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Arte - Construção Do Lugar
Arte - Construção Do Lugar
Campinas
2013
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
Sergio Sandler
_________________________________________
Campinas
2013
iii
iv
v
vi
Agradecimentos
vii
viii
Resumo
Palavras chave: arte, urbanismo, espaço público, arte pública, plano diretor.
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Abstract
Based on the critical vision of two fundamental authors - Camillo Sitte, who
registers the moment of the city transformation upon industrial advent, losing its
general artistic sense; and Giulio Carlo Argan, who points out to the crisis of the
contemporary city as a crisis of a system of values that relegates the idea of the
city as an artifact, and as a crisis of the idea of art in itself; and a series of
provocative authors, comes through Chicago’s case study.
Its master plan, the Plano of Chicago, established in the first decade of the
twentieth century, is the basis for the development of the city as we know it today.
The plan, besides defining directives concerning the technical systems of the city,
covered also the city’s public spaces, concerning its artistic and symbolic
qualification.
The field experience in Chicago confirms the link between public art and
cultural life of the city. Where there is the artistic element the point is transformed
in urban landmarks, in references that build the community and city’s identity as a
whole. Donations and public funds sustain and enhance growth of public collection,
with systematic inclusion of elements of public art in parks and plazas.
Key words: art, urbanism, public space, public art, master plan.
xi
xii
Sumário
1. Introdução ................................................................................................. 1
2.3. Camillo Sitte e A construção das cidades segundo seus princípios artísticos...........14
2.4. História da arte como história da cidade, de Giulio Carlo Argan .............. 31
2.4.3. Percepção, imagem e representação: aproximações entre Giulio Carlo Argan e Kevin Lynch.. 38
xiii
2.4.3.2. O processo de construção mental da cidade........................................... 42
3.2.1. A cidade segundo a abordagem arganiana: a arte como fato urbano, a cidade como fato artístico......... 67
4. Capítulo 3 - O plano urbano como suporte da memória da cidade. O estudo do caso do Plano de Chicago .. 85
4.2.3. Os parques de Chicago, a orla urbana do lago Michigan e outros planos urbanos ...........94
xiv
4.3.3. A arte e a representação simbólica nos espaços públicos .................... 103
4.5. Marcos urbanos em Chicago: um registro de espaços artisticamente qualificados ............ 132
xv
xvi
1. Introdução
1
Giulio Carlo Argan, Walter Gropius e a Bauhaus
1
Walter Gropius e a Bauhaus. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo, São Paulo, José Olympio, 2005.
1
de comunicação num mundo inteiro feito ele mesmo notícia fugaz, a abdução do
tempo de reflexão pela miríade de fatos fugidios de brevíssima duração: estas
são, tristemente, características de um processo histórico que começou com a
cidade industrial e culmina com a cidade contemporânea, pós-industrial.
Tal estado de coisas espacializa-se nas diversas e contraditórias
manifestações da cidade contemporânea, sejam positivas ou negativas. Em toda
sua complexidade, diante de seus graves e crescentes problemas que afetam
muitas vezes de modo definitivo a vida das pessoas, é necessário mais do que
nunca enfrentá-los em sua dramática concretude, na linha de frente onde se dá
como realidade.
Entretanto, os termos "concretude" e "realidade" encerram acepções que
dirigem o discurso e a práxis urbanística em direção à máxima objetividade
possível, em que soluções técnicas devem dar respostas às questões urbanas
concretas.
Mas algo se perde neste caminho, posto que cidade não é feita de
infraestrutura e de técnica exclusivamente. Há um componente que a constitui
desde os mais remotos tempos, sendo “uma atividade tipicamente urbana”: a arte
é “parte constitutiva da cidade”, e sua gradativa eliminação da cena urbana
corresponde a um processo de “degradação do fenômeno urbano, devida
justamente à renegação e à abjuração, por parte da burguesia capitalista, do
historicismo burguês” (ARGAN, 1992, p. 43).
Sendo a arte ação, é ação humana, e sendo a arte uma ação tipicamente
urbana, é ação humana na cidade que a faz depositária dos conteúdos simbólicos
humanos. Não é menos ação que qualquer projeção da técnica sobre o território, o
que valida as ações ligadas à infraestrutura e também demonstra a não
exclusividade destas, exclusividade sempre justificada por um certo princípio de
realidade.
A observação empírica e a experiência urbana cotidiana apontam para um
estado de deslocamento do cidadão que habita “não lugares” (no sentido de
assentamentos desprovidos de significado). É possível localizar uma inquietação,
2
um desconforto: qual é o nosso lugar na cidade? Nosso, como coletivo; lugar na
cidade como esfera pública no espaço público.
Como o desenvolvimento desta pesquisa procura demonstrar, o termo
"cidade" compreende conteúdos que estão além do princípio de realidade que
conforma os dois termos, abrangendo aspectos simbólicos e formais que também
a constituem como tal. Bernardo Secchi afirma, com razão, que o urbanismo se
realiza em parte como uma narrativa. O discurso urbanístico contemporâneo
funda-se nas questões candentes e fundamentais da habitação, do saneamento,
da mobilidade, e busca compreender as novas escalas que abarcam grandes
porções de território. Formam-se redes de centralidades que pedem novas formas
de compreensão do que possa vir a ser aquilo que hoje conhecemos por cidade.
Diante desse fenômeno, entretanto, a arte, elemento estrutural histórico da
cidade, tem merecido um lugar apenas subalterno nas reflexões e ações
urbanísticas de nosso tempo. Não se pode ignorar que a relação entre arte e
cidade está na origem dessas duas grandes, talvez as maiores, criações do gênio
humano.
Parece ser necessário retomar no discurso urbanístico a questão da
manifestação artística enquanto fato urbano histórico por excelência, a partir de
uma reflexão sobre o papel da arte na qualificação dos espaços públicos e como
elemento de identidade do lugar do homem na cidade.
3
Daí o tema desta pesquisa, Arte e Urbanismo, cujo objeto de estudo é o
conjunto dos espaços públicos de Chicago, segundo sua qualificação como
lugares referenciais na vida da cidade.
O objetivo geral será identificar, analisar e avaliar a importância da
dimensão artística do urbanismo como premissa básica dos instrumentos de
planejamento e dos programas dos projetos de requalificação urbana.
Nesse sentido, o recorte metodológico é determinado por dois momentos-
chave no processo de desenvolvimento das cidades marcados pela mudança do
paradigma de cidade. O primeiro corresponde à concentração urbana devida ao
impacto da Revolução Industrial na cidade do século XIX, e o segundo, pelo
fenômeno da fragmentação e da dispersão da urbanização em escala territorial,
dessa vez sob o impacto das redes de comunicação ilimitada de riqueza e
informação, a partir de meados do século XX.
A metodologia adotada determinou as seguintes etapas de
desenvolvimento da pesquisa:
a. Construção de base teórica conceitual:
Leitura, análise e sistematização de duas obras referenciais e
emblemáticas, a saber: A construção das cidades segundo seus princípios
artísticos, de Camillo Sitte, e História da arte como história da cidade, de
Giulio Carlo Argan.
Contextualização dos autores em suas épocas.
b. Contextualização das obras de referência:
Relações e aproximações do pensamento de Camillo Sitte com John
Ruskin e Alois Riegl.
Relações e aproximações do pensamento de Giulio Carlo Argan com Kevin
Lynch e Gordon Cullen.
c. Desenvolvimento da questão da dimensão artística da cidade, com base
numa proposta de sistematização dos aspectos levantados nas obras de
Sitte e Argan.
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d. Desenvolvimento do estudo de caso:
Leitura do Plano de Chicago à luz do referencial teórico conceitual da
pesquisa, com foco na questão da qualificação dos espaços públicos de
Chicago.
Leitura e análise de espaços públicos de Chicago, segundo a experiência
pessoal do autor à luz de conceitos extraídos do referencial teórico da
pesquisa.
1.2. Justificativa
5
mais potentes que nunca, as questões relativas à habitação, infraestrutura,
transporte, sem esquecer temas como desigualdade social, educação e saúde.
A explosão do crescimento urbano ocorre pela expansão quase ilimitada
das áreas urbanizadas, provocando importantes transformações morfológicas,
funcionais e, especialmente, simbólicas, no ambiente urbano. Em paralelo,
verificam-se profundas alterações ambientais que apontam para uma situação de
esgotamento dos recursos naturais diante de uma forma de desenvolvimento
predatória do meio físico. Como afirma Giulio Carlo Argan (1992, p.223): “No
decorrer de poucos anos, se de fato se quisesse, toda a superfície do globo
poderia ser urbanisticamente estruturada (...).”
Seja no espaço urbano ou periurbano, ou ainda no que resta do meio
natural, tais transformações implicam em perdas importantes relativas à qualidade
de vida de modo geral e, mais especificamente quanto aos aspectos identitários
que constroem os laços de pertencimento e o conjunto de valores que sustentam
a vida em sociedade.
Mas o gigantismo, que implica a impossibilidade das cidades serem
reconhecidas em seu todo; a presença massiva de assentamentos urbanos sub-
humanos; a descaracterização senão a eliminação dos lugares portadores da
memória – os acumuladores do tempo, nosso legado cultural material; a crescente
presença de diversas morfologias urbanas que simplesmente prescindem das
relações de vizinhança, entorno, freguesia, bairro, portanto, das diversas escalas
da esfera pública; e a questão do estresse das redes de infraestrutura, são fatores
que hoje constituem uma tendência claramente ameaçadora para o futuro daquilo
que conhecemos por “cidade”.
Por outro lado, há também diversos processos coetâneos que intencionam
restituir toda uma sorte de valores que a cidade vem paulatinamente perdendo
desde o advento da Revolução Industrial.
Os movimentos de requalificação urbana e ambiental nas áreas centrais
urbanas, as ações e programas de recuperação dos corpos d’água e seu entorno,
a reurbanização de favelas e de áreas urbanas sobrevalorizadas e subocupadas
6
através de instrumentos de gestão urbana, a implantação de parques e
equipamentos públicos de lazer, os modelos participativos de orçamentos públicos
e planos diretores e ainda a existência de textos legais que conceituam e visam a
garantir a função social da propriedade demonstram uma reação cidadã à situação
atual.
Todo esse movimento constitui um conjunto de práticas políticas que
denunciam e opõem-se à notável tendência de agravamento do quadro da vida
urbana, e parecem indicar um processo de restauração do significado da cidade
como lugar e morada digna do homem. Portanto, lugar da identidade construída
ao longo do tempo, da memória coletiva, dos significados comuns, do processo
civilizatório mesmo.
Dentre os múltiplos aspectos desse permanente debate, deve ser
destacado que a maior das construções humanas, a cidade, sempre esteve
associada à arte. A cidade sempre foi o lugar que deu condições para o
desenvolvimento artístico humano, seja a pintura, a escultura, a música, a
literatura, o teatro e a arquitetura, sendo ela mesma um ato de criação artística,
um artefato, algo feito com arte. A cidade é constructo simbólico e representativo
do homem no planeta, a constituir seu lugar no universo, e um universo como seu
lugar.
A arte é, ou deveria ser um elemento vital da cidade. Por reconhecer a
progressiva perda da importância do papel e do lugar da arte no processo de
construção da cidade, dos espaços civis das relações sociais, o presente trabalho
busca reafirmar o lugar central da arte na vida urbana como elemento, a um só
tempo, de identidade cultural e de agregação social, que confere valores
fundamentais que a vida em sociedade demanda.
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circunscrever seu alcance aos objetivos da pesquisa e contextualizar o objeto de
estudo neste perímetro.
O recorte metodológico definido é balizado por dois momentos históricos
matizados por transformações econômicas, sociais e políticas que podem ter
tomados por verdadeiros pontos de inflexão da história do homem e da cidade.
O primeiro momento é o da primeira revolução industrial, que implicou em
profundas e paradigmáticas transformações na cidade medieval-renascentista-
barroca-liberal, a resultar cidade industrial. A construção das cidades segundo
seus princípios artísticos, de Camillo Sitte, será o fio condutor da leitura deste
momento, com o concurso de John Ruskin quanto às questões de preservação e
memória, e de Alois Riegl quanto à questão dos valores atribuídos ao bem
patrimonial. O historiador Carl Schorske situa Sitte historicamente no campo da
cultura em geral, e no pensamento de Viena fin de siécle em particular. Por sua
vez, Françoise Choay, em sua introdução ao Le culte moderne des monuments –
Son essence et sa gênese, revela os aspectos fundamentais do pensamento de
Riegl quanto a memória dos monumentos, como um atributo humano de ordem
afetiva. A urbanista e teórica francesa atualiza a convocação de Riegl para uma
meditação sobre a nossa sociedade numa circunstância tal em que o monumento
histórico “não é mais apenas um modo inocente de autopreservação.” (1984)
O segundo momento, igualmente paradigmático, tem por referência a
cidade pós-industrial ou contemporânea, cujas características implicam novas
questões como a escala metropolitana, a expansão ilimitada dos tecidos urbanos,
a superexploração do solo como mercadoria, a expansão continua da visão de
mercado que reconfigura os espaços urbanos. A definição de cidade está em
crise, assim como a definição de arte também.
A abordagem da cidade como artefato de Giulio Carlo Argan é o pano de
fundo para as elaborações que compõem História da arte como história da cidade,
obra da qual a pesquisa procura destacar a importância das questões políticas e
participativas de um lado, e perceptuais e sensíveis de outro, presentes nas
relações que estabelecemos com a cidade enquanto lugar através de seus
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espaços públicos. O aspecto da participação do cidadão é amparado pelas
essenciais pesquisas de Kevin Lynch em A imagem da cidade, e o aspecto
sensível e artístico, pela investigação de Gordon Cullen em Paisagem urbana,
apoiado na noção de percepção elaborada por Rudolph Arnheim.
Para discutir as questões da construção da paisagem, do espaço público e
da esfera pública, do público ou privado, a pesquisa irá apoiar-se em Habermas, a
partir da leitura de Pereira Leite e Eugenio Queiroga. Para a compreensão as crise
da cidade moderna, Marshall Berman contribui com uma visão em perspectiva do
modernismo a partir de um paralelo da evolução da cidade e da literatura.
O Capítulo 2, “A dimensão artística da cidade”, procura estabelecer
possíveis aproximações da questão da dimensão artística do urbanismo a partir da
base teórica conceitual constituída no primeiro capítulo, abordando o tema
segundo as especificidades das elaborações teóricas de Camillo Sitte e Giulio
Carlo Argan.
Por fim, o Capitulo 3, “O plano urbano como suporte da memória da cidade:
o estudo do caso do Plano de Chicago”, é dedicado ao estudo do caso do Plano
de Chicago sob o ponto de vista dos espaços públicos artisticamente qualificados
da cidade, a partir da percepção da potência de um instrumento de planejamento
que objetivou na valorização artística de seus espaços o estabelecimento de uma
nova identidade para a cidade. A experiência pessoal do autor serve de base para
o desenvolvimento da leitura de alguns espaços significativos, segundo conceitos
emanados da pesquisa.
9
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2. Capítulo 1 - Base teórica conceitual
Arte, do latim ars, ars, artis; maneira de ser ou de agir, habilidade natural
ou adquirida, arte, conhecimento técnico. (HOUAISS, s/d,
http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=arte, consultado em 21/01/2013)
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Diz ainda: “Arte é uma atividade humana que consiste no fato de que
um homem conscientemente, por meio de certos sinais, transfere a outros
sentimentos que ele viveu, e outras pessoas são infectadas por este sentimento e
também o experimentam.” (TÓLSTOY, 1896, p. 52).
Arte como algo que sensibiliza, impressiona, comove. A arte que co-
move, que une e promove comunhão. Arte como algo que contamina, que
comunica. Em tais acepções ou percepções, há dois fenômenos: a capacidade de
sensibilizar o outro, e o reconhecimento da existência do outro a ser sensibilizado.
O fazer artístico pressupõe o outro, dai a arte ser manifestação que comunica
algo, através de sua expressão, a outro, à sociedade. Arte como ato político. A
arte parece ser algo fundamentalmente coletivo.
Isto sugere as premissas a adotar.
A Arte supõe uma satisfação desinteressada. Pressupõe a
comunicação de um conteúdo, e dialoga com muitos conteúdos e simbologias. É
fruto da ação criativa e da habilidade criativa. É uma questão de relação,
pressupõe o outro e o coletivo, pedindo identidade. Compreende, ainda que não
de forma absoluta, o uso de meios formais de expressão específicos tais como o
desenho, a pintura, a escultura, a dança, a literatura, a musica, a arquitetura e, por
que não, o urbanismo. Não bastam, entretanto, tais premissas. Para circunscrever
a ideia de arte, outro aspecto deve ainda ser considerado, relativo à forma de seu
relacionamento com a sociedade em termos espaciais.
Como qualquer atividade humana, arte refere um conceito ligado aos
espaços em que se realiza e se afirma. Há a arte como aquela dos acervos dos
museus, limitada a espaços determinados e condicionada por discursos e práticas
museológicas específicas.
Diferentemente, a arte pública é uma forma recorrente e perene de
manifestação artística com um lugar e um papel social, estabelecidos
historicamente. É um modo de manifestação artística que tem no espaço público o
seu lugar e com o qual guarda relações especiais. Vale lembrar que o próprio Sitte
lamentava a perda causada pela retirada da obra de arte de seu lugar original, ao
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comentar sobre as agruras do “David” de Michelangelo (SITTE, 1992, p.53),
removido da Piazza dela Signoria para Galeria dell’Accademia em 1873. A arte
pública supõe sua plena acessibilidade e está numa relação dinâmica com o
entorno, com o qual interage e interfere ativamente para a construção da
paisagem local.
Finalmente, é importante considerar também o aspecto da condição
urbana da arte. Não haveria a arte se não houvesse a cidade, é o que postula
Argan. A arte é fenômeno urbano, podemos falar em arte urbana. Valemo-nos da
afirmação de Vera Pallamin, para quem:
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O segundo é dado pelas elaborações de Giulio Carlo Argan, historiador,
professor e notório militante das questões artísticas, arquitetônicas e urbanísticas
do século XX, para quem “arte” e “cidade” são termos cujos significados se
cruzam e se fundem no tempo. Em História da arte como historia da cidade, o
autor reflete sobre a condição da arte numa cidade submetida à lógica do
consumo, transformada ela mesma em suporte de comunicação instantânea e
ininterrupta. Resignificada por suas dimensões inéditas, que colocam em cheque a
própria ideia de cidade. Constitui-se o contexto de uma nova crise da cidade que
corresponde e coincide com a crise da arte apontada pelo autor.
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A obra de Camillo Sitte irá influenciar o urbanismo europeu até as
primeiras décadas do século XX, bem como o urbanismo americano e mesmo o
soviético até 1920. No Brasil, conforme aponta Carlos Roberto Monteiro de
Andrade (SITTE, 1992, p.5), é nítida sua influência no trabalho do engenheiro
Francisco Saturnino de Brito, autor de diversos planos urbanos para cidades
brasileiras elaborados nas três primeiras décadas do século passado, com
destaque para as proposições urbanísticas para o município de Santos.
Sitte é um observador em tempo real do desmantelamento dos valores
tradicionais da sociedade vienense, fenômeno que se reflete na cidade então sob
o impacto de profundas mudanças políticas, sociais e econômicas. Ao grid
avassalador imposto pelas necessidades da idade industrial, Sitte contrapõe e
defende a importância fundamental de sua dimensão artística da cidade e dos
princípios artísticos que devem nortear o ato de projetar as cidades.
