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Sergio Sandler

Arte e a construção do lugar:


a dimensão artística do
urbanismo de Chicago

Campinas
2013

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ii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

Sergio Sandler

Arte e a construção do lugar:


a dimensão artística do
urbanismo de Chicago

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas, para obtenção do título de Mestre em
Artes Visuais.

Orientador: Prof. Dr. Haroldo Gallo

Este exemplar corresponde à versão final de


Dissertação defendida pelo aluno Sergio Sandler,
orientado pelo Prof. Dr. Haroldo Gallo.

_________________________________________

Campinas
2013

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Agradecimentos

Ao Prof. Dr. Haroldo Gallo, amigo e orientador, cuja


palavra firme e tranquilizadora foi fundamental para
que o desenvolvimento deste trabalho tivesse êxito.

A minha esposa e companheira Sylvia Ammar, que


com açúcar, afeto e muita conversa, ajudou-me a ter
clareza sobre o sentido e o propósito deste trabalho.

Aos meus filhos Luiza, Guilherme, Carlos e David,


meus amores eternos, exatamente por tal
contribuição.

Ao Jayme e à Bertha, meus pais queridos, idos, que


me legaram o amor pelo conhecimento e pela arte; e
ao Alfredo e a Thereza, meus outros pais, amigos de
toda hora, o primeiro também não está mais.

À Livia Botin e Bebel Fernandes, que gentilmente


revisaram citações e ortografia.

A todos aqueles que participaram, indiretamente, da


elaboração deste trabalho.

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Resumo

Tendo em conta a importância dos espaços públicos como lugares


referenciais da cidade, que como tal são portadores de significados atribuídos
coletivamente, a pesquisa aborda a questão da dimensão artística do urbanismo
com relação à ideia de lugar e sua construção simbólica na cidade.
Com base na visão crítica de dois autores seminais - Camillo Sitte, que
registra o momento da transformação da cidade diante do advento industrial, e a
consequente perda de seu senso artístico geral; e Giulio Carlo Argan, que aponta
a crise da cidade contemporânea como uma crise de um sistema de valores que
relega a ideia da cidade como artefato, e como uma crise da ideia mesma de arte;
e ainda de uma série de autores dialógicos com a questão - desenvolve-se o
estudo do caso de Chicago.
Seu plano diretor, o Plano de Chicago, estabeleceu, na primeira década do
século XX, as bases do desenvolvimento da cidade que conhecemos hoje. O
plano, além de definir as diretrizes relativas aos sistemas técnicos da cidade,
tratou também dos espaços públicos visando sua qualificação artística e simbólica.
A experiência de campo em Chicago confirma o vínculo da arte pública
com a vida cultural da cidade. Os lugares onde há o elemento artístico,
transformam-se em marcos urbanos, em referenciais identitários das comunidades
e da cidade como um todo. Doações e fundos públicos mantêm e ampliam o
acervo público, com a inclusão sistemática de elementos de arte pública nas
praças e parques da cidade.

Palavras chave: arte, urbanismo, espaço público, arte pública, plano diretor.

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Abstract

Considering the importance of public space as a city reference and that as


such it must carry a meaning that is collectively attributed, this research
approaches the artistic dimension of urbanism as related to the idea of space and
its symbolic construction of the city.

Based on the critical vision of two fundamental authors - Camillo Sitte, who
registers the moment of the city transformation upon industrial advent, losing its
general artistic sense; and Giulio Carlo Argan, who points out to the crisis of the
contemporary city as a crisis of a system of values that relegates the idea of the
city as an artifact, and as a crisis of the idea of art in itself; and a series of
provocative authors, comes through Chicago’s case study.

Its master plan, the Plano of Chicago, established in the first decade of the
twentieth century, is the basis for the development of the city as we know it today.
The plan, besides defining directives concerning the technical systems of the city,
covered also the city’s public spaces, concerning its artistic and symbolic
qualification.

The field experience in Chicago confirms the link between public art and
cultural life of the city. Where there is the artistic element the point is transformed
in urban landmarks, in references that build the community and city’s identity as a
whole. Donations and public funds sustain and enhance growth of public collection,
with systematic inclusion of elements of public art in parks and plazas.

Key words: art, urbanism, public space, public art, master plan.

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xii
Sumário
1. Introdução ................................................................................................. 1

1.1. Premissas, tema, objeto de estudo, objetivos, recorte e metodologia ....... 3

1.2. Justificativa ............................................................................................... 5

1.3. Estrutura da pesquisa ............................................................................... 7

2. Capítulo 1 - Base teórica conceitual ........................................................ 11

2.1. Breve discussão sobre o termo arte: um determinado contorno .............. 11

2.2. Marcos teóricos conceituais. ................................................................... 13

2.3. Camillo Sitte e A construção das cidades segundo seus princípios artísticos...........14

2.3.1. Camillo Sitte: o homem e a Viena fin de siècle ........................................ 16

2.3.3. Sitte e a mudança do paradigma de cidade ............................................ 21

2.3.4. Ruskin, Sitte e a questão da preservação ............................................... 22

2.3.5. Sitte, Riegl e a questão dos valores a preservar ..................................... 26

2.4. História da arte como história da cidade, de Giulio Carlo Argan .............. 31

2.4.1. Giulio Carlo Argan, teórico, político, militante .......................................... 33

2.4.2. Argan e a nova condição das cidades italianas ....................................... 34

2.4.3. Percepção, imagem e representação: aproximações entre Giulio Carlo Argan e Kevin Lynch.. 38

2.4.3.1. A questão da representação ................................................................... 38

xiii
2.4.3.2. O processo de construção mental da cidade........................................... 42

