobre sua vida, é violada.
Olha, você sabe que eu não tenho mais... Eu sentei, eu estou sentada, eu só estou
indo trabalhar porque infelizmente eu preciso ir trabalhar. Eu preciso trabalhar
porque eu tenho que pagar o apartamento, eu tenho que comer, eu tenho que vestir,
eu tenho que calçar. Eu tenho os remédios para comprar. Então eu preciso ter
dinheiro, se não eu não tenho dinheiro para comprar, mas eu preciso de trabalhar
para ter o dinheiro. Fico dependendo de ter o dinheiro, porque por mim eu acho que
só ficava deitada, dia e noite, e não fazia mais nada. Tipo assim, acabou. Tudo que
está [lá fora], prédio, loja, tudo, para mim não tem mais graça para nada. Não
aguento ficar dentro do supermercado, não aguento entrar dentro de uma loja, não
aguento fazer mais nada. Mais nada. Quando eu estou na rua varrendo, que eu acho
que a pessoa está me olhando, eu fico com medo daquela pessoa. Eu fico com medo
dela. “Ué, por que está me olhando?”
146
contínuos. Esse lidar constante com a morte pode ser considerado uma das formas como o
terror se manifesta neste tipo de experiência dos familiares.
Em relação ao relato de Maria Cecília, o que se tem parece ser uma associação entre
medo/dor/terror e uma angústia permanente sobre o fim que teria levado o filho. Teria tido
pelo menos o direito elementar de ter um enterro digno ou teria tido sua humanidade negada
até mesmo pela forma como morreu? Teria sido mais um corpo abjeto jogado nos rios ou nas
valas comuns do Rio de Janeiro? Uma das dimensões do terror é a incerteza, o fato de se lidar
apenas com rumores. O impacto desse terror aparece até mesmo nos sonhos dos familiares,
como esse relatado por Maria Cecília:
Nós ficamos sem saber se jogaram dentro do rio, nós ficamos sem saber se enterrou
ele. Porque eu no começo sonhei com ele, eu não sei se tu acredita em sonho, porque
tem pessoas que não, que não acredita, né? Eu tinha sonhado com ele que eu estava
assim num terreno baldio, mas eu estava varrendo. E era cheio de capim verde
miudinho. Varrendo trabalhando, mas eu estava chorando muito, trabalhando
chorando, nisso meu relógio, esse relógio meu caiu. Quando eu fui para pegar o meu
relógio aí eu vi ele de bruços. Eu falei: “Meu filho. o que você está fazendo aqui?
Você veio encontrar comigo? Levanta.” Aí ele mexia com a boca: “Não posso, não
põe a mão em mim, porque eu estou todo quebrado”. Aí eu acordei em desespero.
Eu vi direitinho e até hoje eu sei contar o sonho.
A gente foi no Fórum para poder saber como é que a gente podia fazer para poder
dar andamento no processo para ter um advogado, porque a gente não tem condições
de pagar advogado. A gente só quer ter uma resposta, porque é tão ruim você saber
assim... Ah, diz que morreu, diz que não. Você não viu o corpo, você não viu nada.
Você não sabe. É uma coisa, é aquela dúvida. A gente quer saber o que realmente
aconteceu. O que houve e o porquê. Mesmo se ele fez alguma coisa, que nós não
estamos sabendo, que não está no nosso conhecimento. Eu acho também que isso
não dá direito de ninguém pegar e tacar fogo ou fazer coisas, não existe isso.
Estando certo, errado ou não. Todo mundo tem direito de nascer, ter registro de
nascimento e viver, de morrer e ter registro do óbito. Olha, essa incerteza, essa
dúvida que corrói aos poucos, só quem está passando é que realmente sabe o que é a
dor. Porque eu sei que tem vários casos de... Não é só o meu, tem outros casos até
piores, que tem até mãe que sabe, que vê e não pode nem dizer. Entendeu? E
convive sabendo que fizeram vários tipos de covardias com seu filho e você tem que
passar e olhar.
147
3.6. Maria das Dores
O caso de Maria das Dores, assim como outros registrados nesta pesquisa, permite
pensar em escalas de desaparecimento, ou seja, são casos em que a pessoa desaparece por
algum tempo mas, depois de certo período, consegue-se comprovar a morte, através do
encontro de ossadas ou de partes do corpo, tornando possível a identificação através do exame
de DNA. Esse caso foi registrado quando decidi cruzar os registros policiais de
desaparecimento com os registros de encontro de ossada e encontro de cadáver.
O contato com Maria das Dores foi feito através de seu número telefônico, obtido
através de informações disponíveis no Registro de Ocorrência do desaparecimento. Após uma
ligação, ela aceitou conceder uma entrevista, que foi realizada em sua casa, na região de
Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, área com forte presença de milícias.
Maria das Dores conta que o filho saiu para trabalhar e não voltou mais:
O caso foi assim, meu filho na época estava com 28 anos, né? E ele saiu para
trabalhar na Michelin, só que ele trabalhava dentro de uma terceirizada da Michelin.
Ele saiu no dia 27 de abril [de 2010]. Saiu normalmente, como ele fazia todos os dias
e eu notei que quando chegou na terça-feira ele não retornou, mas como ele...tava
com uma namorada, então ele tava com a namorada, né!? Só que ele não tinha o
costume de dormir fora ou de não me avisar, mas pode acontecer e como se deu na
quarta-feira já, então ele dormiu lá e foi para o trabalho. Esperei a quarta-feira de
novo, ele não retornou e eu já comecei a ficar preocupada.
Ela conta que, diante do nervosismo, já pensava na cobrança que ia fazer ao filho
quando o encontrasse, dizendo não admitir que ele dormisse fora de casa sem que a
comunicasse. Mas o filho não voltara e começaram as buscas. A primeira atitude foi procurar
saber entre os amigos do filho quem era a namorada que ele havia arrumado. Após a
descoberta, o passo seguinte foi falar com a namorada, que disse que a última vez que havia
visto Wesley fora em um churrasco, no domingo anterior, depois disso não foi possível
encontrá-lo novamente porque ela estava trabalhando. Diante dessa informação da namorada,
Maria das Dores começou a ficar agitada e procurou uma delegacia de polícia. Na delegacia,
os policiais pediram que ela fosse primeiro ao local de trabalho do filho para averiguar se
148
conseguia alguma informação. No local de trabalho, os funcionários da empresa disseram que
na quarta-feira ele não retornou para trabalhar.
Maria das Dores voltou então à delegacia para fazer o Registro de Ocorrência e
aproveitou para deixar fotos do filho com os policiais. Na delegacia, os policiais perguntaram
sobre as últimas pessoas que haviam tido contato com Wesley. Ela passou os nomes das
pessoas aos policiais, que investigaram e descobriram que essas pessoas alegaram que o
estavam procurando para saírem para comer pizza. Maria das Dores conta que estranhou essa
informação, porque o filho não tinha o hábito de sair de casa, a não ser para trabalhar. E
quando retornava do trabalho, o único lugar para onde costumava ir era uma terra que ele
tinha, onde gostava de criar animais. Fora esse trajeto, o filho não tinha o hábito de sair para
outros lugares. Conta que estranhou que por dias seguidos apareceu uma pessoa em sua casa
procurando por seu filho, segundo ela, pessoa conhecida, colega dele. No dia do “sumiço” do
filho, a mesma pessoa apareceu novamente perguntando se Wesley havia chegado.
E o desespero de Maria das Dores só aumentava. Relata que começou a recorrer a
todas as pessoas que estivessem ao seu alcance para pedir ajuda. Pastora de uma igreja
evangélica, disse que primeiramente buscou força em Deus e em si mesma, depois foi atrás de
amigos, vizinhos, “o povo da Igreja”. Chegaram a realizar várias manifestações fechando a
Avenida Brasil, carreatas dentro e fora do bairro, espalhou cartazes. Chegou a ir até a Rede
Record procurar por Wagner Montes, que apresenta um programa policial nesse canal de
televisão. O apresentador chegou a enviar uma equipe de reportagem à sua casa:
Mandou a reportagem até aqui. Eles entraram aqui dentro, fizeram a reportagem,
tudo direitinho aqui comigo. Aí no meio disso tudo ainda teve um outro problema,
porque depois a Record pegou meu número e passou para um outro repórter do
Extra, que entrou dentro da minha casa, meu pediu para conversar tudo que tinha
acontecido. Eu conversei, abri meu coração pra eles. Pegaram a reportagem,
montaram uma reportagem e acusaram meu filho de miliciano, estuprador e que
tinha poucos dias que ele estava fora da cadeia. Então naquela hora, além do meu
filho estar desaparecido, ainda agora querem manchar a moral do meu filho.
Nota-se neste relato que a relação dos familiares com a imprensa passa por um dilema:
por um lado, há a necessidade de dar visibilidade ao caso na mídia, por outro, a incerteza
sobre o que e como será publicado. A circulação do caso na mídia pode tanto ajudar como
pode igualmente atrapalhar e gerar decepções. A atuação do jornalista e a política editorial do
jornal podem ser traduzidas em um engajamento ao sofrimento do outro, mas pode também
significar uma espetacularização desse sofrimento e um obstáculo a mais para os familiares.
Nesse caso particular, Maria das Dores conseguiu que o jornal fizesse uma retratação pública,
149
limpando moralmente o nome do filho. Ela diz que foi até uma delegacia, conversou com
“alguns coordenadores” e eles pediram ao jornal fosse feita a retratação.
Eu peguei tudo com a mão, coloquei num saco, botei do lado, até a policia chegar.
Duas horas depois eles chegaram. Ai falaram pra mim que eu não poderia ter
colocado a mão. Aí eu falei para o senhor: “Eu não vou deixar ninguém fazer
chacota, nem mexer com o emocional da minha família nisso tudo, né?”. E tinha um
bilhete né, que.... na hora estava escrito isso: “Fulano já foi, caiu o Beltrano”. Fulano
era um moço, um jornaleiro que tinha aqui que mataram. E disse assim: “Caiu o
Beltrano e quem tentar se levantar contra mim, vai ter o mesmo fim, vai ter o mesmo
fim”. Ai dizia assim: “Cicrano não manda mais, quem manda agora sou eu”, alguma
coisa assim. Aí eu peguei o bilhete, segurei o bilhete, entreguei pra polícia, e quando
deu mais ou menos quase 12 horas, a polícia, a perícia veio com as pessoas, tiraram
as fotos. Naquele dia ali eles pediram pra eu ir até a Delegacia de Homicídios. Eu
falei que eu não tinha nem condições, porque eu precisava contar à mãe da minha
neta o que tinha acontecido, ela não sabia. Aí, quando chegou de noite, chegaram 3
homens aqui, dizendo ser da P2, se identificaram rapidamente, nem me lembro o
nome deles. E no outro dia eu parti para a delegacia, e ali dei meu depoimento do
150
que tinha acontecido. E falei que essas pessoas tinham aparecido aqui, eles falaram
que não sabiam informar que a P2 tivesse ordem para vir aqui.33
Segundo Maria das Dores, essas pessoas que foram até sua casa e se identificaram
como policiais da P2 disseram que ficaram sabendo do ocorrido e queriam saber se alguém
tinha visto quem colocou as ossadas em seu portão. Ela disse aos supostos policiais que não
tinha visto nada e não possuía qualquer informação sobre quem teria colocado as ossadas em
seu portão. Eles, por sua vez, disseram que em poucos dias seria requerido que ela e o esposo
fossem ao Instituto Médico Legal para fazer o exame de DNA.
O tempo foi passando e nada, a angústia só aumentava. Até que, certo dia, finalmente
alguém ligou do IML perguntando se ela tinha interesse naquela ossada, porque ela estava
ocupando espaço no IML e eles teriam que se desfazer dela em breve para liberar espaço.
Maria das Dores questionou ao funcionário do IML: Como eles poderiam se desfazer da
ossada, se ela sequer sabia se realmente se tratava de seu filho? O funcionário, por sua vez,
lhe respondeu que morre muita gente no Rio de Janeiro e aquela ossada estava ocupando o
lugar. Ela perguntou como ficaria se a ossada fosse de seu filho, ao que o funcionário
respondeu que então aguardaria mais alguns dias.
Desde então, começou a via crucis para conseguir fazer o exame de DNA. Pergunta
para um e pergunta para outro, até que os funcionários do IML, ao verem seu desespero,
segundo ela, começaram a ficar com pena dela e lhe passaram o nome e o número de alguém
da polícia técnica que fazia perícia. Ao ligar, a pessoa que atendeu disse que ela estava com
sorte, porque a bomba de água estava há meses com problema, impedindo a realização de
exames de DNA e o Estado não fazia nada. Mas, finalmente, a bomba acabara de ser
consertada e os exames de DNA voltaram a ser feitos. Maria das Dores conta que tentou
sensibilizar os funcionários do IML com sua história, disse a eles que quando se tem um filho
“marginal, maconheiro, miliciano, envolvido [com a criminalidade]”, talvez “o coração fique
esperando uma situação semelhante”, mas este não era o caso de seu filho. Ela faz questão de
enfatizar a identidade de trabalhador de seu filho, lembrando que ele trabalhava há 10 anos
em uma mesma empresa e era conhecido por todos no bairro. Para ela, a experiência pela qual
estava passando era absurda, inexplicável e injusta.
33
Todos os nomes que aparecem no bilhete foram retirados para preservar o anonimato.
151
Conseguiu fazer o exame e, dentro de pouco tempo, segundo ela, saiu o resultado
positivo: realmente a ossada era de seu filho. Pergunto se ela chegou a ver o resultado do
exame, ao que ela diz que sim, no IML mesmo, e depois ele foi enviado para a Delegacia de
Homicídios:
Vi, vi. Fui lá no IML, lá mesmo eles me mostraram e foram direto para a DH
[Delegacia de Homicídios] e lá na DH também. Em principio eu não tenho o que
falar da DH, eles me trataram com muita sensibilidade, como muita educação, foram
meus amigos. Só a investigadora lá, que começou a me oprimir, que eu tinha que dar
nomes, que eu sabia o nome de quem tinha feito aquilo ali e se tem milícia aqui. E
eu falei, se tem milícia ou não tem milícia, quem tem que descobrir não sou eu. Eu
acho que não é tão difícil de descobrir se num lugar tá tendo ocupação de milícia. É
só botar investigador aqui dentro que vão saber se tem milícia no bairro ou não. E
ela começou a gritar comigo, a gritar comigo e eu sai chorando de dentro da DH,
comecei a passar mal. Aí um policial veio e me deu umas palavras, nesse meio
tempo veio o outro policial e disse que o Doutor. [Fulano de tal] pediu pra eu
retornar ao gabinete dele. Eu fui pra lá e ele me pediu desculpas pelo modo como a
investigadora me tratou. Ele falou, me explicou: “Olha, a gente fica de mãos atadas,
por que como a gente vai agir se a gente não sabe quem foi? Só as famílias, ou
alguém, poderá dar as informações para que a gente possa pegar o caminho da
investigação”. E eu falei: “Doutor, se eu abro a boca, se eu conto, se eu souber de
alguma coisa e conto pra policia, qual é a cobertura que a policia vai me dar? O que
o Estado vai poder fazer por mim? Pagar mais um sepultamento pra um dos meus
filhos, meu marido ou até a mim mesmo? É isso que o Estado vai poder pagar?
Porque nem isso o Estado pagou para o meu filho, nem isso ele pagou. Meu filho
foi sepultado como indigente e eu que tive que pagar o túmulo, eu que tive que
gastar tudinho. Porque essa história começou em abril, praticamente teve
fechamento sexta feira de carnaval desse ano, quando me chamaram e falaram pra
mim que agora poderia ter a hipótese de um óbito. E quando chegou na sexta feira
de carnaval, fui chamada ao cartório pra receber lá o óbito. Paguei por isso, paguei.
O atestado de óbito ficou pronto na sexta-feira de carnaval. Maria das Dores foi
chamada ao cartório para tratar da documentação final do óbito. Em tom de indignação, relata
que ainda teve que pagar várias taxas no cartório, fazer uma declaração de próprio punho
atestando que a ossada era de seu filho. Depois de sair do cartório com o atestado de óbito,
veio ainda outra situação dolorosa:
Maria das Dores: Aí foi, eu acabei de pagar o resto da documentação. Tive na sexta-
feira de carnaval o óbito final do meu filho. Eu fui, eu saí de lá quase 6 horas da
tarde, naquele estado lamentável, querendo me recuperar, porque agora eu tinha
outra missão. Eu tinha que procurar qual cova teriam enterrado meu filho e fui para o
cemitério de Santa Cruz, me disseram que estava lá.
Fábio: E eles enterraram à revelia assim, sem informar nada?
Maria das Dores: Sem informar nada. Eu fui pra lá, chegando lá, na hora que estava
sendo procurado, a senhora, a moça lá do cemitério ainda me erra o nome, a
numeração e ainda fala pra mim: “Nossa, a morte do seu filho foi terrível”. Eu falei:
“Como?”. “Mas o que fizeram! Tacaram ele no micro-ondas pra ele não ser
reconhecido”. Eu falei: “Mais como? Não foi isso que a Justiça falou pra mim!” Eu
152
estava com uma amiga minha e ela falou: “Moça, olha direito, ela está sofrendo
demais. Não é morte de micro-ondas, olha aqui, é ossada (voz chorosa)”. Aí eu
peguei, ela me deu o número da sepultura, e fui ver, procurar com o coveiro no meio
do mato... cheio de mato que tava lá. Aí eu achei a sepultura do meu filho. Ali eu
mesma fiz o papel de coveiro, jardineiro, limpei a cruz e ali eu fiquei (chorando) de
um jeito assim... Como é que se diz? Agora terminou isso aqui! Uma cruz quebrada,
com a numeração apagada, a numeração 1999 apagada. E ali na mesma hora, como
diz, aparece todo mundo, os amigos entre aspas dos parentes dos mortos, cada um
querendo... como diz, querendo a sua parte. E me cobraram 260 reais se eu quisesse
fazer pelo menos um murinho, botar um pauzinho e umas florzinhas na cruz, isso foi
na segunda-feira. E tudo terminou. Terminou como? Naquele dia, na segunda-feira
de carnaval que eu achei meu filho, a ossada dele. Terminou agora, no dia 27 de abril
fui fazer o túmulo dele e, por incrível que pareça, estava fazendo 1 ano de morto e eu
tinha que, naquele dia, ter um coração pra chorar 1 ano de morto dele. Tinha que me
alegrar, porque meu filho estava fazendo aniversário no mesmo dia. Então a data de
27 de abril era pra mim duas coisas.
Fábio: E depois disso ninguém falou mais nada?
Maria das Dores: A única coisa que as pessoas comentam no meu bairro foi essa, que
a ossada foi colocada no meu portão, porque alguém pediu, alguém implorou para
que as pessoas que fizeram isso devolvessem alguma coisa, que já não aguentavam
mais ver meu sofrimento, não aguentavam me ver ficar pra lá, pra cá, pra lá, pra
cima, procurando, como é que se diz, procurando um fantasma. Um fantasma porque
meu filho já não existia mais. Desde o dia 27 de abril de 2007 acabou, acabaram com
ele e colocaram um bilhete, porque talvez eu via que era alguma formação de
milícia, então eles se aproveitaram pra colocar terror aqui dentro.
Ao final de toda essa história ocorreu a Maria das Dores o que é comum a muitos
familiares, após o desgaste emocional e físico, o adoecimento e o processo de medicalização.
Ficou hipertensa, desenvolveu problemas cardíacos, passou a tomar remédios tarja preta e
vive com dores.
Terminou e hoje eu sou uma pessoa super hipertensa, eu sou uma pessoa que agora
eu tenho dor muscular, devido eu ter segurado uma carga que acabou com a minha
saúde, fiquei com problemas cardíacos né, vivo a base de rivotril, vivo a base de
remédio de pressão, porque todo dia minha pressão sobe. Tento levar a vida
ajudando outros Wesleys, outras Marias, que estejam passando por processos
semelhantes ou iguais, [para evitar] que elas passem [o que passei], que outros
Wesleys morram, sejam destruídos.
Em sua fala lamenta ter ficado com a saúde abalada, porque é uma pessoa que precisa
da saúde para ajudar outras pessoas. Luta para ajudar outras Marias e outros Wesleys,
sobretudo através de sua atuação religiosa como pastora.
153
3.6.6. “Muita terra pra uma pessoa criar bicho”: a milícia e a expropriação da terra
Em relação ao caso do filho, acha que o motivo do conflito que levou ao seu
desaparecimento e assassinato possa ser uma terra que ele possuía, onde cultivava alguns
animais. Segundo Maria das Dores “as pessoas” achavam que “era muita terra pra uma pessoa
criar bicho”.
Por que o que as pessoas falam que mataram meu filho? Por que mataram meu filho?
Só porque meu filho tem um pedaço de terra debaixo de uma Rede de Furnas, que é
aquilo ali que vocês estão vendo.
Ela conta que “está tendo invasões” na área, mas as pessoas, quando invadiram
“aquilo ali”, sabiam que era de seu filho. Disse que, tempos depois, ficou sabendo que o filho
vinha sofrendo ameaças de morte.
Ao narrar sua história e sua trajetória, ela dá uma ênfase no trabalho religioso que
desenvolve numa igreja evangélica. Diz que precisa ter força, porque, além de mãe e esposa,
ainda tem que ser pastora. “Tenho uma igreja com 200 metros quadrados”, diz ela, que
considera que o trabalho na igreja é uma forma que encontrou de ajudar as pessoas. E
exatamente por se auto perceber como uma pessoa que trabalha em prol dos outros, não
consegue entender porque tamanha tragédia foi acontecer logo com ela, que dedica a vida a
“ajudar as pessoas”.
E parece até brincadeira que, desde que eu fui denominada pastora, meu coração
sempre foi esse ajudar moços, pessoas que tinham muitos problemas. Eu passei 15
anos da minha vida tirando da rua traficantes, drogados, prostitutas. No meio disso
tudo eu não posso parar, porque diversas pessoas vêm bater na minha porta,
chorando. Dizendo, pastora, me ajuda porque vão matar meu filho, pastora, me
ajuda, tira meu filho do trafico, ajuda meu filho, leva pro centro de recuperação,
pastora. E eu tenho que fazer esse papel, eu faço esse papel dentro do meu bairro.
A entrevista com Maria das Dores dividiu-se em torno de dois temas e em duas partes:
na primeira, nos contou a história do desaparecimento e morte do filho, e o restante da
entrevista consistiu em um relato do trabalho como pastora. Falou do trabalho no bairro, da
circulação por várias favelas, contou vários casos de traficantes jurados de morte que
conseguiu salvar e transformar em “pessoas do bem”. Sobre o “chamado de Deus”, ela assim
se expressou:
154
Olha, no princípio, quando eu comecei com isso tudo, eu não sei se vocês vão
entender. Quando eu senti o chamado de Deus na minha vida, eu perguntei pra Deus
o que ele queria comigo, e a voz de Deus, ele queria dar pessoas pra eu cuidar e
Deus falou no meu coração: “O que tu quiser eu dou pra você cuidar”. As pessoas
brincam até hoje, e dizem, “a senhora pediu, né?”. Eu pedi pessoas trabalhosas,
pessoas impacientes, pessoas assim que as outras pessoas não tinha muita paciência,
pra eu zelar por essas pessoas, né. E ali eu comecei a entrar dentro de bailes funk, ir
pra porta de bailes funk, e comecei a entrar dentro das bocas de fumo, levar ajuda
nos bailes. Eu gosto muito de conversar com as pessoas, né. Sentar com eles,
conversar com eles e mostrar a expectativa de vida, que eles têm chances, que eles
têm chances, se der chance eles vão...eles vão. E ali, muitas vezes, no decorrer dessa
espera dessa libertação deles, um atrás do outro, dentro da minha igreja. Um que ele
sabe que eu também ganhei a esposa dele, dessa vida, e ele veio para querer até me
matar, até fazia ameaça pra mim. Dizendo que ia cortar minha cabeça e eu esperei e
um dia e a coisa virou, alguém queria a cabeça dele. Eu fui atrás dele, falei pra ele e
ele do outro lado não falava nada. Falei pra ele, se você quiser ajuda eu vou te
ajudar. Pode me procurar, me procura na minha casa. E quando foi no outro dia ele
veio, falou assim: “O que a senhora pode fazer pra me ajudar?” Talvez na mente
dele eu tinha um lugar pra esconder ele das pessoas que tinham ameaçado ele. E eu
falei, olha eu só conheço uma pessoa que muda a história de um homem, o nome
dele é Jesus. Se você deixar esse homem entrar na tua vida você vai ver a tua
história mudar. E comecei a conversar com ele chorou ali. “Eu quero esse homem na
minha história”. E foi aqui na minha calçada e quando eu olhei pra ele eu vi um
carro chegando perto e aqueles homens vinham pra entrar dentro da minha casa e ele
disse: “Esses homens vão me matar”. E os homens falaram: “Pastora, pode botar o
[Fulano] pra fora”. Eu falei: “Vocês chegaram tarde demais, alguém pegou ele
primeiro”. Ele: “Não pegou porque nós vimos a senhora colocar ele dentro da sua
casa”. “Um homem pegou e não vai abrir mão dele”. Eles: “Quem?”. Eu: “Jesus!”.
Ele falou: “Ele tá se escondendo”. Eu falei: “Ele não tá se escondendo. Ele só quer
uma chance”. Ele começou a olhar pra lá e xingar ele de pilantra, de safado. “Posso
falar uma coisa pra vocês, se ele é safado vocês também são. Se ele é pilantra vocês
também são. Mas tem uma diferença, querer mudar e permanecer no erro. Ele
resolveu mudar, então agora tem que ser dada uma chance. E eu conversei com eles
e brinquei com eles. “Vocês honram a calça que vocês vestem? Me dá um mês, um
mês, se dentro de um mês esse homem não mudar a história dele... Eles falaram:
“Não dou um dia pra ele sair da igreja”. Todo dia ele vinha na minha casa, todo dia
eu ensinava ele, eu ensinei ele a até andar de novo.
Maria das Dores relatou várias histórias de conversão de traficantes e contou de suas
incursões no mundo do crime, para levar a palavra de Deus, e também histórias de sua relação
com policiais. Ao contrário de muitos outros familiares, Maria das Dores tem muitos amigos
policiais e se orgulha muito dessas relações e desses contatos. Isso ficou claro, por exemplo,
ao falar do caso do filho, quando disse que a viatura da polícia só apareceu em sua casa
quando seus amigos policiais entraram em cena. Em outro momento, essa relação aparece
pela via religiosa, quando disse que estava organizando um culto em um assentamento rural,
em parceria com policiais evangélicos do Bope. Segundo ela, a religião a faz conviver com
figuras, teoricamente, muito opostas, como traficantes, policiais e milicianos. Afinal, no reino
de Deus, todos são iguais.
155
3.7. Maria Auxiliadora
Tomei conhecimento do caso de Maria Auxiliadora quando sua irmã foi minha aluna,
34
no período em que lecionava numa escola pública na Pavuna, Zona Norte do Rio de Janeiro .
Ela ficara sabendo da pesquisa que eu estava realizando sobre pessoas desaparecidas e se
disponibilizou a conversar com a irmã para que me concedesse uma entrevista. As duas
moram juntas e, no dia 13 de janeiro de 2010, fui à residência delas para entrevistar Maria
Auxiliadora. A entrevista foi curta, porque as informações sobre o caso são parcas, portanto,
não há muito o que falar.
Seu companheiro era policial e desapareceu. Ela, no entanto, não sabe dar muitos
detalhes do que aconteceu, apenas diz que ele saiu para ir trabalhar e não mais voltou.
Maria Auxiliadora: Foi assim, ele saiu para trabalhar e não retornou, aí nós
começamos a procurar. E aí minha sogra tomou a frente, ela foi em favela, levou
corpo de bombeiros, uns diziam que estava enterrado, outros diziam que tinham
jogado no rio. Aí prenderam um rapaz dizendo que este rapaz sabia, mas pelo jeito
não sabia nada.
Fábio: Ele era policial, né?
Maria Auxiliadora: Policial. E aí ele ficou desaparecido. Aí nós demos entrada no
quartel. Chegamos lá no quartel, fomos ver o coronel. O capitão queria dar ele como
desertor, mas não podia dar como desertor, porque ele tinha saído para ir trabalhar. E
aí começou minha trajetória né, de pegar pensão por causa do menino, uma que eu
não era casada com ele.
Fábio: Você chegou a ouvir alguma história do que talvez teria acontecido?
Maria Auxiliadora: Não. Eu não ouvi falar o que possa ter acontecido, ninguém sabe.
A pessoa desaparece assim, parece que...
Fábio: Ele foi trabalhar e não voltou mais?
Maria Auxiliadora: É, e não voltou mais.
Fábio: Mas vocês nunca chegaram a receber alguma denúncia, assim, de que poderia
estar em algum lugar?
Maria Auxiliadora: Nunca. Não. Na favela, quando a minha sogra foi lá, em Caxias,
teve um pessoal lá que falou: “Ah, mataram um rapaz por ali”. Aí ela foi, levou
retro-escavadeira, sabe, Corpo de Bombeiros, escavaram tudo lá, não acharam nada,
e falaram que tinham jogado naquele rio ali. Num tem um rio que tem um lamaçal
preto? Aí falaram que jogaram ali, mexeram e não viram nada. Até hoje.
Maria Auxiliadora conta que sua sogra morreu procurando o filho, mas não obteve
nenhuma informação ou resposta concreta sobre seu desaparecimento, que ocorreu em 1993.
Uma das preocupações de Auxiliadora é que “eles querem tirar a pensão” que ela recebe.
Segundo ela, todo fim de ano a repartição policial que trata das pensões ameaça cortar o
34
Nessa época ouvi vários casos de desaparecimento forçado, mas que não me foram possíveis documentar,
circulavam como rumores.
156
benefício. Como não tem o atestado de óbito ou qualquer outro documento que comprove a
“ausência”, vive com medo de perder o direito à pensão.
Ela também conta que, após o desaparecimento do companheiro, engordou muito e
não consegue mais emagrecer. “Agora tudo me dói”, diz ela. E, diferentemente de outros
familiares que, após o desaparecimento do filho ou do companheiro, abandonam o trabalho,
Maria Auxiliadora teve que arrumar um trabalho para sustentar o filho pequeno. Passou a
trabalhar como costureira e faz questão de enfatizar que “não é porque eu queria não, era
porque eu precisava”.
Pergunto se mais alguém havia desaparecido junto com seu companheiro, ao que ela
responde que houve o caso de uma mãe que disse que o filho, também policial, teria “sumido
junto com ele”. Porém, posteriormente, vieram a saber que os dois haviam “sumido em locais
diferentes”. Enquanto seu companheiro teria “sumido na Washington Luiz”, o outro policial
“desapareceu” nas proximidades de um viaduto dentro de Caxias. “Foi no mesmo dia, mas
não foi junto”, diz ela.
Segundo Auxiliadora, ela evita falar do “sumiço” do pai para o filho, com medo de a
história despertar algum sentimento de vingança que o leve a fazer “um monte de besteira”.
Mas ouvindo uma coisa e outra, o filho “vai juntando os pedacinhos”. Ela conta que, certa
vez, o filho virou-se para ela e disse: “Eu nunca vou ser policial, mãe. Mataram meu pai,
sumiram com meu pai”. Auxiliadora relata que o fato de o companheiro ser policial a deixava,
assim como à sua sogra, sempre em um estado de apreensão quando ele saía para trabalhar,
com medo de que algo lhe acontecesse. Conta que certa vez ele saiu para trabalhar e ela e a
sogra não conseguiram mais dormir, ouviam um barulho o tempo todo e davam “graças a
Deus” quando ele retornava. O momento mais tranquilo era quando o companheiro estava
dormindo, porque nesse caso sabiam que estava tudo tranquilo, que ele não corria perigo.
Maria Auxiliadora conta que, desde que o companheiro desapareceu, frequentemente
tem que comparecer a um setor da polícia para resolver pendências e questões jurídicas que a
ausência do companheiro gerou. Segundo conta, nessa repartição que frequenta há vários
familiares que passam por situação semelhante à sua:
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Fábio: Todos policiais?
Maria Auxiliadora: É. Aonde eu vou é justamente, onde dá o lugar dos policiais
extraviados. Aí eu vou pra lá e é lá nessa parte que a gente vê o caso do pessoal. É
muita coisa triste, muita. Entendeu? A gente vê pessoas até piores que a gente. E aí a
gente fica lá, espera, sofre, porque tem gente que não sabe atender ninguém, tem
pessoas boas e pessoas ruins, que não querem ajudar a gente nem pra levar uma
palavrinha de consolo, não dá não, eles se acham o tal, eles acham que a mulher
deles nunca vão passar por isso. Eu torço para eles não passarem por isso.