Tais princípios buscam estabelecer relações harmônicas e
artisticamente sensíveis entre os diversos elementos que compõe a cena urbana.
A disposição dos monumentos, a definição das praças e dos edifícios que as
conformam, a formação de conjuntos urbanos coesos, determinados por padrões
estéticos, a incorporação dos elementos preexistentes naturais ou históricos e o
uso de retas ou curvas no desenho do traçado urbano, concorrem para a
constituição de um ambiente urbano dotado de qualidades artísticas fundamentais
para a formação do indivíduo.
As “cidades antigas” são as referências de Sitte, que propõe uma
reinterpretação dos elementos vernaculares característicos das cidades da Idade
Média, da Renascença e do Barroco, para articulá-los à então nascente cidade
moderna.
15
2.3.1. Camillo Sitte: o homem e a Viena fin de siècle
16
lançamento do Plano da Ringstrasse, do qual será ao lado de Adolf Loos2, mas
trincheiras diferentes, um crítico permanente.
2
Adolf Loos (Brno, 1870 – Kalksburg/Viena, 1933). Foi protagonista pioneiro da arquitetura
moderna. Sob influência de Louis Sullivan, o autor de “Crime e Ornamento” via na decoração das superfícies
uma manifestação cultural primitiva e infantilista.
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Foi sob o controle da espada que se lançou uma política cultural pós-
revolucionária, por meio de construções monumentais que logo
caracterizariam todo o Anel, mesmo quando o exército bloqueou as
reivindicações civis para usar o precioso espaço da esplanada para tais
propósitos (SCHORSKE 1996, p. 126).
18
Figura 3. Plano da Votivkirche, desenho de Camillo Sitte,
in A construção das cidades segundo seus princípios
artísticos
Fonte :
http://farm9.staticflickr.com/8337/8174710530_1fae1748ea_c.jpg
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A construção da Ringstrasse espacializa as relações políticas entre as
forças sociais e institucionais vigentes ou em ascensão. Materializa-se num
acordo que concebe suas manifestações arquitetônicas públicas em termos de
estilos históricos, e valoriza o aspecto da localização dos edifícios numa disputa
entre “a corte restaurada, a aristocracia, as forças militares e a igreja, de u34m
lado, e a burguesia liberal de outro.” Serviram-se todos de um “vocabulário
arquitetônico simbólico baseado nas culturas históricas do passado – clássica
medieval, renascentista e barroca”, resultando num “arranjo de prédios
executados em estilos históricos anteriormente conflituosos como partes do
espaço capital unificador mais amplo” (SCHORSKE, 1996, p.21).
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2.3.3. Sitte e a mudança do paradigma de cidade
A nostalgia com que Camillo Sitte inicia seu texto registra um tempo
que não existe mais. Vivia-se um ponto de inflexão social, econômica e cultural do
processo civilizatório, marcado pelo advento da indústria, da produção em massa
e dos ganhos de escala. "Demorar-se! Caso pudéssemos fazê-lo mais amiúde
nesta ou naquela praça, cuja beleza não nos cansamos de admirar, decerto
suportaríamos com o coração mais leve os momentos difíceis, e seguiríamos
fortalecidos na eterna peleja da vida" (SITTE, 1992, p. 14) .
Agora o tempo está em questão. Ao tempo humano compassado,
necessário para deslocar-se de um ponto a outro, determinado pelo tamanho e
pelo ritmo dos passos que definiam as ações do homem, e ao tempo que
acumulava experiência e história, contrapõe-se o tempo moderno, caracterizado
pela velocidade, pelo encurtamento das distâncias, pela fugacidade dos fatos e
pelo menor tempo possível para tudo o que se deve fazer. É o que o modo
moderno de ser está a exigir.
Esse é o ponto de partida de Sitte, o tempo impresso na cidade antiga
que se realiza através dele, e constitui o arcabouço de memória e referência do
homem. "Dificilmente (se) contestaria tal suposição da forte influência do meio
externo sobre o espírito humano" (SITTE, 1992, p. 14).
3
SITTE, 1992, p. 14.
21
Sitte nos remete a Aristóteles “(...) que resume os princípios da
construção urbana ao dizer que uma cidade deve ser construída para tornar o
homem ao mesmo tempo mais seguro e feliz" (SITTE, 1992, p. 14).
Não basta que a construção da cidade seja pautada apenas pela
técnica e pelo utilitário, deve haver lugar também para a representação do
processo civilizatório com base na sensibilidade estética e artística. Aqui, Sitte
contrasta as cidades da Antiguidade, da Idade Média, da Renascença, "em toda
parte onde as artes receberam a atenção merecida" (SITTE, 1992, p. 15), com
aquela do "nosso século matemático" em que "os conjuntos urbanos e a expansão
das cidades se tornaram uma questão quase puramente técnica" (SITTE, 1992, p.
15).
Mas, se o empenho do autor é resgatar à dimensão artística da cidade
o devido valor, há a ressalva de não haver a intenção de “lamentar a proverbial
monotonia dos conjuntos urbanos modernos, condenar isso ou aquilo, ou crucificar
tudo o que já foi realizado em nosso tempo dentro desse âmbito” (SITTE, 1992, p.
15).
Sitte parece querer conciliar sua posição com a realidade inexorável,
que o permita proceder de forma isenta a uma “análise sob um aspecto puramente
técnico-artístico” das cidades antigas e das modernas, assim como tentar “uma
saída para nos libertar do sistema moderno de blocos de edifícios e, a medida do
possível, para nos resgatar da tendência ao aniquilamento das belas cidades
antigas, ao mesmo tempo permitindo o florescimento de uma produção
equivalente à dos mestres antigos” (SITTE, 1992, p. 15).
22
ecos do aforismo nº 27 de Ruskin: “A Arquitetura deve ser feita histórica e
preservada como tal” (RUSKIN, 2008, p. 55), o que parece fazer do crítico e
ensaísta inglês, teórico defensor pioneiro da preservação, sua clara referência.
Em As sete lâmpadas da arquitetura, na lâmpada dedicada à memória,
Ruskin (2008, p. 35) postula que “(...) a Arquitetura deve ser considerada com a
maior seriedade. Nós podemos viver sem ela, e orar sem ela, mas não podemos
rememorar sem ela.”
Insinua-se aqui um valor que será mais tarde formulado por Riegl: o
valor de rememoração. Segundo Ruskin:
E ainda:
E se de fato houver algum proveito em nosso conhecimento do passado,
ou alguma alegria na ideia de sermos lembrados no futuro, (...) há dois
deveres em relação à nossa arquitetura nacional cuja importância é
impossível superestimar: o primeiro, tornar a arquitetura atual, histórica; e
o segundo, preservar, como a mais preciosa de todas as heranças,
aquela das épocas passadas (RUSKIN, 2008, p. 55).
23
legado do passado” tornando-a uma questão cultural. Tal ideia, assimilada por
Sitte, manifesta-se numa arquitetura que até a Revolução Industrial “era feita para
durar gerações”, pautada pela busca da permanência; e que depois desse
processo transformador, de ruptura, torna tal perspectiva menos relevante. Ruskin
irá denunciar:
(...) essas lastimáveis concreções de cal e argila que brotam,
precocemente emboloradas, dos campos comprimidos em volta de nossa
capital (...) sinais de um grande e crescente espírito de
descontentamento popular, (...) e que a vida passada de cada homem é
seu objeto de desprezo habitual; quando os homens constroem na
esperança de abandonar os lugares que construíram, e vivem na
esperança de esquecer os anos que tiveram (RUSKIN, 2008, p. 57).
24
Comparece nos dois autores o traço comum da consciência do valor da
cultura e dos processos históricos que a constroem, representados pelos bens
patrimoniais materiais e imateriais. Ambos, historiador e crítico, compartilham de
uma mesma circunstância, a mudança dos paradigmas culturais como
consequência de uma revolução técnica, cientifica e social transformadora e, em
alguns casos, devastadora.
Sitte compreende o significado e as consequências de tais
transformações, e irá buscar, como “criatura mortal e instável”, assegurar uma
estabilidade supostamente garantida pelos princípios historicamente acumulados
e culturalmente consagrados na arte de construir cidades. Preservar a memória da
civilização pelos seus monumentos artísticos parece de alguma forma garantir o
porvir. Talvez se possa perceber em Sitte que a ideia de uma memória do futuro.
Como se dá, entretanto, este processo de valorização dos
monumentos? O que de fato nos representa no mundo dos artefatos? Como
discernir sobre o que é representativo e deve ser preservado?
Caberá a Alois Riegl elaborar o desenvolvimento teórico sobre a
questão. Viena servirá mais uma vez de laboratório para um pensador da cultura
que entende a necessidade de pensar as coisas em si, e de compreender a
natureza das relações que estabelecemos com os artefatos que produzimos.
25
2.3.5. Sitte, Riegl e a questão dos valores a preservar
26
da “destruição progressista a serviço da inovação cultural” (CHOAY apud RIEGL,
1984, p. 8). Choay registra que, na Europa dos anos 1850, “a evisceração das
cidades antigas destrói, em beneficio de uma arquitetura que se pretendia virgem
de referências históricas, edifícios prestigiosos e tecidos urbanos intersticiais,
marcos consagrados pelos séculos” (CHOAY apud RIEGL, 1984, p. 9).
A propósito da ideia de Le Corbusier de soterrar o bairro antigo do
Marais e a maior parte da velha Paris sob arranha-céus de 220 m de altura -
proposta que alguns argumentam que seria apenas uma provocação, e da
demolição dos pavilhões de Baltard (Le Halles) na década de setenta, Choay
pergunta sobre o sentido da conservação dos monumentos antigos, e sobre o
papel que poderiam ou deveriam exercer nas sociedades atuais. Vale lembrar que
se o processo de transformação das cidades ocorreu de forma inexorável e muitas
vezes irrefletida, a ele correspondeu o desenvolvimento de um conjunto de
doutrinas de salvaguarda dos monumentos históricos, que por vezes levou a
posturas conservacionistas dogmáticas. Tais posturas, contestadas ao longo do
tempo, “no quadro das novas políticas de reabilitação e participação dos usuários”,
colocaram a questão da preservação do patrimônio em novo patamar, no qual o
papel da participação social tem novo peso.
De modo inovador, Riegl distancia-se da coisa-em-si, busca observar
os fatos artísticos com isenção e construir “um inventário dos valores não ditos e
dos significados não explicitados subjacentes ao conceito de monumento
histórico” (CHOAY apud RIEGL, 1984, p. 17). O que implica dizer que os valores e
os significados evocados pelos monumentos nos grupos sociais passam a ser
reconhecidos.
Destarte, Riegl rejeita um código preestabelecido do que deva ser a
arte e suas manifestações. Seu modelo de apreciação do fato artístico parece ter
muito do método científico cartesiano, em que o objeto de estudo é repartido em
fragmentos definidos que são para analisados separadamente, e depois
recompostos num mosaico articulado que permitirá o juízo, o discernimento e o
estabelecimento de critérios objetivos do que se deva ou não preservar.
27
É curioso como Riegl, assim como seu contemporâneo Sigmund Freud
(que nasce apenas dois anos antes), percorrem caminhos aparentemente
paralelos quanto à percepção da existência de relações e significados ocultos ou
latentes, na mente como nas manifestações artísticas e construtivas humanas,
ambos reconfigurando o modo de pensar o homem moderno e suas
manifestações, num contexto de profunda crise das instituições sociais e políticas,
e de seus respectivos espaços.
Segundo Choay, em Riegl “o dilema destruição/conservação não
comporta jamais uma solução – justa e verdadeira –, mas soluções alternativas,
de pertinência relativa.” Choay destaca que Le culte moderne des monuments –
Son essence et sa gênese nos convida a uma meditação sobre a nossa
sociedade, em que o monumento histórico, com o cotejo de instituições e pessoas
que o celebram, com seus ritos e mitos, “não é mais apenas um modo inocente de
autopreservação.”
O interesse dessa observação, renovado nestes dias em que a
dimensão artística do urbanismo parece restrita apenas à eventual eleição de
certos elementos urbanos históricos, reside no fato de que Arte supõe a
representação não apenas de si mesma, mas da própria condição humana num
dado momento histórico. Há, na manifestação artística, a intenção de comunicar
algo, o que faz dela um fenômeno de comunicação que possibilita o contato e
relação entre autor e público, a estabelecer vínculos de natureza identitária.
A partir de uma perspectiva histórica, o modelo de valores proposto por
Riegl interpreta o modo pelo qual nos relacionamos com os monumentos, o que
neles valorizamos e como o fazemos, com a premissa de que seu valor existe
porque somos nós que o atribuímos.
Os conceitos trabalhados por Riegl tais como arte, rememoração,
historicidade, antiguidade e contemporaneidade, estão presentes, ainda que de
forma não sistematizada, no pensamento de Sitte. A análise de Sitte dos
monumentos, praças e conjunto de edifícios baseia-se na espacialidade e nos
aspectos plásticos de cada elemento, mas sempre em relação aos valores que
28
representam: valor de arte, valor de memória construtiva, valor de representação,
valor de referência. A leitura sistemática de inúmeros espaços, especialmente
praças, revela os diversos valores artísticos e históricos acumulados ao longo do
tempo, que Sitte contrapõe às transformações urbanas em curso.
Ao observá-las, Riegl reconhecerá, no lugar de um valor artístico
absoluto, um valor relativo, constatando que não há mais lugar para a ideia
canônica da arte uma vez que o valor artístico é uma atribuição conferida num
certo momento, numa dada circunstância histórica, o que define ao longo do
tempo um processo de desenvolvimento evolutivo da noção de valor.
Quanto ao conteúdo simbólico atribuído aos monumentos, Sitte aponta,
sem o formular expressamente, para um valor outro que aquele intencionalmente
convocado (o símbolo nacional, o herói), qual seja um valor artístico
historicamente conferido. É sobre essa ideia de valor que Sitte constrói sua
imagem de cidade, relativizando o monumento histórico ao seu tempo,
historicizando-o nos termos que Argan fará depois, como veremos.
Ao buscar identificar os valores permanentes de que as cidades antigas
são portadoras e a eternização desses mesmos valores pela preservação dos
monumentos, Sitte aponta para aquilo que será posteriormente definido por Riegl
como valor de rememoração intencional, a exigir do monumento “a imortalidade, o
eterno presente, a perenidade do estado original”. Ideia que remete à busca do
presente eternizado através de uma imagem imune ao tempo e seus efeitos.
O valor de rememoração intencional, por sua vez, é próximo aos
valores de contemporaneidade que segundo Riegl podem ser de dois tipos: o valor
de uso prático, que responde pelas necessidades materiais do homem e diz
respeito às condições materiais de utilização prática dos monumentos; e o valor
de arte – que pode ser relativo ou de novidade – que atende às necessidades
espirituais.
Em especial, o valor de arte relativo, definido segundo a formulação
teórica da kunstwollen de Riegl, seria a capacidade que o monumento antigo
mantém de sensibilizar o homem moderno a despeito de sua aparência não
29
moderna, tornando-o capaz de satisfazer uma vontade artística moderna ainda
que criado segundo uma kunstwollen4 diferente da nossa. É possível perceber em
Sitte a ideia de que existe uma vontade artística inerente, própria a cada período
histórico e que permanece ativa e significativa ao longo do tempo, que transcende
sua condição temporal, sendo capaz de suprir a necessidade espiritual do homem
moderno e por isso mesmo devendo de ser preservada através dos monumentos.
É o que justifica a apaixonada defesa que Sitte faz dos monumentos como
elementos capazes de sensibilizar o cidadão moderno quanto ao seu lugar no
mundo hoje, a partir da experiência cotidiana da memória do passado dos
espaços públicos da cidade e de seus monumentos.
Passado e presente, antigo e contemporâneo, conceitos e situações
idealizadas e concretas, superadas ou em processo, permanente e transitório:
estas, as marcas de um tempo matizado por transformações profundas, em que a
busca da imortalidade pela permanência eterna dos monumentos expõe o
reconhecimento da morte em curso de um modo de vida e de um sistema de
valores.
Para Carl Schorske, “Sitte situava-se como um defensor do lado
artístico, contra o que considerava um planejamento espacial frio, adaptado ao
fluxo do tráfego. Aceitando o estilo histórico na arquitetura, com toda sua
capacidade de significação simbólica, ele defendia o renascimento do projeto
histórico também para o espaço urbano, com ênfase nas praças, em vez de nas
ruas dominadas pelos veículos, tal como acontecia no projeto da Ringstrasse. (...)
A praça era para ele a forma urbana que poderia gerar e sustentar a comunidade,
restaurar o sentimento de pertencer a uma polis que a febril cultura comercial
moderna estava matando” (SCHORSKE, 2000, p. 181).
4
Termo que expressa um “movimento dinâmico o qual, distintamente das formas de desejo
expressas na religião, nas leis e na política, estava unicamente dirigido para o ordenamento artístico do
mundo perceptual.” (HATT e KLONK, 2006, p. 82).
30
Ao levantar minuciosamente as praças de cidades europeias
“consideradas significativas do ponto de vista da qualidade estética”, sua obra
constitui um conjunto de princípios artísticos que regem estes ambientes urbanos,
não se tratando, vale notar, de simplesmente “(...) retomar o modo de construir do
passado, mas de alguma maneira, diante das novas necessidades advindas com
o progresso, reter como lições a lógica espacial daqueles espaços públicos"
(SCHORSKE, 2000, p. 181).
31
disponibilidade de informação que transforma o mundo em mera notícia, a
hipervalorização do ego.
Não há mera coincidência entre as duas crises, que, na verdade,
talvez sejam apenas a mesma crise, uma vez que a arte é, por definição, um
fenômeno típico do meio urbano.
Argan parte da premissa de que é necessário historicizar um objeto
de arte, isto é, colocá-lo em perspectiva histórica, para que ele possa ser
reconhecido como tal. Neste processo, é determinante a relação entre sujeito e
objeto, assim como entre sujeito e cultura. O posicionamento histórico do objeto
permitirá ao sujeito, a apreensão do processo histórico cultural ao qual pertencem
sujeito e objeto, cujo lugar de origem e destino é a cidade.
Desta maneira, não há, para o autor, a obra de arte
descontextualizada, isolada. Argan reitera, a cada momento, os aspectos
relacionais, contextuais e coletivos que originam, caracterizam e legitimam a obra
de arte, demolindo assim o mito do artista divinamente aquinhoado com um dom
especial, inacessível aos demais. O artista não está sozinho e não existe sozinho,
precisa da sociedade e da cultura para existir. E, se o artista não pode prescindir
se seu contexto histórico, social e cultural para existir, o mesmo valerá para a arte.
Para Argan, a ideia da separação da arte do contexto cultural das demais
atividades humanas implica uma crise da arte, já que ela não pode existir fora do
contexto que a gerou.
Tal separação talvez esteja implícita no processo de transformação
da cidade moderna, pois se não podemos ignorar ou prescindir da técnica e das
infraestruturas na definição do ambiente urbano moderno contemporâneo, a
predominância absoluta destas acabou por determinar um lugar subalterno senão
inexistente da arte no contexto da cidade moderna.
Neste sentido, são fundamentais para este trabalho as
considerações que o autor fará à arte como fato urbano e à cidade como fato
artístico; quanto à dimensão criativa inerente à ideia de projeto quanto à dimensão
da realidade concernente à sua concreção; quanto às questões do sublime e do
32
fugaz; e quanto ao sagrado e ao profano, tendo a cidade como lugar ou como não
lugar deste permanente embate entre o inferno do presente perpétuo – é possível
a condição a-histórica? - e a memória como condição do devir, uma possibilidade
de futuro.