2.4.3.3. A questão da imaginabilidade ................................................................. 44

2.4.4. Argan e Cullen: percepção, flânerie e a construção do lugar .................. 50

3. Capítulo 2: a dimensão artística da cidade .............................................. 55

3.1. A dimensão artística da cidade em Camilo Sitte ..................................... 55

3.1.1. A cidade segundo a abordagem sitteana: fragmentos, elementos, escala ..... 55

3.1.2. Os lugares da vida citadina ..................................................................... 60

3.2. A dimensão artística da cidade em Giulio Carlo Argan ............................ 67

3.2.1. A cidade segundo a abordagem arganiana: a arte como fato urbano, a cidade como fato artístico......... 67

3.2.2. Cidade real, cidade ideal ......................................................................... 72

3.2.3. Cidade, natureza e arte: lugares do sublime e da transcendência .......... 80

4. Capítulo 3 - O plano urbano como suporte da memória da cidade. O estudo do caso do Plano de Chicago .. 85

4.1. A experiência de Chicago ....................................................................... 85

4.2. Contextualização do Plano de Chicago: antecedentes ............................ 89

4.2.1. Os movimentos sociais e a cidade industrial norte-americana ................ 89

4.2.3. Os parques de Chicago, a orla urbana do lago Michigan e outros planos urbanos ...........94

4.3. O Plano de Chicago ................................................................................ 96

4.3.1. As referências do Plano .......................................................................... 96

4.3.2. O modelo de cidade e sua função de formação do indivíduo ................ 100

xiv
4.3.3. A arte e a representação simbólica nos espaços públicos .................... 103

4.3.4. A paisagem e o pinturesco .................................................................... 108

4.3.5. Um novo sistema de valores ................................................................. 109

4.3.6. Espaço público, esfera pública .............................................................. 112

4.3.7. Paisagem como fato cultural ................................................................. 115

4.3.8. A imagem da cidade prefigurada........................................................... 116

4.3.9. A cidade como artefato ......................................................................... 119

4.4. Do plano à cidade: arte pública em Chicago ......................................... 120

4.4.1. Os programas de arte pública ............................................................... 131

4.5. Marcos urbanos em Chicago: um registro de espaços artisticamente qualificados ............ 132

4.5.1. Metodologia .......................................................................................... 133

4.5.2. Crivo de análise .................................................................................... 133

5. Considerações finais ............................................................................. 167

6. Referências ........................................................................................... 175

xv
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1. Introdução

É importante assinalar, contudo, que o urbanismo moderno não nasce de


um programa otimista nem de um utopismo eufórico, mas de uma
profunda e tormentosa crise da sociedade; (...) portanto, não visa tanto a
realizar um ideal abstrato de organização social quanto a enfrentar e
resolver, em sua urgente e dramática concretude, os problemas reais
desta sociedade.

1
Giulio Carlo Argan, Walter Gropius e a Bauhaus

O comentário de Argan sobre Gropius refere-se ao exato momento de sua


ruptura com a sociedade alemã. A participação do arquiteto no concurso para o
teatro de Karkov e para o Palácio dos Sovietes apresentava-se, aos olhos argutos
e sensíveis do crítico italiano, como ”sintomas indubitáveis de uma decepção e de
um protesto, de uma esperança remetida a um mundo futuro” (ARGAN, 2005,
p.135).
A democracia alemã conhecia o ocaso, e logo depois o mundo viveria a
tragédia sem precedentes da Segunda Grande Guerra.
A notável atualidade do trecho escolhido para epígrafe desta introdução é a
razão mesma de sua escolha. Vivemos um momento de profunda crise da
sociedade, em que valores fundamentados numa visão de mundo à escala
humana – cultura e educação, liberdade e dignidade, limite e oportunidade,
memória e futuro, razão e afeto, eu e o outro – estão colocados em xeque por
valores de outra ordem, cuja natureza, se não menos humana, os coloca em
oposição aos primeiros: a segregação, a falta de liberdade, o privilégio, o
individualismo, o conformismo, o consumismo, o ego hipervalorizado.
A voragem do tempo digital, a imobilidade crônica, o consumo da alma
numa suposta-plena-permanente-escravizadora satisfação do desejo em produtos
sempre renovados posto que velhos quando nascem, a prevalência do eu sobre o
nós, o pavor da diferença, a solidão dispersa em tantas palavras celulares, a falta