Pergunto a Maria Auxiliadora se ela já chegou a sonhar com o companheiro. Ela narra
uma história semelhante a que ouvi de outros familiares, conta que por muito tempo evitou
circular por Irajá, porque “cismava” que seu companheiro estava lá, sentado.
35
A chacina de Acari aconteceu em 1990, provocou o desaparecimento de onze jovens moradores de Acari e
redondezas. Segundo denúncias, os jovens teriam sido assassinados por um grupo de extermínio, formado por
policiais, conhecido como Cavalos Corredores, que posteriormente teriam se desfeito dos corpos, que jamais
foram encontrados. Em 2011 as mães dos jovens desaparecidos começaram a receber as primeiras certidões de
óbito. O Estado de São Paulo chegou a publicar, em seu site, uma reportagem assinada por Luciana Nunes Leal,
intitulada “20 anos depois, a certidão da dor das Mães de Acari”. Os primeiros parágrafos do texto diziam: “No
mês passado, quando finalmente conseguiu a certidão de óbito da filha Rosana de Souza Santos, desaparecida
aos 19 anos com outros dez moradores das imediações da favela de Acari, em julho de 1990, Marilene Lima de
Souza fez um desabafo que repetiu na sexta-feira: "Continuo sem as respostas que procuro há mais de 20 anos."
Ela foi surpreendida com o que foi escrito no espaço reservado para o local do falecimento: 'Chacina de Acari,
nesta cidade.' Além da causa da morte 'ignorada', o documento deixa em branco os espaços do local de
sepultamento e nome do médico que atestou o óbito. Como declarante da morte, aparece 'sentença judicial'. É o
resumo dos esforços de 11 famílias pelo reconhecimento formal da morte de oito jovens e três adultos que
passavam o fim de semana em um sítio em Magé, na Baixada Fluminense”. (Fonte:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,20-anos-depois-a-certidao-da-dor-das-maes-de-
acari,716318,0.htm)
158
A minha esposa teve notícia, via telefone, em torno de 7 e vinte, 7 e meia da manhã,
que a inspetora Cláudia da 16° ligou pra ela e perguntou ”A senhora é a mãe da
Patrícia?”. Ela falou: ”Sou”. ”A sua filha sofreu um acidente, caiu num canal de
Marapendi e sumiu o corpo dela”. Aí a gente se arrumou e foi correndo pra lá. Mas
antes disso em torno de umas 6 e pouca da manhã, eu acordei minha esposa, porque
eu já tinha acordado e falei ”Cadê a Patrícia?”. ”Ah ela foi à festa, mas ainda não
voltou”. Eu liguei pra ela, mas ela não atendeu o telefone, entendeu, tava caindo em
caixa postal, mas aí a gente esperou mais um pouco aí ela recebeu esse telefonema.
Aí a gente foi correndo pra lá. [Celso]
Quando Celso e Tânia chegaram à delegacia, a inspetora que lhes havia ligado se
dirigiu aos dois dizendo ter encontrado uma bolsa no porta-luvas do carro e perguntou se a
bolsa era de Patrícia. Tânia afirmou que era e perguntou se a polícia estava procurando o
corpo. A inspetora respondeu que não, e disse que as buscas eram feitas apenas por uma hora.
Como o acidente havia ocorrido por volta de cinco e meia da manhã, seis e meia as buscas já
haviam sido interrompidas. Ao saber dessa informação Tânia e Celso ficaram duplamente
indignados: em relação à demora em entrar em contato e em relação ao término das buscas.
É o bombeiro que dá busca, numa hora só, e não se faz mais nada. Aí eu falei ”Como
não se faz mais nada? Impossível isso! Vocês tem que procurar minha filha”. ”Mas
não, nós não podemos fazer mais nada, a busca é só isso”'. Aí eu falei assim... eu
peguei, arranquei a bolsa dela, da mão dela, né, da minha filha e falei ‘O celular
também é dela?”, e ela me deu o celular. Aí eu peguei e fui pra lá aí ela falou assim:
“A senhora sabe onde é?”.Eu falei: ”Vou achar né, vou lá”. Ninguém foi com a
gente, só eu e ele, entramos no carro e fomos pra lá, não foi um policial pra orientar
a gente onde seria. Só nós 2. Chegando lá, ficamos procurando o carro. Estava lá, em
cima de umas pedras. Tem umas pedras antes de chegar ali na água e ficamos
olhando como que a gente ia descer ali, porque a gente não sabia como ia descer ali.
Não tinha um policial guardando a área. [Tânia]
Sem saber como desceriam até o local onde estava o carro, quem ajudou foi um
pedreiro que trabalhava em um condomínio próximo. Este pedreiro explicou que tinha um
caminho para se chegar lá e se ofereceu para ajudar, descendo junto com Celso. Tânia conta
que estava tão desesperada que não quis descer, preferiu ficar fazendo os contatos. Logo
parentes e curiosos foram se juntado no local onde o carro encontrava-se.
Aí nisso chegou... quando foi tipo umas 9 e pouquinho, começou a chegar bombeiro
com meu primo, e chegou um pessoal pra ajudar, chegou jet-ski, chegou um monte
de gente. Aí nisso apareceu, depois que meu primo chegou com todo mundo,
apareceu uma patrulhinha lá e ficou lá parada, estacionou lá como... Querendo
guardar o quê? Ajudar no quê? Porque na hora de ajudar mesmo, não tinha ninguém
ali pra ir com a gente até o local pra mostrar. Não fizeram nada. Aí ficou lá uns 2
soldadinhos de chumbo lá parado, e não fizeram nada, não perguntaram. Só parado
lá na guarita, na guarita.. no carro, encostado no carro e ficaram olhando os
palhaços, vendo a cena da gente desesperado. Aí começaram a chegar outras
pessoas, os parentes, os amigos, né? Aí meu outro filho, que tinha chegado
159
praticamente de manhã em casa, parece que alguém ligou aqui pra casa, eu não tinha
encontrado com meu filho ainda, porque quando eu saí ele não tinha chegado em
casa, eu acho que alguém ligou, algum amigo dele, ligou pra cá, aí ele atendeu. Ele
soube e apareceu lá descalço, sem camisa, desesperado. Cortou até o pé todo
descendo nas pedras. As pedras têm uma lâmina, né, cortou o pé todo. Aí começou a
procurar desesperado, desesperado. Daqui a pouco eu vejo ele, que nunca andou de
Jet-Ski, pegou um Jet-Ski começou a andar de Jet-Ski pra lá e pra cá e foi pra baixo
do viaduto que tem ali na São Conrado. Entrou ali por baixo, ele e um amigo
olhando, um outro amigo veio de lancha e começou também a vasculhar tudo ali
com os bombeiros também e não acharam nada. [Tânia]
Com a ajuda de pessoas influentes, com quem tinham contato, conseguiram fazer com
que as buscas se estendessem por volta de duas semanas. A perita, ao analisar o carro,
constatou que o banco do motorista, onde Patrícia encontrava-se, estava todo reclinado para
trás, havia uma pedra grande, pesando em torno de dez quilos, dentro do carro, e o vidro
estava todo quebrado. Tânia conta que perguntou à perita se não iria coletar as impressões
digitais de dentro do carro, e a resposta da perita foi que não precisava, porque foi um
acidente e Patrícia provavelmente estaria na água.
Celso relata que, quando o caso saiu na imprensa, alguém chegou a ligar pedindo
resgate. Depois ligaram outras vezes, numa delas pediam 600 mil reais.
Um dia após o acidente o carro foi retirado por um reboque e foram feitas fotos, mas
as coisas “não andaram”, como diz Tânia. Enquanto os dias passavam, a peregrinação pelas
delegacias continuava, mas não avançava em nada. O lamento e a indignação em relação ao
serviço policial mais uma vez se faz presente. Celso e Tânia criticavam os policiais por não
terem tido uma ação eficiente que buscasse resolver o caso, a polícia simplesmente não se
importou. E a indignação com a polícia só aumentou quando o irmão de Patrícia, por
insistência de uma irmã de Tânia, decidiu ir até a oficina para verificar novamente a situação
do carro.
Aí meu filho foi com um amigo lá na oficina, aí começaram a olhar o carro, aí ele
viu no capô tinham 2 furos, só que ele não reconhece furo de bala, não tá
acostumado com isso você não sabe. Aí ele falou assim: “Caramba isso aqui tá
estranho, será que isso é furo de bala? Não sei o quê...”. Aí ele foi e ligou para o
[nome do delegado], o [nome do delegado] já estava no caso... [Tânia]
160
tratava de furo provocado por bala, o carro foi levado para delegacia para novas perícias. Daí
em diante o caso mudou completamente, passou por uma reviravolta.
Celso suspeita que o vigia tenha sido ameaçado pelos policiais e diz achar estranho
que muitas pessoas tenham ido ao local e ninguém soubesse de nada. Um morador de rua que,
segundo Celso, presenciou os fatos, sumiu e não foi encontrado para depor.
Eles deram um tempo e sumiram. O pessoal do outro lado, onde é que fica as
barracas abertas ali, onde pegam peixes, também ninguém viu nada. Mas depois foi
até dito que... é... os policiais passaram lá no outro dia falando “ninguém viu nada
né...”. [Celso]
161
O que eles quiseram fazer foi jogar com a mãe, porque a mãe sempre acha que a
filha está viva. É isso que eles queriam... então a gente sabe que eles fizeram isso,
eles mexem com o emocional e com meu filho, né? Como [eles compraram] umas
testemunhas, um flanelinha e outro rapaz, que é cozinheiro, né, um tal de [nome].
Esse flanelinha falou que viu o acidente, viu que tinha um rapaz dentro do carro, o
rapaz saiu correndo. Ele pegou uma prancha junto com um amigo dele, atravessou a
lagoa pra ver se ia socorrer a vítima, aí viu minha filha. Nesse mesmo dia, ele foi na
Rocinha, viu ela parada lá. Um tal de [nome] pegou ela, porque ela foi pegar droga
lá. Aí o [nome] pediu para o primo dele pegar o carro dela e sumir com o carro. Aí
nisso ele veio de ônibus no Lagoinha, ali, né, aí o ônibus deixou ele lá perto, ele
voltou, pegou o baseado, ficou fumando perto da lagoa e viu o acidente. [Celso]
Segundo o relato de Celso e Tânia, a versão que a defesa dos policiais adotou foi a de
dizer que Patrícia era usuária de droga e o filho seria traficante.
[A testemunha dos policiais disse que] viu ela subindo, porque ela estava comprando
droga e falou que meu filho é traficante, que ficava querendo droga. Meu filho nem
fuma. Entendeu? Falaram mil coisas que a minha filha também usa droga... Só que
eles quebraram a cara, eu tenho um documento que ela trabalhou na época numa
multinacional, aí eu mostrei o papel, no dia que fui lá falar, eles começaram a falar,
eu falei assim: “Seu Juiz, eu tenho um papel aqui, provando que minha filha não era
alcoólatra, não era nada”. [Tânia]
No dia 09 de setembro de 2009, compareci ao fórum para tentar acompanhar uma das
audiências do caso. Do lado de fora, alguns poucos parentes e amigos de Patrícia seguravam
uma faixa. Quando cheguei próximo à sala onde ocorreria a audiência, o corredor estava
repleto de pessoas, incluindo jornalistas, todos acompanhando e aguardando por informações
sobre os depoimentos.
Quando vi a aglomeração de pessoas no corredor, logo pensei que se tratava da
mobilização dos familiares de Patrícia, afinal, como é de costume nas ocasiões de julgamento,
os familiares das vítimas geralmente comparecem vestidos com camisas estampadas com a
162
foto dos parentes assassinados. Para minha surpresa, aquela mobilização não era dos
familiares de Patrícia, mas sim dos familiares dos policiais. O simbolismo geralmente adotado
pelos familiares de vítimas, dessa vez, estava sendo usado pelos familiares dos policiais
acusados.
As esposas dos policiais estavam de branco e os demais familiares e amigos vestiam
camisas azuis (cor de identificação da polícia), com os seguintes dizeres: “Policiais inocentes.
Cadê Patrícia”. Segundo informações que circularam pelos corredores, dois ou três ônibus
teriam sido alugados para levar os familiares, amigos e apoiadores dos policiais para a
audiência, como forma de pressionar. Os familiares e amigos de Patrícia, que compareceram,
se sentiram constrangidos com a situação, viam aquilo como uma afronta. E a indignação
aumentou ainda mais quando os policiais acusados foram inocentados no inquérito militar.
Os familiares e amigos de Patrícia também organizaram várias manifestações de
protesto e cobrança, incluindo carreatas, um ato no Cristo Redentor, e organizaram um site
(www.cadepatricia.org.br) que contém todo o material referente ao caso. Faixas e banners
foram espalhados pela cidade clamando por informações. Até mesmo em um jogo do
Fluminense, no Maracanã, os jogadores empunharam um cartaz divulgando o caso. A
esperança dos pais de Patrícia é que os policiais sejam condenados no Tribunal de Júri.
163
Foto 3: Jogadores do Fluminense entraram em campo no Maracanã com uma faixa de
protesto – 20/05/2009
164
3.9. O testemunho como via de sensibilização: o vocabulário dos sentimentos e o poder
de comoção das emoções
O detalhe do sofrimento opera como um elo de sensibilização entre quem sofre e quem
observa aquele que sofre. A descrição dos sofrimentos que aparece nos relatos dos familiares
pode trabalhar as emoções e transformar o sofrimento tanto em piedade como em compaixão.
O testemunho dos familiares ocupa um lugar importante tanto numa política da piedade como
numa política da justiça. Seja o testemunho dado em situações públicas, seja o testemunho
colhido no âmbito privado, quase como um segredo. A mobilização do sofrimento nos
testemunhos pode levar o espectador tanto a um sentimento de piedade como a um sentimento
de compaixão, pode direcionar a ação face àquele que sofre como face ao acusado de
promover o sofrimento da vítima.
Sobre a possibilidade que se apresenta ao espectador à distância, quando este não mais
simpatiza com o ressentimento dos infelizes contra seus perseguidores, engajando-se na via da
indignação, da denúncia e da acusação, mas com os sentimentos de gratidão face aos
sofredores, Boltanski argumenta que a piedade, nesse caso, segue a via dos sentimentos.
Busca-se, neste sentido, implicar o espectador no sofrimento a partir dos sentimentos daquele
que sofre, e não da transformação da indignação em acusação. O espectador que se sensibiliza
com o sofrimento daquele que sofre é intimado a se implicar nesse sofrimento, ele deve falar
aos outros do sofrimento daqueles que sofrem, atuar como um multiplicador.
Boltanski observa ainda que os meios de que dispõe o espectador para desenvolver um
discurso desde o enternecimento são, portanto, radicalmente diferentes daqueles que se abrem
a ele desde a indignação. O recurso de prosseguir rumo a uma acusação ou a uma denúncia
não se apresenta. Uma primeira consequência – que, segundo Boltanski, poderia parecer um
obstáculo a uma politização do sofrimento no quadro deste tópico dos sentimentos – é que ele
não pode tão facilmente, como no tópico da indignação, “fixar a linha da partilha que separa
os sofrimentos genéricos – inerentes a qualquer tipo de condição humana – dos sofrimentos
escandalosos, dignos de serem elevados à categoria das causas” (Boltanski, 2007: 152).
Segundo a descrição detalhista de Boltanski, uma das figuras principais nas quais se
manifesta a indignação é a urgência. Porém, à distância, a emoção ganha contornos
diferentes em relação a uma situação de co-presença. Enquanto que na indignação os recursos
corporais são reunidos para expressão da cólera, que supera o mutismo da emoção bruta
apontando em direção à manifestação da ameaça e da força, no tópico do sentimento eles são
mobilizados para provocar piedade e são controlados pela velocidade do modo de se
165
expressar, pela contração da expressão e do corpo inteiro. À diferença da indignação, capaz de
desenvolver um aparelho de provas materiais, objetivas, a tópica do sentimento faz economia
da denúncia e da acusação e, por conseguinte, não atribui grande importância aos objetos. E, o
mais central, a tópica do sentimento “não se desenvolve numa metafísica da justiça, onde a
necessidade de fundar a crítica desvelando aquilo que faz do infeliz uma vítima conduz a
remontar o nível lógico ocupado pelas pessoas e pelos objetos face ao nível das convenções
de equivalência que estabelecem suas relações e cuja ativação permite controlar o caráter
justo ou injusto” (Boltanski, 2007: 153).
Por outro lado, se a tópica do sentimento não se desenvolve numa metafísica da
justiça, ela não é estranha a toda metafísica. A metafísica na qual a tópica do sentimento se
apoia é a metafísica da interioridade, na qual os estados interiores não são objetos de verdade.
A referência a estes estados não pode ser levada em conta em um julgamento, a menos que se
construa uma instância exterior às pessoas. Ainda segundo Boltanski, uma metafísica da
interioridade comporta dois níveis: um nível de superfície onde se estabelecem as relações
superficiais entre pessoas entregues à artificialidade, à mundanidade das convenções e à
separação é a indiferença; outro nível profundo, ao qual cada um pode aceder centrando a
atenção ao interior de si mesmo, este nível é o do coração. E para se sensibilizar com os
sofrimentos dos infelizes, o espectador deve não apenas lhes fazer face, vê-los do exterior, ele
deve também, em um mesmo movimento, fazê-los retornarem sobre si mesmo, dirigir-se à
interioridade, abrir-se à escuta de seu próprio coração.
Numa tópica do sentimento, a relação entre o espectador e o infeliz é real e autêntica,
sensível, quando é estabelecida não superficialmente, ao nível das aparências, mas de coração
a coração, de interioridade a interioridade. E o relato, o testemunho dos familiares
correspondem a uma forma de expressão a partir da qual essas interioridades e emoções que
vêm do coração podem se comunicar. A emoção, na tópica do sentimento, é índice de verdade.
A verdade, aqui, não vem das provas, mas das emoções. Nesta tópica, o acesso à verdade,
diferente da tópica da justiça, não passa nem pela exploração argumentativa de princípios
convencionais, nem pela aproximação com os objetos que sustentam uma generalização, mas
pelo desenvolvimento da interioridade na exterioridade. A emoção, afirma Boltanski (2007:
156), é concebida como a via de exteriorização da interioridade.
No caso dos familiares, o testemunho e toda a dimensão performativa através da qual
se expressa a emoção são os elos que ligam interioridade e exterioridade. A força dos relatos
tem o poder de chocar, comover, emocionar. Diante dos relatos dos familiares que apresentei
os espectadores são convidados, intimados a se implicar nesses sofrimentos, a expressar suas
166
comoções e suas emoções. Aquilo que é interior se manifesta ao exterior a partir dos relatos e
das performances do ato de falar.
A colocação dos sentimentos em movimento, numa história, exige, além de uma
estrutura discursiva própria, a constituição e fixação de um vocabulário que permita descrever
com precisão quase técnica os fatos físicos e os diferentes estados que afetam um coração
sensível ao espetáculo do sofrimento. Boltanski seleciona três termos que considera centrais
para descrever o vocabulário dos sentimentos e que, igualmente, são fundamentais para nossa
reflexão sobre as relações entre violência, sofrimento e política na experiência dos familiares:
comoção/emoção, enternecimento e lágrimas.
Boltanski percorre algumas obras e alguns autores para mostrar como a nova estrutura
narrativa e o vocabulário dos sentimentos foram se fixando. Ele destaca, por exemplo, a
opinião de Rousseau, segundo a qual a emoção é um fato da interioridade, uma “agitação
interna”; já para Condillac, ela é “um movimento dos sentidos que vem de um sentimento
excitado interiormente”. Boltanski destaca que Rousseau associa a emoção ao universo das
paixões e desenvolve principalmente a análise das emoções doces, ternas, altruístas, estas que
engendram a piedade, o reconhecimento, a sensibilidade em relação ao pesar do outro.
A emoção principal que interessa Rousseau é o enternecimento, que é a emoção
simpática por excelência, “uma 'doce emoção' que tende a se opor à indignação que aumenta a
visão da injustiça, como duas respostas diferentes ao espetáculo das 'misérias humanas'.
'Imaginação do coração', o enternecimento consiste 'em sentir-se em seus companheiros', em
reconhecer, em um movimento de 'humanidade', o 'interesse comum' que liga o ser que ele
toca ao outro, e é associado principalmente à piedade 'diante da simples humanidade sofrida'”
(Boltanski, 2007: 173).
As lágrimas ocupam um papel central no dispositivo do sentimento, porque
juntamente com outras manifestações corporais como os suspiros, os gemidos, os gritos, elas
designam a operação pela qual a interioridade se transforma em exterioridade. As lágrimas
expressam emoções que têm por assento o coração e, além de estabelecer uma comunicação
com o mundo que se manifesta próximo, “o jogo das lágrimas é sempre o mais íntimo da
relação do ser humano com o outro e com si mesmo”.
Ao me dedicar, neste capítulo, sobre os relatos dos familiares, percorri pequenos
mapas da dor que expressam aquilo que Boltanski denominou de “metafísica da
interioridade”. Na medida em que são marcados pela emoção, esses testemunhos significam
uma via para a sensibilização dos espectadores e possuem grande poder de comoção. A força
dos relatos aproxima aquele que narra o sofrimento daquele que ouve, nesse caso, seja
167
presencialmente ou à distância. E as emoções são estrategicamente trabalhadas para causar
comoção.
168
4. NARRATIVA SOBRE O TERROR E O SOFRIMENTO: UM CASO EXEMPLAR
DE DESAPARECIMENTO FORÇADO
Walter Benjamin
A história que será apresentada neste capítulo pode ser interpretada como uma
narrativa sobre o terror e o sofrimento. Ela é repleta de imagens sobre terror e sofrimento, o
que não significa dizer que toda situação de sofrimento seja engendrada desde o terror. Será
útil, portanto, começarmos com uma reflexão sobre o terror. Afinal, o que seria o terror? Seria
possível uma aproximação sociológica e antropológica desta categoria?
Para esboçar uma breve reflexão sobre tais questões, estabelecerei um diálogo com o
interessantíssimo trabalho de Pereira (2004), uma etnografia sobre determinada instituição
que abriga portadores de Aids. Essa instituição, supostamente, procura dar condições para que
estes “sobrevivam”, “enquanto esperam a sua morte iminente” (p. 17). Um dos argumentos
defendidos pelo autor é que os portadores de HIV abrigados nessa instituição, convivem
cotidianamente com o terror. No desenvolvimento de seu raciocínio, Pereira incursiona pela
obra de diversos autores, principalmente no campo da filosofia e da antropologia, buscando
elaborar o que seria o sentido de uma antropologia do terror. Em sua pesquisa, assim como na
minha, o sentido de uma antropologia do terror estaria ligado, entre outras coisas, à
proximidade da morte e à submissão a castigos corporais. Em relação aos casos de
desaparecimento forçado analisados por mim, os relatos dos familiares permitiriam fazer um
inventário de castigos corporais aos quais as vítimas teriam sido submetidas. Assim como
também é possível observar, nesses relatos, a presença constante da morte rondando.
Mas, como adverte Pereira, “o terror é categoria arredia às investidas teóricas” (2004:
18).
O termo terror tem como equivalentes os vocábulos pavor, temor, medo, susto,
apreensão, apresentando vasto campo semântico. Medo, uma das primeiras palavras
que nos vêm à mente quando se fala em terror, seria o sentimento de inquietação
ante a noção de perigo real ou imaginário. Outras noções, como as de apreensão,
receio, pavor, susto, formam a teia que interliga determinados sentimentos e
sensibilidades, que nos enreda e faz com que a definição precisa seja adiada. Afinal,
se pudéssemos nos aproximar sem nos emaranhar nessa teia, sem nos deixar
contaminar, a qualidade do terrível, daquilo que aterroriza, deixaria de estar
presente; já não estaríamos no campo do terror (Pereira, 2004: 69).
O autor observa que áreas antes desprezadas pelas Ciências Humanas foram sendo
incorporadas ao pensamento das humanidades. Ele cita o exemplo de temas antes
considerados “sociologicamente invisíveis” como o imaginário, as emoções, as fantasias, o
desejo, a dor, o sofrimento e o medo. A partir destas incorporações surgiram áreas como
antropologia das emoções, antropologia da dor e do sofrimento. Entretanto, o terror
permanece sociologicamente invisível.
Para tentar avançar na reflexão sobre o terror, Pereira estabelece um diálogo com a
obra de vários pensadores da área das Humanidades, como Foucault, Freud, Heidegger, Roger
Dadoun, Hannah Arendt, Michel Taussig e Veena Das. O objetivo aqui não é reproduzir toda a
discussão formulada por Pereira, mas apenas pontuar alguns aspectos da discussão, que
contribuem para pensar as imagens do terror e do sofrimento que aparecem, a seguir, no relato
da mãe de um jovem desaparecido.
Freud foi um dos autores que Pereira considerou em seu inventário de abordagens
sobre o terror. Freud enfrentou as dificuldades no campo semântico envolvendo alguns dos
vocábulos equivalentes ao termo terror, conceituando e distinguindo pavor, medo e angústia.
Nestas definições notam-se as diferenças entre as relações dos sujeitos com o perigo. “A
angústia seria o estado caracterizado pela perspectiva iminente do perigo e pelas consequentes
reações de defesa. Já o medo pressupõe a existência de objeto definido e conhecido. O pavor
acentua-se com o fator surpresa e denota o estado em que se cai em situação perigosa de
modo inadvertido” (Pereira, 2004: .69). Pereira considera a definição apresentada por Freud
imprecisa, mas sugestiva, na medida em que o terror pode ser imaginado como o
embaralhamento das ideias de medo, pavor e angústia, que assumem configurações
imprevisíveis. “Ao embaralhar e confundir medo, angústia e pavor, o terror brinca com aquilo
que faz sentido, mas precisa do sentido para poder zombar e, assim, intensificar o sentido e a
sensação” (op. cit., 70).
170
Em Foucault, Pereira encontrou uma definição do terror muito pertinente para
pensarmos os relatos sobre desaparecimento. Para Foucault, o terror é a exacerbação dos
suplícios e a tortura física era o fundamento do terror na Era Clássica. Por meio do caso de
Damiens, Foucault descreve as características do terror, mas, como nota Pereira, essa
descrição é menos uma definição direta do que uma construção de imagens para se aproximar
do terror. Nu, de camisola, Damiens recebeu sua punição em praça pública. Sobre um patíbulo
foi “atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a
faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que
será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre
derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro
cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinza, e suas cinzas
lançadas ao vento” . Os cavalos utilizados no esquartejamento, não afeitos à tração, não
conseguiram desmembrar as coxas do infeliz, de modo que, em vez de quatro, foi preciso
colocar seis cavalos. Ainda assim, foi necessário “cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as
juntas...” (Foucault, 1987: 9).
Diferente da Era Clássica, baseada no terror e na punição da carne e do corpo, a
modernidade estabelece um novo regime de verdade, em que a punição se fundamenta na
divisão de papéis no exercício da “justiça criminal” e na suavidade dos castigos. O corpo
continua sendo alvo de disputa, mas imerso em campo político. Na modernidade, a sujeição
dos corpos seria sutil, sem necessidade de fazer uso do “terror”.
Enquanto Foucault faz uso das imagens do suplício para construir o terror, Hannah
Arendt se concentra na “representação hiperbólica do autoritarismo nos estados totalitários”
(Pereira, 2004). Nas palavras de Hannah Arendt, “o terror é a essência do domínio do
totalitarismo”.
171
definição, visto que a “legalidade é a essência do governo não-tirânico e a
ilegalidade é a essência da tirania”. Para o governo totalitário as leis positivas não
têm valor, o que importa são as leis da natureza ou da história. (Pereira, 2004: 72).
Pereira observa ainda que Arendt está longe de localizar o terror apenas na esfera
política. Segundo o autor, ao indicar as características do terror nos contatos pessoais, ela
aponta que o terror “destrói a capacidade humana de sentir e pensar tão seguramente como
destrói a capacidade de agir” (Arendt, 1989: 527).
Percorrendo as abordagens de Freud, Foucault e Arendt temos identificados alguns
traços característicos do terror: embaralhamento das ideias de medo, pavor e angústia,
exacerbação dos suplícios, destruição da capacidade humana de sentir, pensar e agir. É
possível ainda incluir nesta lista as compreensões antropológicas de Michel Taussig e Veena
Das. Para Taussig a inefabilidade é o traço marcante do “espaço da morte e do terror”,
enquanto que, para Das, o terror tem a ver com a mutilação da linguagem que produz silêncio
e emudecimento.
Nas leituras de Taussig e Veena Das, o terror não está vinculado de maneira
exclusiva nem ao discursivo nem ao extradiscursivo. Ele é um “dispositivo”, ou seja,
uma malha de discursos, instituições, rumores, que, de forma diferenciada, responde
ao exercício de poder em dado momento histórico. (Pereira, 2004: 76)
Segundo Pereira (2004: 76), todos esses autores conseguem nos fazer sentir o terror e
todos parecem afirmar que, para dizer o indizível, “nada melhor do que apresentar narrativas
que possam fazer o leitor compartilhar do campo terror”. Sigamos, então, a sugestão de
Pereira, e compartilhemos, a seguir, o caso de Maria.
172
dor36.
O relato impressiona pelas imagens de terror e sofrimento, pela contundência e pela
dimensão catártica. A dor expressa no relato é o meio através do qual se cria a memória do
evento. Memória dolorosa, que dói no coração, entala o peito, mas que também sai em certos
momentos, em um clima de muita emoção e comoção.
Meu nome é Maria. Eu estou feliz por estar aqui. Sou mãe de um rapaz de 16 anos
que desapareceu no dia 13 de dezembro de 2005, na comunidade Samambaia. A
reportagem diz oito, mas foram dez. Foram treze sequestrados, três foram liberados,
porque eram marinheiros. Os outros dez foram condenados porque não tinham
documento. Os traficantes da favela vizinha pagaram cinquenta mil reais para os
policiais do batalhão colocarem o carro blindado, chamado caveirão, dentro da
comunidade Samambaia, às duas horas da manhã. Meu filho estava vindo da casa da
namorada, viu alguns rapazes. Alguns estavam na rua, em um campo de futebol, e
outros dentro de casa dormindo. As vítimas foram escolhidas aleatoriamente, como
dizem os três que foram libertados. O rapaz foi falando: “esse é traficante, esse aqui
é, e aquele não é”. Os policiais estavam armando de levá-los para o DPO: “Se vocês
não deverem nada vocês vão voltar”. E o menino disse que ele perguntou para o meu
filho: “Teu documento!?”, ele disse “Eu tenho o protocolo da identidade, mas está
com a minha mãe”. Ele disse “Vou levar para o DPO, se você não dever nada você
volta”. Na divisa da comunidade, colocaram eles nus, amarraram eles, colocaram
dentro do carro blindado e “Vamos levar pro DPO”, entregaram na mão do traficante
da favela rival, do lado. Eu não sabia que meu filho estava passando por aquilo,
porque muitas das vezes ligavam para ele ir pra lá. Como ele gostava de baile funk e
cantava rap, ele vivia dentro dessa comunidade. Eu fui saber no dia seguinte, no meu
trabalho, porque dormia na maioria das vezes na casa da minha mãe. Eu fui saber no
meu trabalho. Quando eu cheguei na comunidade Samambaia para procurar o meu
filho, eu fui até a divisa, junto às outras mães, e vi um rapaz sem camisa, de frente
para o DPO, e os policiais, gritando: “Não foi esse o trato que nós fizemos. Vocês
ganharam muito, para agora a imprensa toda estar aqui e estar acontecendo o que
está acontecendo”. E aí eu perguntei para as outras pessoas que estavam ao meu lado
“Quem é esse homem?”. “Esse o dono da boca aqui do lado, é o homem que levou
os nossos filhos”. E aí, eu naquele desespero, várias repórteres tirando foto dele. Ele
ordenou os policiais do DPO que tomassem a fita, o filme dela. Condenou os
policiais o traficante, dono da boca. Que os policiais tomassem a fita dela. Eles
tomaram o filme dela e de lá para cá eu venho sofrendo ameaças. Hoje faz nove
meses que eu estou sem o meu filho e hoje de manhã eu ouvi uma pessoa dizer para
mim assim: “É, Maria, nove meses. Foi tempo suficiente de você fazer outro”. Eu
não quero outro. Eu quero o meu filho. E eu estou nove meses lutando e os três
policiais estão desviados. O rapaz – um dos rapazes – que era traficante junto com
esse que pegou o meu filho, eu fui lá na antiga Avenida Rio Branco, ele reconheceu
todos os policiais, principalmente os policiais corruptos. Os quatro policiais que
receberam os cinquenta mil ele apontou. E realmente, os policiais que estavam de
serviço no DPO, naquele dia, foram os que receberam os cinquenta mil reais. Um
mês depois eles prenderam um traficante e o outro traficante estava preparado para
matar as mães, aí eu fechei a minha boca e fui procurar. Na última sexta-feira, eu
acordei de manhã, ligaram para mim, eu estava já dormindo, na casa da minha mãe.