33
correntes artísticas não subservientes à propaganda do regime e, durante a
guerra, dedica-se ao salvamento e transferência para o Vaticano das mais
importantes obras de arte italianas, recolhidas em todo o território italiano.
No pós-guerra, defende e divulga a arte abstrata e a arquitetura
moderna com livros sobre as obras de Henry Moore (1948); Walter Gropius e a
Bauhaus (1951); a escultura de Picasso (1953); e Pier Luigi Nervi (1955). Ocupa-
se ainda de urbanismo, museologia, design, relação arte-técnica e da função
educativa da arte, e colabora ainda com inúmeras revistas como L’immagine, de
Cesare Brei, e L’Architettura, de Bruno Zevi.
Em 1955, inicia atividade didática universitária em Palermo e, em 1959,
em Roma. Ainda em 1958 entra para o Conselho Superior de Antiguidades e
Belas Artes onde atuará em várias seções, até a instituição do Ministério de Bens
Culturais, em 1974.
Nos anos 1960, ocupa lugar de destaque no debate sobre o
desenvolvimento das correntes mais modernas da arte – a arte povera, a pop art,
a gestaltart, que resultou na elaboração da tese sobre a morte da arte, que é a
crise irreversível do sistema da arte tradicional na sociedade industrial e
capitalista.
De 1976 a 1979, é eleito prefeito de Roma pela Esquerda Independente
e, em 1983, elege-se senador pelo Partido Comunista Italiano por duas
legislaturas. Em 1992, o Partido Democrático da Esquerda o comissiona como
“ministro” dos bens culturais e bens culturais no assim chamado “governo
sombra”.
34
atuação de grupos de extrema esquerda de orientação maoísta e pela prática do
terrorismo. À prisão de Renato Curcio, líder das Brigadas Vermelhas, em 1974, o
grupo responde com o sequestro e a morte de Aldo Moro, primeiro ministro da
Itália e líder histórico da Democracia Cristã Italiana.
A violência programática dos grupos políticos terroristas procurava
combater o evidente avanço das práticas neoliberais, caracterizadas entre outros
aspectos pela redução dos gastos públicos e pela desregulamentação das leis
econômicas e trabalhistas.
Na prática, isto representou o desmonte do welfare state, política de
bem-estar social baseada no amplo provimento pelo Estado de educação, saúde,
saneamento e habitação aos povos de maneira geral, no âmbito particular de uma
Europa destruída pela Segunda Grande Guerra.
São emblemáticas as palavras de Giovanni Agnelli – presidente da
FIAT - em entrevista à revista L’Expresso em 1972:
35
Outro aspecto que marca o período é o forte crescimento das cidades
italianas. Após o fim da Segunda Grande Guerra, os esforços pela reconstrução
de uma Europa destruída pelo conflito resultaram num período de grande
crescimento econômico, que implicou num intenso processo de urbanização: entre
1951 e 1961, a população de Milão cresce 25%; Roma, 30%; e Turim, 43%. A
emigração é significativa, com a transferência em massa da população do sul do
país para o norte, atraída pelos novos empregos gerados pelo crescimento
industrial (UNIA, 2011).
As áreas periféricas da capital, ainda livres de ocupação, eram
caracterizadas por espaços abertos e vegetados de propriedade privada, parte
dos quais foram vendidos à administração pública, em troca da autorização aos
proprietários de construir na maior parte das áreas remanescentes. Extensas
áreas da paisagem rural de Roma foram transformadas “para dar lugar a
loteamentos que arrasaram ruínas, pontes e aquedutos. Arrasados um pedaço
depois do outro, dia após dia, debaixo dos olhos de todos, sem qualquer
intervenção de parte das autoridades” (LUPO 2008, p. 57).
A consequência desta espécie de laissez faire do uso e ocupação das
áreas de expansão urbana de Roma, foi o desequilíbrio “na previsão de expansão
da cidade. (...) Novos quarteirões surgiram muito longe do centro, repetindo pela
enésima vez, o erro de isolar e guetizar núcleos habitacionais” (LUPO 2008, p.
57). Os romanos foram apresentados à “inconveniência do movimento pendular,
dificultado pela inadequação do transporte público”, sendo que “o único incentivo
destes anos foi o encorajamento ao transporte privado, como por exemplo, a onda
verde (dos semáforos) e os grandes estacionamentos perto do centro histórico”
(LUPO 2008, p. 58).
O registro desses fatos busca contextualizar a Roma que Argan
encontra como prefeito, e a defesa incondicional do bem patrimonial que marcou
sua legislatura, num quadro de devastação de monumentos e paisagens. São
compreensíveis as muitas alusões em seus textos às tristes periferias construídas
da cidade, anômicas, destituídas de significado e identidade, e também à
36
importância por ele atribuída à fundamental questão da participação do cidadão
nas decisões que envolvem seu futuro e de seus descendentes, aspectos
inseparáveis da vida na cidade.
É importante destacar a coerência que fez convergir o teórico e
intelectual, e o político situado à esquerda do espectro político italiano, que não
impediu o exercício da crítica. Em tempos de fascismo, Argan recusou a
manipulação da arte pela ordem política, defendendo e divulgando as obras dos
arquitetos e artistas modernos.
Mas tal postura não significou aceitação inconteste das posições
modernistas. No urbanismo, é patente a crítica que Argan empreende ao assimilar
correntes de pensamento outras que não as dogmáticas posições modernas. A
crítica que faz a Gropius, a quem não obstante respeita de forma clara, estende-se
ao movimento moderno de forma geral e refere-se à postura ideológica dogmática
predominante, que determinou a atuação de arquitetos e urbanistas vinculados ao
movimento.
O ponto central da questão levantada por Argan é a da participação do
cidadão como elemento fundamental da base da construção do lugar do homem
no mundo. Sendo a cidade o lugar das manifestações artísticas portadoras do
significado da existência humana no mundo, não é possível admitir uma única
orientação e, por única, redutora abordagem formal restrita a um repertório de
poucas soluções formais padronizadas. Trata-se em verdade de uma questão de
natureza política, em que se discute a forma pela qual se dá a representação do
homem no contexto político e social.
Em Arquitetura e cultura (1980), Argan justifica a razão pela qual um:
racionalismo arquitetônico se apresentasse como rígida anticonografia,
visando reduzir a arquitetura ao grau zero de linguagem, onde se
reafirmava uma inalienável racionalidade de fundo, quase uma moral
geométrica, mas excluíam-se, com o dogmatismo formal do classicismo,
todas as possíveis morfologias, tipologias, sintaxes e estilísticas da
arquitetura (ARGAN, 1992, p. 247).
37
reivindicar apenas o fim das “prescrições e censuras” que o classicismo impunha e
que arquitetura moderna, justamente, negou. A liberdade conquistada deveria ir
além de uma nova possibilidade criativa, promovendo a partir desta “necessária e
profunda renovação das metodologias de projeto” (ARGAN, 1992, p. 247), pela
remoção da “axialidade ideológica da pesquisa urbanística” o que é algo “sem
duvida, legítimo e necessário” (ARGAN, 1992, p. 219). Oportunamente, o autor
ressalva que as transformações necessárias – “a revolução social” – devem
ocorrer no campo político, sem delegação de qualquer espécie e a quem quer que
seja.
38
Figura 8. Broadway Boogie-Woogie, Piet Mondrian, 1942-3
Fonte http://www.artchive.com/artchive/m/mondrian/broadway.jpg.html
39
itinerários e trajetórias diferentes para cada indivíduo, é constelada por
uma infinidade de pontos intensamente coloridos, que representam
infinitas coisas ou, talvez, as pessoas que no vertiginoso espaço
citadino, retém o olhar (ARGAN, 1992, p. 277).
40
cruzamentos; pontos intensamente coloridos como marcos, e o olhar retido pelo
espaço citadino.
A pesquisa de Lynch, com base em três cidades americanas – Boston,
New Jersey e Los Angeles, buscou conhecer como as pessoas percebiam,
apreendiam e organizavam mentalmente os espaços nas cidades em que viviam.
Os resultados revelaram o léxico básico de elementos urbanos percebidos pelos
entrevistados, e a sintaxe coletiva que resulta numa imagem de cidade
comumente percebida.
O léxico revelado pela pesquisa compõe-se das vias, que “para a maior
parte dos entrevistados (...) constituíam os elementos predominantes”; dos limites,
“elementos lineares não entendidos como ruas (...) são normalmente, mas nem
sempre, fronteira entre duas áreas”; dos bairros, “áreas citadinas relativamente
grandes que o observador pode penetrar mentalmente, e que tem alguns aspectos
comuns”; dos marcos, “pontos de referência considerados exteriores ao
observador (...) (cuja) característica chave é a originalidade, um aspecto que é
memorável ou único no contexto”; e dos cruzamentos, “pontos estratégicos nos
quais o observador pode entrar, típicas junções de vias ou concentrações de
alguma característica” (LYNCH, 1979, p.60-62).
Os elementos deste léxico, “matéria prima do meio ambiente à escala
urbana”, são articulados mentalmente pelos habitantes da cidade, que a revelam
como uma imagem resultante de uma sintaxe específica. Está colocada a
possibilidade de um novo paradigma para o urbanismo, calcado na experiência
individual e na ideia da cidade como uma construção social coletiva, em que a
percepção, a consciência e a participação do homem cidadão concorrem para a
formação da identidade de um lugar a partir de uma linguagem comum. “Parece
haver uma imagem pública de qualquer cidade, que é a sobreposição de imagens
de muitos indivíduos” (LYNCH, 1979, p. 57).
Há, em Argan e em Lynch, a ideia da cidade como algo que se lê. Em
Argan, “a função urbana (...) pode ser facilmente comparada a um discurso, com
sua concatenação linear. O que chamamos de espaço visual, (...) é feito de
41
relações associativas e constitui aquele tesouro interior que é o pensamento da
cidade”, havendo aqui referência expressa à Saussure5 (ARGAN, 1992, p. 238).
Lynch, por sua vez, propôs compreender a cidade “como uma página impressa,
que é apreendida visualmente como um modelo análogo de símbolos
identificáveis”, afirmando que a “a legibilidade é crucial para o cenário urbano”
(LYNCH, 1979, p. 12). Trata-se, para Argan, de uma analogia entre o fenômeno
da estruturação do espaço urbano e o fenômeno da estruturação da linguagem. “A
configuração urbana, enfim, não seria mais do que o equivalente visual da língua,
(...) os fatos arquitetônicos estão para o sistema urbano assim como a palavra
está para a língua" (ARGAN, 1992, p. 238).
5
Ferdinand de Saussure (1875-1913), linguista e filósofo suíço, cujos estudos contribuíram para a
autonomia da disciplina da linguística e tiveram grande influência no campo do estudo da literatura e dos
estudos sobre a cultura.
42
Como observa Bernardo Secchi, o urbanismo é também uma narrativa,
que em Lynch se humaniza ao afirmar a cidade como o “o lugar das experiências
humanas, coletivas” e como aquilo que “se constitui também das dinâmicas e
processos (humanos)”.
Desta forma, Lynch renega qualquer posição totalitária ao reconhecer
a primazia da percepção que temos da cidade, e a natureza fragmentária e
diversificada inerente a esta forma de compreender a cidade, pois não há apenas
um indivíduo – ou, vale dizer, apenas um pequeno e seleto grupo – capaz de
perceber o mundo a sua volta, mas uma sociedade que interage num espaço
coletivo. A cidade “é o produto de muitos construtores” (LYNCH, 1979, p.12),
fenômeno de construção coletiva.
Por sua vez, é Argan que pergunta: “Mas, como essa interpretação
individual do espaço urbano pode interessar ao urbanismo?”, mencionando os
métodos de pesquisa Gallup6 e a sondagem Kinsey7 quanto às suas colaborações
para o conhecimento do “comportamento citadino dos homens e mulheres de
nossa época” (ARGAN, 1979, p. 233).
O autor, observando que a análise sociológica não pode prescindir da
análise psicológica, valoriza a experiência individual como premissa, isto é, “o
estudo da experiência urbana individual é o princípio de qualquer pesquisa sobre
os modos de vida urbana de uma sociedade real”. E convoca o urbanismo à
realidade, uma vez que o campo de pesquisa delimitado pelo urbanismo “não
pode ser a cidade ideal feita de uma sociedade ideal para indivíduos ideais”
(ARGAN, 1992, p. 233).
Argan cita Marcilio Ficino para apontar que “a cidade não é feita de
pedras, mas de homens.” São eles que atribuem valor às pedras, e “todos os
homens, não apenas os arqueólogos e os literatos” (ARGAN, 1992, p. 228). A
6
Referência à metodologia de pesquisa com base em sondagem de opinião desenvolvida por
George Gallup, nos Estados Unidos. Gallup previu a vitória de Roosevelt nas eleições para a presidência
norte-americana de 1930.
7
Referência a Alfred Kinsey, graduado em psicologia e biologia, criador da disciplina de sexologia,
publicou em 1948 uma pesquisa pioneira sobre sexualidade masculina, conhecida como Relatório Kinsey.
43
questão de atribuição de valor, tema elaborado pioneiramente por Riegl, é
remetida à cidade e “é o que lhe é atribuído por toda a comunidade”, numa
reiteração da importância da participação do cidadão as decisões sobre a cidade e
da política como elemento estrutural do urbanismo.
44
e com outros objetos. E, finalmente, deve haver um significado, seja prático ou
funcional.
A pesquisa revela também as qualidades que a imagem ambiental
construída deve apresentar para que tenha valor como “orientação no espaço
ocupado pelas pessoas”: deve ser suficiente; pragmaticamente verdadeira, de
modo a permitir a atuação do indivíduo em seu ambiente “na medida de suas
necessidades”; deve ser clara e econômica em termos de esforço mental; e deve
“conter espaços em branco nos quais ele possa ampliar pessoalmente o desenho”
(LYNCH, 1979, p.19).
A partir dos conceitos de identidade e estrutura e das qualidades
associadas de suficiência, realidade, economia, e alguma imponderabilidade como
espaço de expansão individual, Lynch elabora o conceito-síntese de
imaginabilidade.
A imaginabilidade atenderia à "necessidade de identidade e estrutura
em nosso mundo perceptivo”, permitindo a um observador familiarizado (pré-
requisito), o contato e a absorção de novos fatos urbanos sem ruptura da imagem
básica, sem a interrupção de ligações ou relações com os elementos
preexistentes. A cidade poderia ser apreendida, com o passar do tempo, “como
um modelo de alta continuidade com muitas partes distintas claramente
interligadas” (LYNCH, 1979, p. 20).
É absolutamente atual a posição de Lynch, considerando as
transformações em larga escala que ocorrem no ambiente físico, uma vez que
hoje “do ponto de vista técnico, podemos criar paisagens completamente novas
em breve espaço de tempo”, o que inclui “uma nova unidade funcional – a região
metropolitana – para a qual deveria corresponder também uma imagem
ambiental”. Citando Suzane Langer: “É o ambiente total tornado visível” (LYNCH,
1979, p. 23).
Para Lynch, a imaginabilidade é chave para compreender e lidar
ativamente com o meio em que se vive, sendo a cidade imaginável aquela que
nos evoca imagens fortes e duradouras, em que forma, cor, disposição, volumetria
45
e localização contribuem para a produção de imagens mentais identificadas,
estruturadas e “altamente uteis no meio ambiente” (LYNCH, 1979, p. 20).
46
que, como terraços, permitem
a apreensão de seu todo a
partir de várias visadas
diferentes.
Florença “situa-se
ao longo do rio Arno, de tal
modo que o panorama da
cidade é quase sempre
alternado com o das colinas.”
No centro da cidade “ergue-se
a enorme e inconfundível
catedral da cidade, o Duomo,
ladeada pelas torres de sinos
de Giotto, que constitui um
Figura 10. Florença, Rio Arno.
Fonte http://www.panoramio.com/photo/42791946 ponto de orientação visível de
todos os pontos da cidade e
ainda a quilômetros de distancia dela. A catedral é o símbolo da cidade de
Florença.”
47
Figura 11. Vista aérea de Florença.
Fonte: http://www.kingsacademy.com/mhodges/02_The-West-to-1900/08_The-Renaissance/pictures/REBR-074-
5_Florence_aerial-view.jpg
48
Figura 13. Florença, vista aérea.
Fonte: http://i258.photobucket.com/albums/hh245/faizanrashid/Italy/Florence_aerial_2.jpg
49
2.4.4. Argan e Cullen: percepção, flânerie e a construção do lugar
50
visão, sentido humano que “tem o poder de invocar as nossas reminiscências e
experiências, com todo o seu corolário de emoções” (CULLEN, 1983, p. 10).
Cullen, assim como Lynch, busca referências para o pensamento
urbanístico em outros campos do conhecimento. A proposição de uma visão
serial, o primeiro determinante conceitual de Paisagem urbana, guarda relação
com a psicologia das formas, apontando para uma estruturação da imagem na
mente do observador. Esta referência deixa ao observador-fruidor uma parcela do
trabalho de construção de uma ideia – ou imagem – do espaço que o contém.
Mas, do ponto de vista da percepção, o que é espaço? Rudolf Arnheim
elabora duas respostas para a pergunta. A primeira define o espaço como uma
“entidade autônoma, infinita ou finita, um veículo vazio e pronto com a capacidade
de ser preenchido de coisas” (ARNHEIM, 1977, p.10). Seja de modo consciente
ou inconsciente, as pessoas obtém esta noção do mundo como elas o veem. O
espaço é experimentado como um dado que precede os objetos nele contidos,
como um estabelecimento no qual as coisas tomam seu lugar.
Arnheim observa que é necessário que levemos em conta “a maneira
espontânea e universal de ver o mundo” sem o que não será possível “entender a
natureza da arquitetura como um arranjo de edifícios colocados num espaço
contínuo.” Mas esta resposta não é suficiente, pois “este conceito não reflete o
conhecimento da física moderna, nem descreve a maneira pela qual a percepção
do espaço se processa psicologicamente” (ARNHEIM, 1977, p.13).
As elaborações de Arnheim nos permitem contextualizar certas razões
que permeiam os trabalhos de Lynch, Cullen e Argan. Em lugar da ortodoxia
racionalista do pensamento moderno e, mais especificamente, do urbanismo
racionalista moderno, os autores propõem sistemas de pensamento que admitem
a imponderabilidade e a incerteza como fatores relevantes do processo de
elaboração do conceito de espaço urbano, dando nova dimensão à ideia de escala
humana.
Como explica Arnheim, para a ciência da física o espaço é definido pela
extensão dos corpos materiais ou campos que se limitam mutuamente, como uma
51
paisagem de terra e pedras que tangenciam corpos de água e ar. O espaço entre
as coisas materiais é determinado pelas influências mútuas entre elas na medida
que:
a distância pode ser descrita como a quantidade de energia luminosa que
alcança um objeto que vem de um corpo de luz, ou como a força de
atração gravitacional emanada de corpo a outro, ou pelo tempo que uma
coisa leva para viajar de um ponto ao próximo. A não ser pela energia
que o preenche não se pode dizer que o espaço exista (ARNHEIM, 1977,
p.10).
52
da cidade: a sua cor, textura, escala, o seu estilo, a sua natureza, a sua
personalidade e tudo o que individualiza” (CULLEN, 1983, p.11).