1
Walter Gropius e a Bauhaus. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo, São Paulo, José Olympio, 2005.

1
de comunicação num mundo inteiro feito ele mesmo notícia fugaz, a abdução do
tempo de reflexão pela miríade de fatos fugidios de brevíssima duração: estas
são, tristemente, características de um processo histórico que começou com a
cidade industrial e culmina com a cidade contemporânea, pós-industrial.
Tal estado de coisas espacializa-se nas diversas e contraditórias
manifestações da cidade contemporânea, sejam positivas ou negativas. Em toda
sua complexidade, diante de seus graves e crescentes problemas que afetam
muitas vezes de modo definitivo a vida das pessoas, é necessário mais do que
nunca enfrentá-los em sua dramática concretude, na linha de frente onde se dá
como realidade.
Entretanto, os termos "concretude" e "realidade" encerram acepções que
dirigem o discurso e a práxis urbanística em direção à máxima objetividade
possível, em que soluções técnicas devem dar respostas às questões urbanas
concretas.
Mas algo se perde neste caminho, posto que cidade não é feita de
infraestrutura e de técnica exclusivamente. Há um componente que a constitui
desde os mais remotos tempos, sendo “uma atividade tipicamente urbana”: a arte
é “parte constitutiva da cidade”, e sua gradativa eliminação da cena urbana
corresponde a um processo de “degradação do fenômeno urbano, devida
justamente à renegação e à abjuração, por parte da burguesia capitalista, do
historicismo burguês” (ARGAN, 1992, p. 43).
Sendo a arte ação, é ação humana, e sendo a arte uma ação tipicamente
urbana, é ação humana na cidade que a faz depositária dos conteúdos simbólicos
humanos. Não é menos ação que qualquer projeção da técnica sobre o território, o
que valida as ações ligadas à infraestrutura e também demonstra a não
exclusividade destas, exclusividade sempre justificada por um certo princípio de
realidade.
A observação empírica e a experiência urbana cotidiana apontam para um
estado de deslocamento do cidadão que habita “não lugares” (no sentido de
assentamentos desprovidos de significado). É possível localizar uma inquietação,

2
um desconforto: qual é o nosso lugar na cidade? Nosso, como coletivo; lugar na
cidade como esfera pública no espaço público.
Como o desenvolvimento desta pesquisa procura demonstrar, o termo
"cidade" compreende conteúdos que estão além do princípio de realidade que
conforma os dois termos, abrangendo aspectos simbólicos e formais que também
a constituem como tal. Bernardo Secchi afirma, com razão, que o urbanismo se
realiza em parte como uma narrativa. O discurso urbanístico contemporâneo
funda-se nas questões candentes e fundamentais da habitação, do saneamento,
da mobilidade, e busca compreender as novas escalas que abarcam grandes
porções de território. Formam-se redes de centralidades que pedem novas formas
de compreensão do que possa vir a ser aquilo que hoje conhecemos por cidade.
Diante desse fenômeno, entretanto, a arte, elemento estrutural histórico da
cidade, tem merecido um lugar apenas subalterno nas reflexões e ações
urbanísticas de nosso tempo. Não se pode ignorar que a relação entre arte e
cidade está na origem dessas duas grandes, talvez as maiores, criações do gênio
humano.
Parece ser necessário retomar no discurso urbanístico a questão da
manifestação artística enquanto fato urbano histórico por excelência, a partir de
uma reflexão sobre o papel da arte na qualificação dos espaços públicos e como
elemento de identidade do lugar do homem na cidade.

1.1. Premissas, tema, objeto de estudo, objetivos, recorte e metodologia

A pesquisa parte de certas premissas. A primeira é que a arte é


componente basilar daquilo que entendemos por cidade. A segunda, que a
primazia da técnica sobre outros aspectos da vida urbana no discurso e na prática
urbanística acabou por confirmar uma cidade esvaziada de conteúdos simbólicos
fundamentais. A terceira, que a recuperação de tais conteúdos encontra-se na
revalorização do papel da arte na vida urbana e no reconhecimento do seu papel e
do seu lugar na vida do cidadão.

3
Daí o tema desta pesquisa, Arte e Urbanismo, cujo objeto de estudo é o
conjunto dos espaços públicos de Chicago, segundo sua qualificação como
lugares referenciais na vida da cidade.
O objetivo geral será identificar, analisar e avaliar a importância da
dimensão artística do urbanismo como premissa básica dos instrumentos de
planejamento e dos programas dos projetos de requalificação urbana.
Nesse sentido, o recorte metodológico é determinado por dois momentos-
chave no processo de desenvolvimento das cidades marcados pela mudança do
paradigma de cidade. O primeiro corresponde à concentração urbana devida ao
impacto da Revolução Industrial na cidade do século XIX, e o segundo, pelo
fenômeno da fragmentação e da dispersão da urbanização em escala territorial,
dessa vez sob o impacto das redes de comunicação ilimitada de riqueza e
informação, a partir de meados do século XX.
A metodologia adotada determinou as seguintes etapas de
desenvolvimento da pesquisa:
a. Construção de base teórica conceitual:
 Leitura, análise e sistematização de duas obras referenciais e
emblemáticas, a saber: A construção das cidades segundo seus princípios
artísticos, de Camillo Sitte, e História da arte como história da cidade, de
Giulio Carlo Argan.
 Contextualização dos autores em suas épocas.
b. Contextualização das obras de referência:
 Relações e aproximações do pensamento de Camillo Sitte com John
Ruskin e Alois Riegl.
 Relações e aproximações do pensamento de Giulio Carlo Argan com Kevin
Lynch e Gordon Cullen.
c. Desenvolvimento da questão da dimensão artística da cidade, com base
numa proposta de sistematização dos aspectos levantados nas obras de
Sitte e Argan.