Eu catei todas as minhas coisas e tornei a fugir novamente, estou desde o dia treze
de dezembro sem deitar numa cama em casa (fala chorando), porque eu não posso.
Ele [o traficante] está nas ruas. O juiz falou que colocou ele na rua porque não tem
denúncia. O exame de DNA deu confirmado, três estão confirmados, que realmente
as vítimas foram torturadas na casa onde eles comeram. Só que o juiz não aceitou a
denúncia, porque ele disse que não há corpo não há crime. Mas foi confirmado.
36
Uma versão deste capítulo foi publicada em Araújo (2011).
173
Então, o que quem mora numa comunidade ia fazer na outra duas horas da manhã?
Uma comunidade que tem uma ocupação que chega seis horas da noite para sair seis
horas da manhã, meio-dia... E os moradores de dentro da comunidade viram o
caveirão entrando, os traficantes pendurados com a blusa da PM e de bermuda,
entrando na comunidade e pegando o pessoal no meio da rua. Hoje estou sem o meu
filho e a comunidade não fala nada.
Passados exatamente dois anos e onze meses, lá estava eu, reencontrando essa mesma
mãe para realizar uma entrevista. Nesse intervalo de tempo, encontrei Maria em duas outras
ocasiões: a primeira foi na entrega da Medalha Chico Mendes, numa cerimônia organizada
pelo Grupo Tortura Nunca Mais37; a segunda foi no enterro de Vera Flores, uma das Mães de
Acari, que também havia perdido uma filha e de quem Maria se tornara grande companheira,
unidas pela mesma dor do desaparecimento dos filhos. Durante todo o processo de negociação
da entrevista, Maria manifestou preocupação com as condições do local para a conversa.
Antes de tudo, deveria ser em um lugar seguro. O lugar que ela considerou mais seguro, onde
se sentiria mais à vontade, foi a igreja que ela costuma frequentar, o templo da Igreja
Universal do Reino de Deus em Del Castilho, no Rio de Janeiro, conhecida popularmente
como Catedral Mundial da Fé. Maria havia marcado comigo após o culto, mas quando
cheguei no local não a encontrei. Ela havia esquecido da entrevista e, quando liguei para fazer
contato, ela já se encontrava no ônibus retornando para casa, mas decidiu voltar para que
conversássemos. Eu nunca havia entrado lá, e a primeira impressão que tive foi que parecia
um shopping center, contendo lojas e até uma praça de alimentação. A entrevista foi realizada
em vários locais da igreja, o cuidado que devíamos ter exigiu que conversássemos sempre em
um local onde ninguém nos ouvisse. Toda vez que uma pessoa se aproximava de onde
estávamos, levantávamos e íamos para outro lugar em que não houvesse outras pessoas por
perto.
A entrevista funcionou como uma via de transmissão e externalização de uma
memória traumática. Tratava-se de uma memória da dor, memória dolorosa, agonística,
porque sua publicização pode gerar incompreensões, desentendimentos e estigmatização. Por
isso é contada quase como um segredo, com um grande cuidado, para um pequeno círculo de
interessados, apenas aqueles que inspiram um mínimo de interesse e confiança. A entrevista
foi uma forma de Maria narrar e compartilhar sua dor38.
37
Em seu site, o GTNM se apresenta da seguinte forma: “O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM/RJ) foi
fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante o regime militar
e por familiares de mortos e desaparecidos políticos e tornou-se, através das lutas em defesa dos direitos
humanos de que tem participado e desenvolvido, uma referência importante no cenário nacional”. (Fonte:
http://www.torturanuncamais-rj.org.br).
38
Para uma discussão sobre a produção social da identidade frente a situações limites, conferir Pollak (2006).
174
Após terminarmos a entrevista, ela me disse que chegou a pensar em desistir, porque
não me conhecia, tinha medo e seus relatos na imprensa estavam lhe rendendo muitos
problemas. Sua família a criticava muito por sua exposição pública diante do caso. Segundo
ela, a decisão de levar a entrevista adiante se deu em razão de ter ligado para Patrícia, familiar
de vítima, militante da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, e quem
também acompanhava o caso, para pedir referências sobre mim. Só depois da mediação de
Patrícia ela se sentiu mais segura. Em relação à entrevista, foi impressionante como Maria
narrou com detalhes os acontecimentos; parecia até que os tinha vivido em primeira pessoa.
Outro traço marcante foi a emoção. Ao falar sobre o caso, ficou muito emocionada e chorou
em vários momentos. Descrevo estes detalhes da negociação da entrevista para enfatizar o
silenciamento e os obstáculos a serem enfrentados pela mãe para se fazer ouvida. Diante do
risco de morte é preciso tomar muito cuidado com quem se fala e do que se fala.
A confiança é construída através dos laços de solidariedade que se estabelecem a partir
do compartilhamento da dor e do sofrimento da experiência traumática. São essas marcas que
Maria gentilmente compartilhou comigo durante a entrevista. O teor dos acontecimentos
narrados chega a provocar, conforme se poderá perceber na descrição da entrevista, certo mal
estar. E o pesquisador, nessas horas, torna-se testemunha da testemunha (Jelin, 2001), ou seja,
desenvolve um trabalho de escuta da testemunha que fala em nome da vítima, já que esta
última não se encontra presente para testemunhar.
Há momentos em que as lágrimas escorrem pelo rosto de Maria, ao lembrar, com uma
riqueza impressionante de detalhes, a tragédia que se abateu sobre o filho, sobre ela e sobre a
família. Isso aconteceu, por exemplo, quando ela me narrou uma situação em que andava de
ônibus pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro e, de dentro do ônibus, avistou uma pessoa do
lado de fora que parecia ser seu filho. Desesperada, desceu do ônibus e saiu à procura dessa
pessoa, seguindo seus passos e rastros, até encontrá-la e, ao encontrá-la constatou que não era
seu filho, o que me contou aos prantos.
A lembrança provoca um sentimento de saudade e os efeitos traumáticos do
acontecimento são tão fortes que chegam a transformar a saudade em angústia, em razão da
não localização do corpo do filho, nem vivo nem morto. Vive-se um luto permanente. Luto
que se estende pelo tempo, porque, como argumentou adequadamente a antropóloga Ludmila
Catela, ao estudar os casos de desaparecimento forçado relacionados à ditadura argentina, o
desaparecimento pode ser pensado como uma “morte inconclusa” (Catela, 2001: 142). Os
rituais de morte e de despedida são rompidos, na medida em que não há corpo, em que não há
um momento específico para o luto, e não há uma sepultura onde são depositados os restos
175
mortais.
Como não há o corpo para comprovar a morte, Maria prefere acreditar que o filho
esteja vivo. Ela me contou várias situações em que saía procurando o filho aleatoriamente
pelas ruas da cidade. Por onde seu olhar passasse, era sempre mais uma tentava de visualizar e
encontrar o filho. Em certo momento da entrevista, conversávamos de um lugar da igreja, pelo
qual era possível avistar a movimentação da rua. Estávamos no alto de uma igreja e, ao
observar o movimento no ponto de ônibus, Maria identificou e me mostrou uma pessoa que
parecia muito com seu filho. Nesse instante, seus olhos se encheram de lágrimas e ela
começou a me descrever os gestos corporais de seu filho. Segundo ela, o andar da pessoa que
estava passando lá fora era muito parecido com o andar de Alexandre. As formas de falar, de
se vestir, de gesticular e de andar das pessoas passaram a ser observadas por Maria, como se
isso fosse uma pista que ajudasse a identificar e localizar o filho.
Maria tem dois filhos, Manoel e Alexandre. Mora na proximidade de uma favela que
faz divisa com outra, em que facções rivais do tráfico de drogas vivem em conflito há
décadas. Essas favelas ficam na Zona Norte do Rio de Janeiro. Na época do desaparecimento
do filho, ela trabalhava como auxiliar de serviços gerais em um banco, em um bairro da Zona
Sul.
Quando chegou em casa, no dia 12 de dezembro de 2005, após voltar do trabalho,
ainda havia outra jornada a cumprir: a jornada escolar. Antes de seguir para a escola, passou
em casa rapidamente e sua mãe lhe informou que Alexandre já havia retornado da escola,
porém, havia saído novamente para jogar bola e, depois, ainda passaria na casa da namorada.
Ao voltar da escola, às dez da noite, Maria perguntou à sua mãe se Alexandre já havia
chegado. A resposta que obteve foi que Alexandre havia passado em casa antes de ela voltar
do trabalho e depois disso não aparecera novamente. Disse não ter dado muita importância e
fora dormir porque, segundo ela, Alexandre tinha o costume de dormir na casa da avó, quando
chegava muito tarde, com medo de receber broncas da mãe.
Quando acordou no dia seguinte, Maria olhou e viu que Alexandre ainda não estava
em casa. Como trabalhava em um banco e, no dia seguinte, devia chegar mais cedo no local
de trabalho pois, segundo ela, era dia de pagamento dos aposentados, seguiu direto para lá,
sem passar na casa de sua mãe para ver se seu filho já havia voltado para casa.
176
A primeira notícia Maria recebeu da irmã pelo telefone. Teria ocorrido uma operação
policial na favela e alguns jovens teriam sido levados dentro do “caveirão”, entre eles seu
filho. Acompanhemos um trecho do relato de Maria:
E aí, eu acordei muito cedo e não vi ele. Passei pela minha mãe direto, porque
também pra não me atrasar, e fui embora. E eu fiquei o dia inteiro com aquele aperto
no peito todo, e aquela coisa. Fica uma angustia, sabe? E eu ligava pra casa e
ninguém atendia e ligava pra casa ninguém atendia. Aí eu me lembrei que tinha a
minha irmã, pra mim ligar pra casa da minha irmã, que morava na rua de cima.
Quando liguei pra minha irmã, minha irmã falou: “Cê tá sentada?”. E eu falei: “O
que foi Conceição, o que aconteceu?”. Ela falou, “Cê tá sentada?”. Eu falei, “O que
aconteceu, meu coração está apertado, o que houve com o Alexandre? O que foi?
Aconteceu alguma coisa com o Alexandre?”. Aí ela falou pra mim assim: “Maria o
que aconteceu foi o seguinte, aconteceu uma operação dentro da comunidade e
alguns meninos foram levados dentro do caveirão”.
Pelo telefone Conceição disse que mandaria Manoel, o filho mais velho de Maria, até
a favela, para saber o que havia ocorrido. Enquanto Manoel ia à favela, Maria foi conversar
com o gerente do banco e pediu para ser liberada mais cedo, porque algo de errado estava
acontecendo em casa com seu filho. O gerente do banco, que, segundo Maria, era muito seu
amigo, compreendeu sua preocupação e a liberou. Maria trocou de roupa para ir embora, mas
antes ligou novamente para a irmã. A irmã de Maria lhe perguntou se já estava a caminho de
casa e recomendou que andasse rápido, porque a informação que havia chegado era a de que
Alexandre fora levado pelo “caveirão” e entregue aos traficantes da Favela Cutelo, favela
onde o tráfico é comandado por uma facção rival à da Favela Samambaia.
Outra versão que circulou era que os jovens menores de idade teriam sido levados para
o Juizado de Menor. Maria conta que, no meio do desespero, perguntava-se por que seu filho
teria sido levado ao Juizado de Menor, e a resposta que ouviu da irmã foi que Alexandre
estava saindo da favela, de madrugada, quando foi abordado. O simples fato de circular à
noite pela favela é compreendido pela irmã de Maria como motivo suficiente de suspeição.
Maria seguiu do trabalho direto para a favela, apesar de não conhecer ninguém. Por ser
obreira da igreja39 as pessoas rapidamente a identificaram. Quando ela chegou à
comunidade40 havia uma van estacionada e dentro estavam as mães e outros familiares dos
jovens desaparecidos, chorando. Quando os familiares de outros jovens se aproximaram de
Maria, ela foi logo perguntando o que estava acontecendo. Informaram-lhe que todos ali
estavam se dirigindo ao batalhão responsável pela área, para conversar com o comandante
39
Obreira da igreja: na linguagem evangélica, aquela pessoa que se engaja nas atividades e no trabalho da
igreja.
40
Comunidade: termo utilizado em substituição à palavra favela, como forma de evitar a estigmatização. A esse
respeito conferir o texto de Birman (2008).
177
sobre a operação policial que ocorrera de madrugada, circunstância na qual os jovens teriam
desaparecido. Entretanto, segundo rumores que circularam, os jovens não foram levados para
a delegacia, mas sim entregues aos traficantes rivais da Favela Cutelo.
Segundo os moradores ouvidos por Maria, os policiais entraram na Favela Samambaia
com o caveirão para dar cobertura aos traficantes da facção rival que desejavam tomar as
bocas da favela. Um X941 teria se aproveitado da situação para se vingar do filho de Maria.
Ela, no entanto, continuava sem entender por que levaram logo o seu filho, e continuava
fazendo essa pergunta às outras mães e aos familiares dos outros jovens sequestrados. Até que
obteve uma resposta mais precisa de alguém que lhe disse:
Maria, eu soube que quando o X9 viu ele saindo de dentro da comunidade, quando o
caveirão passou, o menino virou pra um dos traficantes que estava dentro do
caveirão, e falou assim: ‘ Esse é da favela, filho de um dos donos da favela. Aí
pararam o caveirão, e colocaram ele’. Quando pegaram meu filho, diz que um dos
chefes do tráfico falou o seguinte: ‘Ganhei na loteria, pequei o filho do cara’. Aí, diz
que ele ainda olhou para o meu filho e falou pro meu filho: ‘Nunca vi negro de nariz
fino!’. Porque meu filho tinha o nariz fino, mas fininho. ‘Nunca vi negro de nariz
fino!’. Diz que pegou o cortador do bolso, tirou um cortador de unha, eu não sei, e
cortou um pedaço do nariz do garoto. Cortou um pedaço do nariz do meu filho.
Quem conta essa história é um dos sobreviventes, um dos meninos que foi liberado,
porque foram treze sequestrados.
Dos treze jovens sequestrados, cinco foram liberados, dos quais dois nunca foram
identificados. Foram os três sobreviventes identificados que relataram a versão de que eram
treze os jovens sequestrados por traficantes da favela rival, com a participação da polícia e de
um X-9. Ao tomar conhecimento de que traficantes da Favela Cutelo estavam envolvidos no
sequestro, Maria quis seguir para lá, mas os outros familiares não a deixaram ir. Seguraram-na
dentro da Favela Samambaia e depois seguiram para a delegacia de polícia.
Na delegacia, encontraram o rapaz acusado de ser X-9. Ele estava preso e os familiares
dos jovens desaparecidos não sabiam. Uma menina, que estava no grupo de familiares dos
jovens desaparecidos foi quem trouxe a informação, dizendo: “Ele ta aí! Ele ta aí!”. Ao ouvir
a fala dessa menina, Maria ficou curiosa em saber “quem estava ali”. Guardava a esperança de
ouvir que fosse filho. Mas não era, quem estava ali era o X-9. Maria ficou espantada ao saber
41
X-9: na gíria do crime significa delator, traidor, dedo-duro, alcagüete, informante da polícia.
178
quem era o X-9. Era um rapaz conhecido seu, para quem, segundo ela, “cansou” de fazer
doações de alimentos já que sua mãe era muito pobre. A mãe desse rapaz era frequentadora da
mesma igreja que Maria, e ele também tinha o hábito de acompanhar sua mãe à igreja, desde
muito cedo.
Maria relata que olhou “na parte de cima da delegacia”. Lá estava o X-9, com as mãos
algemadas. Segundo ela, quando ele “bateu o olho nela”, ficou “assim meio sem graça” e
baixou o olhar. No entanto, quando olhava para as outras mulheres, familiares dos outros
jovens, ele as ameaçava. Maria começou a se sentir mal na delegacia, mas ainda deu tempo de
reconhecer dois jovens moradores de Samambaia, que também estavam na delegacia. Ao
avistarem esses jovens os familiares passaram a perguntar por cada um dos desaparecidos, já
que foram todos pegos juntos. Maria se dirigiu a um deles para solicitar notícias de seu filho:
Virei pra esse rapaz, que me olhava muito arregalado, e perguntei pra ele assim:
“Meu filho, por favor”, e peguei a foto do meu filho e mostrei pra ele. “Esse menino
tava junto com vocês? Você viu se eles pegaram esse menino?”. Ele ficou paralisado.
Ele olhava pra mim, mas não conseguia me responder, sabe? Eu via o terror no olho
dele, no rosto dele, e eu falei: “Meu filho, me responde! Esse menino tava com
vocês?”. E ele balançou um pouquinho a cabeça, quase não mexendo, assim pra
mim, sabe? E aí ele abaixou a cabeça e a lágrima desceu no olho dele. Ai eu falei:
“Meu filho, pelo amor de Deus, fala pra mim, o que foi que você viu? Esse menino
tava no meio deles?”. Esse menino não piscava nem nada. Ele olhava fixo dentro dos
meus olhos e ele ficava paralisado assim. O olhar dele me deu medo, de desespero.
Porque eu olhei pra ele e tipo como se ele não quisesse falar! Aí eu virei as costas e
bati com a mão na parede e falei: “O meu filho está morto! Eles mataram o meu filho
e ele viu o meu filho morrendo”. Aí ele pegou e ficou assim... a lágrima dele descia.
Ele abaixou a cabeça. Aí eu não via mais nada, quando eu acordei eu já estava lá
dentro. Eu desmaiei e não conseguia falar. Eu fiquei oito horas sem ter voz. Fiquei
paralisada, oito horas sem falar. Eu não conseguia falar uma palavra. Eu abria a boca
e não saía. Eu fiquei paralisada, era como se eu tivesse tomado uma anestesia,
alguma coisa, porque eu queria andar e minha perna não respondia. Aí eu fui tirada
dali, me pegaram pelas pernas, me colocaram dentro de um carro e dali me levaram
para um Hospital, para o Getúlio Vargas.
Após desmaiar na delegacia, Maria foi levada ao hospital. Segundo seu relato, quando
voltou a si já era madrugada do dia seguinte. Do hospital, foi levada para a casa de uma
“moça da igreja”, dentro da comunidade Samambaia. Ao acordar, de madrugada, ficou
desesperada ao ver que não estava em casa e perguntou o que estava fazendo ali:
Aí a menina disse pra mim: “Você não pode voltar pra tua casa”. Aí eu perguntei por
que não. “Porque segundo o comentário que tá tendo aqui dentro da comunidade, o
teu filho foi pego por causa do seu ex-marido, e se você voltar pra casa eles vão lá
pra te matar”. Aí eu falei: “Gente, mas eu não tenho nada a ver com essa história. Eu
trabalho, eu vivo a minha vida, e eu sou separada desse homem há doze anos.
Quando eu vivia com ele, ele trabalhava, não era dessa vida”. E a menina disse:
“Não, você não pode voltar pra sua casa”. E aí eu fiquei lá dentro da comunidade,
naquele desespero, de madrugada, andando pra lá e pra cá. Não queria dormir, eu
179
queria meu filho. E eu andava dentro da comunidade, amanheceu o dia e nós fomos
para o batalhão.
A conversa com o comandante foi marcada pela tensão. As mães ficaram irritadas ao
ouvirem da boca do comandante que, naquela madrugada, ele não havia liberado nenhum
carro blindado42. Sendo assim, era impossível que o caveirão43 tivesse circulado pela
comunidade. Maria contestou o comandante dizendo que na Favela Samambaia há uma
ocupação policial que chega às dezoito horas e sai às seis da manhã, mas, nesse dia, a
ocupação saiu da comunidade à uma e quarenta da manhã, para dar cobertura aos traficantes.
Vários moradores teriam visto dois caveirões entrando na favela.
Diante do impasse, as mães pediram ao comandante que enviasse uma equipe à favela
para procurar “os meninos”. Junto com as mães, estava o presidente da Associação de
Moradores, que também ouviu da boca do comandante que este não arriscaria seus policiais
em Samambaia porque, segundo ele, “o pessoal de Samambaia tem mania de dar tiro em
polícia”. As mães insistiram nesse pedido, mas não foram atendidas. Para encerrar a conversa,
o comandante disse que nesse momento era horário escolar e que seus soldados estavam
ocupados, lanchando.
Segundo o relato de Maria, o comandante chegou a afirmar que se o acontecimento
tivesse ocorrido na Favela Cutelo, os policiais iriam, “porque lá é mais tranquilo”. O
comandante do batalhão perguntou às mães se elas garantiriam a segurança dos policiais e se
falariam com os “bandidos” para a polícia entrar. No meio do desespero, as mães disseram ao
comandante que conversariam com quem quer que fosse, mas, ao final da conversa, saíram
dali sem resposta alguma. Quando as mães estavam de saída, na porta do batalhão, um dos
familiares dos jovens recebeu um telefonema informando que eles estariam no Hospital
Getúlio Vargas. Os familiares entraram na van e dali mesmo se dirigiram ao hospital.
42
Blindado: o mesmo que caveirão, carro blindado da polícia.
43
Caveirão: “O caveirão é um carro blindado adaptado para ser um veículo militar. A palavra caveirão refere-se
ao emblema do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), que aparece com destaque na lateral do
veículo. Entre as modificações feitas nos caminhões blindados originais estão o acréscimo de uma torre de tiro,
capaz de girar em 360 graus, e fileiras de posições de tiro em cada lado do caminhão. O caveirão tem capacidade
para até 12 policiais com armas pesadas. Construído para resistir às armas de alta potência e aos explosivos, o
caveirão tem duas camadas de blindagem, assim como uma grade de aço para proteger as janelas quando
sustenta fogo pesado. Os pneus são revestidos com uma substância glutinosa que impede que sejam furados. As
quatro portas travam automaticamente e não podem ser abertas pelo lado de fora – dois alçapões de escape, um
na torre e outro no piso, podem ser usados em emergências. Embora pese cerca de 8 toneladas, o caveirão pode
alcançar velocidades de até 120km/h”. (Fonte: Relatório da Anistia Internacional: “Vim buscar sua alma”: o
caveirão e o policiamento no Rio de Janeiro, 19/07/2006).
180
4.2.4. Do batalhão ao hospital: a presença ostensiva da polícia
Ao chegarem ao hospital não puderam entrar, pois havia uma grade de emergência
colocada justamente na entrada para impedir a passagem. Maria se agarrou à grade e olhou
para dentro do hospital. “Havia muita polícia”, segundo ela, e um grupo de PMs formava uma
roda de conversa. Do lado de fora da grade, Maria tentava conversar com esses policiais,
quando um deles seguiu em sua direção. Ela então lhe explicou o que havia acontecido e qual
era o caso. Esse policial que a atendeu seria um dos quatro policiais que receberam os
cinquenta mil reais pagos pelos traficantes pelo “aluguel” do caveirão. Os familiares só
souberam dessa informação mais tarde.
Sem saber que o policial que a atendeu era um dos envolvidos no caso, Maria pegou
uma foto do filho, mostrou a ele e perguntou se aquela pessoa estava ali, no hospital. Para
pressionar, disse ainda ao policial que esta informação de que o filho estava no hospital lhe
havia sido transmitida por um guardador de carro, morador da Favela Samambaia, que havia
machucado a perna e passado no hospital para se medicar. Esse guardador disse a Maria que
viu o filho dela com o nariz cortado e muito sangue escorrendo.
Após ouvir Maria, o policial pegou a foto, olhou e pediu para que esperasse um
minuto. O policial seguiu com a foto e entrou no setor de emergência do hospital, onde
estavam os demais policiais. Do lado de fora da grade, Maria via esse policial mostrar a foto
de seu filho aos colegas de profissão. Do lado de dentro, o policial olhava para a foto e olhava
para Maria. A fotografia rodou nas mãos de todos os policiais. Um falava com o outro e
alguns riam balançando a cabeça.
Maria estava acompanhada da irmã, e pediu a ela que desse um jeito de recuperar a
fotografia, que circulava de mão em mão entre os policiais. Enquanto a irmã tentava reaver a
foto, Maria pensou uma estratégia para conseguir entrar no hospital. Fez uma ficha médica,
como se estivesse passando mal.
Dei a volta por baixo do setor de entrada de emergência, fiz uma ficha como se eu
tivesse lá passando mal. Me afastei dali, desci e fui sozinha, fiz uma fichinha e entrei
no hospital. Consegui entrar. Quando eu cheguei lá dentro tinha dois rapazes numa
maca. Um estava com a cabeça aberta, tipo que tinha ganhado uma machadada na
cabeça, uma abertura horrível, com o rosto todo inchado, todo arrebentado. E eu
tinha a outra foto comigo, né? Eu tenho um monte de fotos do meu filho dentro da
bolsa. Aí eu perguntei para o rapaz assim: “Meu filho, você é do caso Samambaia?”.
E o rapaz todo arrebentado, assim: “Não, não, eu não sei de Samambaia não. Eu não
181
sei de nada não!”. Aí eu senti que era. Aí ele falou assim: “Eu não sou de
Samambaia”. Aí eu virei as costas, quando eu virei as costas pra ele, quando eu dei
uns cinco passos assim, ele virou e falou assim: “A senhora é a mãe do K?”. Aí eu
falei pra ele assim, aí eu voltei e falei: “Eu não falei que você era de Samambaia?
Você era do caso Samambaia?”.
Depois de muito insistir com esse garoto e não obter nenhuma informação, Maria
percorreu todo o hospital e, de novo, não encontrou nada, nenhum indício. Tampouco ouviu
alguma coisa relacionada ao caso Samambaia. Os familiares dos jovens desaparecidos se
reuniram novamente, entraram na van e prosseguiram na peregrinação em busca de
informações.
182
meninos, colocavam eles no telefone para os traficantes de Samambaia ouvirem e
falavam: “Oh, a gente tá assando a carne dos filhos de vocês. Aqui, oh!”. E aí os
meninos gritavam, choravam no telefone, e eles ficavam furando os meninos e
fazendo aquelas torturas. No decorrer do tempo fui recebendo bastante informação,
que eles iam trocar aqueles meninos de lugares, que eles iam usar aqueles meninos
quando eles invadissem. Os meninos iam mostrar a cara dos traficantes. E aí houve o
comentário que eles tinham sido mortos e picados e jogados para os porcos e os
policiais mataram os porcos fizeram análise e não tinha vestígio de carne humana,
não teria como em dois dias aqueles porcos comerem oito pessoas.
Apesar das versões do caso que circularam, de que os jovens teriam sido mortos,
picados e jogados para os porcos, Maria não acredita nessa possibilidade, ainda prefere
acreditar que o filho está vivo. Passados mais de dois anos de quando ouvi o primeiro relato
sobre o caso, na ocasião em que realizei a entrevista com Maria, seu entendimento era de que
a intenção dos traficantes de Cutelo, ao entrarem em Samambaia, era tomar o tráfico de
drogas e não sequestrar os jovens. Para ela, os traficantes foram enganados pelo X-9.
Como K. tinha sido expulso da comunidade pelo traficante, por ter caguetado o
pessoal do tráfico, passou para o pessoal de Cutelo e achou que ia concluir a
vingança dele. Ele enganou os traficantes de Cutelo dizendo que sabia onde
moravam os [traficantes de Samambaia]. Levou o chefe do tráfico somente na casa
dos meninos que na época deram a surra nele. E eu fiquei sabendo que meu filho
participou de bater nele. Então a vingança era do K. Ele usou o dono de Cutelo para
concluir a vingança, mas o dono não sabia disso. E depois desses anos todos eu
descobri que os meninos saíram de dentro da comunidade Samambaia nus. Que eles
tiraram as roupas deles e os levaram para Cutelo nus. Quem mora na divisa viu pela
janela que os meninos passaram todos eles amarrados. [O traficante] saiu de dentro
da comunidade Samambaia de caveirão. Por isso que nós nunca conseguimos
encontrar os nossos filhos. Por isso que na manhã seguinte a Policia Civil vasculhou
tudo dentro da comunidade e não achou esses meninos. Porque eles estavam no
subterrâneo44. Todas as denúncias que eu tive de lugares onde eles pudessem estar eu
passei adiante. O coronel [nome] investigou e realmente encontrou vestígios. Parece
que Cutelo fez um subterrâneo. É tipo um porão, onde ele [o coronel] encontrou uns
cobertores. Do outro lado da favela, tinha um galpão abandonado. Encontraram
vestígios de que realmente os garotos passaram por ali. E uma casa que ia ser uma
igreja, teve denúncia de que eles foram torturados dentro dessa casa. Porque um dos
meninos que foi libertado levou a polícia até esse local. E encontraram pedaços de
dedos, encontraram muito sangue naquele lugar. Foi ali que foi feito aquele exame
que se chama forense45, né? Aquele exame que joga o luminol46, que joga pra
investigar sangue. Encontraram nove tipos de sangue diferentes.
44
Subterrâneo: porão utilizado pelos traficantes como cativeiro, para esconder pessoas sequestradas.
45
Forense (exame forense): exame pericial para encontrar material que sirva como prova nos autos de um
processo jurídico.
46
“Luminol: é uma substância química criada em 1928 por H. O. Albrecht. É um produto que é preparado
misturando-se o luminol propriamente dito, com uma substância à base de peróxido de Hidrogênio que possui o
mesmo efeito da água oxigenada, que reage muito lentamente. Quando essa mistura entra em contato com o
sangue humano, utiliza o ferro presente na hemoglobina como agente catalisador causando uma reação de
quimiluminescência. Muito utilizado pela polícia cientifica, quando necessita saber se há vestígios de sangue em
roupas, objetos ou lugares. No caso de tecidos, mesmo que a cena do crime tenha sido limpa, as fibras do tecido
absorvem partes do composto de ferro, e assim, quando aplicado o luminol, ele causa uma reação de oxidação e
'ilumina', literalmente, o local, ficando uma cor azul-fluorescente. É mais útil quando usado junto com luz-negra,
podendo-se assim ver mais claramente as evidências de sangue”. (Fonte: Wikipédia).
183
4.2.6. O açougueiro, o caveirão, os traficantes com farda e a corrupção policial
47
Açougueiro: expressão utilizada para designar a pessoa, dentro do tráfico de drogas, responsável por torturar,
matar, esquartejar e “sumir” com os corpos das vítimas.
48
Na etnografia de Antônio Rafael Barbosa sobre o tráfico de drogas, um de seus informantes ao falar do
tratamento dispensado aos mortos, difere dois tipos, um dirigido para membros do próprio grupo de traficantes e
moradores da localidade, outro, direcionado aos inimigos: “Tem os defuntos vivos. Aqueles que são obrigados a
sumir, a sair fora. Aí pra ver a mãe, um irmão, tem que falar com alguém pra ir lá, mandar carta... marcar um
lugar longe dali. Porque se pisar ali ele morre. […] Quando não é pra ser exemplo, um castigo de exemplo, aí
tortura longe dos olhos da comunidade. Levam lá pra cima, pra um lugar em que ninguém vê, que pouca gente
vê, pode ser uma casa, e ali mesmo dão cabo do cara. 'Passa o carro...' - é o cerol. Porque sempre alguém delata,
a família do cara pode delatar, e assim é menos um crime para botar nas costas. […] Joga no poço, em um
buraco no alto do morro, taca cal... […] Quando você ouve a expressão ‘panha o carrinho’, aí você já sabe,
alguém vai cair. Esse carrinho é um carrinho de lixo. Tem um gari que tá ali com eles que bota o defunto no
carro, joga um lixo por cima, e vai desovar em um lugar mais longe. Um local próximo e longe da favela. […]
Também pode ser num porta-mala. Roubam muito carro pra isso. É a desova... aliviar o flagrante... Polícia
também faz, joga em qualquer canto... Polícia não se mata. Porque se matar polícia acaba com a boca. Tem que
ser um negócio muito bem feito, deschavado. […] Geralmente são esses polícia que já deu muito derrame no
morro. […] Aí você pega e bota debaixo do morro do alemão. Quando você vê isso aí no jornal, que acharam o
corpo de um policial em determinada área, é porque foi outro que fez. Não tem dúvida” (Barbosa, 1998: 104-5).