Assim como Lynch, Cullen coloca em perspectiva a questão da
participação dos cidadãos ao colocar seu trabalho no âmbito de um jogo, o “Jogo
do Meio-Ambiente, o jogo que se processa continuamente à nossa volta”. O autor
destaca que não fala de “valores absolutos, de beleza, de perfeição, de arte com
“A” maiúsculo, de moral.” O meio ambiente ao qual ele se refere está mais para
uma “conversa amena entre pessoas vulgares falando de coisas simples.” Não há
mais lugar para a posição superior do urbanista a ditar as regras do devir da
cidade. Mas, como declara Cullen, “o objetivo fundamental dos urbanistas
continua a ser a comunicação com o público, não tanto pela via democrática, mas
pela via emocional.”
O autor nos convida a participar de um “jogo” em que o processo de
descoberta do ambiente é central. De certa forma, Cullen parece encarnar uma
espécie de flaneur baudeleriano que perambula em muitos lugares do mundo, e
compõe um léxico urbano que se revela através dos “recintos”, “enclaves”,
“recintos múltiplos”, “espaços intangíveis”, articulados como “paisagem interior e
compartimento exterior”, “compartimentos e recintos exteriores”, “edifícios-
barreira”, “aqui”, “aqui e além”, “desníveis”, entrelaçamentos”, “perspectivas
grandiosas”, “perspectiva delimitada”, deflexões”, “saliências e reentrâncias”,
“acidentes”, “pontuações”.
São conceitos que se desenvolvem por meio de inúmeras imagens:
perspectivas, fotografias, implantações de trechos urbanizados, paisagens
naturais, cenas urbanas, tipos humanos, detalhes, texturas e alguns pouquíssimos
exemplos daquilo que o autor denomina de “nova arte” da paisagem urbana, como
Wall Hall Estate, em Eltham (1915) e Redgrave Road, em Basildon, (1953), dos
quais destaca os atributos que lhes conferem qualidade espacial: “repetição”,
“desníveis”, “exterior”, “interior”, “árvore”, “aqui”, “detrás da sebe”. Há uma
classificação de elementos ambientais, aqui incluídas as formas de sua
apropriação, segundo uma sistematização que “deverá seguramente ser a
53
organização deste campo de modo que os fenômenos possam ser classificados
logicamente num Atlas do ambiente" (CULLEN, 1983, p. 196).
A escassez de exemplos é coerente com o desejo de Cullen de reiterar
que se trata de um jogo cujas regras são estabelecidas por cada um de nós, cujo
convite à participação denota um acento democrático na apropriação do espaço
urbano.
54
3. Capítulo 2: a dimensão artística da cidade
Oh! Sim, as ruas têm alma. Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas
sinistras, ruas nobres, delicadas, depravadas, puras, infames, ruas sem
história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma
cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, speenéticas,
esnobes, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam
sem pinga de sangue...
8
João do Rio
8
JOÃO DO RIO apud MARTINS, 2005, p. 23.
55
assim a imagem de cidade com base em modelos relacionais de escala bastante
controlada, talvez ainda sob o controle de um artista, arquiteto ou urbanista.
Sitte utiliza recortes precisos da paisagem urbana, "em vez das
perspectivas voo de pássaro, ou de plantas de conjunto reunindo dados diversos".
O todo urbano não interessa a Sitte, e os problemas de escala relativos não serão
tratados por ele. Em A construção das cidades segundo seus princípios artísticos
não há uma única imagem “de corpo inteiro” de Viena.
O crítico e historiador vive a polêmica com os construtores da
Ringstrasse da Viena moderna. Vive também sentimentos contraditórios quanto às
possibilidades oferecidas pelo novo contexto: há um Sitte que enaltece os espaços
em escala humana das cidades antigas, e outro que se deixa encantar pela
grandiosidade do Palácio Hofburg e do conjunto de edifícios monumentais em
construção na Heldenplatz do Imperador Francisco José I.
Sitte observa as cidades antigas onde vielas estreitas desembocam em
praças de tamanho proporcional, isto é, estreitas. Mas as novas dimensões
impostas pela cidade em transformação exigem “espaços gigantescos”. E
exemplifica através da Ringstrasse de Viena com 57 m de largura, da Esplanade
de Hamburgo com 50 m e da Av. Campos Elíseos em Paris com 152 m. O autor
observa que “nem mesmo a Piazza San Marco tem essa largura.”
Fica evidente que as novas exigências de mobilidade impõem
modificações estruturais à cidade. O lugar de sociabilização das pessoas na
cidade, para o exercício daquela especial habilidade referida por Bauman (2001),
a civilidade, desloca-se das praças, antes fechadas – característica fundamental
destacada por Sitte – para as praças abertas e vias que, alargadas, agora
concentram os fluxos urbanos vitais da cidade moderna, e polarizam as atividades
principais da cidade antes constritas às praças: da praça do comércio à rua do
comércio, e desta ao eixo comercial.
A produção em escala, um novo fator do mundo moderno, determina
novos parâmetros de vida na cidade a partir das novas relações de trabalho.
Mudam os espaços de uso coletivo, que serão cada vez mais produtivos e
56
funcionais. Transforma-se também o espaço das representações simbólicas,
tomado pela escala monumental.
A defesa das referências tradicionais faz com que Sitte reitere o
“modelo barroco” historicamente consagrado pela cultura europeia. O Barroco
(que vai do séc. XVII a meados do séc. XVIII) que, segundo Kostof (1991), foi um
“prolongamento em escala” do Renascimento. Ainda que negasse suas
proporções “rígidas e imutáveis”, manteve a perspectiva como fundamento da
concepção dos espaços e como instrumento de valorização dos elementos
urbanos, como edifícios, monumentos, praças e vias.
Sitte anota que “Paris foi a (cidade) que menos se distanciou do modelo
barroco.” Como Roma, Paris enfrentou desde muito cedo a condição de metrópole
moderna em função de seu expressivo crescimento, mas ambas tiveram “sua
origem num momento superior no aspecto artístico”, isto é, são cidades cujas
origens remotas lhes garantiram alguns de seus principais aspectos pinturescos, a
despeito do primevo crescimento que sofreram.
Aqui, Sitte trata da questão da escala da cidade que, nos exemplos
utilizados, mesmo transformada em metrópole, preservou a característica mais
importante – a escala – das praças, seus elementos urbanos fundamentais.
Criticando o “moderno sistema de blocos”, mas admitindo sua
inevitabilidade como estratégia de desenvolvimento da metrópole, Sitte investe na
tentativa de nela garantir o lugar da arte, reconhecendo a nova escala que se
impõe aos artistas construtores. Toma por exemplo dois projetos do arquiteto
alemão Gottfried Semper (1803 -1879): o Zwinger de Dresden (não realizado) e o
conjunto de edifícios junto ao Hofburg, palácio originado de um castelo medieval
sucessivamente ampliado e modernizado (mas apenas parcialmente realizado),
que era a principal residência do Imperador Francisco José I.
Ambos os projetos, que se caracterizam especialmente pela escala
gigantesca e pelos programas que supõe tudo o que seria acessível somente às
classes abastadas, são feitos depois da Primavera dos Povos de 1848, podem ser
entendidos como uma manifestação do status quo em reação à agitação política
57
de então, fruto das crises econômicas. A exigência de representatividade dos
extratos médios das sociedades europeias e a defesa do nacionalismo foram
fatores que concorreram para o desmoronamento da ordem política tradicional
baseada nas monarquias absolutistas e nos regimes centralizadores e
autocráticos, tais como aquele vigente no então Império Austro-Húngaro,
dominado pela dinastia do Habsburgos.
A escolha de tais projetos por Sitte chama a atenção. A defesa da manutenção
dos valores representados na cidade medieval-renascentista o conduz à cidade liberal com
sua escala agigantada e seus programas excludentes, e o leva a uma paradoxal defesa da
onipresença e da perenidade de uma forma de poder que estava sendo severamente
questionada, e que viria ser definitivamente derrotada por força de uma ampla articulação
política e social cerca de vinte e cinco anos depois da publicação de A construção das
cidades segundo seus princípios artísticos.
A suntuosidade e a escala monumental dos edifícios, aliadas a rigorosa
simetria imposta por eixos perspécticos do “modelo barroco” que organizam um programa
constituído pelo palácio imperial, por um museu, uma igreja e um teatro, opõem-se às
características mais caras a Sitte das praças das cidades antigas. A praça da cidade
medieval-renascentista, lugar das atividades urbanas cotidianas e espaço da
representação popular, ganhará novo e diverso sentido, passando a ser o lugar das
atividades institucionais e da representação máxima do poder. Não haverá mais o
mercado, assim como o espaço das festas e manifestações populares. A Heldenplatz,
com suas dimensões agigantadas (130 x 240 m), não se destina à reunião do povo, mas
antes à celebração de uma ordem imutável.
58
Figura 14. Heldenplatz, vista aérea, Viena, Áustria.
Fonte: http://austria-forum.org/attach/Heimatlexikon/Wiener_Hofburg/scaled-
447x300_Hofburg%2C_Wien1.jpg
59
3.1.2. Os lugares da vida citadina
60
Na Idade Média e na Renascença, as praças concentravam o
movimento e os eventos mais importantes – exibições, cerimônias, anunciação
das leis. Manifestavam as diferenças entre o secular e o eclesiástico, cujas
funções e significados resultavam em morfologias diferenciadas, desenvolvendo-
se “como modelo independente” a praça da catedral que incluía o batistério, a
campanilha e o palácio episcopal, e a praça laica, com a signoria (o átrio da
residência principesca), e o mercato em cuja praça localizava-se “quase sem
exceções” e a prefeitura (a rathaus, ou casa do conselho, conforme nota do
tradutor) onde “nunca há a ausência de um chafariz e seu espelho d’água” (SITTE,
1992. p. 27).
O “sistema de blocos” ditado pela racionalização do espaço urbano
acompanhou a especialização das funções urbanas e implicaram sua
internalização no lote e no edifício. Sitte lamenta que “a alegre balburdia do
mercado há muito tenha sido encarcerada nas gaiolas de ferro e vidro de um
edifício fechado” (SITTE, 1992. p. 27), numa clara referência aos modernos
mercados que passaram a concentrar a função de abastecimento de gêneros.
Atento, Sitte observa a dissociação entre a história da construção
urbana e a história da arquitetura e das belas artes, identificando a origem do
fenômeno já na Renascença e no Barroco. Há uma disparidade, por ele
denominada de contraste, entre a modernização do tecido urbano – o “sistema de
blocos” – e a adoção coetânea de adoção de estilos clássicos antigos para os
edifícios. Ressalvando que “dessa feita, a imitação foi levada bem mais a sério,
preconizando-se a maior fidelidade possível ao modelo da Antiguidade” (SITTE,
1992. p. 93), o autor observa que:
61
conforme comentado acima. Se antes ocorriam nos espaços civis, como os define
Bauman (2001), tais atividades passam agora a ser incorporadas aos espaços
privativos, sejam mercados de vidro e aço que organizam as trocas ou museus
que organizam a memória segundo um discurso predeterminado. A disparidade,
como apontada por Sitte, acentua-se pela prevalência do edifício sobre o espaço
urbano enquanto lugar preferencial das atividades e das manifestações da vida
urbana.
Sempre com base no valor das relações sociais urbanas que reitera a
cada momento, Sitte propõe que:
constatemos, apenas teoricamente, que, na vida pública da Idade Média
e da Renascença, houve uma valorização intensa e prática das praças
da cidade e uma harmonização entre elas e os edifícios públicos
adjacentes, enquanto hoje as praças se destinam, quando muito, a servir
como estacionamento para os automóveis, quase não mais se discutindo
a relação artística entre praças e edifícios (SITTE, 1992. p. 30).
Tal relação artística, que supõe uma ética relacionada a uma estética,
define a natureza do lugar que cria e o tipo de espaço que propicia. Queiroga
observa que:
O espaço é entendido, pois, como um híbrido entre materialidade e
sociedade, entre forma e conteúdo, entre fixos e fluxos, entre inércia e
dinâmica, entre sistema de objetos e sistema de ações. Tem-se, portanto,
o espaço como uma instância social, da mesma maneira que são
instâncias sociais a economia, a cultura e a política (QUEIROGA, 2005,
p. 25).
62
Figura 16. Praça de Santa Maria
Novella, Florença, Itália.
Fonte: Google Earth
63
Figura 20. Palio, Siena, Itália.
Fonte: Google Earth
64
Num tempo de grandes transformações políticas, a modernização das
cidades será pautada ainda pela necessidade de garantir a segurança de
governos e instituições. A arte estará presente, mas submetida à técnica e a
serviço de sistemas políticos essencialmente centralizadores que submeterão os
espaços públicos às suas necessidades de representação simbólica de poder.
65
“encaixados nas construções”, e o “aproveitamento de eventuais panoramas
oferecidos pela geografia local”, posições distanciadas pela escala (controlada e
restrita no primeiro, alargada e ampliada no segundo) e diferenciados pelo papel
no ambiente urbano, entre privado e público respectivamente.
Como discurso urbanístico, o texto é orientado por uma visão de
superação das condições atuais com vistas a melhorias da qualidade de vida. A
preservação – até onde e quando possível – das características artísticas e dos
valores morais das cidades antigas deverá estar a serviço do resgate de uma
qualidade que a cidade industrial perdeu.
A construção da ideia de cidade de Sitte se dá sobre seus fragmentos,
por ele criteriosamente escolhidos e analisados, que estruturam a defesa
peremptória da cidade como fato artístico e de sua construção segundo princípios
artísticos segundo uma necessidade de natureza moral. É subjacente a ideia de
emancipação tanto individual como coletiva, no sentido do progresso e da
“superação do obscurantismo e da ignorância”, constituindo assim uma narrativa
que “ocupa um papel construtivo fundamental”.
Considerada a inexorabilidade da cidade moderna e seus sistemas,
Sitte caminha então para uma espécie pacto, ponderando que “se podem obter
efeitos artísticos em qualquer traçado de ruas”, lembrando ainda do papel
essencial dos espaços civis na formação cultural de uma sociedade, tratados
como lugares de formação do espírito, especialmente dos jovens. O papel do
pinturesco, isto é, da arte como elemento estruturador material e imaterial da
cidade é colocado assim de forma distintiva, como fator da maior importância no
processo de estruturação social.
66
3.2. A dimensão artística da cidade em Giulio Carlo Argan
67
Sendo a arte constitutiva da cidade, será equivocado restringir a
compreensão do seja a cidade ao traçado e aos edifícios, ao zoneamento e às
funções, aos sistemas técnicos e aos fluxos. Para além da dimensão técnica e de
sua materialidade, o espaço urbano tem, para Argan, “seus interiores”, e é espaço
urbano todo o elemento que tem um papel a representar “na dimensão cênica da
cidade”.
O autor enfrenta a questão dos valores atribuídos à cidade e à arte.
Para Argan, falar da cidade implica automaticamente em posse, em propriedade
das coisas da cidade. Mas, ainda que num contexto dominado pela mentalidade
68
Figura 25. Boulevard des Italiens , Gustave Caillebotte, 1880, Paris.
Fonte: http://www.pt.wahooart.com/@@/6WHKXV-Gustave-Caillebotte - Boulevard-des-Italiens
69
Como a arte, a cidade é o resultado de algo que foi elaborado e
engendrado previamente, isto é, resulta de um projeto concebido preliminarmente.
Mas é também uma construção real, é a concreção física do fato mental, para o
que é necessário construí-la e colocá-la “em relação às técnicas de projeto"
(ARGAN, 1992, p.75). Segundo Bassani, a cidade “é ideia e techné (termo que se
refere à capacidade de produzir um objeto por meios racionais), como a produção
artística, incluindo – e principalmente – a arquitetura, e os demais objetos que
compõe o chamado espaço urbano” (BASSANI, 203, p. 140).
Sendo a cidade o lugar da arte, de todas as artes, será lugar também
da literatura, como o campo para seu pleno desenvolvimento e do qual passará a
fazer parte, como um dos atributos característicos da vida urbana. Aqui, o artista
paradigmático será Baudelaire que representará na literatura a transformação da
Paris surgida pelas mãos do “artista-demolidor”, como se autointitulava o barão
Figura 25. Rua de Paris, dia de chuva , Gustave Caillebotte, 1877, Paris.
Fonte: http://www.artic. edu/aic/collections/artwork/20684?search_no=1&index=4
70
Haussmann.
Também um respeitado crítico de arte, Baudelaire identifica um novo
gênero na pintura, “a paisagem das grandes cidades” na obra do gravurista
Charles Meryon, cujas imagens traziam “a coleção das grandezas e belezas que
resultam de uma poderosa aglomeração de homens e de monumentos, o encanto
profundo e complicado de uma capital idosa e envelhecida nas glórias e nas
atribulações da vida.”
O novo gênero dessa arte visual representou bastante bem os bulevares
parisienses. Concebidos por Napoleão III e planejados e construídos por
Haussmann, foram concebidos como um conjunto de infraestruturas subordinados
a um sistema arterial de circulação viária. Mas permitiram, muito além das
exigências funcionais e metabólicas da cidade, o surgimento de uma verdadeira
nova paisagem, a paisagem urbana – talvez um novo valor – a ser fruída e gozada
na flânerie, o deambular pela cidade. Walter Benjamim aproximará as duas
entidades: “paisagem – eis no que se transforma a cidade para o flaneur”
(BENJAMIN, 1987, p. 35). Vir e ser visto passou a fazer parte do cotidiano da vida
metropolitana parisiense, redefinindo em termos o público e o privado e
redimensionando seus pesos relativos.
A escrita urbana, novo gênero surgido das angústias originadas pelas
profundas transformações urbanas ocorridas na transição do séc. XIX para o séc.
XX baseou-se na observação direta da vida urbana para estudá-la criticamente em
toda a sua complexidade. Baudelaire, (As flores do mal, O spleen de Paris) Marx e
Engels (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra), Dostoievski (Crime e
castigo), Stendhal (O vermelho e o negro), Dickens (Tempos difíceis). No Brasil,
Machado de Assis (em crônicas como Um caso de burro), Aluízio de Azevedo (O
cortiço), e João do Rio, cronista carioca congênere de Baudelaire em nosso país,
que fez do Rio de janeiro “sua matéria, o seu cenário, o seu assunto permanente,
o seu mundo literário” (MARTINS, 2005, p.15), são os escritores que, entre tantos
outros, farão da temática urbana o foco da sua arte, ratificando o papel das
cidades como “ambientes geradores de novas artes, pontos centrais da
71
comunidade de intelectuais, e mesmo de conflito e tensão entre estes”
(MENEZES, 2006, p. 3).
Marshall Berman anota que Baudelaire, na introdução de O spleen de
Paris, “proclama que a vie moderne exige uma nova linguagem”, em função “da
observação das cidades enormes e do cruzamento de suas inúmeras conexões.”
Em "Os olhos dos pobres" n'O spleen de Paris nº 26, o escritor moderno por
definição revela as contradições típicas das metrópoles. Num texto poético, expõe,
lado a lado, um casal de namorados que sentados numa mesa de um café
parisiense – outra inovação da cidade moderna – ora perdem-se em suas próprias
divagações, ora incomodam-se com uma família de pobres que os observa,
faminta e extasiada, imaginando o que poderia ser a vida que se desenrolava do
outro lado da vitrine que separava os dois mundos.
9
Lewis Mumford, 1961
72
Figura 26. Pienza, Itália.
Fonte: Google Earth
73
Figura 29. Welwyin, Inglaterra.