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d. Desenvolvimento do estudo de caso:
 Leitura do Plano de Chicago à luz do referencial teórico conceitual da
pesquisa, com foco na questão da qualificação dos espaços públicos de
Chicago.
 Leitura e análise de espaços públicos de Chicago, segundo a experiência
pessoal do autor à luz de conceitos extraídos do referencial teórico da
pesquisa.

1.2. Justificativa

Estão em curso hoje importantes processos de requalificação urbana em


diversas cidades do mundo e, particularmente, em várias cidades brasileiras, que
cresceram e continuam a crescer de forma exponencial. A forma predatória de
exploração do solo que caracteriza a exploração econômica deste recurso finito no
Brasil promoveu a ocupação de grande pare dos espaços livres urbanos. O
sistema do grid ortogonal nascido com a cidade industrial e a velocidade de
crescimento das cidades geraram espaços anômicos, indistintos, sem o que os
caracterize ou lhes confira identidade.
O pensamento tecnocrático supõe apenas as funções básicas. Ignora a
função simbólica que a cidade, em seus espaços representativos, sempre teve. A
relevância desse trabalho está na oportunidade de reflexão, coetânea aos
processos de requalificação urbana em curso, sobre a criação (ou a recuperação)
de espaços públicos significativos, isto é, artística e simbolicamente qualificados.
Deste modo, esta pesquisa justifica-se pelas seguintes considerações. A
cidade contemporânea, fruto da crise da cidade moderna ocorrida em função da
nova escala territorial e das correspondentes demandas surgidas do período
histórico a que chamamos de pós-industrial, é objeto de candente debate
relacionado ao futuro que reserva a seus habitantes. Permanecem presentes,

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mais potentes que nunca, as questões relativas à habitação, infraestrutura,
transporte, sem esquecer temas como desigualdade social, educação e saúde.
A explosão do crescimento urbano ocorre pela expansão quase ilimitada
das áreas urbanizadas, provocando importantes transformações morfológicas,
funcionais e, especialmente, simbólicas, no ambiente urbano. Em paralelo,
verificam-se profundas alterações ambientais que apontam para uma situação de
esgotamento dos recursos naturais diante de uma forma de desenvolvimento
predatória do meio físico. Como afirma Giulio Carlo Argan (1992, p.223): “No
decorrer de poucos anos, se de fato se quisesse, toda a superfície do globo
poderia ser urbanisticamente estruturada (...).”
Seja no espaço urbano ou periurbano, ou ainda no que resta do meio
natural, tais transformações implicam em perdas importantes relativas à qualidade
de vida de modo geral e, mais especificamente quanto aos aspectos identitários
que constroem os laços de pertencimento e o conjunto de valores que sustentam
a vida em sociedade.
Mas o gigantismo, que implica a impossibilidade das cidades serem
reconhecidas em seu todo; a presença massiva de assentamentos urbanos sub-
humanos; a descaracterização senão a eliminação dos lugares portadores da
memória – os acumuladores do tempo, nosso legado cultural material; a crescente
presença de diversas morfologias urbanas que simplesmente prescindem das
relações de vizinhança, entorno, freguesia, bairro, portanto, das diversas escalas
da esfera pública; e a questão do estresse das redes de infraestrutura, são fatores
que hoje constituem uma tendência claramente ameaçadora para o futuro daquilo
que conhecemos por “cidade”.
Por outro lado, há também diversos processos coetâneos que intencionam
restituir toda uma sorte de valores que a cidade vem paulatinamente perdendo
desde o advento da Revolução Industrial.
Os movimentos de requalificação urbana e ambiental nas áreas centrais
urbanas, as ações e programas de recuperação dos corpos d’água e seu entorno,
a reurbanização de favelas e de áreas urbanas sobrevalorizadas e subocupadas

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através de instrumentos de gestão urbana, a implantação de parques e
equipamentos públicos de lazer, os modelos participativos de orçamentos públicos
e planos diretores e ainda a existência de textos legais que conceituam e visam a
garantir a função social da propriedade demonstram uma reação cidadã à situação
atual.
Todo esse movimento constitui um conjunto de práticas políticas que
denunciam e opõem-se à notável tendência de agravamento do quadro da vida
urbana, e parecem indicar um processo de restauração do significado da cidade
como lugar e morada digna do homem. Portanto, lugar da identidade construída
ao longo do tempo, da memória coletiva, dos significados comuns, do processo
civilizatório mesmo.
Dentre os múltiplos aspectos desse permanente debate, deve ser
destacado que a maior das construções humanas, a cidade, sempre esteve
associada à arte. A cidade sempre foi o lugar que deu condições para o
desenvolvimento artístico humano, seja a pintura, a escultura, a música, a
literatura, o teatro e a arquitetura, sendo ela mesma um ato de criação artística,
um artefato, algo feito com arte. A cidade é constructo simbólico e representativo
do homem no planeta, a constituir seu lugar no universo, e um universo como seu
lugar.
A arte é, ou deveria ser um elemento vital da cidade. Por reconhecer a
progressiva perda da importância do papel e do lugar da arte no processo de
construção da cidade, dos espaços civis das relações sociais, o presente trabalho
busca reafirmar o lugar central da arte na vida urbana como elemento, a um só
tempo, de identidade cultural e de agregação social, que confere valores
fundamentais que a vida em sociedade demanda.