184
Quando eles chegaram lá, tinha um menino que ia dizer pra eles onde os traficantes
estavam e onde estavam as armas. K. ia conduzi-los às casas dos bandidos.
Contaram no depoimento que foi isso que foram fazer lá. Só que em depoimento K
não diz isso. Diz o seguinte: que eles [os policiais] ficaram encarregados de trazer o
caveirão e dentro do caveirão estavam ele, outro traficante magro, e o Cafunga. E
quando eles chegaram na porta do caveirão, o motorista do carro blindado falou o
seguinte: “Uê! O que quê tá acontecendo? Oh, cara! Você vai entrar aqui assim?”.
Porque esse traficante estava armado, estava com granadas penduradas. E aí diz que
os policiais do posto de policiamento tranquilizaram os policiais que estavam indo
ajudar eles. Disseram o seguinte: “Não, tá tranquilo, pode [deixar]. Eles são amigos,
pode entrar que eles são amigos”. Eles estavam todos fardados, os traficantes, com
farda da PM. E aí eles entraram em Samambaia dessa maneira, com traficantes
dentro do caveirão. E aí [os policiais] alegam que só tinha um carro blindado, mas
moradores de Samambaia ficam com medo de denunciar. [Os moradores] alegaram
que eram dois carros blindados.
Maria contou que, através dos depoimentos dos policiais, os familiares descobriram
que eles eram de vários batalhões diferentes. Essa informação também já havia sido passada
pelo X-9, mas até então ninguém acreditava. As mães só acreditaram quando tiveram acesso
ao inquérito, onde constam os depoimentos dos policiais, os nomes dos policiais denunciados
e os respectivos batalhões aos quais eram vinculados.
Com o passar do tempo novos detalhes e informações apareceram e novas surpresas
também. Maria tomou conhecimento, a partir do relato das outras mães de que alguns dos
“meninos” foram retirados de dentro de casa por traficantes vestidos com o uniforme da
polícia.
Eles bateram de porta em porta. Alguns eles encontraram pelas vielas, pelos becos da
comunidade. No caso do meu filho, na Ponte, já descendo. Então ele [o X-9] levou
os traficantes na casa desses meninos, que antigamente eram amigos dele.
Bateram na porta e falaram: “Vamos embora, vamos levar que é bandido”. E diz que
os policiais falaram o seguinte [para as mães]: “Se ele não for bandido ele vai ser
liberado, mas a gente vai levar para averiguação. Todos eles serão levados pra
averiguação”. E aí, as mães naquele desespero, catando os documentos, indo atrás
deles. Só que elas achavam muito estranho, porque elas olhavam para a cara de
alguns que estavam vestidos de policiais e elas achavam que eram rostos conhecidos.
Porque muitos moram na divisa de Samambaia e Cutelo. Mas como tinha polícia ali
sempre, elas não achavam que eram bandidos. Só que quando o Cafunga entrou na
casa de uma delas ela reconheceu, porque ele era de Samambaia e as pessoas
conheciam. Algumas mães foram atrás e eles gritaram pra elas voltarem, porque se
não as matariam. E alguns meninos foram tirados de dentro de casa. E essas mães
alegam que eles, os traficantes, estavam vestidos de PM. Só que pra gente
comprovar! Se a gente fala essas coisas, a polícia sempre vem contra a gente. A
polícia sempre diz: “Cuidado com o que você diz, a gente pode te processar”. Eles
estavam sempre falando esse tipo de coisa. E eu fui muito ameaçada. Porque as mães
que moravam na comunidade, elas tinham muito medo, e eu já não tinha medo
porque eu morava fora. Mas mesmo assim, era meu filho, eu tinha que correr atrás.
Fui eu quem o botou no mundo. Ele dependia de mim, então eu tinha que fazer
aquilo. E aí eu sei que elas [as outras mães] ficaram com muito medo. Eu fui
ameaçada pelo comandante do [número do batalhão] várias vezes. Na casa da minha
mãe, teve muitas vezes que eu ia pra abrir o portão e eu dava de cara com ele num
gol bolinha, perto da minha casa.
185
Em razão das ameaças que sofreu, Maria teve que se mudar de casa consecutivamente,
chegando a ter dezesseis endereços diferentes. Teve que abandonar tudo várias vezes, morar
na casa de pessoas que não a conheciam, mas que foram solidárias oferecendo-lhe abrigo. Diz
que teve a promessa do governador de que teria outra casa, conversou com autoridades
públicas que atuam na área dos direitos humanos, inclusive com o Ministro da Justiça Tarso
Genro, mas não obteve resposta alguma. Uma carta chegou a ser enviada por uma autoridade
à Caixa Econômica Federal, tratando de uma casa para Maria. Porém, também não resultou
em nada.
A única coisa que as mães receberam, por curto período de tempo, foram algumas
cestas básicas. A partir desse fato Maria elabora uma crítica às outras mães. No seu
entendimento, as cestas básicas eram dadas para poder calar a boca das mães, porque, diz ela,
“nós sabemos que as pessoas que vivem na comunidade, o que oferecem pra elas, elas
aceitam”. Já a interpretação que Maria faz de si mesma é a de que levantou uma bandeira,
porque foi contra a polícia, foi contra traficante, foi contra todo mundo, porque achava um
absurdo ninguém fazer nada.
Para Maria, as outras mães tiveram medo de se manifestar porque moravam dentro da
favela e qualquer manifestação significaria risco de morte. Por isso preferiram se calar (ou
melhor, foram silenciadas). Conta ainda que convidava as outras mães para reuniões,
manifestações, viagens para denunciar o caso e reivindicar providências, mas ninguém
aparecia. Uma das peregrinações solitárias de Maria se deu quando ela decidiu solicitar uma
dragagem de um rio que fica em Samambaia, após receber uma denúncia de que os corpos
poderiam ter sido jogados em um valão. O valão ficava próximo a um terreno da Marinha, só
sendo permitida a entrada com a autorização desta, e este foi o maior obstáculo. Maria chegou
a conseguir a draga para fazer a busca no rio e, depois de muito empenho e mobilização,
conseguiu, por intermédio de uma assessora do então senador e ex-ministro da justiça Renan
Calheiros (PMDB/AL), autorização para entrar na área.
Fui a única que botou peito pra dragar o rio. Andei na comunidade toda espalhando
papel, colhendo assinatura, mobilizando pra poder pedir para dragar o rio. E não
dragaram. Disseram que dragaram ali não sei quantos metros, cinquenta metros, cem
metros. Mas se eles tivessem dragado pelo menos cinquenta metros, eu tenho
certeza de que eles teriam encontrado pelo menos cem corpos. Qual foi o medo de
dragar aquele rio? Porque se eles dragam aquele rio [seria] pior do que o Tsunami,
[apareceriam] milhares de corpos. Ia ser um escândalo, e a [governadora] Rosinha
não queria isso no final do mandato dela. Entendeu? Então tem sido uma luta muito
grande. Eu cheguei pra uma das mães e falei pra ela: “Por que você não vai
comigo?”. “Maria, é melhor você botar uma pedra em cima disso, eu não quero
186
saber dessa coisa. É melhor deixar essa coisa pra lá”.
Eu só via naquelas mães [sofrimento]. A Ângela até hoje sofre. A Ângela e a Joana
sofrem. A Joana foi embora pra Pernambuco, ela é de lá. Ela foi embora e não quer
mais voltar pra cá, entrou em estado de depressão, de choque, que não saía nem pra
ir ao supermercado fazer compra. Então eu não estou questionando o sentimento das
mães, porque cada um tem o seu sentimento e cada um reage de uma maneira. E eu
sei que elas têm medo. E tinham medo porque foram ameaçadas naquela época, por
causa de tudo. Porque nós estivemos no batalhão e elas tinham medo. E eu não,
como eu já morava fora, eu tinha como me locomover. Eu ia pra qualquer lugar, não
vivia presa dentro daquilo ali, dentro de favela, dentro de comunidade. Então eu sei
que elas tiveram muito medo e elas largaram tudo. E até foi ter o julgamento e só a
Maria estava no julgamento. Em todas as audiências só estava eu. Viagem pra
Brasília, falar com o Ministro da Justiça, era eu. Direitos humanos, era eu. Vai pra
uma manifestação, era eu.
Diante da negativa das outras mães em participar e levar o caso adiante, Maria sentiu
que não adiantava mais contar com elas. Em sua fala expressa uma grande indignação com o
fato de as mães se recusarem a procurar os filhos. Maria justifica sua força para prosseguir na
luta recorrendo à religião, diz que sentiu Deus falando dentro de seu coração: “Maria, cada
um daqueles meninos é teu filho, teu filho não é só o Alexandre. Acabou. Você não é mais
mãe só do Alexandre. Não conta com elas, porque você não pode contar com elas”.
É possível dizer que essa capacidade de socializar a maternidade constitui-se numa
competência que é desenvolvida a partir do momento em que a dor e o sofrimento são
politizados. O processo de socialização da dor e do sofrimento, o esforço de publicização, e a
construção da denúncia pública, são momentos de aprendizagem política. O contato com
outras mães, familiares e entidades de direitos humanos, é praticamente uma forma de
transmissão de saber. Maria lembra, em nossa conversa, a importância que foi para ela
conhecer Vera e Marilene (Mães de Acari). Duas mães que passaram por experiências muito
semelhantes à que Maria estava passando e que, portanto, tinham muita experiência a contar.
Embora não tenha achado o corpo do filho, Maria considera uma vitória a aprendizagem que
teve. Diz que conheceu pessoas, lugares, muitas portas se abriram, apesar de não ter
encontrado o filho. Mas outras dificuldades permaneceram.
187
4.2.7. O jogo de denúncias e a manipulação das provas
Uma das principais dificuldades na luta das mães por justiça e reparação é a produção
de provas que incriminem os acusados. Mesmo quando existem fartas e evidentes provas, o
corporativismo policial aparece como obstáculo ao prosseguimento dos processos e/ou as
testemunhas e os familiares são intimidados e forçados a mudarem seus depoimentos, ou até a
se mudarem de cidade.
Diante da negação do comandante de que teria ocorrido uma operação policial naquela
madrugada e que nenhum caveirão havia entrado na favela, Maria enumera o que considera
provas suficientes para que sejam tomadas providências urgentes e sérias: “dedos”, “sangue”,
“restos de roupa”, “ossadas”, grande quantidade de dinheiro encontrada com policiais,
testemunhos de moradores que assistiram, de dentro de casa, aos acontecimentos, relatos das
mães que tiveram suas casas invadidas e o exame de DNA. Tudo isso, no entendimento de
Maria, é prova suficiente para demonstrar que a tragédia aconteceu e que é preciso que
providências sejam tomadas.
Alguns rapazes, acusados de serem “traficantes”, chegaram a ser presos e foram em
juízo fazer o reconhecimento dos policiais, no entanto, acabaram colocados em liberdade e
não mais apareceram no julgamento dos mesmos. A libertação dos “traficantes” presos
apavorou as mães, pois eles andavam dizendo que as matariam. Maria conta que estava dentro
da Defensoria Pública quando recebeu o telefonema da delegada dizendo que o advogado de
Cafunga havia conseguido uma liberdade condicional. Ela então perguntou ao defensor
público o que seria das mães com a libertação de Cafunga:
Eu falei pra ele: “Doutor, estão falando que o Cafunga vai sair hoje [da prisão],
como vão ficar as mães? Ele vai querer matar as mães”. Ele falou o seguinte: “É
dona Maria, eu te aconselho o seguinte: a senhora comprar uma pistola, esperar ele
sair de dentro da delegacia e matar ele. Pode deixar que eu te defendo, você não vai
presa não”.
188
contra um dos traficantes, aquele que havia prometido matar as mães.
O delegado titular que acompanhava o caso chegou a dizer à Maria que ela poderia
ficar tranquila, pois o exame tinha dado positivo e isso serviria para manter Cafunga preso,
mas não mostrou o exame a ela. Em umas das idas à delegacia, ela foi informada que o
delegado titular havia entrado de férias. Quem a atendeu, nessa ocasião, foi o delegado
substituto. Depois de uma longa espera, segundo Maria, veio a decepção.
Ele não olhava nos meus olhos. E eu falei pra ele o seguinte: “Doutor José, eu vim
pegar o exame de DNA que ficou pronto. E eu quero o resultado do exame de DNA,
meu, da Ângela e da Joana”. Aí ele: “Ah! Mas você não pode pegar o delas, só pode
pegar o teu”. Eu falei: “Não, elas me deram procuração, pra eu poder conduzir o
caso”. Tenho procuração delas assinada até hoje. Aí ele falou pra mim o seguinte:
“Espera só um minutinho”. Aí ele levantou e foi lá, pegou umas papeladas, sentou e
olhou, olhou, olhou... E eu num tô vendo o que ele tava olhando. Ele tava levantando
e olhando por debaixo das folhas. E aí a Carolina olhou pra mim e achou estranho. E
eu falava com ele e ele não olhava pra mim. Ele olhava pra mesa, ele olhava pro
lado, olhava pra tudo quanto é lado, mas ele não me encarava, não olhava dentro dos
meus olhos. Ele olhava pra baixo, para os papéis, passando os papéis, e aquilo... Eu
via que ele não tava olhando nada, e ele virou pra mim e falou o seguinte: “Não tem
nenhum nome da senhora, da dona Joana e da dona Rosiléia”. E eu falei: “Como, se
no mês passado o doutor Nílson diz pra mim que tinha e que foi o que manteve o
Cafunga preso?”. Ele falou pra mim o seguinte: “Olha, o exame que eu tenho aqui é
do Carlos, o de dona Valdeci e da fulana e da ciclana” . Aí eu falei: “Mas, doutor, no
mês passado o meu exame estava com ele [o delegado titular] e essas [mães] daí
nem tinham feito o exame. Acho que foi quase vinte dias depois da gente, um mês
depois da gente [que elas vieram a fazer]”. “Não, o resultado de vocês não chegou
pra mim, não”. Falei: “Como é que o doutor Fabrício disse que já tinha chegado?”.
“Não, não! Deve ter tido um engano, vocês vão ligar para o departamento tal e
procura saber direitinho”. Aí começou a minha luta tudo de novo. E aí o doutor
Arcanjo, dizendo pra mim: “Não é assim não, senhora Maria. Esses resultados
demoram”. “Como que demora se eles têm os resultados de outras pessoas lá, com
ele, e eu tinha feito primeiro”. “Pode deixar que nós temos o sangue da senhora aqui
e nós vamos resolver isso”. Aí nós fomos lá. Depois eu liguei e nada. E eu fui até lá,
aí cheguei até lá e conversei com eles. Veio uma equipe de umas seis, sete, sei lá,
oito pessoas. Sentaram numa mesa ali pra me explicar. “Ah! Porque o exame não
ficou pronto. Porque as amostras de sangue que pegamos era muito pouca. Tinha
nove tipos de sangues diferentes naquele lugar. Foi confirmado a veracidade do
exame de quatro pessoas. Mas o do Mário, o do Felisberto e do Alexandre não tem”.
Aí aquilo me desesperou, me deixou em pânico. Aí ele falou que ia fazer de novo.
Sabe? Que ele ia fazer de novo o exame, novamente com a mostra do sangue que
tinha lá. E diz ele que fez o exame de novo. Nunca me ligaram pra me falar o
resultado do exame e eu fiquei perturbando, perturbando, perturbando. Até hoje
ninguém nunca recebeu resultado desse exame e aí vem dizer que o nosso exame
deu negativo.
Apesar de Maria nunca ter visto o resultado do seu exame e o das duas outras mães, as
autoridades policiais disseram a ela que os resultados haviam sido negativos. No entanto, para
ela isso não importava. O resultado de outros quatro exames havia dado positivo, o que
bastava. No seu entendimento, havia evidências suficientes para que a investigação
progredisse. Além de quatro resultados de DNA positivos, Maria pergunta: “Cadê o dedo que
189
encontraram na casa?”. Ela mesma se encarrega de responder que ninguém nunca viu.
Até pedaços de carne humana e ossadas foram encontrados. A respeito das ossadas, os
policiais disseram que seriam de cavalo, mas mesmo assim foram levadas para a delegacia
junto com alguns restos de roupas para a perícia. As mães foram até lá fazer o reconhecimento
do material encontrado e Maria foi a última a chegar. Ela relata que era vista pelos policiais
como a mãe “cricri”, que “gostava de criar problemas”. Quando chegou à delegacia um
policial tocava no outro com o objetivo de informar que era ela a mãe “cricri”. Na delegacia
os policiais estavam mostrando dois sacos pretos às mães: um de roupas parcialmente
queimadas e o outro com a ossada. Para Maria mostraram apenas o saco de roupas. Não a
deixaram ver o saco com as ossadas, mas as mães que viram lhe informaram que era uma
ossada humana e que tinha uma perfuração na cabeça. No exame realizado pela polícia o
resultado informava que a ossada seria de um animal.
190
conheci esse rapaz. Aí eu fui morar com esse rapaz quando meu filho tinha três
meses de nascido, né!? Eu vivi com ele durante quase oito anos. Então, eu morava
em outro lugar, e quando eu vim morar em Samambaia [foi] durante só um mês. E
quando eu fiquei com esse rapaz o Alexandre tinha três meses. Todo mundo pensa
que ele era o pai do Alexandre, porque o Alexandre [era] bebezinho e ele ficava
andando com o Alexandre no colo pra lá e pra cá. Então todo mundo achava que ele
era o pai do Alexandre, né!? E eu não tirei isso dele porque o Alexandre amava ele
como pai mesmo, independente de qualquer coisa. Porque quando eu fui viver com
ele, ele estudava, ele trabalhava e depois ele entrou pra vida do crime. E quando ele
entrou pra vida do crime eu fiquei morando com ele por um tempo, mas depois eu
me separei quando ele resolveu entrar pra dentro da favela. Eu me separei porque eu
sempre tive medo desse negócio todo de arma, favela. Então eu falei pra ele: “Já que
você vai viver lá, eu vou viver por aqui”.
Ela não consegue entender como isso poderia justificar o desaparecimento do filho,
por dois motivos: ao mesmo tempo em que descreve uma relação de proximidade entre
Alexandre e o pai envolvido com a criminalidade, Maria tenta demarcar uma distância dela e
do filho em relação ao pai. Diz que esse rapaz que ela conheceu não era o pai biológico de
Alexandre. Quando ela o conheceu, ele não era do crime e hoje também já não é mais.
Então a distância foi nos afastando. Ele arrumou outras mulheres lá dentro e a gente
acabou se separando, mas o Alexandre sempre teve contato com ele. Mas ele ficou
muitos anos preso, ele ficou quatro anos preso. Na época, quando o Alexandre
desapareceu, só tinha mais ou menos dois anos que ele tava na rua. Então o
Alexandre ficou muito apegado, porque quando ele foi preso o Alexandre era
pequeno, e quando ele voltou o Alexandre era um rapaz. Ele devia ter o quê? Nove,
dez anos, quando ele foi preso. Só que quando ele voltou o Alexandre tava com
dezesseis, já era quase um quase homem, né? Ele sempre tava dando as coisas pra
ele, dava dinheiro, dava as coisas. E eu achava que ele não deveria dar aquela
quantidade toda de dinheiro. Eu só [o] vi naquela época, quando o Alexandre sumiu,
desapareceu. Eu só vim encontrar ele agora, há mais ou menos um mês. Um mês que
eu vi ele, né!? E, graças a Deus, ele largou tudo, não quer saber mais de nada, sabe!?
Ele jogou tudo pro alto.
Tinha baile e o Alexandre tava lá. E eu brigava muito. Eu cansei, cansei de subir no
moto táxi e pedir pra me levar dentro da comunidade, na hora do baile, pra mim
191
buscar o Alexandre. As pessoas me viam e diziam: “Olha! Mas ela não é da igreja?
Olha a obreira da igreja! O que ela tá fazendo aqui, no baile funk, de madrugada?”.
E eu saía com ele, puxando pelo braço. [E ele] não sei o que: “Para mãe, vou dormir
na casa do meu pai”. E eu falava pra ele: “Não! Volta pra casa agora”. Porque eu
tinha aquele medo de acontecer alguma coisa com ele lá dentro, mas o Alexandre
vivia lá dentro, todo mundo conhecia o Alexandre. Porque as pessoas da
comunidade, ali fora, só tem uma escola, e ele não podia estudar no Brizolão, porque
era divisa de Samambaia com Cutelo.
Então, o meu filho não saía de lá de dentro. Meu filho vivia lá dentro. Então o caso
do meu filho eu sei o porquê que foi. Não vou dizer pra você assim: “Ah! Meu filho
foi pego por engano”. Meu filho foi pego, mas ele não era bandido. Ele não era
traficante. Eu sei que meu filho não era bandido. Eu sei! Mas eu não posso dizer
também pra você assim, oh: “Ah! Maria”, que nem o delegado perguntou pra mim
uma vez, “o teu filho fumava maconha?”. Eu falei pra ele: “Não sei!”. “O teu filho
era bandido?”. Eu falei: “Não! Porque eu acho que um bandido não pode sair sete
horas da manhã pra treinar futebol até meio dia e meia pra chegar em casa e uma
hora ir pro colégio e chegar seis hora da noite”. Então pra ele ser bandido era de
noite, né! [...] A vida do Alexandre era jogar bola. Ele chegava da escola e era bola
de novo. Só que a minha revolta [era] que ele não jogava bola [nas] quadras lá fora.
Ele não jogava bola do lado de fora, ele jogava bola dentro da favela. Entendeu? Ele
vivia dentro da favela. Ele jogava bola dentro da favela. Se eu queria ir atrás dele,
era só ir dentro da favela que eu achava.
Circular pela favela, à noite, aumenta as chances de se levar uma “dura” da polícia.
Pouco antes de ocorrer o desaparecimento de Alexandre, ele havia “passado pelas mãos da
polícia”. Chegou a ser agredido fisicamente, mas sua mãe só ficou sabendo disso tempos
depois, pela boca de uma vizinha.
Quinze dias antes de acontecer isso [o desaparecimento], uma moça que mora em
um prédio lá em Samambaia, [...] lá da igreja, ela falou pra mim: “Maria! Eu tava lá
na janela e eu vi o seu filho passar, uma e pouco da manhã. Os policiais pegaram
ele, deram o fuzil no peito dele três vezes. Bateram nele e perguntaram pra ele:
“Cadê a sua mãe?” Ele falou: “Minha mãe tá em casa dormindo”. “Onde é que você
tava?”. “Não, tava lá na favela na casa da minha namorada”. “Aí os policiais
bateram nele, deram um monte de tapa na cara dele, e mandaram ele ir embora pra
casa. Pode ir lá ver se ele não está com as costas roxas!”. Quando ele dormiu, eu
levantei a blusa dele e a costa dele tava toda roxa. E ele não me falou que a polícia
192
cercou e bateu nele.
Outra situação que deixa Maria desesperada era o fato de Alexandre compor letras de
funk. Dentre as representações sociais hegemônicas sobre o funk há aquelas que o associam a
uma forma de expressão e linguagem do tráfico. Os proibidões49 seriam uma forma de mandar
recado e ridicularizar a facção rival, e, ao mesmo tempo, celebrar o poder e a força da facção
à qual se está associado. Nas letras de funk de Alexandre ele cantava que iria arrancar a
cabeça de Cafunga.
Ele fazia [funk], ele escrevia. Mas só aquelas coisas mesmas que você não pode
ouvir, proibida, aquelas coisas de favela mesmo, que dava vontade de bater nele. Eu
rasgava tudo quando ouvia. E aí ele cantava aquelas músicas e ele fez uma musica
pro Cafunga que se o Cafunga botasse a cabeça no beco ele ia arrancar a cabeça, ele
ia arrancar ia fazer ia acontecer. E o pai ficava satisfeito com aquilo, porque diz que
quando tinha baile na favela meu ex-marido pegava o cordão de ouro jogava no
pescoço do Alexandre e o Alexandre subia no palco, pegava o microfone e cantava.
E ele ficava todo bobo: “Meu filho! Meu filho! Meu filho!”. Então eu acho que isso
colaborou para o sequestro do meu filho. E naquele dia, quando eles pegaram o meu
filho, porque entregou na mão do Cafunga e o Cafunga falou: “Eu vou arrancar tua
língua fora, nunca mais vai cantar”. E aí nessa hora houve um tiroteio. Os caras do
comando vermelho tentaram invadir e meu filho conseguiu fugir.
49
Proibidões (de proibidão): é um estilo de funk carioca surgido durante a década de 1990 nas favelas do Rio de
Janeiro. Comercializado de forma clandestina os proibidões tratam da realidade das comunidades onde ocorrem
o tráfico de drogas. É considerado por muitos como uma forma de apologia ao tráfico de drogas e há também
uma forte conotação sexual nas letras.
193
justiça. Trata-se de um tipo de luto cuja perda se originou de um ato de injustiça e violência
física. Nesse contexto, o amor materno é o que move Maria em busca de justiça. O amor ao
filho desaparecido torna a luta por justiça uma forma de vivenciar o luto. Em trabalho anterior
(Araújo, 2008), sugeri que entre os coletivos de familiares de vítima de violência, surge uma
gramática política, cujo idioma de ação (Steil, 2002) pode ser pensado como práticas de luto
reivindicativas de justiça. Essa gramática política busca tematizar no espaço público, através
de um esforço tremendo de publicização das denúncias, alguns temas como, por exemplo, a
violência policial nas favelas e o direito à segurança e à justiça dos seus habitantes. Tudo isso
em um contexto no qual o tráfico de drogas e a violência policial aparecem como o cerne do
“problema”.
O desaparecimento do filho provoca uma série de alterações na vida de Maria e, entre
a vizinhança, gera uma série de fofocas, especulações, hipóteses e interpretações, com uma
forte dimensão moral, a respeito da pessoa desaparecida. Em maior ou menor grau, também
gera algum tipo de solidariedade entre os mais próximos. Mas, principalmente, implica em
um cuidadoso processo de gestão do risco por parte dos sobreviventes, familiares, pessoas
mais próximas das vítimas e testemunhas.
Por que “fulano” desapareceu? Será que “devia” alguma coisa e por isso teve que se
mudar? Era “metido com coisa errada”? Por onde e com quem andava? Usava drogas ou era
ligado ao tráfico? Tinha o hábito de frequentar baile funk? Por que frequentava a favela?
Havia algum motivo para justificar uma possível morte? Enfim, o que se coloca em questão é
o estatuto moral da vítima. Esse conjunto de questões que o desaparecimento provoca
expressa os fundamentos de uma moralidade que coloca em suspeita e estigmatiza a pessoa
desaparecida, gerando constrangimentos, ofensas e humilhações, com os quais os familiares
passam a lidar. Na verdade, o que se evoca em termos de moralidade no contexto de
desaparecimento de um morador de favela são exatamente as representações sociais sobre a
favela. Mais ainda, o que se expressa são as representações sociais que associam a favela ao
mal, ao crime, ao imoral.
A favela aparece no relato de Maria como um lugar em que os moradores, por viverem
em contiguidade com o “tráfico de drogas”, estão rotineiramente sujeitos a vivenciar
experiências traumáticas como a vivida por ela, associadas principalmente, mas não só, ao
crime violento. Desse modo, os segmentos da população que moram nas favelas do Rio de
Janeiro estão mais expostos, em relação a moradores de outras áreas da cidade, ao risco e ao
perigo, no que diz respeito à integridade física e ao direito à vida. Estão também à margem do
acesso à justiça.
194
As rotinas são, imprevisivelmente, alteradas por conta do evento crítico, que
desestabiliza e rompe a vida cotidiana. Situações as mais corriqueiras, de repente,
transformam-se em risco e ameaça à integridade física. Portanto, há um grande esforço na
gestão do risco cotidiano.
No relato de Maria, a favela aparece como um lugar-trauma. Trauma, nesse caso,
associado ao desaparecimento forçado do filho e às histórias de terror e sofrimento que o
envolvem . Trauma que também está vinculado ao conflito armado concentrado em torno da
favela, seja em razão da ação letal da polícia, seja em razão do poder de vida e de morte
através do qual os traficantes de droga submetem os moradores. A favela é tida como o locus
do mal, do impuro, da sujeira moral, do perigo, do ilegal e do ilícito, da desordem que ameaça
a cidade, como se ela mesma não fizesse parte da cidade, ocupando o lugar de “o outro” da
cidade. Diante de tamanho preconceito, lutar por justiça torna-se quase impossível, implica
um tremendo esforço em lidar com o estigma e administrar a apresentação de si no espaço
público. Por outro lado, não poderia vir de outro lugar, senão do universo simbólico da morte
e da maternidade, o idioma de ação acionado para reivindicar justiça.
195
PARTE III
As histórias e os relatos dos familiares sobre o terror, a tortura e as formas das mortes
permitem identificar o aparecimento de certa ideia de desumanização/humanização51, que
pode ser entendida como uma metafísica, no sentido de Boltanski e Thévenot, a qual os
familiares recorrem para justificar seu senso de justiça ou injustiça. A metafísica da
desumanização/humanização possibilita aos atores questionar a aplicabilidade universal da
categoria “humano”, sugerindo uma relativização da ideia de humanidade e mostrando como
tal ideia é construída sociologicamente, conforme os contextos e as situações. Jussara Freire
(2010) formulou um esboço de modelo para análise da sociabilidade urbana na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro, no qual formula a questão da desumanização nos seguintes
termos:
Essa desumanização pode ser pensada como uma modalidade específica de relação
social, como um estágio de mediação entre um regime de força e um regime de justificação,
um estado liminar entre um regime de força e um regime de justificação.
51
Alguns trabalhos antropológicos, como os de Das (1995, 2008, 2008a) e Uribe (2008), têm explorado ideias de
desumanização e humanização diante de diferentes contextos nacionais de situações de terror relacionados à
“linguagem dos conflitos armados”. Estes autores têm destacado o papel que tem tido o terror como elemento
pedagógico e dissuasivo nas “culturas do terror” (Taussig, 1993). Ao analisar as experiências dos familiares das
vítimas do gatillo fácil, como passaram a ser referidas as mortes produzidas pela violência do Estado argentino,
especificamente pelas polícias, Pita (2010) também faz referência ao “trabalho simbólico de restituição da
humanidade” que os familiares levam a cabo para reconstruir a dignidade dos filhos assassinados como a un
perro. Tanto Pita como Uribe, a partir de seus materiais etnográficos, referem-se a situações de animalização das
vítimas. Uribe argumenta que a animalização pode ser lida como uma metáfora da dominação.
198
Como viver, conviver e agir diante de contextos envolvendo eventos violentos
disruptivos da vida cotidiana? Agir diante de modalidades de desumanização implica situar-se
em um jogo de disputas, denúncias, críticas e acusações em que as posições e os lugares de
cada um, em que pesem hierarquias sociais, são intercambiáveis e podem mudar conforme o
desenrolar das situações de denúncia (Boltanski, 2001). A desumanização/humanização, em
um de seus aspectos, pode ser entendida como um continuum de posições intercambiáveis
dentro de um sistema actancial em que os actantes ora podem acionar recursos e dispositivos
de humanização, ora de desumanização. Ora ocupando o lugar de vítimas da desumanização,
ora sendo os algozes da desumanização. Nesse ponto, uma ressalva deve ser feita, embora as
posições possam ser intercambiáveis, algo que é próprio do regime de desumanização é certo
endurecimento de posições e das hierarquias.
Qual humanidade (ou quais humanidades) comporta os direitos humanos? Direitos
humanos podem ser pensados como um dispositivo de proteção que busca incluir alguém ou
algum grupo social em uma humanidade comum (Boltanski e Thévenot, 1991). Decorre então
que, diante do dispositivo segregatório que é a desumanização, entendida como a redução da
humanidade do outro, as pessoas se qualificam e se hierarquizam em termos de humanidade.
Essa hierarquização de humanidades é que organiza o debate sobre o acesso aos direitos de
cidadania e justiça no julgamento moral cotidiano e o merecimento ou não da violência. Mais
direitos para os mais humanos e menos direitos para os menos humanos.
Recuperando a ideia de Lautier (1997), de uma cidadania de geometria variável,
expressão usada para referir-se às desigualdades no acesso aos direitos, seria possível pensar,
por analogia, em uma espécie de geometria variável das humanidades. Na linguagem dos
direitos, a humanidade é um pressuposto universal contextualizado por algum princípio
superior comum. Na linguagem da violência urbana a humanidade é uma prova de acessos
diferenciados aos direitos, havendo relação direta entre a humanidade de cada um e o grau de
acesso aos direitos de cidadania e justiça, ou seja, a cada um conforme a sua humanidade. Daí
a disputa para ver quem se estabelece como o juiz definidor da humanidade de cada um em
cada situação. Por outro lado, a ideia de “metáfora da guerra” (Leite, 2001) leva a pensar na
extração total da humanidade.