Fonte: Google Earth
74
A mudança de paradigma representada pelo antropocentrismo da
Renascença permitiu que a arte passasse a ser concebida como expressão da
personalidade e da visão de mundo do artista. Tornou possível também a
existência de uma cidade ideal concebida, por um artista, como uma obra de arte
total a partir de uma visão pessoal.
Ainda que a possibilidade de concretizar o desenho da cidade ideal
tenha sido possível apenas em raríssimas oportunidades como Pienza, Sermoneta
e Palmanova na Itália; as “garden cities” inglesas Welwyn e Lechworth; São
Petersburgo na Rússia; Chandighard na Índia, e Goiânia e Brasília no Brasil, entre
outras, o valor dessas experiências reside no fato de estabelecer um “ponto de
referência em relação ao qual se medem os problemas da cidade real” (ARGAN,
1992, p. 74).
75
Figura 33. Brasília, Brasil. O eixo gerador SE-NW define o setor institucional e articula os
setores N e S, compostos por superquadras mistas e setores residenciais distribuídos ao redor
do Lago de Paranoá.
Fonte: Google Earth
76
A cidade real, determinada por processos socioeconômicos históricos,
refletirá “as circunstâncias contraditórias do mundo em que se faz” (ARGAN, 1992,
p. 74), e será um modelo de desenvolvimento. “Todavia, sempre existe uma
cidade ideal dentro ou sob a cidade real, distinta desta como o mundo do
pensamento o é do mundo dos fatos” (ARGAN, 1992, p. 73).
A cidade ideal, “mais que um modelo propriamente dito, é um modulo
para o qual sempre é possível encontrar múltiplos e submúltiplos que modifiquem
sua medida, mas não a sua substância: dada uma planta em forma de tabuleiro,
centralizada ou estelar, sempre é possível desenhar o mesmo esquema numa
dimensão maior ou menor” (ARGAN, 1992, p. 74).
Os esquemas de Ebenezer
Howard em Garden Cities of To-morrow
ilustram bem tal afirmação, em que um
mesmo diagrama de geometria rádio
concêntrica ampliada continuamente
parece ser capaz de resolver lógica e
proporcionalmente as relações
espaciais, produtivas e sociais, dos
setores da cidade à rede de cidades no
território. A proposição teórica quer
indicar a possibilidade de manutenção
da qualidade por meio de uma relação
proporcional entre qualidade e
quantidade.
Talvez seja essa dualidade
que esteja por trás daquilo que,
segundo Secchi, possibilita e justifica o
77
cidade real e se realiza por meio de um desenho que agregue o melhor que
espírito e o engenho humano são capazes de realizar por meio da arte e da
técnica, a cidade ideal.
Desenho como invenção e intenção. É oportuna a elaboração de
Villanova Artigas:
O “disegno” do Renascimento, donde se originou a palavra para todas as
outras línguas ligadas ao latim, como era de se esperar, tem os dois
conteúdos entrelaçados. Um significado e uma semântica, dinâmicos, que
agitam a palavra pelo conflito que ela carreia consigo ao ser a expressão
de uma linguagem para a técnica e de uma linguagem para a arte.”
(ARTIGAS, 1967).
A experiência urbana a partir da Revolução Industrial deu-se
especialmente pelo atributo da quantidade, isto é, pelo crescimento desmensurado
da cidade real. O surgimento de novas categorias de assentamentos urbanos –
metrópole, região metropolitana, macrometrópole, indicam um processo em que a
quantidade subjugou de forma absoluta a qualidade. Aqui reside, segundo Argan,
“a base de toda a problemática urbanística ocidental.”
É o que explica, segundo o autor, a não continuidade do
desenvolvimento das cidades e a ocorrência característica de sucessivas rupturas
da paisagem, na passagem da cidade histórica para a cidade moderna, e desta
para a cidade contemporânea ou pós-industrial.
Tal como em Brasília, para Argan a cidade ideal é representativa de
conceitos e valores, sendo que a ordem urbanística não refletirá “apenas a ordem
social, mas a razão metafísica ou divina da instituição urbana” (ARGAN, 1992, p.
75). O conceito de “partir do zero”, tão caro ao movimento moderno, traz em si a
ideia de mudança continua, e nega a ideia de continuidade de uma tradição “de
modo que o que resta do antigo é interpretado, sim, como pertencente à história,
mas a um ciclo histórico já encerrado.” (ARGAN, 1992, p. 75)
Mas é claro que não é possível “partir do zero” no caso da cidade real.
Entretanto, mesmo sendo real, como um organismo vivo ela crescerá e se
78
desenvolverá, sempre haverá na cidade real novas áreas, novos setores,
expansões que incorporam o novo ao existente.
Neste processo, deve ser mencionado o plano diretor, cujo papel é
promover o encontro da cidade existente, real, com a cidade nova, ideal. Vale
notar que ele mesmo é uma idealização da cidade, mas que busca objetivar-se
como instrumento de gestão concebido sobre e aplicado na cidade real, voltado ao
equacionamento de problemas reais e às propostas das melhorias demeadas pela
cidade real.
Em particular, ao lado dos instrumentos legais de preservação do
patrimônio, o plano diretor tem como objetivo específico proteger a cidade antiga,
o núcleo histórico, pela significativa e prestigiosa carga simbólica e pelo valor
histórico que guarda. Ele tem por missão resolver o permanente conflito entre o
desenvolvimento moderno da cidade e seu núcleo original, conflito este irresolvido
uma vez que a cidade moderna, ainda que antagônica à cidade histórica, nunca
pôde dela prescindir.
O fato é que os novos e brutais fluxos gerados pela cidade industrial em
sua expansão exponencial alteraram de tal forma a estrutura do tecido urbano,
que sua coesão praticamente desapareceu, dando lugar a um tecido fragmentado
e descontínuo. Os espaços urbanos perderam significação e identidade, isto é,
qualidade, em razão inversamente proporcional ao fenômeno da explosão das
demandas.
Em reação, criou-se o conceito de centro histórico que possibilitaria a
preservação patrimonial do núcleo original, histórico. Em nossas cidades, de modo
geral, a iniciativa foi parcialmente bem sucedida. De um lado, a gentrificação e o
abandono dos núcleos históricos devido à sua onerosa manutenção, que afastou a
população original; do outro, a localização referencial com a atração de atividades
administrativas; e a criação de novas centralidades em resposta ao processo
especulativo de produção e expansão do espaço urbano.
Paradoxalmente, esse processo instalou uma cidade ideal dentro da
cidade real, não na forma idealizada de cidade como nos exemplos citados, mas
79
como um conteúdo ideal em contradição com um conteúdo real, pois, como Argan
alerta, “não se pode admitir que dela (a cidade) conste uma parte histórica com
um valor qualitativo e outra não histórica com valor puramente quantitativo”
(ARGAN, 1992, p. 79). Para Argan, é a cidade como um todo que deve ter
substância histórica, seja a cidade antiga e a cidade moderna.
A problemática falta de continuidade existente entre os assentamentos
originais e suas expansões torna evidente a separação dos espaços dotados de
conteúdos simbólicos e históricos daqueles supostamente carentes de tais
aspectos. Se não podemos falar em não artisticidade e não historicidade dos
novos espaços, “simplesmente porque o sistema de técnicas industriais não tem
culminâncias artísticas” (ARGAN, 1992, p.78), a segregação dos núcleos originais
implica perda importante para a cidade quanto a sua identidade e sua capacidade
de preservar para transmitir significados e valores acumulados historicamente.
Para o autor, a “cultura moderna tem ou deveria ter a capacidade de
compreender em sua estrutura histórica tanto o valor de memória, presença de
seu passado, como uma previsão-projeto do seu futuro” (ARGAN, 1992, p.80).
80
uma realidade estruturável e o toma como “oiké, a habitação do homem” (ARGAN
1992, p. 212).
O movimento de conquista das áreas à natureza, primeiro na
vizinhança, depois nas regiões próximas, seguidas pelos territórios além-mar, e
assim progressivamente, mesmo em direção ao espaço sideral e às profundezas
oceânicas, sempre esteve presente na empresa humana. As guerras, sejam no
campo militar ou comercial, sempre foram, e continuam a ser, a expressão mais
visível – e de longe a mais sórdida – desse processo, em que as disputas
pautadas por interesses comerciais estratégicos determinam a conquista
ininterrupta de novos territórios a explorar.
São inúmeras as referências à necessidade humana de domar a
natureza, de conquistar à natureza os lugares que serão a morada do homem.
Mas a natureza, cuja eliminação sempre esteve historicamente em perspectiva,
sempre foi também o território do mito e do sagrado. Por estar “além dos muros da
cidade, o espaço não protegido, não organizado, não construído”, por ser a
“misteriosa região das potências incontroláveis do mito e do sagrado”, a natureza
sempre esteve ali “como realidade indefinidamente estendida além do horizonte
do conhecimento e das possibilidades exploratórias e operativas do homem”
(ARGAN, 1992, p. 212). A ideia de natureza como “inimiga, inacessível, inviolável”
persistiu até o início do século XIX, período em que ocorre o início da Revolução
Industrial.
Entre a natureza e a cidade, havia o campo, como uma “zona de
fronteira” que fazia a transição entre o civilizado e o natural, onde o “citadino ia
procurar um momentâneo e regenerador contato com a grande mãe”, campo este
que permitia vislumbrar alguns aspectos da vida natural que obedecia aos ritmos e
aos ciclos naturais – as estações, as fases da lua, que pautavam uma atividade
milenar, a agricultura, desenvolvida por homens rudes, incultos, tão semelhantes
como diferentes do homem citadino.
A natureza como região, assim distante, intocável e temida por
desconhecida, era a região do sublime, representação simbólica do perfeitíssimo,
81
do grandioso, do poderoso, limite ou fronteira entre o dimensionável, geométrico,
projetável, e o ilimitado, o incomensurável, o indeterminável. Argan observa que o
tema do “sublime” sempre esteve presente no urbanismo: “as catedrais góticas, a
arquitetura de Michelangelo e de Borromini, o geometrismo de Ledoux, o
asceticismo tecnológico de Gaudi, o expressionismo de Mendelsohn.”
Ocorre que o crescimento metastásico das cidades aconteceu à custa
dos espaços livres cada vez mais distantes, com a supressão progressiva da
natureza, e com a implacável subjugação do sublime e do transcendente pela
tecnologia criada pelo homem.
Como aponta o autor, o que está em jogo é a capacidade humana de
transcender. Houve, segundo Argan, uma inversão de posições, em que a
natureza foi substituída pela técnica no lugar do sublime: tudo o que vemos é a
técnica, convertida em mito, essa poderosa construção mental pela qual o homem
coloca-se além de qualquer limite, e para quem torna tudo possível, realiza assim
a fantasia de sua plena onipotência.
Como aponta Nelson Brissac Peixoto (2004, p.301), a cidade
contemporânea “deixou de ser um testemunho cultural, a arquitetura deixou de ser
pensada como um espaço de habitação.” A cidade não tem mais lugar para a arte,
para o sublime, para o transcendente. E o homem “chega a envergonhar-se com a
imperfeição e a fraqueza de seu ser biopsíquico em comparação à perfeição de
seu fazer tecnológico. (...) As máquinas agem melhor que suas mãos. Os
computadores raciocinam melhor que suas cabeças” (ARGAN, 1992, p. 214).
A combinação da ideia da satisfação ilimitada do desejo com a fantasia
de superação dos próprios limites parece estar ligada à questão do consumo
como ideologia, fenômeno tantas vezes denunciado por Argan, que acaba por
determinar as relações sociais, produtivas e econômicas no espaço da cidade. Na
perspectiva da vida urbana, não há mais o mito do desconhecido, simbolicamente
representado pela natureza, assim como o sublime e o transcendente
representados pela arte.
82
A cidade agigantada, industrial e pós-industrial, moderna e
contemporânea, incontinente e ilimitada, trouxe a insegurança, o medo, a angústia
e a incerteza. A mesma cidade que eliminou o transcendente representado pela
natureza subjugada, que desdenhou o sublime presente na arte, e que ignorou o
território delimitado pelo apreensível, é aquela que sobrecresceu, se desmediu.
Este processo condiciona uma realidade que “não é mais dada em
escala humana, isto é, na medida em que pode ser concebida, pensada,
compreendida pelo homem, mas na medida em que não pode e não deve ser
pensada, e sim apenas dominada ou sofrida” (ARGAN 1992, p. 214).
83
84
4. Capítulo 3 - O plano urbano como suporte da memória da cidade. O
estudo do caso do Plano de Chicago
85
pelos arquitetos Daniel Burnham e Edward H. Bennett, sob patrocínio do Clube
Comercial de Chicago, a mais poderosa e influente organização comercial e
industrial da cidade.
O Plano de Chicago é o resultado da articulação de diversos setores da
sociedade, motivados pela constatação dos efeitos desastrosos causados da
transformação acelerada e irrefletida da cidade em metrópole, e pela necessidade
de reconstruir parte significativa da cidade destruída por um gigantesco incêndio
ocorrido em 1871. Apresentou-se a oportunidade de eliminar as mazelas da falta
de transporte, infraestrutura e equipamentos públicos, com especial atenção aos
espaços verdes, livres, públicos.
Convocados pelo patrocinador, Burnham e seu assistente Bennet
assumiram a coordenação do trabalho e a elaboração da síntese das
necessidades e desejos revelados pelo trabalho sistemático de comissões
temáticas específicas, cujos resultados foram validados dos por meio de um amplo
processo de divulgação e comunicação do plano.
86
Figuras 37, 38, 39. Parque do Milênio, Chicago Loop, Chicago. Acima, visadas SW e SE.
Fonte: fotos do autor, Google Earth.
87
movimento que se inicia no topo da pirâmide social, mas que se articula com os
demais estratos para criar um movimento citadino, que se legitima enquanto tal.
A leitura do plano revela a noção de que não bastaria apenas corrigir os
muitos problemas urbanos existentes, seria necessário também antecipar-se a
eles, preparando a cidade para o futuro. Essa consciência foi um fator decisivo
para as transformações que se seguiram. E a tradicional estrutura da organização
comunitária da sociedade norte-americana foi um fator adicional importante para a
divulgação e a aceitação do plano.
Se não logrou ser implantado em sua totalidade, o Plano de Chicago
foi, em seus aspectos mais importantes, um instrumento de planejamento potente,
ativo e que permanece referencial até os dias de hoje. Prova disso é a
implantação do Parque do Milênio (Millenium Park), no extremo norte do Parque
Grant. Constituído por um conjunto de edifícios e obras de arte que marcam a
comemoração da passagem do milênio, o Parque do Milênio reconfigurou uma
área antes ocupada por estacionamentos e um parque ferroviário. Da mesma
forma, outros espaços públicos distribuídos pela cidade contam com esculturas e
instalações artísticas.
A pesquisa mostra que a inclusão de obras de arte nos espaços
públicos citadinos é beneficiária da visão da cidade como artefato, construída pelo
Plano de Chicago. Ao componente artístico é reservado um lugar especial no
espaço urbano, seja na concepção projetual desse espaço, seja nas obras de arte
que lhes são destinadas. É algo que se institucionaliza ao longo do tempo, e que
continua até os dias de hoje por meio de programas públicos voltados para esse
fim.
88
4.2. Contextualização do Plano de Chicago: antecedentes
89
moravam em cidades com mais de 2.500 habitantes, já que havia 78 cidades com
mais de 500.000 habitantes (HINES, 1979, p. 81). Em Chicago, a história não foi
diferente: apenas um posto de fronteira em 1830, em 1840 a cidade contava 4.470
habitantes. Cinquenta anos depois já era a segunda maior cidade norte-
americana, com uma população de 1.099.850 habitantes. No ano da publicação
do plano, somava mais de dois milhões de habitantes (PLANO DE CHICAGO,
2009, p. ix).
A explosão de crescimento dos assentamentos urbanos impunha
condições de vida bastante precárias à massa de trabalhadores, em sua grande
maioria de imigrantes, fato que, aliado aos períodos de depressão econômica,
gerou uma onda de manifestações, greves e revoltas sociais. Chicago conheceu
várias delas, como o massacre de Haymarket de Chicago10, em 1886, a greve de
Homestead, de 1892, e a de Pulmann, de 1894, entre muitos outros movimentos
organizados pelos então nascentes sindicatos de trabalhadores.
A situação de total precariedade social das massas trabalhadoras e de
insegurança da vida citadina nas grandes cidades norte-americanas levou à
constatação da necessidade de amplas reformas das cidades norte-americanas,
10
Esses movimentos marcam também o surgimento dos sindicatos, sendo o principal deles
neste momento o “Cavaleiros do trabalho”, que em meados de 1880 agregava mais de 700.000
membros. Seu objetivo imediato era a conquista da jornada diária de oito horas de trabalho, em
lugar das doze ou treze horas praticadas.
Em 1º de maio de 1886, trabalhadores da McCormick Harvesting Machine Co. iniciam uma
greve pela redução da jornada diária. No dia 3, a polícia faz a proteção dos fura-greve e uma briga
deixa uma pessoa morta e vários feridos. No dia seguinte, uma manifestação pacífica promovida
por líderes anarquistas em Haymarket – local de venda da produção de grãos – leva para as ruas
cerca de 2.000 pessoas, que a polícia procura dispersar. Uma bomba é jogada contra as tropas de
segurança, matando sete e ferindo mais de sessenta policiais. As tropas reagem disparando contra
a população, matando quatro e ferindo dezenas de pessoas.
Detenções em massa, espancamentos e confissões obtidas à força resultam na prisão de
oito líderes anarquistas pelas acusações de conspiração e assassinato. Quatro são executados em
1887, um suicida-se e três são sentenciados à prisão. Apenas em 1893 há o reconhecimento do
erro judicial e é concedido o perdão pelo governador de Illinois, John Peter Altgeld.
90
fato percebido por parte da elite urbana como oportunidade para o exercício do
controle social.
91
a produção de outros escritórios (Adler & Sullivan, Holabird & Roche), a assim
chamada escola de arquitetura de arranha-céus de Chicago (HINES,1979, p. 83),
que está na raiz de um rigoroso modernismo arquitetônico. Com a morte de Root,
em 1891, Burnham redireciona seu pensamento arquitetônico e urbanístico a uma
postura mais conservadora e dependente de tradições preexistentes da cultura
europeia. Anos depois, Philip Jonhson faria o mesmo após a morte de Mies van
der Rohe.
Nas palavras de Thomas Hines:
A origem e o impulso do City Beautiful estavam no clássico e no barroco
com sua ênfase numa “procissão” de edifícios e espaços abertos
arranjados em grupos. O efeito de paralaxe (que consiste no aparente
deslocamento do objeto devido à modificação de posição do observador)
dependia do movimento humano em procissão através do espaço, de um
ponto especifico a outro. Os grandes edifícios eram implantados de modo
a se tornarem as vistas últimas de eixos longos, convergentes e
diagonais. O impacto no individuo desta disposição e da cerimoniosa
procissão era, no Barroco e na City Beautiful, calculadamente poderoso,
impressionante e dinâmico. (HINES, 1979, p.57)
11
Frederick Law Olmsted (1840-1903), precursor e um dos mais importantes paisagistas dos Estados
Unidos. Autor, com o arquiteto inglês Calvert Vaux, do projeto vencedor do concurso para o Parque Central,
em Nova York (1858). Além de inúmeros outros projetos, notabilizou-se também por ações de preservação:
seu relatório para o legislativo da Califórnia pedindo a preservação do parque Yosemite e Big Tree Falls
(1865) estabeleceu as bases para a criação de parques estaduais e nacionais.
92
Figura 41. Plano da
Exposição Columbiana
Mundial de 1893,
Burnham e Olmsted.