1.3. Estrutura da pesquisa

O Capítulo I constitui a base teórica conceitual no qual se apoia a pesquisa.


Em primeiro lugar, define-se operacionalmente o que seja “arte”, de modo a

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circunscrever seu alcance aos objetivos da pesquisa e contextualizar o objeto de
estudo neste perímetro.
O recorte metodológico definido é balizado por dois momentos históricos
matizados por transformações econômicas, sociais e políticas que podem ter
tomados por verdadeiros pontos de inflexão da história do homem e da cidade.
O primeiro momento é o da primeira revolução industrial, que implicou em
profundas e paradigmáticas transformações na cidade medieval-renascentista-
barroca-liberal, a resultar cidade industrial. A construção das cidades segundo
seus princípios artísticos, de Camillo Sitte, será o fio condutor da leitura deste
momento, com o concurso de John Ruskin quanto às questões de preservação e
memória, e de Alois Riegl quanto à questão dos valores atribuídos ao bem
patrimonial. O historiador Carl Schorske situa Sitte historicamente no campo da
cultura em geral, e no pensamento de Viena fin de siécle em particular. Por sua
vez, Françoise Choay, em sua introdução ao Le culte moderne des monuments –
Son essence et sa gênese, revela os aspectos fundamentais do pensamento de
Riegl quanto a memória dos monumentos, como um atributo humano de ordem
afetiva. A urbanista e teórica francesa atualiza a convocação de Riegl para uma
meditação sobre a nossa sociedade numa circunstância tal em que o monumento
histórico “não é mais apenas um modo inocente de autopreservação.” (1984)
O segundo momento, igualmente paradigmático, tem por referência a
cidade pós-industrial ou contemporânea, cujas características implicam novas
questões como a escala metropolitana, a expansão ilimitada dos tecidos urbanos,
a superexploração do solo como mercadoria, a expansão continua da visão de
mercado que reconfigura os espaços urbanos. A definição de cidade está em
crise, assim como a definição de arte também.
A abordagem da cidade como artefato de Giulio Carlo Argan é o pano de
fundo para as elaborações que compõem História da arte como história da cidade,
obra da qual a pesquisa procura destacar a importância das questões políticas e
participativas de um lado, e perceptuais e sensíveis de outro, presentes nas
relações que estabelecemos com a cidade enquanto lugar através de seus

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espaços públicos. O aspecto da participação do cidadão é amparado pelas
essenciais pesquisas de Kevin Lynch em A imagem da cidade, e o aspecto
sensível e artístico, pela investigação de Gordon Cullen em Paisagem urbana,
apoiado na noção de percepção elaborada por Rudolph Arnheim.
Para discutir as questões da construção da paisagem, do espaço público e
da esfera pública, do público ou privado, a pesquisa irá apoiar-se em Habermas, a
partir da leitura de Pereira Leite e Eugenio Queiroga. Para a compreensão as crise
da cidade moderna, Marshall Berman contribui com uma visão em perspectiva do
modernismo a partir de um paralelo da evolução da cidade e da literatura.
O Capítulo 2, “A dimensão artística da cidade”, procura estabelecer
possíveis aproximações da questão da dimensão artística do urbanismo a partir da
base teórica conceitual constituída no primeiro capítulo, abordando o tema
segundo as especificidades das elaborações teóricas de Camillo Sitte e Giulio
Carlo Argan.
Por fim, o Capitulo 3, “O plano urbano como suporte da memória da cidade:
o estudo do caso do Plano de Chicago”, é dedicado ao estudo do caso do Plano
de Chicago sob o ponto de vista dos espaços públicos artisticamente qualificados
da cidade, a partir da percepção da potência de um instrumento de planejamento
que objetivou na valorização artística de seus espaços o estabelecimento de uma
nova identidade para a cidade. A experiência pessoal do autor serve de base para
o desenvolvimento da leitura de alguns espaços significativos, segundo conceitos
emanados da pesquisa.

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2. Capítulo 1 - Base teórica conceitual

2.1. Breve discussão sobre o termo arte: um determinado contorno

Arte, do latim ars, ars, artis; maneira de ser ou de agir, habilidade natural
ou adquirida, arte, conhecimento técnico. (HOUAISS, s/d,
http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=arte, consultado em 21/01/2013)

Para efeito de definição do termo chave sobre o qual se discute aqui a


dimensão artística do urbanismo, será necessário circunscrever o conceito de arte.
Não há aqui a intenção de abarcar toda a longa e complexa discussão que
envolve o termo, o que implica discutir o conceito de arte do ponto de vista
filosófico, algo que está além dos limites desta pesquisa. O que se quer é dar ao
termo um contorno possível, que torne o conceito visível e aplicável à pesquisa.
De saída, há a dificuldade em definir univocamente o que é arte. São
muitas as formas de compreendermos o que seja arte, desde que os cânones
artísticos foram deslocados de sua primazia para dar lugar a uma visão cultural da
arte. E, ainda, uma vez que a arte é manifestação humana, e a vida humana está
sujeita às condições de seu tempo, haverá muitas definições de arte, cada uma
delas respectiva ao seu tempo histórico.
Para Kant, a arte será aquela manifestação que produza uma
"satisfação desinteressada". Destaco aqui o fato de a arte produzir algo além de
sua materialidade, produzir uma sensação, um sentimento. A arte é evocativa.
Tólstoy, por sua vez, começa por dizer o que não é a arte, para depois
afirmá-la como algo que une os homens.