Destituir e restituir a humanidade de certos grupos sociais ou pessoas pertencentes a
grupos sociais específicos, desde o processo de colonização do Brasil, muitas vezes funciona
como dispositivo de ação diante de situações de opressão em que a eliminação moral e física
da pessoa era iminente. Decorre então que, diante desse quadro de desumanização do outro e,
inversamente, de luta para se humanizar, as pessoas se qualificam e se hierarquizam em
199
termos de humanidade. Essa hierarquização de humanidades organiza o debate sobre o acesso
aos direitos de cidadania e justiça no julgamento moral cotidiano. Mais direitos para os mais
humanos e menos direitos para os menos humanos. Deste modo, pode-se pensar em uma
espécie de escala de humanidade, havendo uma relação direta entre a humanidade de cada um
e o grau de acesso aos direitos de cidadania e justiça, ou seja, a cada um conforme a sua
humanidade. Daí a disputa para ver quem se estabelece como juiz definidor da humanidade de
cada um.
200
solução a qualquer ameaça recorrendo à linguagem da erradicação. Movendo-se de
uma configuração a outra entre diferentes classes de agentes humanos e agentes não
humanos, essa linguagem tem o efeito de dissolver em última instância as distinções
entre o que significa ter que tratar com outro ser humano e o que significa tratar com
um agente infeccioso, como uma doença viral. (Das, 2008a: 509)
201
respeito aos direitos civis dos moradores nos territórios conflagrados” (Leite, 2001: 79).
A percepção de ineficiência das políticas de segurança pública e a vivência de
situações características de contextos de guerra (alto índice de mortos, tortura,
desaparecimentos, tiroteios, invasões, cerco etc.) propiciaram o desenvolvimento de uma
“cultura de medo”. A “metáfora da guerra” foi gestada a partir de uma série de episódios
violentos e reafirmada, ao longo da década de 1990 toda vez em que se ampliou a percepção
do agravamento da violência52. Diante desse contexto, a violência policial em territórios e
sobre os grupos estigmatizados ganhou grande aceitação e inaugurou-se a “era das chacinas”,
envolvendo a participação de policiais, sendo as três mais marcantes desse período: a chacina
de Acari, em 1990, com o sequestro e desaparecimento dos corpos (jamais encontrados) de
onze jovens de Acari; a chacina da Candelária, em julho de 1993, com o assassinato de sete
menores que dormiam às portas da igreja da Candelária; e a chacina de Vigário Geral, em
agosto de 1993, com vinte e um mortos.
É neste contexto que categorias como vítima e familiar de vítima emergem no cenário
público e político como uma forma de interpretar a violência através de uma outra chave de
leitura, mas que também opera, em certa medida, com a “metáfora da guerra”, já que fala em
“pacificação e integração da cidade”. Porém, a via de pacificação proposta por esta
interpretação alternativa à “metáfora da guerra”, seria através da combinação de “valores
associados à noção de cidadania e a redes de solidariedade constituídas com o objetivo de
promovê-las” (Leite, 2001: 76).
Considero que é a partir deste contexto de disputa entre os dois “pacotes
interpretativos” apresentados por Leite, de um lado a “metáfora da guerra”, de outro, a
“pacificação e integração da cidade”, que faz sentido falar em
desumanização/humanização53. A ideia de desumanização/humanização, para analisar a
violência urbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, passa a fazer sentido com a
circulação da “metáfora da guerra”.
52
“Essa versão sobre a violência sustentava que o cenário de paraíso chocara em suas entranhas um 'ovo de
serpente' (Ventura, 1994), que se transmutava em crimes, tráfico de drogas e meninos de rua, delinquência e
desordens urbanas. Evocava como seu espaço privilegiado e eixo de irradiação para a cidade, as favelas
espalhadas nos morros de suas áreas mais valorizadas e nos bairros pobres em seus subúrbios, espraiando-se
ainda por sua periferia. Seus personagens seriam os moradores desses locais, em especial seu segmento mais
jovem, além de bandidos e traficantes que, entrincheirados nas favelas, distribuíam a droga na cidade. Difundia a
ideia de uma sociedade em crise, que não mais dispunha de mecanismos institucionais eficazes para administrar
os conflitos sociais e, por isso, perdera o controle de suas 'classes perigosas'. As demandas por ordem
encontravam justificativa em Hobbes, aludindo à quebra do pacto civil/civilizatório e à irrupção do estado de
guerra: os 'bárbaros' invadiam a cidade” (Leite, 2001: 81).
53
O fato de tomar as duas perspectivas para análise, a da “metáfora da guerra” e a da “pacificação da cidade”,
não significa que as interpretações para o fenômeno se resumem a estas duas. Como chama atenção a própria
autora, os arranjos discursivos e as interpretações são reelaborados e novos sentidos são criados.
202
Ainda sobre este aspecto, gostaria de chamar atenção para a forma como certas ideias,
interpretações, categorias, visões de mundo, dispositivos, circulam de uma situação para outra
conforme as apropriações políticas realizadas pelos atores no curso de suas ações. Se, por um
lado, o dispositivo de desumanização/humanização como repertório da linguagem da guerra
tem relação histórica com o surgimento das categorias vítima absoluta e crime contra a
humanidade, por outro, no contexto da linguagem da violência urbana no Rio de Janeiro,
desumanização/humanização tem relação direta com categorias como vítima, bandido54 e
polícia. Essas três categorias são significativas na análise das gramáticas da violência urbana
e também na gramática dos direitos humanos, na medida em que violência coloca à prova a
humanidade de cada um.
O intuito dessa discussão sobre desumanização não é elaborar uma teoria geral dos
regimes de desumanização, mas sim analisar como essa metafísica é acionada pelos atores
sociais concretos no curso de suas ações igualmente concretas, sobretudo em situações em
que está em jogo o poder de matar. O objetivo aqui é analisar como os atores sociais e
políticos, ao adotarem a linguagem da guerra e a metafísica da desumanização, se
hierarquizam em termos de humanidade, agindo entre a desumanização e a humanização.
Nesta perspectiva, desumanizar corresponde a colocar a humanidade de alguém para baixo,
equivale a rebaixar a humanidade. Por sua vez, humanizar significa reintegrar a uma
humanidade comum. A linguagem da guerra suspende as equivalências, afinal, em um regime
de força não há equivalência, há força.
A metafísica da desumanização/humanização é acionada pelos familiares de vítima de
violência para realizar julgamentos morais e políticos sobre a grandeza ou a pequenez da
humanidade de cada um sobre o merecimento ou não dos infortúnios e sofrimentos a que cada
um é submetido e sobre o direito ou não de ter direitos e em que grau. Diante de situações
específicas, os familiares de vítima mobilizam repertórios de desumanização/humanização,
hierarquizando humanidades, para formular suas críticas e justificar suas reivindicações, suas
denúncias e seus protestos. O trabalho dos familiares é, sobretudo, um trabalho simbólico e
político de restituição da humanidade de seus mortos (Pita, 2010) diante da desumanização da
qual denunciam ser vítimas.
O que as experiências de sofrimento e os relatos de violência dos familiares parecem
demonstrar é que a violência que se abate sobre as vítimas é tão exagerada, tão radical, que
contém certa dimensão de extremo, de algo que passa dos limites. As queixas ora tornam-se
54
Para uma discussão da categoria bandido, conferir Misse (2010) e Teixeira (2011).
203
críticas mais ou menos orgânicas, ora não passam de lamentos e sentimentos de indignação
em relação à crueldade expressa no exercício, praticamente ritual, do ato de matar. O
simbolismo da morte fere o limite daquilo que é considerado pelos familiares como humano.
Não é minha intenção aqui reificar a categoria vítima. Vítima aparece aqui como uma
categoria nativa e minha intenção é analisar como se dá o uso político desse estatuto. A noção
contemporânea de vítima vincula-se às políticas de reparação de danos, inicialmente frente às
atrocidades da guerra e, posteriormente, de regimes totalitários e autoritários como, por
exemplo, as ditaduras latino-americanas. A figura da vítima surge simultaneamente com a
construção da noção de crime contra a humanidade e de uma justiça penal internacional que
consistiria, enquanto projeto, basicamente em aplicar a justiça a crimes de massa que dizem
respeito a toda a comunidade internacional.
Desde então a noção de vítima ampliou-se e passou a ser usada em diversos contextos
para conferir legitimidade moral às reivindicações daqueles que são afetados por algum tipo
de sofrimento decorrente de experiências traumática em diversos contextos políticos. A
antropóloga Cynthia Sarti, ao refletir sobre o sofrimento associado à violência, tem se
204
indagado a respeito da construção social e histórica da pessoa como vítima e a extensão que
essa figura tem adquirido na sociedade contemporânea como forma de legitimação moral de
demandas sociais. Como é “produzida” a vítima? Qual a perspectiva dos atores envolvidos
nessa produção e seus modos de agência? Em que contextos emerge a figura da vítima e que
significados assume?
A análise de Sarti tem como ponto de partida a construção da violência como
problema na área de saúde, interrogando-se sobre “o contexto em que se nomeia a violência,
que agentes sociais a nomeiam, como e quem define a vítima e o agressor e como se expressa
o sofrimento por quem a vivencia ou vivenciou” (Sarti, 2011: 51). A partir desta perspectiva,
Sarti buscou problematizar como políticas públicas de atendimento aos casos de violência na
área de saúde são desenhadas a partir da noção de vítima. A autora argumenta que essa noção
constitui a razão de ser das políticas públicas, não só de atendimento aos vitimados, como
também de prevenção e combate à violência, abrangendo as áreas de saúde e segurança
pública. O campo empírico das pesquisas de Sarti inicialmente foi o atendimento em um
hospital de emergência de casos de violência.
A entrada da questão da violência na área da saúde, segundo o argumento de Sarti, se
deu em razão, entre outros fatores, do impacto social e político de movimentos sociais de
cunho identitário, a partir de suas reivindicações de direitos. A forte presença do movimento
feminista nesse processo tornou a perspectiva de gênero significativa e marcante na
orientação do atendimento à vítima de violência na área da saúde, sendo a figura da mulher
construída como vítima potencial da violência. Disso resultaram ações focalizadas de
atendimento à violência na área da saúde para atender a demandas de grupos específicos.
A construção da vítima e a constituição de uma noção de direito, em termos
particulares, focalizando-se em grupos identitários específicos compreendidos como
vulneráveis, têm como dilema, a cristalização de certas identidades tidas como merecedoras
de uma ação reparatória, enquanto outros grupos não têm o mesmo mérito. Ou seja, há uma
tensão entre particularidade e universalidade dos direitos na administração social dos
conflitos. Se, por um lado, os movimentos sociais de cunho identitário serviram para dar
visibilidade a certas violências até então invisíveis, por outro, incorre-se no problema da
“delimitação do que constitui culturalmente um grupo discriminado” (Sarti, 2011: 53). Como
alerta Sarti, o problema na definição de quem é a vítima e de quem é o agressor é a
construção de identidades positivas de certos grupos, diante das quais a alteridade é vista
como polo negativo.
O dilema de uma definição rígida da figura da vítima, na medida em que esta definição
205
pode priorizar alguns grupos e desconsiderar a vulnerabilidade de outros, é ilustrado por Sarti
quando ela apresenta um caso que registrou durante o trabalho de campo no hospital em que
realizou sua pesquisa. Trata-se de um homem jovem que se dirigiu ao hospital buscando
atendimento frente à violência sexual por ele sofrida. Este homem foi dispensado segundo a
justificativa inicial de que o serviço de atendimento era integrado exclusivamente por
ginecologistas e obstetras, restrito às mulheres, vistas como vítimas potenciais. A situação
desestabilizou a figura da vítima que os profissionais tinham em mente e apontou para as os
deslocamentos que podem ocorrer quando se trata de definir quem ocupa o lugar de vítima e o
lugar de agressor.
Ao se problematizar o lugar atribuído à vítima e ao agressor no processo de
construção social da violência, o que se tem é não apenas uma indagação sobre a definição de
prioridades no desenho das políticas públicas, mas também a problematização e reflexão
sobre as “formas contemporâneas de sociabilidade entre as quais se circunscreve o sofrimento
e o cuidado que lhe corresponde” (Sarti, 2011: 52). A construção da pessoa como vítima no
mundo contemporâneo tem como objetivo conferir-lhe reconhecimento social em relação ao
seu sofrimento.
206
histórias-trauma e estas, por sua vez, tornam-se moeda política e são apropriadas profissional,
econômica, política e culturalmente de diversas formas.
Kleinman e Kleinman chamam atenção para os processos de patologização do
sofrimento social que reescrevem as experiências sociais em termos médicos, reduzindo os
eventos reais a uma imagem de núcleo cultural de vitimização – “a marca pós-moderna”. “A
pessoa que sofre tortura, primeiro, torna-se uma vítima, uma imagem de inocência e
passividade, alguém que não pode representar a si mesmo, que deve ser representada. Então
ela se torna um paciente, especificamente um paciente com o transtorno por excelência do fim
de século (ou seja, transtorno de estresse pós-traumático)”. (p. 9-10). Os autores acrescentam
que as imagens do trauma são parte da nossa economia política e as imagens de sofrimento
tornaram-se uma forma de entretenimento.
Um obstáculo para a passagem de uma situação de violência à uma situação de paz, ou
de um regime de força para um regime de justificação cívica nos termos de Boltanski e
Thevenot (1991), é a não aplicação de uma política sistemática de justiça punitiva contra
agentes estatais, principalmente policiais criminosos. Reconhecer o sofrimento da vítima
significa reconhecer a necessidade de reparação, portanto, de agir em seu benefício. Um dos
pontos centrais e que se torna obstáculo para a aplicação da justiça, nos casos envolvendo
violência policial, consiste em reconhecer a responsabilidade dos agentes policiais e puni-los.
Neste caso, reconhecer a vítima significa reconhecer os crimes praticados por policiais e puni-
los.
É preciso retomar aqui o contexto em que se dá a produção da figura da vítima e o
jogo de posições que se estabelece em torno dela. Ser vítima não significa ocupar um lugar
fixo em um sistema de denúncia. Tanto a condição de vítima como a de algoz podem sofrer
alterações conforme as disputas políticas e simbólicas.
A violência urbana, pensada enquanto representação social (Machado, 1993; 2004),
traz em seus repertórios uma coleção de personagens, cenários, figuras, categorias e situações,
que conformam certo imaginário. Gostaria de destacar uma tríade de figuras que corresponde
a certas posições que cada agente social ocupa diante dos processos de acusação e dos jogos
de denúncia em que cada um se movimenta e se mobiliza para formular suas críticas e fazer
suas reivindicações e protestos. Essa tríade é composta pelas figuras da vítima, do bandido e
da polícia. Essas figuras ocupam lugar central nas gramáticas da violência urbana e podem ser
substituídas por categorias equivalentes como acusador, réu e juiz. É neste contexto do agir
competente, de passagem de uma situação a outra, de um regime de ação a outro, que os
agentes sociais são envolvidos numa situação que vai se fabricando, inventando e
207
conformando os princípios e as gramáticas morais e políticas que coordenam as ações.
5.3. A construção da categoria familiar de vítima: tensões entre ser familiar de vítima e ser
familiar de bandido
Familiar puede definirse entonces como una categoría nativa del campo de la
protesta contra la violencia policial, que revela una dimensión moral que,
condensada em esta figura, incide en la construcción de significados que potencian
la politización de la protesta. Pero también la nominación de familiar – en tanto
categoría nativa – funciona como un demarcador de posiciones respecto de los
actores que intervienen em este campo de protesta. Así, su análisis posibilita dar
cuenta de posiciones diferenciales, autoridades y jerarquías, así como de
obligaciones, tanto entre familiares, como entre estos y no familiares, revelando de
este modo su valor político, es decir, como una categoría nativa que interviene en la
deficinión de un tipo particular de activista político en este campo de protesta. (Pita,
2010: 185)
210
campo político que intervêm na construção da legitimidade daquele que age. A estratégia de
manipular o sagrado equivale a uma forma de competência política que visa construir e
legitimar a autoridade moral.
A figura do morto associada à noção de vítima torna-se o centro do protesto e o
elemento a partir do qual os familiares constroem e manifestam sua autoridade moral,
tornando-se atores quase-sagrados. Os familiares constroem uma forma de protesto que é
também uma forma de luto e vice-versa (Pita, 2010). O próprio enterro, quando há corpos a
serem enterrados, converte-se em um ato de denúncia. E, mesmo quando não há corpo, há os
rituais para a dor, que geram velórios sem corpo, como os denominou Novaes e Catela
(2004).
Nos rituais da dor há todo um trabalho simbólico de restituição da humanidade negada
às vítimas: lembrar o nome, recordar a identidade do morto, recuperar o status social do
morto, reafirmar as qualidades de pessoa, tirar a morte do anonimato e nomear os
responsáveis. Tudo com base no vínculo com o morto. A dor pela morte violenta do filho
pode significar a construção de um espaço social a partir da esfera moral que se constrói em
torno da dor e do sofrimento e em torno da figura da vítima. Ocorre uma retomada da palavra
a partir da dor e de uma linguagem das emoções.
Os moradores dos chamados territórios da pobreza – cujo arquétipo, no Rio de
Janeiro, é representado pela favela – são silenciados, por um lado, pela violência criminal e
pela violência policial, por outro, pela classe média que acusa e associa este segmento à
criminalidade e à violência. Pelo simples fato de morar em territórios onde se estabeleceu
uma modalidade do tráfico de drogas baseada numa sociabilidade armada, marcada pelo
recurso permanente ao uso da força, todos os moradores são associados indistintamente ao
crime. Por viverem emparedados pela sociabilidade violenta (Machado, 2008), são
geralmente desacreditados no espaço público, porque são vistos como bandidos ou coniventes
com a bandidagem.
211
Outro fator que se apresenta como obstáculo para o acesso ao espaço público desse
segmento de moradores da cidade é a predominância na sociedade como um todo (inclusive
entre muitos familiares) e no Estado brasileiro de um entendimento segundo o qual o uso da
violência policial é aceitável e desejável para a manutenção da ordem pública. Desde que a
violência seja aplicada aos elementos devidos (para usar o jargão policial), ela é justificável,
porque o uso de castigos físicos e a inflição da dor diretamente nos corpos têm ampla
aceitação na sociedade brasileira.
Ilustrativo desse entendimento é o relato de uma mãe que diz: “Se tivesse essas três
coisas: se ele [o filho] estivesse roubando, vendendo e fumando maconha e eles pegassem
assim, aí eu deixava para lá”. O que move esta mãe a buscar pelo filho desaparecido é a
presunção de sua inocência. Se soubesse que ele “rouba, vende e fuma maconha”, abriria mão
do direito de procurar. Abriria mão de procurar ou se sentiria sem esse direito, porque sabe
que há um entendimento dominante de que bandido merece e deve morrer, como forma de
limpeza social, de depuração do social. A morte pública do bandido no Rio de Janeiro é
experimentada como um rito de purificação do tecido social. Isso justifica, pelo menos em
parte, o fato de que os familiares que mais aparecem em público para denunciar os casos são
os familiares cujos filhos não tinham envolvimento com a criminalidade.
Os familiares se queixam por serem tratados pela polícia sempre como familiares de
bandidos, portanto, como suspeitos. Quando vão às delegacias de polícia registrar os casos,
são colocados em suspeita e a responsabilidade pela investigação do caso é repassada aos
familiares. Nesse ponto, a reclamação dos familiares é que passam a ter que provar para a
polícia que o caso merece ser investigado, que merece entrar na lista de prioridades dos casos
que serão investigados. Veja-se o relato a seguir em que o policial orienta os familiares a
procurar o “dono da favela” para obter informações sobre o paradeiro do filho:
Quando a gente foi na Civil, né, na Policia Civil... nós fomos todo mundo lá, para a
cidade, e chegando lá eles queriam saber, né? Que nós moramos na favela, que nós
tínhamos que saber o nome dos caras. Tínhamos que falar com ele porque nossos
filhos foram sequestrados. [O policial] queria saber porque os nossos filhos estavam
sumidos, nós tínhamos que achar os nossos filhos, mas tínhamos que falar os nomes
do pessoal de onde a gente morava, né? [Eu disse]: “Eu não sei, nós não sabemos. Eu
saio de manhã para trabalhar. Eu não sei... Meu filho saiu para fazer um passeio e não
retornou mais. Nós não sabemos o nome de ninguém”. Então, foi que eles foram
imprensando, que eles imprensaram ali as mães para querer saber, entendeu?
A dor pela morte violenta do filho pode significar a construção de um espaço social a
partir da esfera moral da dor e do sofrimento e em torno da figura da vítima.
212
5.4. As críticas dos familiares de vítima à polícia
O quadro cognitivo que conforma seu regime de ação tem como núcleo central a
experiência e a situação dolorosa da morte dos filhos, ou de parentes, por policiais. A
compreensão da morte do filho não como uma fatalidade, como é geralmente argumentado
por policiais, mas sim como fruto de uma injustiça praticada pelos mesmos, impulsiona e
alimenta uma vontade, praticamente uma missão de fazer justiça (Leite, 2006). E nesse
processo de lutar por justiça, nos embates travados, a polícia é o alvo central das críticas. E
nas críticas que fazem à polícia, a forma é marcada pela linguagem das emoções (dor,
indignação, raiva, sofrimento, medo, luto, humilhação, ofensas morais, amor aos filhos) e o
conteúdo, pelo questionamento de uma humanidade comum. Os relatos a seguir exemplificam
bem o entendimento dos familiares de vítima acerca da compreensão que os policiais fazem
de seus filhos como “bandidos”.
A polícia nos considera todos bandidos. Então por isso o Caso Acari não foi pra
frente, porque eles dizem que são onze traficantes. Onze pessoas que sumiram,
desapareceram, e que hoje a mamãe chora porque hoje não tem mais dinheiro do
filhinho. Isso aí eu ouvi de todas as autoridades. [Disseram] que eu era mãe de
bandido. Infelizmente você ainda tem que escutar isso.
Se, por um lado, policiais acionam a categoria bandido para justificar moralmente o
“direito de matar” (“porque eram bandidos”), por outro, os familiares de vítima acionam essa
mesma categoria para criticar a polícia, manifestando um entendimento de que polícia e
bandido se equivalem, porque ambos causam sofrimento. Humanizar e desumanizar são
recursos acionados por todos. Polícia e bandido seriam iguais, no entendimento geral dos
familiares de vítima, por isso, da mesma forma que policiais desumanizam os bandidos,
familiares também desumanizam os policiais. Mas há que se notar que não se trata de um
inverso recíproco, enquanto os policiais adotam uma justificação cívica de bastidor, podendo
se deslocar facilmente dela, os familiares de vítima adotam uma justificação cívica
propriamente dita, combinada com outra, doméstica.
213
Desse modo, “os direitos humanos” dos policiais são questionados pelos familiares.
Bandido é uma categoria acusatória usada também pelos familiares para se referir aos
policiais e igualá-los aos bandidos que eles se encarregam de eliminar. Eis alguns relatos de
familiares de vítima que demonstram a incorporação do policial na categoria bandido:
Para mim, a polícia é pior do que bandido. Porque o bandido é assim: ele faz tudo
que ele faz de ruim, ele faz dominado pela droga. Ele faz porque ele é drogado. Ele é
usuário de droga, então ele faz aquilo ali.
Eu acho muitas vezes que o governo tem muita culpa, porque não são somente os
traficantes [os responsáveis pela violência], porque os polícia estão agindo da
mesma forma. Então a gente não sabe quem é quem. Estão todos juntos, estão
agindo juntos. Eu costumo falar para minha mãe que são dois diabos brigando.
Porque antigamente a polícia ajudava agente, hoje em dia eles estão lá em cima do
morro, e estão fazendo e acontecendo. Entendeu? Já chegam atirando. Quantas vezes
pessoas inocentes já morreram aí. Porque eles já sobem os morros atirando, né?
Então agente não sabe quem é quem. Não sabe quem é a policia e quem é o bandido.
Porque eles estão misturados.
Eles [os policiais] têm licença para matar sim e a instituição passa a mão pela
cabeça. É uma coisa assim, eu acho que se tivesse, se nós tivéssemos políticos
sérios, uma galera séria no poder sabe? Que se preocupasse realmente com a
população, eles já teriam exterminado a PM ou teriam feito uma reformulação muito
grande. Porque são pessoas, hoje eu já questiono se eles entram já com a intenção de
cometer todos os atos ilícitos e serem absolvidos. Entendeu? E ser dado como foi o
caso do [nome do filho] é simplesmente um desvio de conduta ou se a instituição
que os torna bandidos, porque eles são bandidos oficiais. Entendeu? A gente não tem
a menor dúvida sobre isso, entendeu? Se você tivesse um caso, um caso, seria uma
coisa, agora toda semana tem policial militar envolvido em morte de inocente, aí
você vê auto de resistência com mão na nuca né, e o cara dá um tiro na nuca, auto de
resistência, eu queria saber até onde eles vão assim e até onde a própria sociedade
vai permitir entendeu? Porque eles só estão continuando, porque os políticos não
vão fazer nada de fato, mas a sociedade continua permitindo. A sociedade é a grande
culpada disso tudo porque se fosse um caso isolado é uma coisa, mas toda semana é
um caso e, infelizmente, a sociedade não se movimenta, porque os casos acontecem
nas comunidades.
Se na narrativa policial o bandido é um sujeito criminal (Misse, 2010), que tem sua
subjetividade marcada pelo crime e pela violência, exatamente por saberem que policiais
pensam desta forma, este é um dos tópicos que mobiliza as falas dos familiares tanto em
relação aos policiais como em relação os filhos. “Polícia é igual ou pior que bandido”, eis
uma frase comum de acusação aos policiais. Por outro lado, “Meu filho não era bandido”, eis
uma frase sempre dita pelos familiares e que expressa o tremendo esforço que fazem para
limpar a moral e a memória dos filhos. As relações perigosas envolvendo polícia, crime e
violência, tem um poder impressionante de produzir “contaminações morais” das quais todos
os envolvidos precisam se livrar.
O núcleo central da crítica dos familiares é que, em razão de morarem em territórios
214
de pobreza, têm seu pertencimento a uma humanidade comum questionado ou negado, e isso
se manifesta na forma violenta como a polícia age contra este grupo específico, vistos todos
como bandidos, quase bandidos ou coniventes com bandidos. Essa desigualdade de
tratamento e de direitos aparece reconhecida no relato dessa mãe de classe média alta,
moradora do Leblon, que teve um filho assassinado por um policial, que, no momento do
crime, trabalhava como segurança em uma boate:
Infelizmente, cara, é lamentável esse fato também, de [os policiais] acharem que eles
[os moradores de favelas] não têm direitos. Entendeu? Que eles não são seres
humanos como os outros que moram em Ipanema, Leblon etc. Infelizmente tem essa
desigualdade, infelizmente. Eu lamento muito, mas eu acho, eu sou totalmente a
favor de que a sociedade vá lutar mesmo, vá para frente da Secretaria de Segurança.
Quebrem aquilo tudo, gente. Exijam que todos os policiais envolvidos em crime, em
autos de resistência, sejam expulsos. Eu acho que tem que ser por aí. Não adianta
passeata pedindo paz. Não adianta, não adianta, não vai mudar, não vai mudar. O
negócio não é por aí: “ah, mas isso é partir pra violência”. Não é violência, mas eu
acho que você tem que se rebelar de alguma forma. Se você está vindo pedir paz há
uma vida, pedir paz há quantos anos tem essas mães aí? Há 20 anos estão fazendo
caminhada, passeata e pedindo paz e elas são ridicularizadas.
Na fala acima da mãe, moradora do Leblon, aparece claramente a distância que separa
os moradores das favelas do pertencimento a uma humanidade comum aos demais moradores
da cidade. A desproteção social e civil torna os moradores de favelas expostos ao risco de
morrer, presas fáceis da violência policial. Uma mãe de vítima, moradora de favela, chega a
dizer numa entrevista que “Eu tenho que preservar a minha vida, eles não vão me dar
segurança”. Mais do que apenas ‘não dar segurança’, representam ameaça à vida, ao corpo.
Da mesma forma que a polícia, quando age no regime de desumanização, utiliza sempre como
recurso construir uma “carreira criminosa” para comprovar que uma pessoa era bandida, a
crítica dos familiares de vítima replica o mesmo recurso para provar como policiais também
são bandidos na mesma proporção, ou mais, na medida em que cometem crimes com o
pretexto de combatê-los. Ao invés de orientarem suas condutas pela moralidade pública e pela
legalidade, enquanto agentes da lei que são, os policiais se orientariam, segundo as críticas,
pela moralidade do crime. O relato a seguir é emblemático neste sentido:
215
você está fazendo aqui, porque ainda não foi para a delegacia?”. Aí um careca que
eu não lembro o nome veio e disse: “Tia, tia”. Não sabia nem que eu era mãe dele,
porque lá todo mundo pensava que eu era irmã dele. Ele disse “Tia, afasta, afasta”.
Um policial. Aí eu falei: “Afastar porque, meu filho está aí”. E ele: “Que filho?”. Aí
ele “Vai embora, mãe. Vai embora”. Aí ele: “Vai chamar [Fulana]”. Que era essa
mulher que... Aí ele: “Vai chamar [Fulana]”. E eu disse: “Vou chamar [Fulana] por
quê?”. E ele disse: “Vai chamar [Fulana] que a gente quer conversar”. Aí eu falei:
“Vocês querem dinheiro, não é?”. Falei assim: “Vocês pegaram ele que é de menor e
está esse tempo todo dentro da caçapa do camburão, coisa que é errada, ele é de
menor. E vocês não vão levar eles na delegacia. Então, vocês vão pegar o dinheiro e
eu vou na delegacia fazer uma queixa de vocês”. Foi aí que eles levaram os dois para
a DP.
216
dos policiais de rua é que a presença ostensiva da polícia interferiu na dinâmica local do
crime. O tráfico de drogas não teria acabado, isso é reconhecido por todos os policiais, mas
teria passado a funcionar de outra maneira, sem a ostensividade e visibilidade das armas. A
figura midiática do bandido com cabelo pintado, associado ao funk e segurando um fuzil, teria
saído de cena. Esta é a imagem central de bandido presente no imaginário coletivo em geral e,
particularmente, dos policiais. Neste sentido, os policiais afirmam que ficou mais difícil
identificar o bandido, porque alguns fugiram da favela com a ocupação policial, mas os que
ficaram e não tinham passagem pela polícia tiveram que mudar o visual e a hexis corporal
para não serem identificados.
O segundo ponto diz respeito às expectativas dos moradores desses territórios,
principalmente as mães, de que a presença policial significasse de fato um processo de
pacificação e uma atuação policial que respeitasse os direitos destes moradores e que as
mortes violentas de jovens cessassem. Havia uma expectativa de que as equivalências entre os
moradores da cidade fossem restabelecidas e todos se reconhecessem numa humanidade
comum. Neste sentido, a expectativa era de que a implementação das UPPs seria o carro chefe
de um conjunto de intervenções estatais, através de políticas públicas em todas as áreas
sociais, que garantissem a passagem de uma situação de violência para uma situação de paz,
de um regime de força para um regime de justificação.
Os pontos de vista das expectativas dos policiais (combater o crime) e dos moradores
(viver com segurança) encontram-se em um dilema. Diante da dificuldade por parte dos
policiais de identificar quem são os bandidos, já que houve uma mudança visual e corpórea
destes para disfarçar da polícia, o poder discricionário do policial, que se imaginava e buscava
ser mais controlado, corre o risco de não se dar desta forma. A paz sonhada pelos moradores
pode não acontecer em razão do aumento do poder discricionário dos policiais que passam a
ampliar seu escopo de atuação, inclusive sobre a vida privada dos moradores. O que pode
ocorrer, aliás, é o acirramento dos conflitos, como tem acontecido, às vezes, em algumas
favelas com UPP. Na medida em que os policiais argumentam que a dificuldade para
identificar o bandido aumentou, porque este agora se disfarça, se camufla e não corresponde
mais à figura midiática a que estávamos acostumados, transformou-se este dado da realidade
em justificativa para ampliar a área de abrangência do trabalho policial. E o dilema que se
coloca é o de como combater o crime sem violar a segurança e a vida privada dos moradores,
como combater o crime agindo dentro da lei.
217
5.6. Direitos civis, corpos incircunscritos e formas de matar e morrer
Teresa Caldeira chama a atenção para a naturalidade com que os brasileiros veem na
inflição da dor com objetivos corretivos toda legitimidade para intervir e manipular o corpo
de outras pessoas ou o próprio corpo em muitas áreas da vida social.