Plano de Chicago, 1906.
Notar o extenso
redesenho da orla.
Fonte: Plano de Chicago.
93
4.2.3. Os parques de Chicago, a orla urbana do lago Michigan e outros
planos urbanos
Figura 42. Parque na orla lacustre, estendendo-se do parque Jackson ao parque Grant. Orla
sul do Lago Michigan, Daniel Burnham, plano modificado, 1904.
Fonte: Plano de Chicago
94
Em 1860, um antigo cemitério junto à orla do Lago Michigan deu lugar
ao Parque Norte (rebatizado de Parque Lincoln em homenagem ao presidente
assassinado cinco anos depois). No mesmo ano a legislatura estadual instituiu as
Comissões dos Parques Lincoln, Sul e Oeste, cuja atuação autônoma, mas
coordenada, visava a implantação de um sistema unificado de parques e
bulevares, como sugerido por F.L. Wright12 vinte anos antes.
A Comissão de Parques Sul, responsável pelo desenvolvimento do
Parque Jackson, irá contratar Burnham para elaborar uma proposta urbanística
para a orla urbana do lago Michigan (1896), conectando os parques Grant e
Jackson.
O sucesso da Exposição e da Cidade Branca projetam nacionalmente o
movimento City Beautiful e Burnham, que é contratado para o desenvolvimento
dos planos de Washington em 1902, com base no plano de Pierre Charles
L’Enfant (encomendado por George Washington em 1791); Cleveland, em 1903;
Manila, em 1904; e São Francisco, em 1905, cuja experiência será particularmente
de grande valor para o sucesso do Plano de Chicago, especialmente no que se
refere à sua validação junto à opinião pública. Particularmente é importante
registrar que a repercussão do trabalho foi praticamente nula devido à sua
precária comunicação aos cidadãos de São Francisco. O isolamento de um plano
de gabinete custou-lhe a legitimidade necessária para que pudesse ser
implementado.
12
Grosman, James R., Keating, Ann Durkin, and Reiff, Janice L.. Encyclopedia of Chicago. Chicago: Chicago
History Society; 2005. Disponível em: http://www.encyclopedia.chicagohistory.org.
95
4.3. O Plano de Chicago
96
esse avanço além muralha sobre a terra virgem, a representar um esforço de
civilizar o desconhecido simbolizado pelas áreas até então intocadas, e as
extensões além-cidade que a conectam com o território de entorno por meio de
sistemas de mobilidade que o incorporam à cidade numa nova escala: a
metrópole.
No segundo momento, sob Napoleão Bonaparte, as ações voltam-se
para o intra-urbano. A cidade existente, a cidade medieval, trazida à luz, revela
suas “feias, sujas, miasmáticas e estreitas ruas, berço do vício e do crime.”
(BURNHAM, BENNET, 2009, p.17). Paris sofrerá importantes intervenções: a
abertura da rua de Rivolis, os jardins ao norte das Tulherias, a renovação de
pontes medievais sobre o Sena, a construção das primeiras calçadas e das
primeiras ruas servidas por iluminação pública e, ainda, de três quilômetros de
cais no rio Sena, além de “seus maiores monumentos comemorativos, o Arco do
Triunfo da Estrela, (...), o Arco do Carrossel, e a Coluna Vendôme, todos previstos
nos desenhos de Louis XIV” (BURNHAM, BENNET, 2009, p.17).
O plano destaca ainda Napoleão III (sobrinho de Bonaparte) e o Barão
de Haussmann, que farão de Paris “um centro de um comércio tão amplo como a
civilização mesma”, observando que Haussmann nunca negligenciou “as grandes
linhas desenhadas por seus predecessores, e em boa medida seu trabalho foi
uma continuação dos planos preparados por Luís XIV nos últimos anos do séc.
XVII.” (BURNHAM, BENNET, 2009, p.18).
Aqui está a interpretação de Paris que interessa a Burnham quanto ao
estilo histórico do modelo de cidade a ser adotado em Chicago: a cidade barroca,
precisamente localizada no século XVII de Luís XIV, atualizada ao tempo da
indústria nascente por um gestor enérgico, Haussmann, a quem teria cabido não
mais que “prover meios adequados de circulação dentro da cidade velha, abrindo
novas ruas e alargando as velhas, eliminando viveiros insalubres e abrindo
grandes espaços de modo a desimpedir belos monumentos e de interesse
histórico” (BURNHAM, BENNET, 2009, p.18).
97
Outras referências europeias citadas no plano, que sofrem a influência
do modelo francês consolidado por Haussmann, são Viena (Ringstrasse),
Bruxelas “dividida por bulevares”, assim como Roma, Florença e Milão, cidades
que “realizaram extensos esquemas de melhorias baseados no modelo francês”
(BURNHAM, BENNET, 2009, p.19).
As referências prosseguem pelos exemplos de reurbanização das
cidades alemãs, com destaque para a questão do desimpedimento dos
monumentos e edificações históricas para a permitir sua visibilidade máxima,
dando-lhes novas perspectivas visuais em estruturas urbanas existentes. Aqui, a
referência explícita é Cornelius Gurlitt13 cujas posições contidas num texto
traduzido por Sylvester Baxter, “German City Planning”, publicado na revista
Architectural Record em 1908, ecoam a discussão europeia quanto à preservação
de bens patrimoniais e seus respectivos valores.
Notório historiador de arquitetura e planejador urbano alemão,
responsável pelas expansões de Dresden, Gullit adota “as ideias de Camillo Sitte
sobre o modo de estudar os fenômenos e a estrutura urbana” (CALABI, 2012, p.
101) e escreve Historiche Stadtbilde (Imagem da cidade histórica) em 1902, o
mesmo ano que Alois Riegl assume a presidência da Comissão de Monumentos
Históricos da Áustria, que resultou em Le culte moderne des monuments – Son
essence et sa gênese.
13
Cornelius Gurlitt (Nischwitz, 1850; Dresden, 1938), arquiteto, professor e escritor. Estuda arquitetura em Berlim e
Stuttgart. Em 1879, entra para a Dresden Kunstgewerbemuseum, onde escreve Geschichte des Barockstiles, des
Rococo und des Klassicismus (1887-9), estudo abrangente sobre a arquitetura pós-renacentista na Italia, Belgica, Holea,
França e Alemanha. Entusiasta do Barroco, rejeita as ideias de Schinkel e seguidores. Revela simpatia por
desenvolvimentos como o Art Noveau, e como editor da Stadtbaukunst alter und neuer Zeit, ajudará Bruno Taut a
publicar Frühlicht (Aurora).
98
Mas, se o método de Gurlitt é aquele preconizado por Sitte, suas
posições dele se distanciam: Sitte, como referido anteriormente, condena a
implantação de edifícios no meio das praças, assim como as intervenções para o
desimpedimento dos edifícios, uma vez que os efeitos de perspectiva seriam
anulados com o isolamento da construção, concorrendo para dar ao edifício a
imagem de “uma torta exposta numa bandeja” (SITTE, 1992, p. 42), havendo
ainda o comprometimento da composição da obra que foi pensada, projetada, de
acordo com um contexto existente.
Londres, outra das referências do plano, constituía à época seu sistema
de parques e espaços abertos. Não é mera coincidência a menção que o plano faz
ao grande incêndio de 1666, assim como à “chance perdida” representada pelo
preterimento dos planos de reconstrução de Christopher Wren, então “um dos
maiores arquitetos do mundo”, em favor de outros interesses. Tais planos
“contemplavam uma cidade com ruas irradiando de pontos centrais, e locações
dos prédios públicos determinadas de modo a proporcionar a vista de objetos em
longas perspectivas” (PLANO DE CHICAGO, 2009, p. 21).
As referências culminam com os trabalhos do próprio Burnham para
Cleveland, Manila, Washington e São Francisco. Em todos eles, os princípios do
City Beautiful comparecem nas perspectivas de fonte barroca que organizam
espacialmente os edifícios em sua monumentalidade, e no tratamento pinturesco
dos espaços abertos urbanizados.
99
4.3.2. O modelo de cidade e sua função de formação do indivíduo
100
Tais questões específicas, e aquelas mais gerais relativas ao
planejamento territorial e urbano, não serão aqui abordadas por extrapolar o
recorte adotado pela pesquisa. Mas é importante mencioná-las no sentido de
registrar a inserção da questão artística dentre tais questões, de ordem “prática”,
relativas a temas ditos “eminentemente” urbanos. A relevância do componente
artístico no discurso urbanístico do plano nos remete à questão de como a arte se
articula às demais questões urbanas.
O penúltimo capítulo do plano, intitulado “O Plano de Chicago”, traz um
resumo das ações preconizadas para a consecução de seus objetivos, denotando
a unidade e a interdependência entre eles.
Tais ações incluem propostas tanto práticas quanto estéticas e alinham-
se com importantes experiências anteriores de requalificação urbana:
“A Exposição Mundial de Chicago, a elevação do greide da cidade, a
criação de um sistema de parques e jardins e a construção do canal de
drenagem, foram (...) as quatro maiores obras já realizadas em Chicago.
(...) Duas delas o foram por considerações exclusivamente práticas,
enquanto as outras duas (...) eram por outro lado a expressão de um
profundo senso do valor dos ambientes belos” (PLANO DE CHICAGO,
2009, p. 120).
É possível notar um esforço deliberado no sentido de criar um nexo
entre ações de naturezas diferentes, as “práticas” e as “estéticas”. As principais
diretrizes do plano, resumidas nesse capítulo a seis pontos principais (PLANO DE
CHICAGO, 2009, p. 121), são reveladoras desse esforço:
A melhoria da frente (orla) do lago.
A criação de um sistema de vias expressas externas à cidade.
A melhoria dos terminais ferroviários, e o desenvolvimento de um
sistema de tração completo para carga e passageiros.
A constituição de um sistema de parques (urbanos e periurbanos), e
de circuitos de vias-parque.
O arranjo sistemático das ruas e avenidas dentro da cidade, de modo
a facilitar o acesso ao distrito de negócios.
101
O desenvolvimento de centros de vida intelectual e administração
cívica, relacionados de forma a dar coerência e unidade à cidade.
Dos seis pontos elencados, três tratam dos sistemas de infraestrutura
(sistema de vias expressas, terminais ferroviários, ruas e avenidas), dois da
questão da paisagem (a orla do lago, sistema de parques) e um, especificamente,
da questão do desenvolvimento da vida intelectual e da administração cívica da
cidade. Três deles, portanto, são determinados por aspectos “práticos”, outros três
por questões “estéticas”, sejam espaciais ou culturais.
O entrelaçamento entre eles, suas mútuas relações e interações,
“devem conferir unidade à cidade” a partir da construção de um nexo comum que
faça essa costura. Forma, função, ética, estética, representação e simbolismo são
os entes com os quais o plano opera na construção de seu modelo de cidade
ideal. Cenário e suporte do processo civilizatório, o modelo deverá desempenhar
um papel educativo e formador do espírito de seus habitantes.
De modo coerente com o pensamento urbanístico da época (e mesmo
com o pensamento vigente hoje), há uma função moralizadora intrínseca à cidade,
manifesta no viés artístico da concepção urbanística dos novos espaços, na
qualificação dos espaços públicos pela presença de objetos artísticos e nas
atividades ligadas ao desenvolvimento cultural da cidade. A manifestação artística
concorre para a construção do modelo de cidade ideal e está a serviço de uma
concepção ideológica moral de urbanidade. O plano revela a expectativa de
contribuir “para elevar o padrão do gosto público”, relacionando-o às “demandas
por melhores condições de vida”. (PLANO DE CHICAGO, 2009, p. 122).
A cidade, “mais que uma grande fábrica, é uma máquina filantrópica e
pedagógica que estimula para uma transformação social gradual” (SECCHI, 2009,
p. 66).
É o que revela a leitura do plano, cujas imagens dotadas de forte
conteúdo simbólico constroem a imagem de uma cidade ideal burguesa e
progressista, como veremos a seguir.
102
4.3.3. A arte e a representação simbólica nos espaços públicos
103
É o que se percebe no novo programa do parque, que propõe uma
biblioteca municipal e um museu de história natural – Museu de História Natural
Field14, junto a uma instituição já existente dedicada às atividades artísticas, o
Instituto de Arte de Chicago15.
14
Instituição cultural estabelecida em 1894 com os recursos doados por Marshall Field, proprietário
de uma grande loja de departamentos homônima, e por doadores menores.
15
Instituto de Artes de Chicago, instituição fundada em 1889 com o nome de Academia de Belas
Artes de Chicago, dedicada à difusão e ao ensino de artes que, a partir de 1893, passou a ocupar
um edifício construído para a Exposição Columbiana Mundial.
104
Figura 46 – Centro Cívico, aquarela de Jules Guerin, Plano de Chicago, 1906.
Fonte: http://burnhamplan100.lib.uchicago.edu/node/1952/?size=thumbnail
105
Figura 48 – Detalhe do porto e dos edifícios do centro das artes.
Fonte: Plano de Chicago
106
a praça do mercado, “que são os pontos principais da cidade” e que concentram
“as construções mais eminentes e as obras de arte" (SITTE, 1992, p. 25).
As comparações com o Louvre de Paris, o Museu Metropolitano de
Nova York, a Galeria Nacional e o Museu Britânico de Londres demonstram a
valorização do Instituto de Artes de Chicago pelo plano, que lhe reserva áreas
próximas para sua futura expansão “em função do aumento de sua coleção e do
numero crescente de alunos e cursos de arte". A “escola do Instituto de Arte tem
mais de 4.000 alunos (e) na medida em que as coleções de arte e as
oportunidades de estudo aumentarem, Chicago atrairá mais estudantes de outros
estados.” (BURNHAM, BENNET, 2009, p. 112).
A nova configuração deste setor do Parque Grant reservava ao Instituto
de Artes um novo lugar, em função do alargamento projetado para a Avenida
Michigan. Seria implantado em posição simétrica à Biblioteca Pública, tendo o
Museu Field ao centro de uma composição espacial que nada fica a dever às
proposições projetuais urbanísticas da cidade liberal moderna, a exemplo do
Hofburg de Viena ou da Ópera para Paris. Como anotou Kostof (1991) “a
perspectiva permanece como fundamento da concepção dos espaços e como
instrumento de valorização de outros elementos urbanos, como vias e
monumentos”, que se combinam segundo o grid de ruas largas característico da
cidade moderna industrial, na melhor tradição do urbanismo europeu.
Ainda que a implantação deste programa tenha ocorrido de modo
diferente do previsto – o Instituto de Arte de Chicago permaneceu no mesmo
lugar, o Museu Field foi implantado na extremidade sul do Parque Grant, e a
biblioteca municipal jamais existiu ali, a ideia de um potente conjunto cultural neste
lugar especial permaneceu.
Junto à orla do Lago Michigan e ao rio Chicago, lugar de acesso
privilegiado à cidade, as sucessivas administrações consolidaram a proposta do
plano de implantação de um “centro intelectual”, ratificando a ideia de que “a arte,
em qualquer lugar, tem sido a fonte de riqueza e de influência moral” (BURNHAM,
BENNET, 2009, p. 112).
107
4.3.4. A paisagem e o pinturesco
108
4.3.5. Um novo sistema de valores
109
do desenvolvimento do Plano, é possível perceber que algumas das elaborações
de Riegl parecem circunstanciar certas posturas assumidas pelo plano.
Como vimos, a postura historicista que o permeia justifica-se pela busca
de raiz e tradição nos valores da cultura clássica europeia, configurando o que
Riegl definira como valor de rememoração intencional, remetendo à busca da
eterna permanência por meio de valores imunes ao tempo.
O valor de contemporaneidade, por sua vez, corresponde às
necessidades materiais e imediatas, configuradas nas propostas de infraestrutura,
de mobilidade e de saneamento, repousando seu valor nos aspectos de uso
prático. O valor de arte, que corresponde às necessidades espirituais respectivas
à formação do cidadão moderno, toma forma na .
No plano, as necessidades materiais e imediatas E as necessidades
espirituais, na proposta da orla lacustre requalificada, dos espaços abertos para a
restauração do corpo e da mente, e de um centro intelectual dedicado à formação
do espírito.
Riegl apontava ainda um valor de arte relativo, referido à capacidade
dos monumentos antigos de sensibilizar o homem moderno devido aos seus
atributos plásticos – concepção, forma ou cor. Apesar de uma aparência não
moderna, tais obras satisfazem uma vontade artística moderna, a kunstwollen.
O historicismo, base do pensamento urbanístico de Burnham, patente
nos estudos arquitetônicos do plano, marca as soluções urbanísticas dos projetos
do centro cívico e do centro intelectual. Ainda que construídas ao tempo das
transformações de Chicago a partir do plano, isto é, contemporâneas a tais
transformações, a estatuária urbana, os baixos relevos nos marcos das pontes e
mesmo o desenho pinturesco dos espaços abertos, eram concepções artísticas
que obedeciam à esquemas clássicos de composição e resolução formal dos
quais emprestavam uma aparência não moderna, o que parece sinalizar a
presença da kunstwollen de Riegl no discurso urbanístico do Plano de Chicago.
110
Figura 49. Avenida
Michigan, visada sul.
Ao centro, o
Instituto de Artes de
Chicago. Aquarela de
Jules Guerin, Plano
de Chicago, 1906.
Fonte: Plano de Chicago
111
Giulio Carlo Argan, citando Marsilio Ficino16, lembra que “a cidade não é
feitas de pedras”, mas de homens “que atribuem valor às pedras” (ARGAN, 1992,
p. 228). É possível afirmar que é como um novo sistema de valores que o Plano
de Chicago introjeta-se na vida da segunda maior cidade americana da época.
16
Marsílio Ficino (Florença, 1433 – Careggi, 1499), filósofo italiano, representante maior do
humanismo florentino. Junto a Giovanni Picolo dela Mireola, encontra-se na origem do pensamento
e da filosofia renascentista do séc. XVII. Tradutor e difusor da obra de Platão.
112
O sucesso dessa política pode ser observado pela profusão de espaços
públicos referenciais na vida cotidiana dos cidadãos de Chicago. Para sua
compreensão, será interessante explorar os conceitos de espaço público e esfera
pública.
Segundo Habermas (1984), a “esfera pública (...) pode ser entendida
como a esfera das pessoas privadas reunidas num público objeto da autoridade
do Estado, e a condição para seu desenvolvimento foi o surgimento de instituições
específicas, funções culturais das cidades que viabilizariam a representatividade
desse poder civil.” Tal acepção parece corresponder ao processo que levou à
requalificação do espaço urbano de Chicago que, a partir de um plano urbano,
levou à criação de espaços públicos correspondentes à criação de lugares de
manifestação da esfera pública.
Como afirma Pereira Leite, o espaço público é o “espaço de
propriedade pública e sobre o qual age o poder público para prover as condições
de funcionamento urbano” e, ainda, é o “espaço de apropriação pública onde se
realizam as ações da esfera pública.” Ele não é “a esfera pública e nem o lugar
necessário de sua realização, mas tem nos seus elementos constituintes
importantes aliados para essa realização” (PEREIRA LEITE, 2011, p.160).
Citando Habermas, a autora aponta que a esfera pública
“historicamente constituída com o fortalecimento da burguesia, acompanha a
crescente complexidade das sociedades capitalistas.” Tal afirmação descreve com
precisão o momento econômico de uma cidade em franco processo de
crescimento econômico que se vê na contingência de compreender novos atores
em novos papeis, novas demandas em novas escalas, e a formular novas ações e
novos instrumentos capazes de promover as desejadas mudanças. Lembremos
que a patrocinadora do plano foi a elite comercial e industrial de Chicago, e que o
mesmo foi amplamente comunicado antes de sua implementação.