Arte não é, como dizem os metafísicos, a manifestação de alguma


misteriosa ideia de beleza ou Deus; não é, como dizem os fisiologistas
estéticos, um jogo no qual o homem libera seu excesso de energia; não é
a expressão das emoções do homem por sinais externos; não é a
produção de objetos agradáveis; e, sobretudo, não é prazer; mas é um
meio de união entre os homens, juntando-os pelos mesmos sentimentos,
e é indispensável para o progresso da vida em direção ao bem estar dos
indivíduos e da humanidade (TÓLSTOY, 1896, p. 75).

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Diz ainda: “Arte é uma atividade humana que consiste no fato de que
um homem conscientemente, por meio de certos sinais, transfere a outros
sentimentos que ele viveu, e outras pessoas são infectadas por este sentimento e
também o experimentam.” (TÓLSTOY, 1896, p. 52).
Arte como algo que sensibiliza, impressiona, comove. A arte que co-
move, que une e promove comunhão. Arte como algo que contamina, que
comunica. Em tais acepções ou percepções, há dois fenômenos: a capacidade de
sensibilizar o outro, e o reconhecimento da existência do outro a ser sensibilizado.
O fazer artístico pressupõe o outro, dai a arte ser manifestação que comunica
algo, através de sua expressão, a outro, à sociedade. Arte como ato político. A
arte parece ser algo fundamentalmente coletivo.
Isto sugere as premissas a adotar.
A Arte supõe uma satisfação desinteressada. Pressupõe a
comunicação de um conteúdo, e dialoga com muitos conteúdos e simbologias. É
fruto da ação criativa e da habilidade criativa. É uma questão de relação,
pressupõe o outro e o coletivo, pedindo identidade. Compreende, ainda que não
de forma absoluta, o uso de meios formais de expressão específicos tais como o
desenho, a pintura, a escultura, a dança, a literatura, a musica, a arquitetura e, por
que não, o urbanismo. Não bastam, entretanto, tais premissas. Para circunscrever
a ideia de arte, outro aspecto deve ainda ser considerado, relativo à forma de seu
relacionamento com a sociedade em termos espaciais.
Como qualquer atividade humana, arte refere um conceito ligado aos
espaços em que se realiza e se afirma. Há a arte como aquela dos acervos dos
museus, limitada a espaços determinados e condicionada por discursos e práticas
museológicas específicas.
Diferentemente, a arte pública é uma forma recorrente e perene de
manifestação artística com um lugar e um papel social, estabelecidos
historicamente. É um modo de manifestação artística que tem no espaço público o
seu lugar e com o qual guarda relações especiais. Vale lembrar que o próprio Sitte
lamentava a perda causada pela retirada da obra de arte de seu lugar original, ao

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comentar sobre as agruras do “David” de Michelangelo (SITTE, 1992, p.53),
removido da Piazza dela Signoria para Galeria dell’Accademia em 1873. A arte
pública supõe sua plena acessibilidade e está numa relação dinâmica com o
entorno, com o qual interage e interfere ativamente para a construção da
paisagem local.
Finalmente, é importante considerar também o aspecto da condição
urbana da arte. Não haveria a arte se não houvesse a cidade, é o que postula
Argan. A arte é fenômeno urbano, podemos falar em arte urbana. Valemo-nos da
afirmação de Vera Pallamin, para quem:

A arte urbana é uma prática social. Suas obras permitem a apreensão de


relações e modos diferenciais de apropriação do espaço urbano,
envolvendo em seus propósitos estéticos o trato com significados sociais
que as rodeiam, seus modos de tematização cultural e política
(PALLAMIN, 2000, p.24).

2.2. Marcos teóricos conceituais.

Tendo em vista a premissa fundamental da crise da cidade, abordada


em dois momentos cruciais, o recorte temporal define os marcos teóricos
conceituais correspondentes sobre o quais a pesquisa se desenvolve.
O primeiro deles é dado por Camillo Sitte, arquiteto e pensador do final
do século XIX. O autor vive, registra e analisa o fenômeno da transformação da
cidade medieval-renascentista-barroca-liberal na cidade industrial moderna. Ao
apontar as perdas acarretadas para a cidade, especialmente em sua dimensão
artística, propõe uma série de procedimentos e diretrizes que buscam pactuar a
cidade tradicional, portadora de memória e conteúdo simbólico, com a nova cidade
que surge voltada para a produção. Trata-se de uma crise da cidade diante de sua
nova condição.

13
O segundo é dado pelas elaborações de Giulio Carlo Argan, historiador,
professor e notório militante das questões artísticas, arquitetônicas e urbanísticas
do século XX, para quem “arte” e “cidade” são termos cujos significados se
cruzam e se fundem no tempo. Em História da arte como historia da cidade, o
autor reflete sobre a condição da arte numa cidade submetida à lógica do
consumo, transformada ela mesma em suporte de comunicação instantânea e
ininterrupta. Resignificada por suas dimensões inéditas, que colocam em cheque a
própria ideia de cidade. Constitui-se o contexto de uma nova crise da cidade que
corresponde e coincide com a crise da arte apontada pelo autor.