218
ausência. No Brasil, onde o sistema judiciário é publicamente desacreditado, o corpo
(e a pessoa) em geral não é protegido por um conjunto de direitos que o
circunscreveriam, no sentido de estabelecer barreiras e limites à interferência ou
abusos de outros. (Caldeira, 2000: 370).
55
“A inefabilidade é o traço mais marcante deste espaço da morte. (...) O espaço da morte é importante na
criação do significado e da consciência, sobretudo em sociedades onde a tortura endêmica e onde a cultura do
terror floresce. Podemos pensar no espaço da morte como uma soleira que permite a iluminação, bem como a
extinção. De vez em quando uma pessoa a ultrapassa e volta até nós para dar seu depoimento... (...). No entanto
este espaço da morte é proeminentemente um espaço de transformação: através de uma experiência de
219
que perduram e se reatualizam com o tempo e conforme os novos contextos políticos.
Expressões dessa cultura do terror e da constituição de um espaço da morte, descritas no
contexto do processo de colonização da Colômbia, podem ser encontradas nos relatos dos
familiares de vítima:
Eles sumiram com o corpo dele. Ele foi degolado. Dois meses depois, eu vim a
achar a cabeça no IML, que já estava lá há um certo tempo. Eu estava indo no IML
quase todos os dias. Eu fui no IML de Niterói. Aí eles falaram: “Vai no IML de
Magé que de repente está lá”. Nem existe IML em Magé. Eu fui lá em Magé. Isso
tudo sozinha, porque eu tive uma discussão com eles e eles me juraram de morte.
Então, eu não queria chamar ninguém para ir comigo, prezando a segurança da
pessoa, não é? Então, andei tudo sozinha. No IML da Mém de Sá eu fui para perder
as contas. Aí, um belo dia a menina que sempre me atendia, a [Fulana], falou:
“Quando foi mesmo o desaparecimento?”. Eu falei: “Foi no dia quinze de julho”. E
ela falou assim: “Olha só, tem uma cabeça, tem umas partes que foram encontradas
entre dois e oito dias depois da morte do seu filho, em lugares perto”. Aí ela me
mostrou a cabeça que já estava em estado de decomposição. E eu falei assim para
ela: “Foi encontrado no dia dezenove, mas não estaria assim”. Aí ela me explicou,
porque fica na água. Ela explicou.
Rechaçada como tabu na vida cotidiana, ainda assim a morte insiste em se fazer
presente entre os vivos. Apesar da dissimulação cotidiana da morte, grandes segmentos da
população convivem rotineiramente com a morte violenta em seus espaços de moradia,
resultante de conflitos armados envolvendo disputas entre facções do tráfico, entre estas e a
polícia e, mais recentemente, começou-se a falar da atuação de milícias no Rio de Janeiro e
sua região metropolitana. Policiais, traficantes e milicianos são atores com marcante presença
nos relatos dos familiares que entrevistei e com quem tive contato. Estes três personagens
aparecem sempre nos relatos, acusados pela responsabilidade das mortes de filhos e parentes.
No decorrer do tempo fui recebendo bastante informação, que eles iam trocar
aqueles meninos de lugares, que eles iam usar aqueles meninos quando eles
aproximação da morte poderá muito bem surgir um sentimento mais vívido da vida; através do medo poderá
acontecer não apenas um crescimento de autoconsciência, mas igualmente a fragmentação e então a perda de
autoconformismo perante a autoridade...”. (Taussig,1993: 25-26-28-29).
220
invadissem. Os meninos iam mostrar a cara dos traficantes. E aí houve o comentário
que eles tinham sido mortos e picados e jogados para os porcos e os policiais
mataram os porcos, fizeram análise e não tinha vestígio de carne humana, não teria
como em dois dias aqueles porcos comerem oito pessoas.
Pedaço de nariz
Maria, eu soube que quando o X9 viu ele saindo de dentro comunidade, quando o
caveirão passou, o menino virou pra um dos traficantes que estava dentro do
caveirão e falou assim: “ Esse é da favela, filho de um dos donos da favela. Aí
pararam o caveirão e colocaram ele”. Quando pegaram meu filho, diz que um dos
chefes do tráfico falou o seguinte: “Ganhei na loteria, pequei o filho do cara”. Aí diz
que ele ainda olhou para o meu filho e falou pro meu filho: “Nunca vi negro de nariz
fino!”. Porque meu filho tinha o nariz fino, mas fininho. “Nunca vi negro de nariz
fino!”. Diz que pegou o cortador do bolso, tirou um cortador de unha, eu não sei, e
cortou um pedaço do nariz do garoto. Cortou um pedaço do nariz do meu filho.
Quem conta essa história é um dos sobreviventes, um dos meninos que foi liberado,
porque foram treze sequestrados.
Corpo queimado
Aí minha prima foi ligou para lá, para eles, e eles tinham falado que ouviram dizer
que tinham tacado fogo nele. A família que falou por telefone, que ouviu dizer. Mas
nós não vimos, eu não vi corpo, eu não vi onde está, porque se está dentro do carro
tinha que aparecer o carro velho não é, com as ossadas dentro e nós ficamos
rodando, aí uma hora eles diziam que tinham mandado o corpo, que tinham trazido
ele vivo, os caras disseram que tinha trazido ele vivo para o morro. E nós ficamos
procurando e não ficamos sabendo de nada. Aí quando foi no dia vinte e quatro, já
seria numa segunda-feira nós saímos, que ela foi na Décima Quarta, aí a moça disse
que a gente teria que ir em Caxias na delegacia mais próxima, porque aqui não
registrava queixa, porque aqui não fazia parte para lá, de lá.
221
tinha 4 meses de desaparecido eu tava dormindo uma volta 2 e meia... 3 horas da
manhã deram um soco no meu portão e eu peguei, levei aquele susto, pensei até que
alguém tava querendo ajuda de alguma coisa, porque as vezes as pessoas me
procuram muito entendeu pra pedir oração... Sou pastora, então eu levei o susto e
corri, quando eu corri, eu abri o portão e levei um susto, eu deparei com uma ossada
espalhada no meu portão. Aí, quando eu deparei com essa ossada, nisso meus filhos,
meu marido, todo mundo acordou. Mas como eu sou meio assim, eu gosto, eu assim
eu vou logo para resolver as coisas que eu abri o portão e dei de cara com aquela
ossada eu dei um grito e bati de novo o portão porque eu fiquei assustada com aquilo
ali então eu fiquei dentro de casa aqui e eu não sabia o que fazer. Ai eu comecei a
ligar pros vizinhos que moram aqui perto que se eles podiam olhar das janelas, se
aproximar para ver o que estava acontecendo aqui fora que eu não sabia o que estava
acontecendo. Aí os vizinhos começaram a olhar, não realmente aqui tem uma ossada
aqui no seu portão, aqui fora não tem ninguém.
Acharam ele dentro d’água. Ele ficou nove dias, porque do dia cinco até o dia treze,
dá nove dias, né? Estava em estado de decomposição. Agora, quando eu fui ao IML,
depois no dia que era para fazer o enterro, que foi que eu consegui depois... Eu só
consegui lá para o dia dezoito... Acho que foi dezoito ou dezessete, um negócio
assim, que eu consegui fazer o enterro no [Cemitério do] Caju, porque eu estava
resolvendo os negócios. Porque a moça falou que eu não podia enterrar ele com o
nome dele porque estava muito em estado de decomposição. Então eu falei: “Então
tá.” [A funcionária do IML falou]: “Então a gente vai fazer um exame.” Eu falei:
“Eu aceito fazer, porque eu sei que é ele.” Quando eu cheguei ao IML no dia para
enterrar, ele estava lá, meu filho não tinha cabeça.
Veio o comentário que mataram ele e sumiram, mas eu digo que é assim: eles não
deixam direito nenhum da família enterrar. Entendeu? Porque a primeira coisa que
vem na sua cabeça: eu perdi meu pai e minha mãe. Meu pai enterrou normal que
nem todo ser humano, teve óbito, minha mãe também, morreram como pessoas
direitinhas dentro dos padrões normais. Mas no caso do meu esposo e do sobrinho
dele como é que pode? Como é que vai provar? Na justiça que tinha alguém da sua
vida, da sua família que viveu e daqui a pouco aquela pessoa sumiu da face da terra.
Não é complicado? Outra coisa é você ver aquela pessoa sair, aquilo já esta na sua
mente, e ela estava bem. E de repente aquela pessoa desapareceu... E aquilo ali vai
ficar assim, até nos meus últimos momentos em que eu respirar de vida, antes de
morrer, aquilo ali vai ficar na minha mente: “Puxa, eu vou morrer, vou ser enterrada
e aquela pessoa não. Não teve direito”. Então que nem você me perguntou se o
processo ia ser o mesmo da dor? Ia. Mas no que eu ia me conformar: que eu enterrei.
Você enterra o seu morto, porque você querendo ou não aquele morto ali é seu, é da
sua família. Você enterrou, você vai para casa... Mas ali não, não tem isso, não tem.
Eles arrancam, como eu falei, sempre os direitos da gente. E a pessoa não tem como
enterrar. E você fica pensando assim: “Caramba, como é que pode?”. Até para você
falar com as pessoas que fulano morreu é uma coisa engraçada, né? É uma coisa
dolorosa, mas você sabe que seus vizinhos vão lá em condolência aquela pessoa.
222
familiares não têm sequer o direito de enterrar os corpos, ou quando os corpos são mutilados e
esquartejados. Pode até ser que “matar a morte”, “sumir com o outro”, “fazer desaparecer”
sejam para os protagonistas da sociabilidade violenta (Machado, 2004) tão somente formas de
se precaver contra eventuais ações penais. Mas é possível que, pelo menos em uma parte das
mortes violentas, seja mais do que isso. Para os familiares, além de uma mera questão de
logística, a fim de facilitar a “desova” de um cadáver, picotar um corpo produz medo,
aterroriza. É uma forma extrema de matar e inscrever a dor, de controle social através de uma
política do medo.
Um dos traços característicos do processo de desumanização no contexto da “violência
urbana” na Região Metropolitana do Rio de Janeiro expressa-se no simbolismo das mortes
violentas, marcadas pelo excesso, numa espécie de teatro do absurdo. Uma pessoa sem
cabeça é o sinal mais evidente do rompimento com a humanidade comum. A morte ocorre de
tal forma que não se encerra em si mesma, seu impacto extrapola e multiplica-se sob a forma
de narrativas sobre o terror e de sofrimento que se reproduzem ad infinitum. A morte
prolonga-se no terror que se inscreve nos corpos das vítimas, buscando-se diminuir, destruir
56
ou apagar qualquer resquício de humanidade .
A violência desproporcional que desfigura os corpos tem o objetivo de fazer ecoar o
medo através do terror. Terror que se expressa na exacerbação dos suplícios e nas formas de
mortes violentas. Na “cultura do terror e no espaço da morte”, escreve Taussig (2003), a
política operante é o medo através da tortura. Taussig chama atenção para o fato de que um
dos traços característicos da “cultura do terror e do espaço da morte” é o excesso da violência
57
física – a tortura principalmente – no processo de dominação .
Mutilar, destroçar, reduzir a nada, servir os corpos das vítimas a animais como jacarés,
porcos e leões. Apagar todos os vestígios passíveis de comprovar a existência de uma pessoa.
Insultar e ofender através de uma linguagem do terror. A linguagem do terror é uma
56
Quando me encontrava em fase de conclusão da tese, tomei conhecimento do trabalho da antropóloga
colombiana Elsa Blair Trujillo (Blair Trujillo, 2005), intitulado Muertes violentas: la teatralización del exceso.
Não me foi possível fazer uso da obra no âmbito desta tese, mas foi possível identificar pontos de interesse
comuns que futuramente serão explorados, em novas pesquisas. O argumento geral da obra é que a morte é a
expressão máxima da violência na Colômbia, e possui duas dimensões, a primeira, claramente física, observável
pelas estatísticas; a segunda, simbólica. Segundo o argumento da antropóloga, a morte violenta se executa e se
representa em quatro atos: a execução, a interpretação, a divulgação e a ritualização, onde se apresentam os
símbolos que são capazes de reconstruir as significações do ato.
57
Tausssig (1993), ao se debruçar sobre os apavorantes relatos de torturas e massacres a que eram submetidos,
por volta de 1910, os índios da região do rio Putumayo, na Colômbia, pelos integrantes das companhias
exploradoras de borracha, notou o excesso de violência física. Ele observou que, mesmo correndo o risco de
perder parte da mão-de-bra indígena morta diante dos excessos de castigos, torturas e todas as formas de
violência física às quais eram submetidos, muitos exploradores de borracha optaram por efetivar a “conquista”
através da força e do terror.
223
linguagem do excesso: excesso de significado.
Quando um “traficante” mata uma pessoa no “micro-ondas”; quando um policial vira e
pergunta à sua vítima como prefere morrer, se como um cachorro ou um porco; ou quando
milicianos esquartejam e espalham pela favela partes dos cadáveres. Algumas vezes o
simbolismo da morte permite reconhecer a autoria, a forma de matar. Outras vezes não fica
tão claro, mas o importante é que tanto traficantes, como milicianos e policiais, abusam do
excesso da violência e de seus significados. Todos estes atores recorrem à linguagem do
terror, acionam um modus operandi baseado na violação e destruição extrema dos corpos.
O que está em jogo nessas formas de matar são as disputas entre estes atores para ver
quem ditará as regras do jogo. O simbolismo dessas mortes violentas tem pelo menos dois
significados importantes: primeiro, o de destituir a humanidade daquele que morre (a vítima);
segundo, o de colocar-se no lugar de juiz, no lugar daquele que define e julga a humanidade
de cada um e o merecimento ou não de viver ou morrer. As formas de matar são usadas como
provas de força. Destruir os corpos e a linguagem das vítimas, para que ela desapareça do
social.
Se, por um lado, as formas de matar que infligem sofrimento extremo sobre os corpos
das vítimas têm a intenção de destruir os corpos e a linguagem das vítimas, por outro, os
detalhes sobre os corpos sofredores também têm a capacidade de suscitar a compaixão.
Thomas Laqueur, em seu ensaio intitulado Corpos, detalhes e a narrativa humanitária, lança
uma pergunta e uma reflexão muito pertinentes para se analisar os relatos dos familiares de
vítima sobre as formas violentas das mortes dos filhos e a inscrição da dor e do sofrimento em
seus corpos. O autor se coloca a questão sobre “como os detalhes sobre os corpos sofredores
dos outros suscitam a compaixão, e de que modo esta compaixão passa a ser entendida como
um imperativo de ações mitigatórias” (Laqueur, 1992: 240).
O ensaio trata das origens do humanitarismo do século XVIII e primórdios do XIX.
Nele Laqueur argumenta que, no começo do século XIII, um novo corpo de narrativas passou
a abordar, de forma extraordinariamente minuciosa, os sofrimentos e as mortes das pessoas
comuns, de modo a evidenciar cadeias causais que criassem um elo entre a ação dos leitores e
o sofrimento dos sujeitos. O autor toma o empreendimento estético, o qual analisa a partir de
diversas formas, sob a rubrica de “narrativa humanitária”, caracterizando-o, em primeiro
224
lugar, “por sua confiança no detalhe enquanto signo de verdade”. Em segundo lugar, a
narrativa humanitária “fundamenta-se no corpo pessoal, não apenas como o locus da dor ,
mas também como o elo comum entre os que sofrem e os que ajudariam, e com o objeto do
discurso científico através do qual se estabelecem as ligações causais entre um infortúnio,
uma vítima e um benfeitor”. (Laqueur, 1992: 240).
Além de objeto do discurso científico o corpo é também objeto da misericórdia cristã.
Mas, na exortação de Cristo, os atos de vestir, alimentar e abrigar os necessitados são
interpretados no sentido de fazer o mesmo ao seu corpo. O corpo de Cristo serve como elo
entre o sofredor e aquele que pratica o ato de misericórdia. Segundo o argumento de Laqueur,
muito útil para analisar o relato dos familiares de vítima, na narrativa humanitária do século
XVIII e XIX, o corpo individual, vivo ou morto, adquiriu um poder próprio, mas é, sobretudo,
o cadáver, “ainda mais que a carne vivificada”, que “permitiu que a imaginação penetrasse a
vida de um outro” (Laqueur, 1992: 241).
Assim como Boltanski, ao analisar a piedade ou a compaixão que o sofrimento pode
inspirar, Laqueur também apresenta como a dimensão mais importante da política humanitária
o fato de a ação mitigatória “ser representada como possível, eficaz e, portanto, moralmente
imperativa”. A narrativa humanitária oferece um modelo de ação social e, ao oferecer um
modelo de ação social, significa que a morte e o sofrimento poderiam ser evitados. Ao
contrário de uma tragédia ou fatalidade, o sofrimento dos familiares poderia ter sido evitado.
No caso dos familiares, o sofrimento é relatado em detalhes ao serem narradas as
formas violentas das mortes, marcadas pela exacerbação dos suplícios. E é o sofrimento
específico que tem o poder de mobilizar e não a generalidade. Embora o trabalho político de
denúncia consista em transformar o particular em geral, através de um trabalho de
generalização, são os detalhes específicos dos casos particulares que possuem a capacidade de
suscitar a compaixão. Foram os sofrimentos de um homem e não os crimes abstratos da
escravidão, que levaram muitos a aderir à causa abolicionista, afirma Laqueur. O corpo
sofredor, portanto, teve um papel fundamental na exposição do mal e na criação de uma
sensibilidade humanitária. Neste contexto da ação humanitária, os relatos dos familiares
representam formas e possibilidades de produzir sentimentos de solidariedade a partir da dor e
do sofrimento.
225
5.6.2. Formas de morte que desumanizam
As formas e estilos de matar também dizem muito sobre as formas de vida. Entre as
formas de morte e as formas de vida, o que se tem é a interrogação sobre os limites daquilo
que pode ser representável como humano. Em um fecundo diálogo da antropóloga Veena Das
(Das, 2008) com a filosofia de Wittgenstein, a autora argumenta que a pertinência do
pensamento de Wittgenstein para a sociologia e a antropologia reside na ideia de formas de
vida. A antropóloga indiana escreve que Wittgenstein considera a linguagem como a marca da
socialidade humana, “daí que as formas de vida se definam pelo fato de que são formas
criadas por quem possui a linguagem e para quem possui a linguagem”.
Veena Das retoma uma questão levantada por Stanley Cavell, quando este analisa a
obra de Wittgenstein. Cavell deseja chamar atenção para a absorção mútua, entre o natural e o
social, na ideia de forma de vida, criticando o sentido convencional da ideia de forma de vida
que enfatiza a forma, mas não a vida. A questão de interesse para Veena Das é “o que é que as
sociedades humanas podem representar como o limite?”. Das se questiona sobre como ideias
semelhantes a esta podem ressoar na imaginação antropológica. Consideremos a
argumentação de Das a respeito deste assunto:
Cavell sugiere una distinción entre lo que llama el sentido etnológico u horizontal de
forma de vida, y su sentido vertical o “biológico”. El sentido etnológico implica la
idea de la diversidad humana, el hecho de que las instituciones sociales, como el
matrimonio y la propiedad, varían de una sociedad a otra. El sentido biológico se
refiere a las distinciones implicadas em el lenguaje entre “las formas de vida llamadas
'inferiores' o 'superiores', entre, por ejemplo, puyar la comida, quizá con un tenedor, o
tomarla con las garras o picotearla. Es el sentido vertical de forma de vida el que, para
él, marca el límite de lo que se considera humano en una sociedad, y suministra las
condiciones para el uso de criterios como se aplican a los demás. Así, el criterio del
dolor, por ejemplo, no se aplica a lo que no exhibe signos de ser una forma de vida –
no preguntamos si una grabadora que puede reproducir alaridos está sintiendo el dolor
(Das, 2008: 312).
226
qualidade de um tempo congelado, do qual é possível falar, algo diferente ocorre com a
violência que passa pelo tecido da vida vivida no universo do parentesco, como se esta tivesse
o sentido de um passado contínuo, indizível. Das considera que os limites horizontais e
verticais são de particular importância para a formulação desta diferença entre um tipo de
violência e outro, um do qual se fala e outro do qual não se fala:
Es esta idea de forma de vida, por ejemplo, en su sentido vertical de probar los
criterios de qué significa ser humano, la que creo que está implicada em la
comprensión de la relación de Manjit con la no-narrativa de sua experiencia de
abdución y violación. Los hombres golpean a sus esposas, cometen agresiones
sexuales, las avergüenzan dentro de sus propias creaciones de masculinidad, tales
agresiones, sin embargo, son “decibles” en la vida punjabí a través de diversos tipos
de gestos performativos y a través de relatos (no quiero decir con esto que se la
acepte em forma pasiva – por el contrario, todo el relato de Manjit muestra que se la
resiente profundamente –). Comparemos esto con la violencia temible em la cual las
mujeres fueran desnudadas y se las hizo marchar desnudas por las calles; o las
magnitudes implicadas; o la fantasía de escribir lemas políticos em las partes
privadas de las mujeres. Esta producción de cuerpos a través de la violencia, que se
vio que destrozaba el tejido de la vida, fue tal que los reclamos sobre la cultura a
través de la disputa se hicieran imposibles. Si ahora aparecen palabras, son como
sombras rotas del movimiento de las palabras cotidianas... Tales palabras fueron
ciertamente pronunciadas y han sido grabadas por otros investigadores, pero era
como si el roce con estas palabras y, por tanto, con la vida misma, hubiera sido
quemado o anestesiado. La hipérbole en la narración que hace Manjit de la Partición
recuerda la idea de Wittgenstein de la conjunción de lo hiperbólico con lo carente de
fundamento (Das, 1996: 23 apud Das, 2008: 313).
O que Das está a dizer é que há certos tipos de violência que encontram resistência em
serem incorporados ao cotidiano, porque correspondem a “formas de vida que não são
consideradas como pertencentes à vida”. Acompanhemos um pouco mais do raciocínio de
Veena Das, através de suas próprias palavras, ainda tratando do caso de Manjit.
He tomado este ejemplo en algún detalle porque sugiere, a través de una etnografía,
que aun cuando el rango y la escala de lo humano se prueba, se define y se extiende
em las disputas características de la vida cotidiana, puede mover-se a través de la
inimaginable violencia de la Partición (ejemplos similares pueden hallarse em
muchas de las contemporáneas etnografías de la violencia) hacia formas de vida que
no se consideran como pertenecientes a la vida en sentido propio. ¿Fue un hombre o
una máquina el que clavó un cuchillo en las partes pudendas de una mujer después
de violarla? ¿Eran hombres o animales quienes se dedicaran a matar y a coleccionar
penes como signos de sus proezas? Hay una profunda energía moral em la negativa a
representar algunas violaciones del cuerpo humano, pues estas son vistas como
violaciones contra la naturaleza, como algo que define los límites de la vida misma.
El alcance y la escala precisos de la forma de vida humana no se conocen de
antemano, como tampoco el alcance preciso del significado de una palabra. Pero la
intuición de que algunas violaciones no pueden verbalizarse em la vida cotidiana
equivale a reconocer que no se puede trabajar en ellas dentro de una cotidianidad
quemada y anestesiada. Llegamos a través de una ruta diferente a la pregunta acerca
de qué significa tener un futuro en el lenguaje. Creo que los límites de las formas de
vida – los límites el los cuales las diferencias dejan de ser diferencias de criterio – se
encuentran em el contexto de la vida como se vive y no solo em la reflexión del
227
filósofo sobre ella. Estos son los momentos em que podemos estar tan envueltos por
la duda sobre la humanidad del otro que el mundo parece perdido. (Das, 2008: 314)
Sus tumbas son rudimentarias e individuales y están ubicadas una al lado de la outra
formando un grand muro en el cual se materializa una serie de operaciones de grand
contenido simbolico y en las cuales están implicados los habitantes pobres del
pueblo. El muro deja ver la existencia de una serie de prácticas de resistencia a la
violencia, al terror y al olvido que compromete a quienes están empeñados en
construir un nuevo tejido de significaciones sociales profundamente humanizantes
Los habitantes pobres de Puerto Berrío adoptan a los NN a partir de marcar su
tumba con la palabra “escogido” y desde ese momento el NN tiene dueño. Los
adoptantes establecen con los NN un trato de reciprocidad que implica un
intercambio: al NN se le pide que cumpla con los deseos de su adoptante a cambio
de sus cuidados. Estos se traducen en el arreglo y pintura de la tumba, em la ofrenda
permanente de flores y en la colocación de placas conmemorativas que recuerdan los
favores recibidos. El pacto entre el NN y su adoptante está sustentado em la creencia
popular que obliga a los creyentes a darle descanso a las ánimas mediante rezos que
buscan aliviar su sufrimiento. La adopción es temporal y permite al NN que cumple
con su papel de benefactor adoptar una nueva identidad y entrar a formar parte del
mundo de los vivos. Cuando el ánima le hace favores al rogante, este le promete
osario y le da su apellido, lo vuelve parte de sua familia. El osario y el nombre
convierten al NN nuevamente en persona. (Uribe, 2008: 181).
María Victoria Uribe realizou várias entrevistas com pessoas que se encontravam no
cemitério, no setor correspondente aos NN. Um dos entrevistados contou que havia marcado
uma tumba com um X, com o fim de pedir favores ao morto. Durante meses esteve pedindo,
sem obter resultados. Decorridos seis meses, chegou outra pessoa, escolheu esse mesmo NN e
obteve resposta aos seus desejos. Outro entrevistado de Uribe tinha escolhido vários NN, aos
quais havia dado um nome. Os habitantes de Puerto Berrío, ao incorporarem os mortos
anônimos em suas vidas, dando-lhes um lugar social, os retiram do anonimato e do
esquecimento.
Em relação às formas das mortes, Uribe remete-se ao livro de Janina Barman, Winter
in the Morning, para destacar um aspecto que Barman considera mais cruel da crueldade:
desumanizar as vítimas antes de destruí-las (Uribe, 2008: 183).
231
5.7. As críticas dos familiares a um Estado que não reconhece seus sofrimentos
A dor de quem sofre uma injustiça demanda reparação, mas, para isso, é colocada à
prova. É preciso provar primeiro que se sofre e, depois, que o sofrimento do qual se padece é
injusto. Neste sentido, o trabalho dos familiares consiste em politizar as mortes dos parentes.
Para isso, recorrem à construção da figura do morto como vítima. Afinal, a vítima é aquele
que sofre injustamente. Sofrimento infligido com justiça não produz vítima, portanto, o lugar
da vítima exige uma justificação moral, uma comprovação moral do não merecimento do
sofrimento do qual se padece
O núcleo da crítica dos familiares, ao falarem de suas experiências de sofrimento, é a
distribuição injusta das injúrias e feridas que forças sociais infligem sobre a experiência
humana. O conteúdo da crítica é que as instituições protegem uns e expõem
outros,principalmente quando se trata do exercício do poder policial. A crítica também se
dirige à falta de interesse do Estado em fazer suas instituições funcionarem eficientemente, a
ponto de intervirem e fazerem cessar a dor e o sofrimento dos familiares daqueles que o braço
armado do Estado matou. O Estado não leva a sério suas vidas, tampouco se esforça para agir
em nome das vítimas e dos familiares. Essa é a crítica dos familiares ao Estado.
O que está em jogo, em relação ao sofrimento dos familiares, são os significados
atribuídos e as apropriações políticas de tal sofrimento. Afinal, o sofrimento pode tanto ser
transformado em espetáculo e comercializado como uma mercadoria qualquer, como pode ser
capaz de produzir indignação. Mais do que produzir indignação, os familiares necessitam que
essa possibilidade de despertar indignação venha acompanhada de engajamentos em ações de
solidariedade àqueles que sofrem.
As imagens de sofrimento que emergem das experiências relatadas pelos familiares de
vítima não podem ser compreendidas dissociadas das imagens e discursos que circulam e
associam favela e outros espaços populares (subúrbios, periferias etc.) à violência, ao crime
violento e ao tráfico de drogas. Estas imagens de sofrimento devem ser compreendidas dentro
do contexto político em que a segurança pública é pensada a partir da “metáfora da guerra”,
da política do enfrentamento e da repressão, da suposta guerra às drogas e aos traficantes e da
criminalização e estigmatização dos territórios da pobreza e de seus moradores.
As imagens que circulam abundantemente sobre as favelas e os espaços populares
representam esses territórios como ilegais, repletos de atividades ilícitas e criminosas,
marcados pela presença de traficantes armados até os dentes e, mais recentemente, pela
entrada em cena de milicianos como protagonistas também da violência urbana, acrescida da
232
violência policial.
Há um excesso de sofrimentos e experiências traumáticas que emergem dos eventos
críticos que irrompem no cotidiano dos moradores dos espaços populares (sendo a favela o
arquétipo desses espaços). Este excesso de circulação de imagens do sofrimento pode acabar
tornando o espectador insensível. Sobrecarregado pelo grande número de atrocidades, o
espectador pode se deparar com situações de sofrimento em que parece ter muito para ver e
pouco ou nada a fazer. O senso dominante de que os problemas são tão complexos que não
podem ser compreendidos nem enfrentados pode produzir fatiga moral, esgotamento de
empatia e desespero político (Kleinman e Kleinman, 1997).
Que tipos de significados e apropriações podem ocorrer com o sofrimento dos
familiares diante de uma política de segurança pública baseada na guerra e através da qual,
sob o pretexto de pacificar um território, todos os moradores se tornam alvo? Diante de uma
percepção de esgotamento dos mecanismos institucionais de preservação e manutenção da
ordem pública e de uma perspectiva hegemônica que defende o uso da violência policial
como única solução possível, quais as possibilidades dos familiares de vítima ganharem
visibilidade e reconhecimento?
A experiência dos familiares é vivenciada como um drama. Drama e aflição que só
aumentam ao não disporem de recursos (econômicos, políticos, midiáticos etc.) para dar
visibilidade a seus casos, demandar reconhecimento para seus sofrimentos e,
consequentemente, justiça e reparação para os danos sofridos. O sofrimento dos familiares é
um ponto de partida através do qual constitui-se uma esfera moral e uma “comunidade
emocional”. O conteúdo político da denúncia que os familiares tentam fazer circular é o de
58
que as mortes são produzidas pela forma como o Estado opera nas “margens” (Das e Poole,
58
Veena Das e Deborah Poole, juntamente com outros pesquisadores, têm investido na proposta de uma
“antropologia das margens do Estado”. A ideia geral é tratar as formas como o Estado se faz e desfaz a partir das
“margens”. A proposta das autoras compreende uma crítica às teorias do estado, sugerindo que este se torne
objeto de uma inspeção etnográfica. Deste modo, os trabalhos reunidos no livro Anthropology in the Margins of
the State compõe-se de etnografias do Estado, que se dedica a analisar as práticas, lugares e linguagens que são
consideradas às margens do Estado-nação. A estratégia analítica e descritiva adotada pelos autores foi o
distanciamento da ideia consolidada do estado como forma administrativa de organização política racionalizada,
que tende a debilitar-se ou desarticular-se ao largo de suas margens territoriais e sociais. As margens exploradas
no livro são aqueles lugares onde a natureza pode ser imaginada como selvagem e descontrolada e onde o estado
está constantemente redefinindo seus modos de governar e de legislar. Estes lugares são considerados não apenas
no sentido territorial, mas também como lugares de práticas nos quais a lei e outras práticas estatais são
colonizadas mediante outras formas de regulação que emanam das necessidades prementes das populações, com
o fim de assegurar a sobrevivência política e econômica. Os temas do livro foram articulados a partir de três
noções de “margens”. A primeira é a ideia de margem como periferia, onde estão contidas aquelas pessoas
consideradas insuficientemente socializadas nos marcos da lei. O interesse é analisar as tecnologias específicas
de poder, através das quais os estados intentam “manejar” e “pacificar” estas populações, tanto através da força
como através de uma pedagogia da conversão que logra transformar “sujeitos rebeldes” em sujeitos legais do
233
2004): sem levar em conta a segurança e a proteção dos moradores.
Os familiares buscam criar mecanismos e recursos para denunciar a indiferença e a
desimportância com que as mortes dos entes queridos são tratadas no espaço público.
Denunciam que as operações policiais não se preocupam com a integridade física dos
moradores, de modo que todos se tornam suspeitos e alvos da abordagem policial, e a
possibilidade de terem seus direitos civis violados é sempre grande. O sofrimento dos
familiares, portanto, aparece encapsulado no imbróglio da violência urbana e da segurança
pública.