Queiroga et. al. (2009), por sua vez, trabalham a ideia de esfera pública
com base na elaboração de Hanna Arendt (1991). A filósofa parte da expressão
113
vita activa e a compreende como sendo composta por três atividades humanas
consideradas fundamentais: o labor, o trabalho e a ação.
O labor diz respeito ao atendimento das necessidades do corpo
biológico, o trabalho constrói a artificialidade do mundo e seria o responsável por
sua duração além do período de vida humana, e a ação seria “(...) a única
atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas
ou da matéria” (QUEIROGA, 2009, p. 5).
“Portanto, a ação corresponderia à “esfera pública”, a da realização da
política stricto sensu, que desde a Antiguidade tem profunda relação com a
organização do poder na cidade” (QUEIROGA, 2009, p. 5).
É interessante observar que, em algum grau, os elementos
fundamentais apontados por Arendt encontram-se direta ou indiretamente
referidos nas definições ou ações contidas no plano. O labor, que diz respeito ao
atendimento das necessidades do corpo biológico, seria contemplado pela cidade
saneada e pelos espaços livres destinados à saúde, ao entretenimento e ao ócio
dos corpos.
O trabalho, por sua vez, estaria representado pelo esforço coletivo de
todos em torno da construção de uma nova cidade, um novo artefato, que
estabelece as condições para o futuro, para além do tempo da vida humana. E a
ação, a implementação do plano em si mesma, como ato político a manifestar-se
na esfera pública, a envolver “a produção cultural, a construção da cidadania, do
interesse público, do bem público constituído socialmente diante do conflito de
interesses individuais ou de grupos e teria a realização nos 'espaços públicos'”
(QUEIROGA, 2009, p. 5).
114
4.3.7. Paisagem como fato cultural
115
A intencionalidade do discurso do plano, a dimensão pública do
processo de sua elaboração e de suas proposições, a importância do papel dos
espaços públicos, livres e abertos no âmbito de um processo ambicioso de ampla
requalificação urbana e aqui, particularmente, a linguagem do pinturesco e a
valorização do componente artísticos no desenho destes espaços configuram a
paisagem como um fato cultural novo da cidade de Chicago.
Ou, de outro modo, a cidade passa a ser considerada como um artefato
– algo feito com arte.
116
agradam a vista, que se organizam gradualmente no tempo e no espaço, e que
podem ser símbolos representantes da vida urbana” (LYNCH, 1979, p.103).
O paralelo da pesquisa de Lynch com as diretrizes do plano nos parece
possível. O postulado acima ecoa o discurso do plano quanto ao papel das
manifestações artísticas urbanas e sua relação com o cidadão.
Lynch, que é de Chicago e lá atua, trabalha em realidades urbanas
existentes. Sua pesquisa o leva a concluir que há tantas maneiras de realizar (to
realize) aquilo que chamamos de cidade quantos habitantes nela houver.
As entrevistas individuais revelaram que uma mesma realidade
possibilita imagens diferentes de cidade, mas a análise conjunta do material
tabulado mostrou que todos os entrevistados referem rua como rua, bairro como
bairro, cruzamento como cruzamento. Além da identificação individual desses
elementos, sejam físicos ou psicológicos, materiais ou imateriais, permite
diferentes correlações que cada habitante faz e que resultam em sínteses
particulares e diferentes imagens de cidade. Mas a pesquisa revela também que
há aspectos comumente percebidos que construirão uma imagem coletiva de
cidade ou, como Lynch define, a imagem pública da cidade.
Merecem menção certos paralelos entre os pontos notáveis destacados
pelo plano e os elementos urbanos identificados pela pesquisa de Lynch.
No plano, as vias – hidrovias, ferrovias, rodovias, ruas e avenidas – têm
um lugar relevante na construção da identidade moderna da cidade requalificada.
Para além da modernização funcional do sistema viário, demanda urgente que a
condição moderna impõe, as imagens do plano mostram a importância simbólica
que os elementos de mobilidade em geral têm. Em Lynch, “para a maior parte dos
entrevistados (as vias) (...) constituíam os elementos predominantes” (LYNCH,
1979, p.60).
Outros elementos referenciais do plano são o Lago Michigan, o rio
Chicago e suas orlas. O plano, que os valoriza, prevê a urbanização desses
elementos lineares que estabelecem o limite entre a terra e a água. Em Lynch, os
117
limites são “elementos lineares não entendidos como ruas (...) são normalmente
(...) fronteira entre duas áreas” (LYNCH, 1979, p.58).
As posturas do plano são pautadas por uma moralidade, como vimos.
Para que atue, é necessário que ela se manifeste plasticamente e simbolicamente
nos espaços públicos por meio de elementos que os qualifiquem em lugares de
referência. Ou, nos termos de Lynch, por meio de marcos urbanos, “pontos de
referência considerados exteriores ao observador (...) elementos físicos variáveis
em tamanho (...) (cuja) característica chave é a originalidade, um aspecto que é
memorável ou único no contexto” (LYNCH, 1979, p.60).
Estes elementos, como os pontos notáveis do plano, articulam-se em
linguagens, tornam-se discurso legível. Vale lembrar a analogia que Argan faz
“entre o fenômeno da estruturação do espaço urbano e o fenômeno da
estruturação da linguagem” (ARGAN, 1992, p. 237).
Lynch, para quem “a legibilidade é crucial para o cenário urbano”
(LYNCH, 1979, p. 12), destaca o papel das paisagens como “o esqueleto sobre o
qual muitas raças primitivas erigem seus mitos socialmente importantes” (LYNCH,
1979, p.83). Segundo o autor, a “imagem da cidade claramente definida” fornece
matéria prima para a construção simbólica, para certas práticas coletivas e para os
conteúdos reminiscentes da sociedade. (LYNCH, 1979, p.84).
O investimento do plano em mais de 140 imagens de forte teor
simbólico pode ser interpretado como a matéria-prima que permitiu aos cidadãos
verem além dos elementos em si mesmos representados, isto é, tornou-lhes
legível uma moral correspondente ao homem e à cidade modernos, tornando
possível enxergar, imaginar, as múltiplas possibilidades da cidade futura que se
projetava. De algum modo, o plano materializou a imagem da cidade moderna.
118
4.3.9. A cidade como artefato
119
Projeção e concretude, ideal e real: Argan propõe que a ideia de cidade
seja amparada por entidades distintas, mas complementares: o ideal e o real, que
se cruzam de modo permanente para estabelecer a condição de sua existência.
Verifica-se que o plano apoia-se numa extensa e minuciosa base de
dados físicos e econômicos, sistematizados e tecnicamente apropriados, e os
fundamenta com os ideais e valores que nele se manifestam plástica e
artisticamente, confirmando assim seu papel de ponto de encontro da cidade real
com a cidade ideal.
Mas, se a cidade real coloca-se no âmbito da objetividade dos “fins
preestabelecidos” nos termos de Christopher Alexander, a cidade ideal responde
pelo conteúdo ideológico daquilo que chamamos urbanismo, um urbanismo em
que o plano reafirma seu papel orientador, portanto ideológico, que age no sentido
da mudança de um estado de coisas.
O paradigma antropocêntrico surgido com a Renascença, que permitiu
a concepção da arte como expressão da individualidade, tornou possível também
a cidade concebida por um artista, como obra de arte total a partir de uma visão
pessoal. As concepções espaciais e arquitetônicas do plano expressam de modo
indelével as concepções de Burnham, antes experimentadas na Exposição
Mundial de 1893. A cidade ideal do plano representa um conjunto de conceitos e
valores, e a ordem urbanística não refletirá “apenas a ordem social, mas a razão
metafísica ou divina da instituição urbana” (ARGAN, 1992, p. 75).
120
eixos viários (Avenida Michigan), o tratamento paisagístico pinturesco dos
parques, e a arquitetura dos edifícios, revelam a condição de artefato da cidade,
reiterada nos muitos espaços públicos qualificados pela presença expressiva de
monumentos e obras de arte.
É possível perceber a importância da arte pública na vida de Chicago
pela abundância de obras de arte de grande qualidade distribuídos pela área
central, parques, e ainda de muitos monumentos em diversos lugares da cidade.
Constitui, no conjunto, um grande acervo de arte pública, uma atração em si
mesmo. E parte dele são marcos de lugares referenciais da cidade.
Tal acervo de arte pública foi criado e é mantido não apenas pelas
muitas doações particulares que ocorreram, mas também com políticas públicas e
programas de incentivo ao desenvolvimento das obras artísticas em escala
urbana.
Diferentemente dos acervos dos museus, e os museus de Chicago são
bastante significativos no plano mundial, esse acervo a céu aberto integra-se à
cena urbana e contribui para qualificar cada um dos espaços que ocupa.
Estes objetos urbanos especiais – as obras de arte dos espaços
públicos – constituem alguns dos elementos mais visíveis da dimensão artística
que o urbanismo de Chicago oferece.
Para demonstrar essa condição, a pesquisa buscou avaliar a presença
de obras de arte através de uma base de dados secundária com um levantamento
quantitativo do acervo existente, por meio de informações obtidas pela pesquisa
na rede mundial de informações. Por outro lado, traz algumas informações
relativas à programas públicos de apoio ao desenvolvimento de arte pública.
Finalmente, investiga as relações espaciais, morfológicas e arquitetônicas
estabelecidas entre algumas obras de arte paradigmáticas e os espaços em que
se encontram, a revelar as qualidades surgidas dessa interação.
A pesquisa revelou uma boa quantidade de sítios e títulos específicos
dedicados ao tema, por exemplo:
Index of American Sculpture. University of Delaware; 1985.
121
Bach, Ira J., and Mary Lackritz Gray, A Guide to Chicago's Public Sculpture
Chicago: University of Chicago Press; 1983, pp. 54-55.
Riedy, James L., Chicago Sculpture. Chicago: University of Illinois Press;
1983, pp. 255-257.
Gray, Mary Lackritz, Department of Cultural Affairs Loop Sculpture Guide
Chicago: Department of Cultural Affairs; 1990, no. 4.
Save Outdoor Sculpture. Illinois: Chicago survey; 1992
“Public Art in Chicago”, blog e site da estudante de arte Jyoti Srivastava;
que permite uma aproximação quantitativa e qualitativa de obras de arte na
cidade. Está organizado segundo as regiões da cidade O arrolamento
contabiliza 318 obras, entre monumentos históricos comemorativos,
esculturas, afrescos, mosaicos e instalações tais como:
Figura 51. (sem título). Pablo Picasso, 1967. Praça Federal, Chicago, Illinois. Conhecida por
”Picasso”.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/10/untitled-know-as-picasso.html
122
Figura 52. Construção no espaço e nas
terceira e quarta dimensões - Antoine
Pevsner, 1959. Escola de Direito da
Universidade de Chicago, Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-
sculptures.blogspot.com.br/2010/11/construction-in-
space-and-in-third-and.html
123
Figura 53. Grande forma interior. Henry Moore, 1983. Jardim Norte do
Instituto de Arte de Chicago, Chicago, Illinois.
Fonte: foto do autor.
124
Figura 55. Monumento com besta em pé. Jean Dubuffet, 1984. Thompson Center,
Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/09/monument-with-standing-beast-
jean.html
125
Figura 57. Flamingo. Alexander Calder, 1974. Federal Plaza, Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/09/flamingo.html
Figura 58. Escultura sonora. Harry Bertoia, 1975. Aon Center, Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/11/sounding-sculpture.html
126
Figura 59. Fonte da coroa (Crown fountain). Jaume Plensa, 2004. Parque do Milênio,
Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/09/crown-fountain-millennium-park-v.html.
Figura 60. Portão da nuvem (Cloud gate). Anish Kapoor, 2006. AT&T Plaza, Chicago,
Illinois.
Fonte: foto do autor.
127
As obras históricas ou épicas, por sua vez, ocupam os pontos focais
dos parques, estrategicamente colocadas nas linhas visuais principais, criando
pontos de interesse nos percursos. Algumas obras estão em pontos de passagem
obrigatória, como o busto de Jean Baptiste Pointe DuSable junto ao Caminho do
Fundador DuSable (DuSable Founder’s Way), passeio junto ao rio Chicago que
liga a Corte do Pioneiros ao Parque DuSable, localizado no encontro com rio com
o Lago Michigan.
Os presidentes George Washington, Abraham Lincoln e Andrew
Jackson, os generais Ulysses Grant e John Logan, e muitos outros personagens
da história norte-americana e da cidade de Chicago são representados em bustos,
esculturas, afrescos e baixos relevos.
128
Figura 63. Robert Burns. W. Grant Stevenson,
1906. Parque Garfield, Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-
sculptures.blogspot.com.br/2010/05/garfield-park-
robert-burns-by-w-grant.html
129
É interessante observar que esta modalidade de arte pública, de cunho
figurativo histórico, é contratada junto às obras de caráter abstrato, sendo
igualmente apoiada pelos programas de arte pública.
Todavia, a pesquisa se aterá aos conjuntos urbanizados que
estabelecem o diálogo urbanismo-arquitetura-obra de arte e que constituem
espaços públicos inseridos na malha urbana ou em locais de interesse mais
diversificado, com grande afluxo de pessoas. Deixaremos para um
aprofundamento posterior o caso das obras comemorativas localizadas nos
parques ou em pontos notáveis da cidade, mas que não estão associadas
diretamente às edificações próximas, constituindo-se em elementos de certa forma
isolados na paisagem.
Figura 65. Abraham Lincoln. Augustus Saint-Gaudens, 1926. Parque Grant, Chicago,
Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2008/12/lincoln-statue.html
130
4.4.1. Os programas de arte pública
131
reforma de edifícios ou espaços públicos da cidade e ainda metade dos contratos
fossem feitos com artistas locais. É importante observar que esse instrumento
legal condiciona a produção de espaço urbano edificado à produção de arte
pública, vinculando a atividade imobiliária à atividade artística e criando assim uma
relação duradoura entre a produção de espaço urbano e a produção de arte
pública. Trata-se de um processo de institucionalização das políticas e programas
de arte pública em favor da constituição de acervos de arte pública nas cidades
norte-americanas, e em particular na cidade de Chicago.
132
4.5.1. Metodologia
133
c. Paisagem Adotam-se as considerações de Bernardo
Secchi (2006) quanto ao papel dos espaços abertos - o
jardim, a praça e o parque – na configuração da paisagem
física e cultural da cidade, como objetos centrais que
atuam como “metáfora da cidade e da sociedade, lugar
investido como prefiguração e ideologização por uma
sociedade bem organizada”.
134
fortemente sugerido, “é algo que está ao mesmo tempo
presente e sempre fora do nosso alcance” (CULLEN, 1983,
p.36). Entre a plena certeza do primeiro e forte impressão do
segundo, o autor registra um fluxo perceptual e emocional
com origem no arranjo e nas relações dos objetos no espaço.
e. Entrelaçamento: (CULLEN, 1983, p. 40) parte-se da ideia de
que o ambiente é um todo integrado, e o entrelaçamento
consiste na ligação dos diversos elementos urbanos num
todo coerente, num padrão reconhecível, a relacionar
escalas, posições relativas e demais atributos – textura, cor,
material.
f. Pontos no espaço: (BACON, 1975, p. 25) pontos situados
livremente no espaço estabelecem linhas de tensão entre si,
a observação em movimento ou o percurso entre os pontos
renovas as linhas de tensão: se oferecem novas
possibilidades de fruição. Obeliscos, pontos destacados
sobre cúpulas, torres.
g. Planos recessados: (BACON, 1975, p. 25) é o efeito do
proscênio, uma composição básica num plano de fundo que
estabelece uma composição básica de referência, um quadro
de referência que nos permite perceber as dimensões e a
escala dos objetos, colocando-os em relação.
h. Desenho em profundidade: (BACON, 1975, p. 26) recurso de
composição espacial usado repetidamente ao longo do
tempo, em que elementos arquitetônicos são colocados numa
espécie de hierarquia espacial, um na frente, outro atrás, a
permitir a experiência da visão perspéctica e o sentido do
tamanho do espaço criado.
135
E, ainda, agregamos três conceitos advindos da experiência perceptiva
e projetual do autor:
136
Figura 66. O percurso dos lugares visitados. Chicago Loop, Chicago, Illinois.
Fonte: Google Earth
4.5.3. Percursos
137
Figura 67. Thompson Center, Murphy e Jahn, 1985, Chicago, Illinois.
Fonte: foto do autor.
138
Figuras 68, 69, 70. Thompson Center, Murphy e Jahn, 1985, Chicago, Illinois.
Visadas (no sentido horário): oeste, sul, leste e oeste, as últimas a revelar a abertura visual –
esquina ampliada - proporcionada pelo arco do edifício.
Fonte: Google Earth
Figuras 71. Monumento com besta sentada, Jean Dubuffet, 1984. Chicago, Illinois.
O movimentado pano de fundo do edifício acaba por diluir a obra na paisagem.
Fonte: foto do autor.
139
O primeiro ponto notável é o “Monumento com besta em pé”, escultura
em fibra de vidro de Jean Dubuffet, está situada na esquina das ruas Clark com
Randolph, em frente ao Centro James R. Thompson, projeto de C.S. Murphy e
Helmut Jahn, de 1985.
O edifício ocupa a quadra inteira, organizado em torno de um espaço
livre interno, vazio central iluminado por abertura zenital que interliga verticalmente
os 15 pavimentos. Uma estrutura aporticada determina o embasamento do
edifício, e se o recurso dos vedos recessados permite uma galeria aberta coberta
continua com cerca de 8 m de altura. essa, entretanto, se comunica com a praça
interna ao edifício apenas através de acessos determinados por portas duplas,
fechadas por exigência de condicionamento interno de ar.
Os vedos, executados em estrutura metálica e vidro reflexivo,
constituem uma caixilharia continua que obedece a um padrão reticulado
multifacetado. As cores utilizadas no revestimento quadriculado dos pilares da
estrutura aporticada, em branco e tons de vermelho e azul esmaecidos,
determinam uma arquitetura que contrasta com a sobriedade característica da
arquitetura moderna.
O programa do edifício atende às necessidades administrativas
públicas do Estado de Illinois, com exceção dos dois primeiros pavimentos, que
abrigam um pequeno centro comercial com 40 lojas. O espaço de agregação
desloca-se de fora para dentro, do público para o semipúblico ou semiprivado. O
espaço público – externo – resta como espaço de passagem.
O grande arco que faz a concordância entre as laterais do edifício das
ruas Clark e Randolph, abre espaço para uma esquina ampliada, pequena praça
que recebe a escultura de Dubuffet. A praça é também delimitada pela colunata
que se desprende do edifico para marcar o perímetro da quadra. O raio ampliado
de visão define o momento em que a vista se alarga para divisar a paisagem das
faces das quadras vizinhas.
Definida como “um desenho que projeta no espaço”, a escultura de
Dubuffet, executada em fibra de vidro, foi inaugurada em 1984, tendo sido
140
concebida em 1969. A obra reflete o conceito do artista de Arte Bruta, como “o
trabalho executado por pessoas intocadas pela cultura artística (...) a partir de
suas próprias profundezas, e não de clichês da arte clássica ou da arte que está
na moda” (DUBUFFET, 1949).