2.3. Camillo Sitte e A construção das cidades segundo seus princípios


artísticos

Camillo Sitte vive, registra e analisa o fenômeno da transformação da


cidade medieval-renascentista-barroca-liberal na cidade moderna com o advento
da Revolução Industrial. Tal transformação acarretará diversas perdas para a
cidade, especialmente para sua dimensão artística própria, inerente à cidade.
A imagem da cidade construída pelo autor tem por foco o elemento
urbano e espacial de agregação social por excelência: a praça, lugar de encontro,
das atividades coletivas, das celebrações, assim como lugar do melhor das
manifestações artísticas que a cidade era capaz de oferecer. A praça será
abordada de diferentes formas: a sua relação com construções e monumentos;
sua morfologia; a interação entre praças e o conjunto delas.
Tal imagem será confirmada pela crítica sistematizada dos novos
elementos estruturadores do espaço característicos dos “sistemas modernos”, e
pela busca de uma saída para a questão da arte na urbanística, por meio de uma
reflexão sobre “os limites da arte na construção urbana moderna”.

14
A obra de Camillo Sitte irá influenciar o urbanismo europeu até as
primeiras décadas do século XX, bem como o urbanismo americano e mesmo o
soviético até 1920. No Brasil, conforme aponta Carlos Roberto Monteiro de
Andrade (SITTE, 1992, p.5), é nítida sua influência no trabalho do engenheiro
Francisco Saturnino de Brito, autor de diversos planos urbanos para cidades
brasileiras elaborados nas três primeiras décadas do século passado, com
destaque para as proposições urbanísticas para o município de Santos.
Sitte é um observador em tempo real do desmantelamento dos valores
tradicionais da sociedade vienense, fenômeno que se reflete na cidade então sob
o impacto de profundas mudanças políticas, sociais e econômicas. Ao grid
avassalador imposto pelas necessidades da idade industrial, Sitte contrapõe e
defende a importância fundamental de sua dimensão artística da cidade e dos
princípios artísticos que devem nortear o ato de projetar as cidades.
Tais princípios buscam estabelecer relações harmônicas e
artisticamente sensíveis entre os diversos elementos que compõe a cena urbana.
A disposição dos monumentos, a definição das praças e dos edifícios que as
conformam, a formação de conjuntos urbanos coesos, determinados por padrões
estéticos, a incorporação dos elementos preexistentes naturais ou históricos e o
uso de retas ou curvas no desenho do traçado urbano, concorrem para a
constituição de um ambiente urbano dotado de qualidades artísticas fundamentais
para a formação do indivíduo.
As “cidades antigas” são as referências de Sitte, que propõe uma
reinterpretação dos elementos vernaculares característicos das cidades da Idade
Média, da Renascença e do Barroco, para articulá-los à então nascente cidade
moderna.

15
2.3.1. Camillo Sitte: o homem e a Viena fin de siècle

Figura 1. Camillo Sitte


Fonte Wikimedia Commons, in
http://commons.wikimedia.org/
wiki/Camillo_Sitte

Camillo Sitte (Viena, Áustria, 1843 -1903), arquiteto, pintor e historiador


da arte, era filho de Franz Sitte, arquiteto alemão que viveu e trabalhou boa parte
de sua vida em Viena, transferindo-se depois para Munique onde atuou em
projetos de caráter religioso.
Estudou história da arte, arqueologia, filosofia, percepção espacial e
anatomia. Pesquisou o Renascimento em viagens a diversos países, entre eles
Alemanha, Áustria, Itália, França, e Grécia. Formou-se arquiteto na Escola
Imperial e Real de Artes Industriais de Viena. Com apenas 23 anos, é chamado
para organizar a nova Escola Oficial de Artes Aplicadas, seis anos depois do

16
lançamento do Plano da Ringstrasse, do qual será ao lado de Adolf Loos2, mas
trincheiras diferentes, um crítico permanente.

2.3.2. Sitte, a Ringstrasse e a transformação de Viena

O jovem Sitte testemunha a transformação de Viena e da estrutura de


poder do Estado, do absolutismo monárquico ao neo-absolutismo constitucional
modernizador, a partir da revolução liberal ocorrida em 1848.
A malha urbanizada central da capital austríaca era separada dos
assentamentos do entorno por uma vasta esplanada, que assim permaneceu por
longo tempo tanto por vontade imperial como por motivações militares. Vale
observar que até a revolução de 1848, a esplanada servira como sistema de
defesa de inimigos externos, depois dessa data passara a servir à defesa do
imperador e seus súditos.
A ocupação da esplanada deu-se por etapas. Usando de sua influência
junto ao poder imperial e no bojo da traumática experiência da revolução liberal
recém-ocorrida, o poder militar fez construir um arsenal (1849-55) e quartéis
(1854-7) junto às estações ferroviárias “para o rápido reforço da guarnição da
capital” (SCHORSKE, 1996, p. 126). E, a exemplo dos bulevares haussmanianos,
nascidos sob a mesma inspiração de defesa do status quo, os militares
propuseram também a construção de um amplo bulevar ao longo da esplanada,
exatamente no que viria a ser a Ringstrasse.
Como nota Carl Schorske, além das motivações de segurança das
instituições, havia a necessidade de projetar e perenizar a imagem e os valores da
instituição militar, que assim propõe também a construção de um Museu Militar:

2
Adolf Loos (Brno, 1870 – Kalksburg/Viena, 1933). Foi protagonista pioneiro da arquitetura
moderna. Sob influência de Louis Sullivan, o autor de “Crime e Ornamento” via na decoração das superfícies
uma manifestação cultural primitiva e infantilista.