Estado. Um segundo enfoque das margens gira em torno dos temas da legibilidade e ilegibilidade. As práticas
escritas para o estado moderno, através da pesquisa documental e estatística, estão a serviço da consolidação do
controle estatal sobre os sujeitos, as populações, os territórios e as vidas. Os autores se posicionam contrários à
ideia de que o Estado relaciona-se exclusivamente em termos de sua legibilidade, e argumentam que seus
trabalhos apontam “diferentes espaços, formas e práticas através dos quais o Estado está constantemente sendo
experimentado e desconstruído mediante a ilegibilidade de suas próprias práticas, documentos e palavras”.
Dentre os tipos de práticas consideradas nesse enfoque estão os deslocamentos, as falsificações, as interpretações
em torno da circulação e o uso de documentação de identificação pessoal. Este ponto é útil e relevante para
pensar a forma como a polícia atua nos territórios da pobreza e a questão da circulação e
documentação/identificação dos moradores. Relatos de familiares de desaparecidos apontam que o simples fato
de se estar sem o documento de identificação, circulando por áreas consideradas “perigosas” e “suspeitas”, em
virtude da presença do tráfico de drogas nessas áreas, pode significar o ponto de partida de um desaparecimento
forçado. A terceira noção compreende a margem como o espaço entre os corpos, a lei e a disciplina. O poder
soberano exercido pelo estado não é exercido apenas sobre o território, mas também sobre os próprios corpos. As
autoras lembram, neste ponto, que muitos antropólogos têm usado a noção de biopoder para rastrear as formas
pelas quais o poder estende seus tentáculos pelos ramos capilares do social. Destaca-se, neste caso, a forma de
colonização da lei e disciplinamento dos corpos, através do crescente poder da medicina em definir o “normal” e
o “patológico”.
234
6. ENGAJAMENTO POLÍTICO E MOVIMENTO CRÍTICO: A CONSTRUÇÃO DA
CRÍTICA E DA DENÚNCIA
59
Esta ideia das entidades de direitos humanos, principalmente ONGs, como especialistas em criar dispositivos
de denúncia foi sugerida por Luiz Antonio Machado da Silva numa das reuniões de pesquisa do CEVIS.
236
lugar fixo. O caso faz daquele que é acusado pelo tribunal uma vítima para o público. Desse
modo, há uma inversão: aquele que era o acusador se torna acusado, e a vítima se torna
acusador. Para ambas as partes, acusação e defesa, o justo é sempre o público, em sua
totalidade (Claverie: 1998, 193-94). A noção de caso passou a fazer parte do repertório de
recursos políticos, sendo sempre suscetível a ser mobilizada e de reconstruir situações
diversas, de acordo com o formato recém adquirido e experimentado de uma gramática
política.
Boltanski, por sua vez, a partir dos estudos sobre a forma caso elaborados por
Claverie, argumenta que tomar os casos como objeto e tratá-los como uma forma social,
própria de uma sociedade determinada, cuja história poderia elaborar-se, implica em romper
com a separação sobre a qual descansam as disciplinas dentro das ciências humanas – e
mesmo dentro das ciências sociais –, entre o que remete ao singular e o que remete ao geral,
ou ao individual de um lado e o coletivo do outro, o microssocial e o macrossocial (Boltanski,
2000: 23). O estudo dos casos supõe, portanto, a renúncia a qualificar previamente o objeto de
estudo e estabelecer suas dimensões.
Em lugar de tratar com coletivos já estabelecidos ou com indivíduos isolados,
Boltanski propõe apreender as operações de construção dos coletivos examinando a formação
das causas políticas, ou seja, a dinâmica da ação política. São os processos, portanto, a serem
analisados pelo sociólogo, que estabelecem o caráter individual ou coletivo do objeto. Afinal,
no curso de um caso, é precisamente essa dimensão mais individual ou coletiva, singular ou
geral, que a aposta principal da disputa.
A eficácia do caso enquanto um dispositivo que opera a construção de coletivos
consiste exatamente na capacidade de dessingularização. A ideia do caso como forma de
construção de uma causa, como operação de construção de coletivos, é muito adequada para
pensarmos o que foi a realização do Tribunal Popular. Uma denúncia pública é tanto mais
eficaz quanto mais capaz ela for de provar que concerne a “todo o mundo”. Como argumenta
Boltanski (2000: 25), “é a esse preço que se transforma em uma causa coletiva”.
No curso de um processo de denúncia, tanto seres humanos como coisas são arrolados
nas disputas. São essas relações entre estados-pessoas e estados-coisas que constituem o que
Boltanski e Thévenot (1991) chamam de situação. São essas operações de qualificação das
coisas e das pessoas que interessam acompanhar. Neste sentido, o Tribunal Popular é tomado
aqui como uma situação, e a partir desta situação é possível acompanhar as operações
cognitivas fundamentais das ações sociais cuja coordenação exige um trabalho contínuo de
reconciliação, de designação comum, de identificação. O Tribunal Popular consistiu na
237
elaboração de uma situação em que se colocam sob análise as dimensões e os princípios de
justiça do Estado.
60
Toda a reconstrução do Tribunal Popular apresentada neste capítulo foi escrita a partir de minha presença no
evento, dos registros que fiz e dos que foram feitos pela organização do evento, sobretudo as “peças” das sessões
de instrução, disponibilizadas no blog do Tribunal Popular. A maior parte das citações refere-se aos textos-
denúncia apresentados pelos acusadores do Estado Brasileiro durante as sessões de instrução.
238
Figura 2: Logo do Tribunal Popular – O Estado
brasileiro no banco dos réus –
Charge de Diego Novaes
239
lança mão nessa empreitada. Alguns desses dispositivos jurídicos elencados e denunciados
foram: utilização de interditos proibitórios; classificação de homicídios cometidos por
policiais em categorias como “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência”;
desaparecimento de pessoas; prisões ilegais; flagrante forjado, acusação de esbulho
possessório contra movimentos sociais que praticam ocupação de prédios públicos; tipificação
de pequenos delitos como crimes hediondos etc.
A proposta de realização do Tribunal Popular, conforme os organizadores, era analisar
profundamente e julgar alguns “crimes institucionais” emblemáticos inspirando-se em eventos
similares, entre os quais o Tribunal que julgou o Estado estadunidense pelo descaso em
relação às vítimas do Furacão Katrina, em New Orleans, em 2007; além do Tribunal
Tiradentes que, em 1993, julgou os crimes cometidos em nome da Lei de Segurança Nacional,
em evento realizado no TUCA/PUC-SP.
O evento buscou articular diferentes casos emblemáticos, abordando temas como
redução da maioridade penal, violência policial contra adolescentes e jovens pobres e negros,
a questão racial e a racialização da violência e a criminalização dos movimentos sociais. De
um modo geral, intentava-se tecer os fios que ligam um caso a outro, a fim de mostrar que tais
situações não constituem fatos isolados, específicos, mas que existe uma articulação entre
elas. Visava-se, portanto, construir uma denúncia pública e para isso, como argumenta
Boltanski (2001), é necessário passar da singularidade à generalidade, evidenciar como o
mesma lógica se opera em todas as situações, de modo a transformar um caso isolado em um
procedimento rotineiro, planejado, que se repete em muitas situações.
Ainda seguindo com Boltanski, no âmbito da ação cívica, a denúncia põe em relação
os atores envolvidos na situação – os actantes – e visa oferecer à opinião pública a injustiça
cometida por um grupo contra outro. No caso do Tribunal Popular, tinha-se em vista focalizar
o olhar sobre a lógica violenta e autoritária do Estado, através, sobretudo, da denúncia do uso
que este faz das instâncias e mecanismos jurídicos e policiais para violar direitos. Em torno da
condição de vítima de violência do Estado buscava-se, através da realização do Tribunal
Popular, conformar uma “comunidade moral e política” capaz de agregar pessoas e
movimentos, e impulsionar a denúncia dos casos e a luta por justiça e reparação.
Para levar a cabo a tarefa de formular a crítica e a denúncia do Estado brasileiro como
um todo, suas práticas violentas e o julgamento simbólico por meio de leis internacionais e
nacionais que ele mesmo reconhece, o Tribunal Popular foi organizado com as seguintes
características, formato e procedimentos: partindo-se de casos ocorridos recentemente nos
estados participantes do evento, buscava-se relacioná-los entre si, por meio de vasta
240
documentação e testemunhas, procedendo aos passos de um julgamento convencional com
sessões de instrução (acusação, apresentação de provas, dados, testemunhos, defesa etc.),
chegando à sessão final com um veredicto referente ao Estado brasileiro como um todo,
sintetizando traços comuns presentes em todos os casos. Foram realizadas quatro sessões de
instrução para acusação, com a seguinte organização:
1ª Sessão de instrução: Violência estatal sob pretexto de segurança pública em
comunidades urbanas pobres. O caso principal apresentado foi o Caso do Complexo
do Alemão, no Rio de Janeiro.
2ª Sessão de instrução: Violência estatal no sistema prisional: a situação do sistema
carcerário e as execuções sumárias da juventude negra pobre na Bahia.
3ª Sessão de instrução: Violência estatal contra a juventude pobre, em sua maioria negra:
os crimes de maio de 2006 em São Paulo e o histórico genocida de execuções
sumárias sistemáticas.
4ª Sessão de instrução: Violência estatal contra movimentos sociais e a criminalização da
luta sindical, pela terra e pelo meio ambiente.
Sessão final de acusação e defesa.
Como a ideia era criar um espaço de encontro e, ao mesmo tempo, de denúncia e
protesto, era preciso mobilizar apoios, engrandecer a causa, buscar parcerias e adesões. Era
preciso lançar mão de todas as vias e recursos possíveis e acessíveis para a realização do
evento. Nesse sentido, foram convidados observadores internacionais com o objetivo de que
estes contribuíssem na circulação internacional das denúncias, mobilizassem e reforçassem
apoios internacionais, como por exemplo, o da Anistia Internacional. Também foi
providenciado o registro audiovisual das atividades do Tribunal, com o objetivo de produzir
materiais de divulgação e de trabalho político.
Há que se destacar a dimensão emocional transbordante nos relatos apresentados por
familiares e sobreviventes de chacinas policiais, sendo que a parte do testemunho mais
chocante é sempre a descrição das formas macabras como os filhos foram mortos. As
situações experimentadas a partir dos relatos traumáticos dos familiares das vítimas podem
ser definidas como catarses da dor. Um desses momentos ocorreu quando uma mãe, cujo
filho foi morto na Fundação Casa, em São Paulo, narrava a história de seu filho. Esta história
está registrada nos autos da sessão de instrução III, que tratou do tema da morte de jovens na
Fundação Casa. Eis o registro:
241
Sidnei Moura Queiroz, de 18 anos, estava internado na Unidade de Tatuapé, da
Febem, e morreu queimado de forma misteriosa. Segundo nos relatou sua mãe,
Solange, no dia 20/08/2003, por volta das 20 e 30, a psicóloga ligou para sua casa
comunicando que havia acontecido algo grave com o Sidnei. Pediram para que ela
comparecesse no outro dia à Febem. Ao chegar o diretor a fez esperar para só depois
avisar que seu filho estava internado no Hospital do Tatuapé. Ao chegar lá ela levou
um choque quando ficou sabendo que ele estava com 70% do corpo queimado,
sendo que o pescoço, a linha da cintura, os pés, os braços e as unhas pareciam
carvão. Durante o tempo em que esteve hospitalizado foi vigiado por funcionários da
Febem. O médico disse que Sidnei havia engolido muita fumaça. Sidnei estava em
um quarto isolado e de castigo e a Febem diz que foi ele que ateou fogo ao colchão,
em uma tentativa de suicídio. Mas a tragédia aconteceu sobretudo porque os outros
adolescentes, vendo fumaça saindo do quarto, pediram ajuda aos funcionários que
levaram um bom tempo para encontrar a chave, o que teria sido fatal.
Enquanto narrava essa história para o público presente no Salão Nobre da Faculdade
de Direito do Largo São Francisco, a mãe não aguentou e acabou desmaiando. Muitas das
pessoas presentes naquele salão nobre enxugavam as lágrimas enquanto era providenciado o
socorro. Os momentos mais fortes do evento eram sempre quando se tratava da participação
dos familiares de vítima. Eram relatos e mais relatos de dor.
Diante da rica sistematização dos casos que fizeram parte das sessões de instrução do
Tribunal Popular, com documentos, informações, relatos de testemunhas etc., considero
importante explorar essa riqueza de dados. Começarei por registrar e destacar as denúncias
referentes a execuções sumárias praticadas por agentes do Estado em São Paulo. Na “peça de
instrução”, as execuções sumárias foram classificadas em três categorias:
242
relacionados a grupos de extermínio começam a circular com mais frequência61. Durante a
realização do Tribunal Popular vários desses casos de desaparecimento praticado por policiais
foram relatados. Selecionei quatro desses casos para apresentar aqui:
Rodrigo Isac dos Santos, de 17 anos, foi visto pela última vez dentro da parte traseira
de um camburão da Polícia Militar (viatura Vtr-M 31114, do 31º Batalhão da Polícia
Militar) na madrugada de 19 de novembro de 2001, em uma via secundária na altura
do nº 3000, da Av. Miguel Ackel, em Guarulhos, conforme duas testemunhas
oculares, um amigo e uma vizinha. Voltava com cinco amigos de uma discoteca,
encontraram outros rapazes, quando chegaram os policiais militares. Todos
correram, mas Rodrigo foi preso. A prisão de Rodrigo foi precedida pelo assassinato
de seu irmão Leandro Isac dos Santos, de 19 anos, jamais esclarecida. Tendo
contraído dívidas com traficantes locais, começou a ser extorquido por eles e por
policiais, até que foi baleado em uma loja próxima à sua casa. Rodrigo ficou bastante
revoltado com o envolvimento da polícia, que depois desse assassinato passou a
provocar a família cercando a casa e ameaçando. O corpo de Rodrigo nunca
apareceu, apesar dos esforços do pai, Sr. Elias Isac dos Santos, que passou 40 dias
buscando pessoalmente o cadáver do filho, percorrendo IMLs e lugares de desova de
cadáveres. Foi o Sr. Elias que encontrou partes do corpo de seu filho, já em
decomposição, e pôde reconhecê-lo por um par de tênis. Os avanços na investigação
foram todos devidos ao trabalho do Sr. Elias. Mas os exames de DNA, feitos de
forma a misturar restos mortais de várias pessoas, deram negativo. No Inquérito
Policial Militar um dos policiais testemunhou ter visto Rodrigo no camburão. Os
outros seis envolvidos nesse desaparecimento chegaram a ficar presos por 11 dias,
em dezembro de 2001. Mas foram soltos porque a Justiça Militar rejeitou o pedido
de prisão preventiva deles. Na Corregedoria da Polícia Militar tentaram desacreditar
a denúncia do Sr. Elias. Só três anos depois o DHPP chamou o Sr. Elias para prestar
depoimento sobre o desaparecimento. Durante muito tempo, antes e depois da morte
de Rodrigo, a família sofreu perseguições e provocações por parte de policiais. Hoje,
sete anos depois, o processo se encontra ainda em fase de instrução na Vara do Júri
de Guarulhos.
Paulo Alexandre Gomes, 23 anos, saiu de sua residência, no dia 16/05/06, por volta
das 21 horas, dizendo que ia para casa da namorada Janaína. Foi visto pela última
vez, na mesma noite, por volta das 23 horas, bem próximo à sua casa, no bairro de
61
Gostaria uma vez mais de deixar claro que não estou considerando que desaparecimento corresponde sempre a
práticas de extermínio. Há várias modalidades de desaparecimento de pessoas, esta é apenas uma entre várias.
Estou falando de uma delas, porque é a que me possibilita uma perspectiva empírica e analítica para discutir
alguns temas de meu interesse como: polícia, violência, sofrimento, ação política, comunidades morais,
circulação de relatos da dor, construção da categoria vítima e familiar de vítima, entre outros.
243
Itaquera, zona leste da capital. Segundo a versão da testemunha Leandro, por volta
deste horário, Paulo o teria chamado para ir a uma biqueira (ponto de vendas de
droga), localizada bem próxima do local. Afirma Leandro que Paulo entrou em uma
viela, da favela Vila Progresso, rumo à biqueira. Antes de Paulo entrar foi possível
que ambos visualizassem uma viatura da ROTA entrando na mesma favela, por uma
rua paralela. Mesmo vendo a viatura Paulo teria entrado na viela. Leandro ficou
aguardando Paulo por cerca de 30 minutos. Ao ver a viatura da ROTA sair da favela,
saiu do local, mesmo sem Paulo. Desde então, Paulo não foi mais visto. Sem dúvida
por estar com medo, Leandro negou esta versão na Corregedoria de Polícia e na
Delegacia de Desaparecidos. Nestes órgãos ele referiu que esteve, sim, com Paulo
por volta das 23 horas do dia 16/05 e depois o deixou no ponto de ônibus para que o
mesmo fosse à casa da namorada, local onde nunca chegou. Outros amigos de Paulo
afirmam que souberam por Leandro que naquela noite Paulo, Leandro e outros
amigos foram abordados por uma viatura da ROTA. Alguns correram, dentre eles
Leandro e Paulo, que, desde então, nunca mais foi visto. As investigações da
Corregedoria afirmam ainda que, na noite de 16/05/06, nenhuma viatura da ROTA
esteve nesta região, fato facilmente contestável tendo em vista que a própria família
viu ao menos duas viaturas circulando na rua onde residem. Os familiares de Paulo
procuraram o 103º D.P, a Corregedoria da Polícia Militar, a 2ª Delegacia de
Desaparecimento de Pessoas do DHPP, além de terem feito buscas, sem lograr êxito,
em ao menos 6 IMLs da capital e região metropolitana. Em 12/06/06 participaram de
uma reunião com o secretário de Segurança Pública, Ronaldo Marzagão, que não
deu nenhum resultado.
244
6.1.2. Crítica interna: questionando o uso da linguagem jurídica
245
vínculos sociais e os laços de pertencimento a uma comunidade moral e política. Recompor
equivalências perdidas.
Para além dessas críticas, há também as conquistas. Sem dúvida uma das mais
importantes foi ter conseguido unir uma diversidade de setores sociais, políticos e
profissionais, de vários estados do país. Ex-presos políticos, familiares de presos comuns de
hoje, familiares de vítima de violência policial, sobreviventes de chacinas, sindicalistas,
jornalistas, pesquisadores etc. Foi um espaço para trocar experiências, socializar e politizar a
dor. A Comissão Organizadora do Tribunal, em um texto intitulado “A importância do
Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus”, ressalta que “algumas atividades do
Tribunal permitiram estreitar laços entre ex-presos políticos, vítimas e familiares que
sofreram a violência do Estado durante a ditadura militar e familiares e vítimas da violência
do Estado hoje”.
O período de organização do evento, o evento em si, os materiais produzidos
apontaram caminhos que possam se desdobrar no fortalecimento dos laços, da luta e do
trabalho político dos familiares de vítima. Entre eles, os organizadores do evento destacam:
(1) a construção de uma rede nacional e local de familiares que sofreram violações do Estado;
(2) utilização do Site do Tribunal Popular para servir como uma rede de divulgação de
denúncias, de dados e textos referentes aos temas tratados pelo Tribunal; (3) importância do
registro e da construção de formas pedagógicas de socializar e difundir o que ocorreu no
Tribunal através da edição de vídeos e livro.
Nota-se, assim, uma pretensão pedagógica na realização do evento, porque foi um
espaço para os familiares trocarem experiências de como levar as denúncias adiante. O evento
propiciou um espaço importante para a elaboração das experiências traumáticas originárias
dos eventos críticos relacionados ao repertório da violência urbana. Foi um espaço para a
politização das mortes provocadas pela violência do Estado, sobretudo através das instâncias
jurídicas e policiais.
246
6.2. Circulação e atualização da metáfora da guerra
247
No plano da racionalidade governamental do Estado do Rio de Janeiro atualmente
impera o uso oficial de um discurso que prega a necessidade de proteção da
sociedade em situação de guerra. Tal ótica militarizada se baliza na demonização das
áreas pobres da cidade e na glorificação do combate armado contra o atual “inimigo
público” do Estado - o tráfico de drogas. Desta forma, calcula-se que “os despojos de
‘guerra’ – as armas, a morte do inimigo, o território – encontram-se muito acima,
como supostos resultados da proteção da vida”. – como tão bem exemplifica a
declaração feita ao jornal “O Globo”, em 27 de fevereiro de 2003, quando da
implementação do programa “Operação Rio Seguro”, pelo então Secretário de
Segurança Pública, Sr. Josias Quintal: “Nosso bloco está na rua e, se tiver que ter
conflito armado, que tenha. Se alguém tiver que morrer por isso, que morra. Nós
vamos partir pra dentro.
Três meses depois da declaração de Josias Quintal, foi a vez do novo secretário de
segurança pública, Anthony Garotinho, ganhar destaque na edição do dia 11 de maio de 2003,
do jornal O Globo, comemorando abertamente a morte de mais de 100 pessoas em menos de
15 dias no cargo. A eficiência policial era medida então em termos de quantidade de mortos
de supostos “bandidos”. Em 2004, o então vice-governador Luiz Paulo Conde, Secretário
Estadual de Meio Ambiente, propõe a construção de muros de concreto para cercar as favelas
da Rocinha, do Vidigal e do Parque da Cidade, visando “conter a violência” das ruas nas áreas
nobres da cidade.
O texto-denúncia registra uma série de declarações de autoridades emitidas diante de
situações e episódios de violência que marcaram a cidade, alguns casos e situações
repercutindo internacionalmente. O governo Sérgio Cabral é identificado como o ápice da
institucionalização de uma política de segurança baseada na guerra e no extermínio. Em maio
de 2007, após uma operação policial na Vila Cruzeiro que deixou 16 mortos e mais de 50
pessoas feridas por balas perdidas, o Secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame
declarou: “Não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos” e que “o remédio para
trazer a paz, muitas vezes, passa por alguma ação que traz sangue”. O então Secretário
Nacional de Segurança Pública, Luiz Fernando Corrêa, com referência ao modelo de política
criminal adotado no Rio de Janeiro, disse que “os mortos e os feridos geram um desconforto,
mas não tem outra maneira”62.
Em 15 de abril de 2008, após uma operação policial que contou com 180 agentes e
deixou nove mortos e sete feridos, o Chefe do Comando de Área da Capital, o coronel da
Polícia Militar Marcus Jardim, declarou: “A PM é o melhor inseticida contra a dengue.
Conhece aquele produto, [inseticida] SBP? Não fica mosquito nenhum em pé. A PM é o
melhor inseticida social”63.
62
Jornal do Brasil, 29/06/2007, pp. A8.
63
Folha de São Paulo, 16/04/2008, “Nove morrem em ação do Bope; coronel diz que PM do Rio é o 'melhor
248
6.3. Premiação por bravura: a “gratificação faroeste”
Outro dispositivo acionado pelo Estado para fazer a repressão e o controle social das
favelas e seus moradores é o “mandado de busca e apreensão genérico”. Segundo a
argumentação dos advogados: “Consiste na extrapolação do direito processual brasileiro pelo
poder judiciário que age em cumplicidade com a política de segurança do Governo Estadual
do Rio de Janeiro”. E ainda: “Na rotina de operações policiais nas favelas, o mandado de
busca apreensão é formulado pelos juizes em termos tão gerais e abstratos que permitem à
polícia, antes mesmo de se ter iniciado o inquérito policial, fazer a revista de qualquer
morador e invadir qualquer residência sem individualização e especificidade, contrariando
todas as garantias constitucionais que regem o ordenamento jurídico brasileiro”.
Para legitimar o uso arbitrário de um instrumento jurídico recorre-se novamente à
noção de “circunstâncias excepcionais”. A justificação do abuso deste instrumento legal é
exemplificada no primeiro mandado deste tipo, numa decisão do juiz Alexandre Abrahão Dias
249
Teixeira, contra a Comunidade da Grota, que assim se expressou:
Atenção aos termos utilizados pelo juiz para se referir aos traficantes: “lixo genético”.
Diante do “grito de socorro” dos cidadãos que se aventuraram em “denunciar”, o juiz
argumenta que não se deve ficar preso a “filigranas jurídicas”. Por filigrana jurídica, neste
caso, pode-se entender todos os direitos de todos os moradores do Alemão. Em nome do bem
destes moradores, seus direitos podem ser violados pelo Estado, a fim de erradicar o “lixo
genético”.
As declarações das autoridades e as decisões judiciais são carregadas de preconceito.
No mesmo diapasão do juiz que emitiu esse mandado genérico de busca e apreensão, o
governador Sérgio Cabral também aproveitou o momento para emitir suas opiniões. Em 25 de
outubro de 2007, numa entrevista ao Portal G1, o governador declarou que defendia a
legalização do aborto como forma de controlar a violência nas favelas. Segundo ele, as
favelas seriam “verdadeiras fábricas de marginais”. Estas declarações de Cabral não foram
incluídas no texto-denúncia, mas vale a pena recuperá-las:
A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência pública. Quem
diz isso não sou eu, são os autores do livro "Freakonomics" (Steven Levitt e Stephen
J. Dubner). Eles mostram que a redução da violência nos EUA na década de 90 está
intrinsecamente ligada à legalização do aborto em 1975 pela suprema corte
americana. Porque uma filha da classe média se quiser interromper a gravidez tem
dinheiro e estrutura familiar, todo mundo sabe onde fica. Não sei por que não é
fechado. Leva na Barra da Tijuca, não sei onde. Agora, a filha do favelado vai levar
para onde, se o Miguel Couto não atende? Se o Rocha Faria não atende? Aí, tenta
desesperadamente uma interrupção, o que provoca situação gravíssima. Sou
favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristão,
católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe
política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o
número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana,
é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma
fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública
250
para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só64.
No tratamento jurídico dado às mortes pela Polícia, nos poucos casos em que os
fatos chegam a ser julgados, o ponto chave da defesa costuma estar centrado em
mostrar que o falecido era realmente um bandido, o que aumenta as possibilidades
de absolvição por parte do júri. Em função disso, muitas vezes quem é julgado é o
morto e não o autor.
64
Portal G1 – Cabral defende aborto contra violência http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-
5601,00.
65
Na época de realização do Tribunal Popular (4, 5 e 6 de dezembro de 2008) ainda não havia sido inaugurada a
primeira Unidade de Polícia Pacificadora/UPP. A primeira UPP foi inaugurada no Santa Marta, em 19 de
dezembro de 2008. A questão da UPP corresponde a um novo capítulo na discussão sobre segurança
pública/linguagem da guerra/pacificação, que será realizada em outra ocasião.
251
Ano Número de Civis Mortos Pela Polícia
(Autos de resistência)
2007 1330
2006 1069
2005 1104
2004 983
2003 1.195
2002 897
2001 596
2000 427
1999 289
1998 397
Fonte: Instituto de Segurança Pública (ISP)
Uma pesquisa de Ignácio Cano (1988), que analisou as mortes entre 1993 e 1996,
estudou as necropsias dos cadáveres das vítimas da intervenção policial. Os indicadores
médico-legais confirmaram o uso excessivo da força e a ocorrência de execuções sumárias:
A pesquisa de Cano indica que o excesso da violência policial, o uso abusivo da força,
ocorre de maneira mais dramática nas favelas do que no restante da cidade. As vítimas fatais
costumam ser homens jovens, pardos ou pretos, e pobres. Após os incidentes armados, as
vítimas são geralmente levadas para o hospital, mesmo mortas, numa tentativa de produzir a
legalidade da morte alterando a cena do crime e inviabilizando a perícia. Os fatos são
apresentados na versão dos policiais como confronto e há relatos de que os policiais colocam
armas nas mãos das vítimas para sustentar a tese de que houve troca de tiros, simulação do
conflito. Essa versão – a dos policiais – é a privilegiada no sistema de justiça criminal.
Os estudos de Verani (1996) e Cano (1999), citados na argumentação da denúncia,
apontam para outro aspecto importante referente ao desdobramento jurídico dos casos. Os
dois autores comentam que os casos de autos de resistência são sistematicamente arquivados,
252
a pedido da promotoria, mesmo quando há fortes indícios de execução. Duas irregularidades
jurídicas contribuem para esta situação:
66
A íntegra da nota da Rede está incluída nos Anexos.
254
chegava com as camisas, outra que se encontrava na sala da Rede e outro que chegou depois
foram então levados para a DRCPIM. Os três foram autuados, prestaram depoimentos e, em
seguida, foram liberados. Após a detenção, os policiais chamaram a imprensa e exibiram as
camisas apreendidas.
No dia 23 de julho, uma semana após a abertura do Pan, o cartunista Latuff foi
intimado a prestar depoimento na Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Propriedade
Imaterial (DRCPIM). Em uma entrevista, publicada no jornal da Associação Brasileira de
Imprensa, o cartunista Latuff assim se expressou sobre o caso:
Não cheguei a ser maltratado pela Polícia. Fui intimado e resolvi comparecer à
Delegacia no mesmo dia em que os policiais foram à minha casa. Mas duas pessoas
da ong foram presas e indiciadas por uso indevido de marca. Para o Poder Público,
quem luta por direitos humanos nas favelas está a serviço do tráfico. Na minha
opinião, o fato se desenrolou baseado em dois motivos: o primeiro, porque eu não
trabalho para jornalões; o segundo porque se trata de repressão a uma ong que
denuncia violência contra moradores de favelas. Fica então evidenciado que a
liberdade de expressão está ligada à conta bancária de quem se expressa. (Jornal da
ABI, nº 321, setembro/2007).
6.6. A política do caveirão: o blindado da polícia que diz que vai levar a alma das pessoas
256
buscar sua alma': o caveirão e o policiamento no Rio de Janeiro”. Logo na página de
introdução, consta o seguinte depoimento de uma moradora do Caju sobre o caveirão:
Imagine um carro oficial blindado, tendo como distintivos uma caveira e uma
espada, com policiais que entram atirando nos postes de iluminação primeiro e
depois nos moradores do seu bairro... isto é o caveirão. Um garoto de 11 anos teve a
cabeça arrancada do corpo com os tiros que partiram do caveirão. E nós, moradores,
ainda temos que provar que foi a polícia. (Moradora do Caju, Rio de Janeiro, 2
dezembro 2005. In: Anistia Internacional. Relatório “Eu vim buscar sua alma”. Rio
de Janeiro/Londres, 19/07/2006)
257
referências a casos de crianças que urinam na roupa toda vez que vêem um caveirão. Ao final
do Relatório, a Anistia Internacional resume suas principais preocupações:
• O caveirão muitas vezes é usado em operações que fazem uso excessivo de força,
infringindo o Artigo 3 do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela
Aplicação da Lei, das Nações Unidas, que afirma que só se deve usar força quando
estritamente necessário e que “a força usada não deve ser desproporcional aos
objetivos legítimos a serem alcançados”.
• O caveirão é usado como parte de uma estratégia geral de policiamento
discriminatório para intimidar comunidades inteiras, através de tiroteios a esmo, o uso
agressivo de megafones e o simbolismo ameaçador (o emblema da caveira).
• Longe de dar proteção, o caveirão é detestado pelas comunidades nas quais é usado,
que temem e ressentem a forma insensível e desrespeitosa do policiamento dos seus
bairros.
• As operações que usam o caveirão colocam em perigo as vidas dos residentes, vários
dos quais foram mortos ou feridos por balas atiradas pela polícia de dentro do
caveirão.
• O uso de equipamento de estilo militar agravou ainda mais a corrida às armas entre a
polícia e as gangues de traficantes, contribuindo para a escalada da violência e dos
abusos dos direitos humanos.
• O caveirão oferece anonimato aos policiais, tornando muito mais difícil a instauração
de processos contra eles. (Anistia Internacional. Relatório “Eu vim buscar sua alma”.
Rio de Janeiro/Londres, 19/07/2006)
258
Complexo do Alemão, no dia 27 de junho de 2007, e na favela da Coréia, em 17 de outubro
de 2007. No primeiro caso houve uma matança, enquanto o segundo notabilizou-se pelas
imagens, exibidas em tempo real, que mostravam um policial atirando de um helicóptero e
matando um “traficante”, que corria como um animal em perseguição para não ser abatido.
Os advogados argumentam, no entanto, que há um paradoxo pelo fato de que estas
“ações para erradicar a força armada” acabam na maior parte das vezes produzindo ações
policiais com alta letalidade, e acionam novamente um artigo do sociólogo Ignácio Cano,
intitulado “Política de segurança a sangue e fogo”, publicado no jornal O Globo, do dia 24 de
agosto de 2007, em que este apresenta as seguintes ponderações e questionamentos:
Não se discute que um dos principais legados que um governo poderia deixar no Rio
seria libertar as comunidades carentes do domínio dos narcotraficantes e de qualquer
outro grupo armado irregular. O que está em discussão é como e a que custo.