Vale observar que o espaço que é dominado pelo massivo edifício de
arquitetura pós-modernista, é o mesmo que recebe uma obra com uma ideia
radical da arte, aqui as praças parecem expressar o projeto e o desejo de uma
sociedade feliz com seus lugares de consumo e trabalho garantidos acima de
tudo. A transferência de peso das praças, da externa, seca, de passagem, para a
interna, transformada em um grande lobby de centro comercial. Ou, como aponta
Secchi (2006, p.25), são os espaços de “prefiguração e ideologização por uma
sociedade bem organizada”.
A despeito do efeito mimético que o padrão das fachadas do vizinho
impõem, acrescido da profusão de elementos que demarcam o perímetro da
praça, a “Besta” de Dubuffet, com seus 9 m de altura, é um ponto focal importante
nesta esquina ampliada que, entretanto, é apenas um espaço de passagem,
espécie de “hall de entrada” do edifício.
Em que pese o contexto um tanto rebuscado, a “Besta” estabelece um
contraste radical – como queria o artista – com o entorno e com as pessoas,
propondo uma geometria outra que prescinde de conceitos como simetria,
equilíbrio e outros elementos tradicionais da arte. Suas formas são objeto de
avaliações sempre apaixonadas, nunca indiferentes.
141
Figura 72. Praça Daley, Murphy, S.O.M., Loebl, Schlossman &
Bennett, 1965, Chicago, Illinois. Detalhe da visada norte, com o
Centro Thompson ao fundo.
Fonte: foto do autor.
142
Figura 73. Praça Daley, Murphy, S.O.M., Loebl, Schlossman & Bennett,
1965, Chicago, Illinois. Visada norte, com o “Picasso” em edifício Richard
Daley. Notar a similaridade dos materiais estruturais e contraponto
orgânico da escultura ao ortogonalismo geral do ambiente.
Fonte: foto do autor.
Figura 74. Praça Daley, Murphy, S.O.M., Loebl, Schlossman & Bennett,
1965, Chicago, Illinois. Os vedos recessados alargam o passeio, e criam
uma espaço coberto que faz a transição das escalas.
Fonte: foto do autor.
144
Figura 76. Manifestação na Praça Daley em 11 de setembro de 2001.
Fonte: http://freepages.genealogy.rootsweb.ancestry.com/~ladyejane/911-16-prayer.JPG
145
O próximo ponto notável
encontra-se do outro lado da rua
Washington, um espaço residual entre
duas imponentes massas edificadas.
Instalada depois da construção do
Edifício Brunswick, projeto de Skidmore,
Owings & Merrill de 1962, a escultura
Figura 77 – Ao pé de Miró: descanso, “Chicago de Miro” foi desenhada em
pequeno remanso.
Fonte: foto do autor. 1963, e inaugurada em 1981. Este
pequeno espaço, com não mais do que 15 m de largura recebe uma escultura
com 12 m de altura, transformando o espaço residual entre as massas edificados
num pequeno recinto ou enclave, segundo o conceito de Cullen.
A qualidade plástica da obra e o peso do nome de seu autor trazem
valor e significado a este pequeno espaço aberto, que dada sua característica de
espaço residual permite uma inserção apenas lateral na paisagem dominado pelo
conjunto da Praça Daley. Entretanto, é exatamente essa característica que a torna
um espaço de alguma forma acolhedor. Os passantes param, sentam-se na base
da escultura, não se demoram, mas lá permanecem por algum tempo. Parece
funcionar como o enclave ou recinto descrito por Cullen, acrescido de um ponto
focal poderoso, que transforma este pequeno espaço aberto. A obra acentua a
verticalidade do espaço enquanto faz a transição para a escala humana.
A seguir pela Rua Clark, ainda no sentido sul, encontra-se mais um dos
pontos notáveis deste breve percurso, outro exemplo de projeto que ocupa a
totalidade da quadra. A Torre Chase ocupa a metade norte desta, e libera um
grande espaço aberto na metade sul, ocupado por uma praça organizada em três
níveis.
146
No nível do passeio estão um edifício térreo ocupado por uma
lanchonete e o acesso aos sistemas de mobilidade subterrâneos. No plano
intermediário, a escultura “Quatro estações”, de Marc Chagall. E, no plano inferior,
uma praça rebaixada forma um ambiente protegido que abriga áreas de estar com
mesinhas e guarda-sóis em volta de um espelho d’água e fonte centrais. “Quatro
estações” é um grande monólito horizontal revestido por belíssimos mosaicos
elaborados pelo artista, com materiais trazidos dos mais diferentes lugares do
mundo. Cada face revela um mural com temas figurativos e alegóricos,
constituídos por paisagens diáfanas que alternam luz e sombra. O ambiente é
preservado do movimento das ruas, e propicia momentos de relaxamento e fruição
da obra, sendo quase um espaço de exceção. Ou é um recinto no sentido de
Cullen.
147
Como a Praça
Daley, um grande edifício
e três ruas conformam a
praça, mas neste caso o
térreo do edifício de 259 m
de altura, projetado de
C.F. Murphy Associados,
Stanislaw Z.
Gladych e Perkins e Will
em 1962-64, não é
permeável. Serve de limite
físico opaco para a o
conjunto. O caráter desse
espaço público é oposto às
duas outras praças que
Figura 79. Praça Exelon, Chicago, Illinois.
Fonte: Google Earth. vimos. Aqui, há a praça no
nível do passeio que
emoldura de uma praça
menor, central, rebaixada
em 2 m e assim protegida,
quase uma sala de estar
ao ar livre. No seu lado
leste, num nível
intermediário, está “Quatro
estações” que, devido à
diferença de cotas, mais
parece um quadro
148
fragmentação do espaço em pequenas partes, ambientes distintos, o que pode
revelar certa preferência por espaços públicos de dimensões reduzidas, que não
permitem mais que um pequeno número de pessoas, sentadas em simpáticas
mesinhas guarnecidas por guarda-sóis. É um recinto isolado do movimento.
A escultura de Chagall, que mede 21 m comprimento, 2,4 m de altura e
3,9 m de largura, está colocada em recinto próprio, de certa forma isolada do
conjunto pelos bancos de observação que a circundam. Inicialmente não havia
Figura 82. “Quatro estações”, Marc Chagall, 1974, Praça Exelon, Chicago, Illinois.
Fonte: foto do autor
149
cobertura. A que vemos nas fotos foi agregada à obra para protegê-la, em 1996.
Os pesos aproximados das massas construídas na praça, a lanchonete, a
cobertura da pedway e a cobertura da escultura têm proporções e alturas
próximas, podendo ser vistos como focais que competem.
150
O conjunto é
composto por quatro
elementos, sendo três
edifícios: o edifício Everett
M. Dirksen – Fórum dos
Estados Unidos (U.S.
Courthouse), de 30
pavimentos; o Edifício
Federal (Federal Building)
Figura 85. Centro Federal Chicago. Implantação, Mies van
der Rohe 1959/64, Chicago, Illinois. John C. Kluczynski, de 42
Fonte: Mies van der Rohe at work, Phaidon Press, 1974
pavimentos, que articulado
Figura 86. Centro Federal Chicago, hall do edifício Everett M. Dirksen. Chicago, Illinois.
Fonte: Mies van der Rohe at work, Phaidon Press.
à Agência dos Correios dos Estados Unidos (U.S. Post Office), de um pavimento,
conforma a praça, junto à Rua Dearborn.
151
Os edifícios maiores conformam as quadras assim como outros nas
ruas do entorno e de grande parte da área central da cidade, uma vez que
ocupam o terreno a partir do alinhamento de divisa.
O arquiteto faz a transição entre o publico e o privado através da
recessão dos vedos do pavimento térreo, e o passeio, que avança sob a projeção
dos edifícios, transforma-se em galeria coberta aberta.
Os planos recessados dos vedos transparentes de cristal temperado
garantem a continuidade espacial e delimitam os halls de acesso aos edifícios.
Através deles é possível ver a escultura de Calder, o edifício da agência dos
Correios e todas as fachadas do entorno. Tal transparência sugere ainda o efeito
do aqui e além: o edifício dos correios permite ver as fachadas que estão atrás de
si, além deste edifício que se interpõe entre o observador e o que está situado
depois dele.
O ritmo estrutural dos edifícios e os materiais usados – aço e vidro –
estabelecem um diálogo que entrelaça os elementos do conjunto.
A escultura de Calder, “Flamingo” situa-se num dos extremos da praça,
o que nos faz lembrar da recomendação de Sitte de não ocupar com monumentos
o centro das praças. É o ponto focal do lugar e introduz um elemento diferenciado
na cor e no aspecto formal, e se relaciona com o sítio pela ideia de contraste. O
“vermelho Calder” se destaca do preto das estruturas arquitetônicas e dos tons
semitransparentes de cinza dos vedos dos edifícios. Estes, marcados pela
absoluta ortogonalidade, têm seu contraponto nas curvas orgânicas da escultura.
Todos, entretanto, usam do mesmo material, aço, para manterem-se em pé.
A “cabeça” do flamingo se desprende do corpo, parece querer alçar
voo, e as patas da ave tocam delicadamente o solo. Leveza e peso contrastam em
forma e conceito, leveza do conceito de algo que voa em contraponto com o peso
da estrutura metálica que ancora o voo, que assim o nega para afirmá-lo. De
modo quase análogo, as enormes massas verticais negras dos edifícios da Justiça
e da Administração repousam sobre pilares delgados que suportam o espaço livre
dos térreos, transparentes.
152
Morfologicamente, “Flamingo” estabelece seu diálogo com a escala
urbana pelo seu porte. Seus quase 16 m de altura estão em relação com os 10 m
de altura do edifício do correios e os 7 m dos halls de entrada dos edifícios. Seu
porte e sua localização na praça fronteiriça ao correio estabelece um jogo de
massas positiva e negativa, um campo de força entre o grande objeto vermelho e
o “vazio” que completa área da praça unida ao passeio da rua Dearborn, para a
qual se abre, pontuada apenas por jardineiras distribuídas ritmicamente em sua
extensão. Em oposição, quatro indivíduos arbóreos com não mais do que 8 m de
altura atuam como novos pontos focais e demarcam uma espécie de véu que
delimita este espaço, junto à rua Walker.
Referência obrigatória para quem visita Chicago, o lugar aqui é
plenamente qualificado pela morfologia urbana constituída pelos elementos –
edifícios, sistema viário, cheios e vazios – em permanente diálogo entre si e com a
escultura de Calder, evidenciando a potência dos elementos simbólicos e
conteúdo artístico representado pela arquitetura e pela escultura.
Mies retoma o tema central de Sitte, ao criar uma praça (ainda que
parcialmente) definida por edifícios, uma espaço conformado por massas
edificadas, ainda que inserida no grid viário ortogonal. Os edifícios abrigam
programas de serviços públicos essenciais, tais como a corte federal e os correios.
No melhor da tradição renascentista, barroca e neoclássica, a praça recebe a
posteriori do projeto, uma escultura em escala compatível com a escala dos
edifícios vizinhos, feita do mesmo material estrutural que eles – numa espécie de
153
citação ou reiteração construtiva poética – e os confirma pelo contraste da cor, o
preto das estruturas arquitetônicas, o vermelho da estrutura escultural.
Constitui-se aqui uma paisagem física e cultural da cidade, em que o
espaço atua metaforicamente pelo seu conteúdo ideológico: presentes, aqui, o
poder público a representar a sociedade civil, a relação de transparência entre o
público e o privado na arquitetura, e o conteúdo simbólico e artístico da escultura
ali residente.
Figura 88 – Marcha Pró Imigração, Federal Plaza, Chicago, Illinois. Pierre Tristam,
Daytona Beach News Journal, janeiro de 2008. Fonte:
http://www.pierretristam.com/images2/i08/0109-calder-flamingo.jpg
154
4.5.3.1. Parque do Milênio
155
Figura 89. Parque do Milênio,
1997/2004, Chicago, Illinois.
Fonte:
http://upload.wikimedia.org/wikipedia
/commons/thumb/7/77/Millennium_P
ark_Map_labels.png/400px-
Millennium_Park_Map_labels.png
156
Figura 91. O percurso completo: as obras
em espaço abertos
Fonte: Google Earth.
157
O artista, cujo trabalho se caracteriza pela reflexão das imagens em
superfícies ultrapolidas de aço inoxidável, é reconhecido pelo uso intenso da
modelagem geométrica em computação. Com volume equivalente a um pequeno
prédio de 3 andares, a escultura mede 19,8 m de comprimento, 9,9 m de altura e
12,6 m de largura, e está instalada na Praça AT&T com superfície de 2 800 m2. A
referência às dimensões da obra serve para situar a questão da escala do objeto
em relação ao entorno, suficiente para tornar-se uma das “centralidades”
obrigatórias do parque.
"Portão das nuvens" é parte de um grande conjunto de atrações,
fazendo do parque uma espécie de parque de diversões ou de entretenimento. A
ser isto verdade, talvez se explique a diversificação dos itens do programa e das
soluções formais.
Mesmo nesse meio disputado, a obra de Kapoor destaca-se por inverter
uma lógica estabelecida de leitura da paisagem. Ao invés de construirmos a
158
paisagem através de elementos novos introduzidos em contexto existente, o
Portão propõe um olhar para a cidade a partir de sua imagem total refletida num
espelho convexo continuo, modelado matematicamente em computador.
Refletem-se numa única superfície toda a abobada celeste, o skyline
marcante da cidade, as cenas de que todos participam ao nível de solo e o próprio
solo. A cidade e a obra passam a serem tema e suporte do tema,
simultaneamente.
A concavidade inferior, que convida a passagem sob a enorme
estrutura, também oferece visões espelhadas inusitadas, por se tratar de espelho
curvo.
Um pouco mais ao Sul está, também em ambiente próprio, a fonte do
catalão Jaume Plensa, a “Fonte da Coroa”. Polêmica desde sua inauguração, a
instalação atualiza o tema tradicional das fontes. Como as gárgulas, mecanismos
que funcionavam como os desaguadouros dos telhados para levar a água longe
das paredes da edificação, representações mitológicas do diabo a espreita a exigir
159
a eterna vigilância das almas, os dois totens da “Fonte da Coroa” jorram água
enquanto mostram imagens das faces dos cidadãos de Chicago.
Para Plensa, “uma fonte não é decoração. É algo mais. “Fonte” está
falando de vida, porque a água é a origem de toda forma de vida. A fonte pode ser
também um arquivo, de pessoas morando na cidade, as pessoas reais, que estão
construindo a cidade.” (LABB, 2006)
As torres, que emulam as formas arquitetônicas gerais da paisagem,
são o suporte de imagens das faces dos cidadãos de Chicago. São, também, as
fontes das quais jorram as águas que criam uma pequena praça molhada, que é
um atrativo às parte.
Como o “Portão”, a obra de Plensa traz conteúdos simbólicos
importantes – a água como fonte da vida, os habitantes da cidade como a vida
mesma da cidade – atividades lúdicas e interativas. A arte ganha uma dimensão
publica pelo envolvimento afetivo que a
obra desperta.
É, ao mesmo tempo, uma
arquitetura de volumes, de cheios e
vazio, texturas e materiais cuja escala
dialoga, com os planos recessados das
elevações dos edifícios da Avenida
Michigan e os da Rua Randolph (limite
norte do parque), distantes cerca de 70
m e 400 m respectivamente.
160
Figuras 98, 99. 100. Fonte da coroa (Crown fountain), Jaume Plensa, 2004.
Fonte: fotos do autor.
161
A população da “Ágora” de Magdalena Abakanowicz, que habita o
extremo sul do Parque Grant, é mais umas obras escultóricas que vieram com o
Parque do Milênio. Mas está a mais de 1.500 m do Loop, do lado oposto do
parque. Trata-se de um conjunto escultórico figurativo de 106 figuras em ferro
fundido com 3 m de altura ocupa o último gomo do parque junto à Avenida
Michigan, esquina com Rua Roosevelt; criado na Polônia, foi inaugurado em 2006.
A artista, filha de família aristocrática das cercanias de Varsóvia,
nasceu numa época marcada pelo genocídio da Segunda Grande Guerra e pelo
jugo soviético de 45 anos de duração. A percepção das “diversas formas de ódio
coletivo e adulação coletiva” nas “marchas e desfiles com líderes adorados,
grandes e bons, que logo acabaram por ser assassinos em massa” a levariam a
dizer: “Eu estava obcecada pela imagem da multidão (...). Eu suspeitava que, sob
o crânio humano, os instintos e emoções subjugam o intelecto sem que estejamos
consciente disso."
162
Figuras 103, 104. Ágora, Magdalena Abakanowicz, 2004/2006.
Fonte: foto do autor.
163
Figura 105. Ágora, Magdalena Abakanowicz, 2004/2006.
Fonte: foto do autor.
As figuras da “Ágora”, portadoras de um significado atualíssimo,
também atuam simbolicamente no sentido do perene e do transitório da condição
humana. O ferro fundido pereniza o corpo humano e o desfragiliza perante o
tempo implacável cuja passagem está presente, entretanto, na lenta degradação
do ferro e nos rastros de material oxidado que o vento espalha.
Como o lugar da ideologização e da prefiguração, o parque ganha uma
obra que confirma o espaço aberto, público, como o lugar do discurso público e
coletivo, no sentido da mensagem que diz respeito a todos. Subjacente à
dimensão artística do fato urbano, há a dimensão política que o discurso encarna.
164
É importante observar que a instalação artística está localizada num
espaço antes ocupado apenas por gramado e junto ao passeio, por uma pequena
fonte junto à Avenida Michigan, a Fonte Rosemberg, instalada em 1893 e
restaurada em 2004. Sobre a cúpula da estrutura que protege o vertedouro, há
uma escultura do artista alemão Franz Machtl.
165
166
5. Considerações finais
167
Argan estabelece de modo claro a profunda relação entre arte e cidade,
cujas origens se fundem no tempo. Para ele, a arte é inseparável do contexto
cultural das demais atividades humanas, pelo simples fato de que não pode existir
fora do contexto que a gerou. Sendo a cidade um artefato, não pode prescindir da
manifestação artística em seus espaços representativos. Os espaços anômicos
abundantes nas aglomerações urbanas contemporâneas testemunham o fato.
168
Este sentido de coletivo contrapõe a lógica de valores associado ao solo
urbano, disputado pelos agentes econômicos como mercadoria. Situação
particular das nossas cidades, em que o interesse privado prevalece sobre o
público, e a expansão urbana exige novos estoques de solo, fazendo com que os
lugares históricos tradicionais centrais sejam constrangidos a uma posição
secundária, com a consequente descaracterização e perda de valor.
169
Lembrando que os planos já foram considerados pela comunidade
preservacionista internacional como elementos importantes para a preservação
patrimonial, é possível perceber a importância do Plano de Chicago para a vida
pública, e para a atividade artística plástica em particular, numa cidade que a partir
de 1906 iniciou um processo de mudança de padrão para posicionar-se como uma
das melhores cidades do mundo.
Por muito tempo, o lugar da arte na cidade foi o espaço público. Se os patrícios
romanos ou os mercadores vênetos adornavam suas casas com estátuas e afrescos e
mosaicos, também entregavam à cidade obras de arte pública para serem fruídas por
todos. Artistas especialmente contratados representavam o melhor que o espirito
humano podia fazer com criatividade e engenho.
170
qualidade de vida que a cidade oferece. O Plano de Chicago, documento fruto de
amplo acordo social e legitimado, criou as condições para existência de uma cidade de
forma que os espaços foram apropriados pelo coletivo dos cidadãos, sendo
reconhecida e identificada plenamente por eles.
171
172
Figura 107. Vis-à-vis, 2011. Chicago.
Fonte: foto do autor.
173
174
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