Operações como as do Alemão precisam responder a três questionamentos. O
primeiro é se elas são realizadas dentro da lei. O segundo é se elas compensam os
danos e a insegurança (balas perdidas, crianças sem escola etc.) causados àquelas
comunidades as quais, em tese, se pretende proteger. O terceiro é que tipo de plano
existe para garantir que, depois de intervenções policiais desse porte, que não podem
ser mantidas indefinidamente, o controle do tráfico não será retomado.
259
Mãe acusa PMs de matar portador de deficiência mental no Rio Folha de S. Paulo, 28/08/2007
de Janeiro
Sete morrem em ação policial no RJ O Tempo, 04/09/2007
Suspeita de envolvimento com tráfico de drogas leva 52 PMs O Globo, 17/09/2007
para a cadeia
Operação da PM no Complexo do Alemão deixa três feridos O Tempo, 20/09/2007
Ação policial deixa três mortos no Complexo do Alemão Agência Brasil 26/09/2007
Operação policial deixa sete suspeitos mortos em favela do Rio Bol Notícias 03/10/07
Operação da polícia termina com 2 mortos e 2 presos no Rio Folha On Line 03/10/2007
Megaoperação policial em favelas do Rio deixa 12 mortos O Globo On Line 17/10/07
Polícia mata Thiaguinho, traficante acusado de assassinar O Globo On Line 31/10/2007
policial e universitária
Operação policial em Vigário Geral deixa dois mortos O Globo On Line 31/10/07
Operação do Bope na Favela da Rocinha deixa mais de duas mil O Globo On Line 31/10/07
crianças sem aula
Operação deixa três mortos em Realengo O Globo On Line 01/11/07
Os autores da denúncia ressaltam ainda que, além dos mortos nas megaoperações,
amplamente divulgados nos veículos de comunicação, há inúmeros homicídios e
desaparecimentos que não são registrados pela mídia, mas que fazem parte do cotidiano dos
moradores de favelas.
Para mostrar a desproporção entre o número de civis mortos pela polícia e o número
de policiais (militares e civis) assassinados, são citados dados divulgados pelo jornal Folha de
São Paulo, em 16 de julho de 2007. Segundo estes dados, na gestão Sérgio Cabral, a
proporção de civis mortos para cada policial assassinado é quatro vezes maior que a média
internacional. Para cada grupo de 41 pessoas mortas pelas força de segurança do Estado morre
um policial. Segundo a reportagem da Folha de São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública
diz reconhecer que o número de pessoas mortas pela polícia é alto e que isso se deve à adoção
de uma postura “mais ativa” do governo.
A reportagem traz ainda a opinião de especialistas consultados pelo jornal. José
Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM, ex-secretário nacional de Segurança Pública
e diretor do Instituto Pró-Polícia, observa que: “Quando passa da taxa de dez civis mortos
para um policial e, principalmente, acima de 20 para um, não há dúvidas de que há excesso de
força e execuções”. Outra entrevistada pela reportagem, a socióloga Sílvia Ramos, do Centro
de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes (Cesec), afirma que
“o caso [de uso de força excessiva pela polícia] do Rio é não apenas o mais grave do Brasil,
260
como o mais grave do mundo. Só a polícia do Rio mata mais que a polícia dos EUA inteira,
que matou 375 em 2006, em uma população de 300 milhões de pessoas. A polícia de Portugal,
país com população semelhante à do Rio, matou só uma pessoa em 2006, contra 1.063 do
Rio”.
Nas imediações do local conhecido como Areal, região onde ocorreu o maior número
de mortes, um morador informou que, durante a entrada da polícia, ele, sua
companheira e seus três filhos, ainda crianças, estavam escondidos dentro do
banheiro da sua casa tentando se proteger dos tiros; em determinado momento eles
perceberam uma fumaça, correram para sala para ver o que se tratava, sentindo então
261
que seus olhos e boca começavam a arder. Uma bomba de pimenta tinha sido jogada
dentro da casa. O morador contou que foram horas de pânico enquanto eles estavam
sufocados com a fumaça da bomba de pimenta, pois não podiam sair de casa por
causa do tiroteio na rua. Ele relatou que ligou o ventilador e colocou seus filhos para
respirar próximos ao aparelho em uma tentativa de aliviar a ardência dos olhos e
bocas das crianças. Diferentemente do que divulga a mídia sobre a suposta
aprovação dos moradores do Complexo do Alemão em relação da megaoperação
realizada, o que a comissão que visitava o local ouviu foram depoimentos unânimes
de desaprovação e medo: “Você não imagina quando a polícia [es]tá aqui o que a
gente passa”. O morador que teve sua casa violada pela bomba de pimenta mostrou
ainda um saco plástico com mais ou menos 40 cartuchos de balas colhidos na frente
da sua casa após o conflito.
Um dos mais graves relatos foi feito por uma moradora que viu policiais invadirem
sua residência – estava escondida na casa de uma vizinha na companhia de seus
cinco filhos – e espancarem com um fio duas crianças que lá se encontravam, quase
as matando. As crianças que apanharam ficaram escondidas dentro do banheiro, os
policiais mataram um outro rapaz na sala da casa com uma faca e depois teriam
colocado os outros dois para limpar o local, não deixando marcas do que havia
acontecido. Relatou que os policiais roubaram seu celular, aparelho que lhe auxiliava
em seu trabalho. Ela encontrou cartuchos de balas dentro de casa. Segundo a
moradora, “eles são abusado demais, eles não respeitam...”
262
Direitos Humanos da OAB.
• Não houve perícia do local, apesar de fotos publicadas em jornais apresentarem a
presença de populares e jornalistas.
• Todos os corpos chegaram despidos no Instituto Médico Legal.
• Não foram feitas radiografias nos corpos.
• Não foram coletados estojos (cápsulas das balas) no local.
• Não foram coletadas amostras de sangue das vítimas.
• Entre 14 vítimas havia um total de 25 projéteis na região posterior.
• Entre seis vítimas havia um total de oito perfurações nos crânios e nas faces.
• Cinco vítimas sofreram disparos à queima roupa.
• Houve uma média de 3,8 disparos por vítima.
• Duas execuções comprovadas pela trajetória das balas em vítimas que se encontravam
em posição decúbito dorsal, além de suspeitas de execuções em outros casos. Nestes
dois casos, ainda, verifica-se a impossibilidade de defesa da vítima, uma vez que o
disparo letal foi dado de trás para a frente.
263
DOS DIREITOS HUMANOS VIOLADOS
264
federal e estadual e demais autoridades públicas, que tratam desde as formas de treinamento e
abordagem policial, fim do uso do caveirão, instrumentos técnico-investigativos,
independência dos Institutos Médico Legais, das Corregedorias e Ouvidorias de Polícia, entre
outras instâncias. Abaixo segue a íntegra das recomendações:
RECOMENDAÇÕES
265
8. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do
Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de criação de programas que retirem
das ruas policiais que se envolverem em eventos com resultado de morte, até que se
investigue as motivações e proceda a necessária avaliação psicológica do envolvido.
266
e inteligência, sob controle do executivo e com Regimento Interno único, com objetivo
exclusivo de combater o crime organizado, prevenir e inibir a prática de delitos cometidos
por agentes do Estado, e subsidiar o planejamento estratégico da ação policial.
21. Que a Organização das Nações Unidas (ONU) recomende ao Governo da República
Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas
no sentido de afastar, imediatamente, o agente penitenciário ou policial acusado de tortura,
homicídio ou corrupção, durante a fase de investigação.
267
Presos e Presas da Bahia e militante do Movimento Negro Unificado; Valdênia Paulino,
coordenadora do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (SP); e Kenarik Boujikian, juíza
e diretora da Associação de Juízes para a Democracia.
A acusação final ficou a cargo de Plínio de Arruda Sampaio, presidente da Associação
Brasileira de Reforma Agrária (e também ex-promotor público e ex-deputado federal
constituinte). Depois de uma breve retrospectiva das sessões anteriores, Plínio passou a
acusação, afirmando que o Estado deve ser julgado por crime doloso, pois os casos
comprovavam que não se tratavam de casos isolados, mas sim de uma política pública de
extermínio da população “excedente”.
O Estado brasileiro, no banco dos réus, é acusado de: tortura, execução sumária,
tratamento desumano de presos e menores, insuficiência no gasto social nas
periferias pobres da cidade. E o Estado cometeu o delito de criminalização da
pobreza e não tem idoneidade moral para conduzir o povo brasileiro. Tem o seguinte
problema: quando o Tribunal da Justiça impõe uma pena, a eficácia dessa pena, a
efetivação dessa pena, ela é feita pelo oficial de justiça, ela é feita pela polícia, o
cidadão é preso. Nós aqui...Olha! Então, qual é a eficácia da nossa pena. A nossa
pena é uma condenação moral. E essa condenação moral dele [do Estado], vale pra
nós. Ela é a grande motivação pra nós fazermos a condenação que está nas nossas
mãos, que é a condenação política. A condenação política. Nós vamos através da
condenação política tirá-los do poder. [Fala de Plínio Arruda Sampaio na sessão final
do Tribunal Popular].
Ao pedir a pena para o Estado, Plínio argumentou que, se fosse pedir uma pena média,
pediria uma reforma do aparelho estatal, mas o Estado está corrompido de uma tal maneira
que nenhuma reforma o salvaria. Assim, Plínio pediu a pena máxima: a destruição do Estado
burguês e em seu lugar o poder popular. Ele também ressaltou a necessidade das entidades e
dos movimentos participarem ativamente da política, como forma de enfraquecer o Estado
burguês.
No lugar do réu, uma cadeira vazia representava simbolicamente o Estado brasileiro. E
como o Estado não havia mandado representante para sua defesa, ela ficou a cargo do
promotor Roberto Tardelli, que começou sua defesa elogiando o acusador, e dizendo que se
encontrava numa situação delicada tendo que defender o Estado naquela situação. Seu
argumento era que o Estado realmente deveria ser julgado por crime doloso, mas as mortes
têm uma justificativa: são consequências do combate ao crime. Dentro da encenação do ritual
judiciário, o promotor expressou exatamente os argumentos que geralmente são utilizados na
defesa de policiais acusados de homicídios ilegais e, ao fazer tal afirmação, recebeu uma
grande vaia do público. Mas prosseguiu sua defesa concluindo com um pedido de pena média
ao Estado.
268
Em seguida vieram as avaliações dos jurados sobre os crimes a serem julgados. A
composição dos jurados buscava representar a diversidade da sociedade civil e dos
movimentos sociais. Entre os convidados estavam: Adriana Fernandes, integrante da
Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas da Bahia; Cecília Coimbra, presidente
GrupoTortura Nunca Mais-RJ; Ferréz, escritor e MC; Índio Guajajara, militante de
movimento indígena, membro do Centro de Étnico Conhecimento Sócio-Ambiental Cauieré;
Ivan Seixas, diretor do Fórum Permanente de Ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo;
José Arbex Jr., jornalista e escritor; Marcelo Freixo, deputado estadual PSOL-RJ; Marcelo
Yuka, músico e compositor; Maria Rita Kehl, psicanalista e escritora; Paulo Arantes, filósofo,
professor aposentado da USP; Wagner Santos, músico, sobrevivente da chacina da
Candelária; Waldemar Rossi, metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operaria da
Arquidiocese de São Paulo; Dom Tomás Balduíno, Bispo Emérito da cidade de Goiás Velho e
conselheiro permanente da Comissão Pastoral da Terra, também foi convidado, mas não pôde
comparecer. A sessão final também teve uma participação especial de Kali Akuno,
coordenador do Black Panthers e Grass Roots Mouvement (EUA), e convidado como
observador internacional.
A posição do júri foi unânime em condenar o Estado. Todos consideraram que o
Estado tem descumprido as normas dos Direitos Humanos, seja através dos tiros disparados
pela polícia ou da não garantia de condições básicas para uma vida digna da maioria da
população. Muitas das falas dos jurados destacavam a importância da organização e da
mobilização para monitorar, denunciar e impedir a violação de direitos por parte do Estado.
Alguém chegou a propor que o Tribunal Popular fosse um espaço permanente, de modo que,
assim que acontecesse alguma violação de direito por parte do Estado, o caso fosse julgado no
Tribunal Popular.
A fala final foi da juíza e diretora da Associação Juízes para a Democracia, Kenarik
Boujikian, que julgou que “o Estado brasileiro é implementador e sujeito ativo das políticas
neoliberais, que utiliza o instrumento do medo para que o povo não queira alterar a ordem das
coisas.” Ainda segundo a juíza, o medo é um instrumento utilizado pela globalização
hegemônica e seu principal meio é a repressão penal. Em sua fala, Kenarik fez uma
retrospectiva das sessões, destacando os testemunhos das vítimas que, segundo ela, mostrou
as faces ocultas e não ocultas do Estado, através da ação ou omissão de seus poderes.
Terminou propondo uma votação, pedindo que todos aqueles que condenassem o Estado
brasileiro ficassem de pé. Todos se levantaram e, com uma salva de palmas, emergiu o grito
269
coletivo de: “Viva!”. Após a sessão final, houve uma caminhada seguida de vigília na frente
do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Durante os dias de realização do Tribunal Popular, além das sessões de instrução, que
reproduziam e teatralizavam o ritual judiciário, ocorreram outras atividades culturais e
políticas. Apresentações de grupo de teatro e de hip hop, realizações de reuniões políticas,
lançamentos de livros e relatórios de denúncia, exibição de vídeos. Poderíamos dizer que as
sessões de instrução eram as atividades principais do evento, e as demais, atividades
complementares. Existiam duas formas de expressão da voz: a voz que se expressava dentro
do ritual judiciário e a voz que se expressava através de outras linguagens, como a das artes, a
religiosa e a política. A própria diversidade dos atores presentes em cada situação definia a
pluralidade de linguagens usadas e expressas em cada momento e formato do evento.
Uma dessas atividades realizadas nos marcos da programação do “Tribunal Popular: o
Estado Brasileiro no Banco dos Réus”, no dia 04 de dezembro de 2008, foi a realização de
uma caminhada da Faculdade de Direito da USP (no Largo São Francisco) até o Tribunal de
Justiça de São Paulo (na Praça da Sé). Com fotografias, velas acesas, faixas, cartazes,
palavras de ordem e consígnias de protesto, o ato culminou numa vigília em frente ao
Tribunal de Justiça e, em seguida, encerrou-se na escadaria da Igreja da Sé.
Cada entidade com seus símbolos e palavras de ordem. Durante a concentração, em
frente à Faculdade de Direito, no chão foram expostos banners com fotos de vítimas e várias
faixas da Rede Contra a Violência, movimento do Rio de Janeiro, denunciavam a
continuidade histórica da violência estatal: a violência estatal da ditadura civil-militar e a
violência contra os pobres de hoje. Entre os textos das faixas lia-se: “31de março – Golpe
Militar de 1964 / 31 de março – Chacina da Baixada em 2005 / A ditadura continua na
violência contra os pobres”. Outra faixa trazia os dizeres: “Os ricos querem paz para
continuar ricos, nós queremos paz para continuar vivos”. Uma terceira faixa foi utilizada para
aproveitar a ocasião e expressar no espaço público o tema da integração das favelas à cidade e
se posicionar contrariamente à política de remoções. Essa faixa trazia a seguinte frase: “Nem
caveirão, nem remoção: favela é cidade”. Desse modo, criticava-se a violência policial e a
política de remoções de favelas no Rio de Janeiro.
Durante os dias de realização do Tribunal Popular, no dia 05 de dezembro, mais uma
vítima do Estado foi somada às estatísticas. Mateus, um garoto morador da Maré, no Rio de
270
Janeiro, havia saído de casa para ir à padaria comprar pão e levou um tiro, decorrente de uma
operação policial. Sua morte, assim como várias outras, foi lembrada durante a vigília.
Os manifestantes concentraram-se em frente ao Tribunal de Justiça. O chão se
transformou em um tapete com banners, faixas, fotos, velas. Familiares de vítima e militantes
de direitos humanos fizeram falações lembrando as vítimas e responsabilizando o Estado
pelas mortes. O clima foi marcado por muita emoção e muito choro.
271
Uma coisa que eu percebo, assim, geralmente quando as famílias sabem que o filho
está envolvido, o sobrinho, tem essa coisa de achar que ele tem que morrer mesmo.
Se acha que isso é justiça? Não existe pena de morte aqui. Não existe. O que é que
tem que acontecer? Uma prisão, uma condenação. Então, eu acho que há esse
conformismo da própria família antes do acontecido: “Não, se meu filho está dentro
do tráfico, ele vai morrer mesmo, eu já estou esperando ele morrer”. Geralmente,
não pensa nem na prisão. Que é um caso em que já está preservando a vida. Mas eu
vejo muito esse conformismo. Por que isso? Você sabe explicar isso? Assim, é uma
questão de cultura das comunidades, é uma questão de cultura da própria família que
acha que... Da própria família não, da sociedade, porque não é nem a família, é a
sociedade que cultua que bandido bom é bandido morto. E aí se cria essa dificuldade
quando se chega e você fala assim: “Ah, eu sou militante de direitos humanos”. Em
um primeiro momento você é mal vista. Por quê? “Direitos humanos! Direitos
humanos é pra bandido!”. E essa cultura, ela está infiltrada na sociedade, você não
consegue mudar isso. Por quê? A morte ficou banalizada.
A mãe que fala no relato acima chama atenção para o fato de que o envolvimento com
o “tráfico” é tido praticamente como sinônimo de morte, não se cogitando nem mesmo a
prisão. Nesse caso, não há nenhum horizonte de direito para quem está envolvido no
“movimento”. Nesse contexto, as possibilidades de engajamento dos familiares são reduzidas.
Ser familiar de vítima não significa necessariamente tornar-se um militante dos direitos
humanos. O sofrimento gerado pela morte do filho pode levar ou não a algum tipo de
engajamento.
Na experiência dos familiares há um ponto de contato entre “violência urbana” e
“direitos humanos”, mas ele não se apresenta como mediação ou contradição, e sim como
alternativa entre duas linguagens incomensuráveis. Essa linguagem alternativa, ponto de
contato entre “violência urbana” e “direitos humanos”, é a linguagem do sofrimento. O
sofrimento é o ponto de interseção entre os familiares para criticarem a violência e ajustarem-
se à
linguagem dos direitos.
O Tribunal Popular foi um espaço político de encontro entre as duas lógicas, ou dois
regimes de ação: a dos familiares e a dos militantes. Os militantes, ONGs e movimentos
sociais atuam, para usar o conceito gramsciano, como intelectuais orgânicos, buscando
fornecer um repertório de críticas sociais e políticas aos familiares e promover uma
politização do sofrimento. A politização do sofrimento consiste, sobretudo, na passagem do
caso singular ao geral, na dessinguralização dos casos. Nesse sentido, o Tribunal Popular foi
marcado por uma coleção de testemunhos e de casos, que era uma forma, ao mesmo tempo,
de considerar o detalhe, porque é a descrição do detalhe que sensibiliza, e de situá-lo em
algum grau de generalização.
Ao apresentar, no primeiro capítulo desta tese, em linhas gerais, alguns aspectos da
teoria de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, destaquei que, para estes autores, os registros de
272
justificação de cada cité não dependem apenas de princípios de justiça. Os mundos são feitos
também de objetos e dispositivos convencionais que podem, assim, ancorar o modelo de
justificação na realidade. Neste capítulo, por sua vez, ao descrever o Tribunal Popular
enquanto um evento político, tentei identificar alguns dos objetos e dispositivos sobre os
quais se apoiam as críticas políticas dos militantes e dos movimentos sociais em interação no
âmbito desse espaço político.
Cada objeto e cada dispositivo manipulado corresponde a uma peça na construção de
um caso. Só que, diferente do caso enquanto forma jurídica, cujos objetos correspondem
apenas a peças de natureza jurídica, o caso enquanto forma política considera como peça tudo
aquilo que possa ser arrolado como prova no debate político e moral, travado no espaço
público. Estes objetos, incluem, entre outros, o uso político dos testemunhos dos familiares, o
uso de argumentos acadêmicos, estatísticas, charges, reportagens. Vários objetos são reunidos
com o objetivo de fornecer elementos para se produzir uma crítica que seja capaz de
ultrapassar os casos específicos e atingir a generalidade. Nisto consiste o trabalho de
politização, na capacidade de generalização. Dentro deste quadro político geral, que visa a
generalização, são apresentados e trabalhados os casos particulares, no sentido de construir
uma coleção de casos que sustente uma crítica à violência promovida pelo Estado.
273
IMAGENS DA VIGÍLIA
274
Foto 7: Faixas de protesto
275
Foto 9: Luto e protesto: fotos de mortos e desaparecidos de ontem e de hoje
276
Foto 12: Criança observa e participa da Foto 13: Colocando uma foto no mural
vigília
Foto 14: Ajeitando a foto Foto 15: Uma ajuda da mãe e o interesse do
fotógrafo
277
Foto 16: Mural com fotos de presos políticos da Foto 17: Moradora de rua se
ditadura junta à vigília
Foto 18: Mural com fotos dos mortos e desaparecidos Foto 19: Vela e foto - símbolos
de hoje do protesto
278
NOTAS FINAIS
67
Depoimento publicado em matéria do portal do jornal O Estado de São Paulo:
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,cabral-se-desculpa-com-familia-de-homem-morto-por-engano-pelo-
282
O pedido de desculpas aparece quando há corpo e evidência absoluta da morte e do
erro. Quando não há, como no caso dos desaparecidos, nem mesmo o pedido de desculpas
aparece no horizonte de reconhecimento do sofrimento dos familiares. Pelo contrário, o que
eles ouvem é que, como não há corpo, não há crime. Enquanto a justiça não se realiza, como
diz uma mãe de desaparecido, não para de crescer no Rio de Janeiro a família dos familiares
de vítima.
***
283
não como algo que o extrapola. O excesso é parte de uma economia semântica, cuja
linguagem pode ser dirigida ora aos próprios atores em disputa/composição, ora a segmentos
de moradores de determinados territórios, ora ainda dirigido a sujeitos específicos em
condições de vulnerabilidade (territórios/condição social/atividade/suspeição). Uma dimensão
do terror que emerge nos casos de desaparecimento forçado seria aquela que se inscreve sobre
os corpos virtuais: corpos que podem ter sido torturados, que podem ter sido devorados, que
podem ter sido esquartejados, mas cuja corporalidade não está materializadas mas se faz do
rumor, dos fragmentos, da suposição.
O excesso que o desaparecimento provoca, em termos de suspensão da vida,
transforma-o em um drama não apenas para a vítima direta - o desaparecido - mas desloca-se
para aqueles que sofrem por ele. Desse modo, além do morto/desaparecido, aqueles que
sofrem por ele também se constroem nesse processo como vítimas.
284
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Texto-denúncia apresentado na III Sessão de Instrução do Tribunal Popular: [Disponível em:
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Nota de apoio à companheira Márcia Honorato, ameaçada de morte por policiais militares.
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Jornais
O Dia
Jornal do Brasil
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Estado de São Paulo
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www.isp.rj.gov.br [Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro].
www.wikipedia.org [Wikipedia].
www.gabrielasoudapaz.org.br [Gabriela Sou da Paz].
Fotos
Fotos de trabalhos de campo.
Fotos de acervos particulares e fotos de Internet.
293
ANEXOS
ANEXO 1 – RELAÇÃO DE ENTREVISTADOS
Com o objetivo de situar os entrevistados e suas histórias ou áreas de atuação elaborei uma
lista com a relação de entrevistados citados na tese. Em alguns casos a citação não ocorrer de
maneira nominal, valendo-me apenas do relato ou de informações contidas nas entrevistas.
Conforme o pedido dos entrevistados em alguns casos nomes verdadeiros foram mantidos e
em outros substituídos por nomes fictícios.
Familiares
[Izildete]: Viúva, tem três filhos, mora na Baixada Fluminense. Um dos filhos desapareceu
junto com um colega, após uma abordagem policial, quando saíam de um bar.
[Maria]: Moradora de uma favela na zona norte do Rio de Janeiro, trabalhava como auxiliar
de serviços gerais na época em que o filho desapareceu juntamente com mais doze pessoas.
Segundo a versão da mãe traficantes teriam alugado um caveirão e como o apoio da polícia
sequestraram 13 pessoas de uma facção rival.
[Áureo]: Feirante, mora na zona norte do Rio de Janeiro, em um sítio numa região cercada por
favelas. Dois filhos foram mortos pela polícia e um terceiro e a nora estão desaparecidos. Há
suspeita de envolvimento de policiais no caso do filho e da nora desaparecidos.
[Maria das Dores]: Moradora de uma área dominada por milícia e pastora evangélica. O filho
ficou alguns meses desaparecido, quando uma ossada representando seus restos mortais foram
deixados numa madrugada no portão de casa. A ossada estava sobre um saco preto, aberto,
com um bilhete da milícia.
[Heloísa]: Moradora do Leblon, o filho foi morto por um policial que trabalhava como
segurança numa boate, após uma briga.
[Maria de Fátima]: Moradora de uma área na zona norte do Rio de Janeiro, o marido sumiu
quando foi visitar a família que morava numa área dominada por milicianos. Jamais teve
notícias do marido ou encontrou o corpo.
[Maria do Retiro]: Moradora de uma área na zona norte do Rio de Janeiro dominada por
milicianos. O filho ficou desaparecido por um período e após alguns meses encontrou apenas
a cabeça do filho no Instituto Médico Legal.
[Maria Regina]: Moradora de uma área na zona norte do Rio de Janeiro dominada por
milicianos. O filho ficou desaparecido por um período e após alguns meses encontrou o corpo
sem a cabeça no Instituto Médico Legal.
[Maria Clara e Rosa]: Maria Clara não tem endereço fixo. Vive pequenos períodos de tempo
em cada lugar, precisando se mudar constantemente em razão das ameaças que sofre. O filho
encontra-se desaparecido, segundo ela policiais à paisana teriam levado o filho quando este
esperava em um ponto de ônibus. Anos mais mais tarde seu neto, filho de Rosa, também
desapareceu. Durante anos participou das reuniões das Mães da Cinelância na escadaria da
Câmara de Veradores do Rio de Janeiro.
[Maria Cecília e Laura]: Gari, moradora de uma área popular, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
O filho de 20 anos desapareceu após sair de casa para ir a uma festa da família da namorada,
em Duque de Caxias. Segundo os rumores que chegaram aos ouvidos de Maria Cecília, o
filho foi morto por milicianos e o corpo carbonizado, entretanto o cadáver jamais foi
localizado ou identificado.
[Maria da Glória]: Moradora de uma favela na zona norte do Rio de Janeiro e mãe de um
jovem desaparecido em uma chacina cuja denúncia aponta o envolvimento de policiais que
atuariam como um grupo de extermínio.
[Maria de Fátima]: Moradora de uma favela na zona norte do Rio de Janeiro e mãe de um
jovem desaparecido em uma chacina cuja denúncia aponta o envolvimento de policiais que
atuariam como um grupo de extermínio.
[Cláudia Helena]: Moradora da Baixada Fluminense, o filho foi sequestrado dentro de uma
lan house, próxima de sua casa, por um policial vizinho.
Outros
296
ANEXO 2 – PARECER E PROJETO SUBSTITUTIVO DE LEI DO SENADO SOBRE
DESAPARECIMENTO FORÇADO
SENADO FEDERAL
Gabinete do Senador Pedro Taques
PARECER Nº , DE 2011
I – RELATÓRIO
II – ANÁLISE
298
específica de colaboração premiada que permita a localização da vítima com a sua integridade
física preservada ou a identificação dos demais coautores ou partícipes do desaparecimento ou
de suas circunstâncias.
III – VOTO
299
I – se o desaparecimento durar mais de 30 (trinta) dias;
II – se o agente for funcionário público;
III – se a vítima for criança ou adolescente, idosa, portadora de
necessidades especiais, gestante ou tiver diminuída, por qualquer causa, sua
capacidade de resistência.
Colaboração premiada
§ 7º Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder
a redução da pena, de um a dois terços, ao acusado que, sendo primário, tenha
colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo
criminal, desde que dessa colaboração contribua fortemente para a produção
dos seguintes resultados:
I – a localização da vítima com a sua integridade física preservada ou;
II – a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa e
das circunstâncias do desaparecimento.
§ 8º Os delitos previstos neste artigo são imprescritíveis.
§ 9º A lei brasileira será aplicada nas hipóteses da Parte Geral deste
Código, podendo o juiz desconsiderar eventual perdão, extinção da
punibilidade ou absolvição efetuadas no estrangeiro, se reconhecer que
tiveram por objetivo subtrair o acusado à investigação ou responsabilização
por seus atos ou tiverem sido conduzidas de forma dependente e parcial, que
se revele incompatível com a intenção de
submeter a pessoa à ação da justiça.
Consumação do desaparecimento
§ 10 A consumação dos delitos previstos nesse artigo não ocorre
enquanto a pessoa não for libertada ou não for esclarecida sua sorte, condição
e paradeiro, ainda que ela já tenha falecido.”
Sala da Comissão,
, Presidente
, Relator
300
ANEXO 3 – NOTA DE ESCLARECIMENTO E SOLICITAÇÃO DE RETIFICAÇÃO
DA REDE CONTRA VIOLÊNCIA AO JORNAL O DIA
Ao
Jornal o Dia
A/C Redator-chefe
À Imprensa do Rio de Janeiro e do Brasil
Nota de Esclarecimento e Solicitação de Retificação
2) O companheiro Joel Valentim, a companheira Antônia Ferreira dos Santos e vários outros
moradores e moradoras da Ocupação Zumbi dos Palmares, afirmam pessoalmente que “em
nenhum momento deram qualquer declaração ao jornal admitindo a autoria dos grafites
executados no Maracanã e outras partes da cidade”, conforme informa falsamente a matéria. A
informação veiculada pelo jornal, se não é um equívoco, trata-se de uma tentativa flagrante de
criminalizar movimentos sociais legítimos como a Rede e o movimento dos sem-teto que
ocupam organizadamente prédios públicos abandonados há anos, sem cumprir função social
conforme determina a Constituição.
Entretanto, não há como daí associar qualquer coisa que tenha sido feito com essa imagem
aos movimentos organizados contra a violência do Estado ou por moradia, ou às organizações
e movimentos que convocam o ato de amanhã. Repetimos, fazer isso é mais uma
demonstração da sórdida estratégia de criminalização dos movimentos e lutas sociais que vêm
sendo posta em ação pelos governos no Brasil.
Diante disso tudo, estamos publicamente denunciando os fatos acima, e solicitando correção
da informação incorreta publicado por O Dia, em todos os meios e espaços em que ela tenha
sido feita, bem como direito de resposta nos termos da lei.
302
ANEXO 4 – CADERNO DE IMAGENS
68
Reportagem 4: Mães de Acari: um parto que já dura 15 anos
68
Em 26 de julho de 2012, o Caso Acari completou 22 anos.
Reportagem 5: Polícia procura ossadas e acha leões em Magé
304
Reportagem 6: Milícia é acusada de sequestrar dois jovens em Ramos
305
Reportagem 8: Menores somem na Baixada Reportagem 9: Seis corpos
achados no Juramento
306
Reportagem 12: PMs suspeitos de matar engenheira
307
Reportagem 14: Uma nova esperança para achar desaparecidos
308
Foto 22: Manifestação em memória dos 20 anos do Caso Acari
Foto 23: Painel com imagem de Edméia, uma das Mães de Acari,
assassinada em 1993 quando saía de uma visita em um presídio
309
Foto 24: Bonecos no chão representando os jovens desaparecidos de Acari
e faixas com consígnias de protesto
310
Foto 25: Faixas, cartazes e fotos
Foto 26: Faixa das Mães de Maio: grupo de mães e familiares de mortos
e desaparecidos durante os ataques do PCC em São Paulo e a
represália da polícia. As Mães de Maio estiveram presentes em Acari
para participar do ato em memória dos 20 anos do caso.
311
Foto 27: Os objetos do protesto
312
Foto 29: A memória afetiva - objeto de lembrança de Patrícia
313
Foto 31: Cláudia Helena com reportagem de jornal sobre o caso do filho desaparecido
314
Foto 32: Manifestação em memória dos 4 anos da chacina da Baixada Fluminense
315
Foto 34: Flores e jornais com notícias sobre a chacina
Foto 35: Manchete do jornal – Ele queria voltar para a nossa terra
316