17
Foi sob o controle da espada que se lançou uma política cultural pós-
revolucionária, por meio de construções monumentais que logo
caracterizariam todo o Anel, mesmo quando o exército bloqueou as
reivindicações civis para usar o precioso espaço da esplanada para tais
propósitos (SCHORSKE 1996, p. 126).

Os outros pilares do poder também estavam livres para ocupar este


espaço. Francisco José I mandou erguer a estátua do arquiduque Carlos na hoje
Heldenplatz, em frente ao Hofburg, e a Igreja fez construir a Votivkirche (1854),
santuário erguido para “comemorar o fato de o imperador Francisco José ter
escapado da adaga de um assassino em 1853 e, tal como a abadia de
Westminster, sepulcro para os heróis nacionais" (SCHORSKE, 1996, p. 127).

Figura 2. A Votivkirsche em 1900.


Fonte Wikimedia Commons, in
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:
Wien_Votivkirche_um_1900.jpg

As muitas pressões por novos espaços para a construção de edifícios


institucionais e culturais que ocorreram durante toda a década de 1850,
resultaram, finalmente, num decreto imperial de 1857, que liberou a esplanada do
julgo militar e abriu espaço para a representação espacial da política de
modernização da monarquia do ministro do Interior, Alexander Bach, que visava à

18
Figura 3. Plano da Votivkirche, desenho de Camillo Sitte,
in A construção das cidades segundo seus princípios
artísticos
Fonte :
http://farm9.staticflickr.com/8337/8174710530_1fae1748ea_c.jpg

implantação de um neoabsolutismo caracterizado por um Estado burocrático,


altamente centralizado e transnacional.
À centralização política correspondeu uma centralização cultural. “Viena
precisava tornar-se o foco e o centro irradiador de uma consciência moderna,
transnacional e pan-austríaca. As instituições tradicionais da corte – teatros,
museus, óperas – deveriam chegar ao público de todo o Império para criar uma
cultura uniforme” (SCHORSKE, 1996, p. 128).

Em 1860, é divulgado o primeiro plano oficial para a Ringstrasse, cuja


“apresentação visual revela de várias maneiras a persistência da primazia
monárquica na definição do espaço imperial” (SCHORSKE, 1996, p. 131). Mas as
derrotas militares na Itália abalaram severamente a política neoabsolutista. As
reformas constitucionais reforçaram o poder da elite liberal, inclusive na capital e
particularmente na Comissão de Expansão da Cidade. O plano inicial foi
modificado com a ascensão da burguesia liberal, assim como foi diminuído mais
uma vez o poder militar, cujos programas cederam lugar a outros de natureza
cultural.

19
A construção da Ringstrasse espacializa as relações políticas entre as
forças sociais e institucionais vigentes ou em ascensão. Materializa-se num
acordo que concebe suas manifestações arquitetônicas públicas em termos de
estilos históricos, e valoriza o aspecto da localização dos edifícios numa disputa
entre “a corte restaurada, a aristocracia, as forças militares e a igreja, de u34m
lado, e a burguesia liberal de outro.” Serviram-se todos de um “vocabulário
arquitetônico simbólico baseado nas culturas históricas do passado – clássica
medieval, renascentista e barroca”, resultando num “arranjo de prédios
executados em estilos históricos anteriormente conflituosos como partes do
espaço capital unificador mais amplo” (SCHORSKE, 1996, p.21).

Figuras 4 e 5. O espaço do futuro


Ringstrasse, em 1850, e o projeto
para ocupação escolhido em
concurso de 1860.
Fonte:
http://www.wien.gv.at/kultur/archiv/geschic
hte/ueberblick/images/ringstrasse.jpg

20
2.3.3. Sitte e a mudança do paradigma de cidade

Agradáveis lembranças de viagens são parte integrante de nossos mais


belos sonhos. Ante nosso olhar espiritual deslizam praças, monumentos,
imagens urbanas adoráveis e belas paisagens, e fruímos novamente o
prazer de se demorar junto a tudo aquilo de gracioso e sublime que,
outrora, nos fizera tão felizes.
3
Camillo Sitte

A nostalgia com que Camillo Sitte inicia seu texto registra um tempo
que não existe mais. Vivia-se um ponto de inflexão social, econômica e cultural do
processo civilizatório, marcado pelo advento da indústria, da produção em massa
e dos ganhos de escala. "Demorar-se! Caso pudéssemos fazê-lo mais amiúde
nesta ou naquela praça, cuja beleza não nos cansamos de admirar, decerto
suportaríamos com o coração mais leve os momentos difíceis, e seguiríamos
fortalecidos na eterna peleja da vida" (SITTE, 1992, p. 14) .
Agora o tempo está em questão. Ao tempo humano compassado,
necessário para deslocar-se de um ponto a outro, determinado pelo tamanho e
pelo ritmo dos passos que definiam as ações do homem, e ao tempo que
acumulava experiência e história, contrapõe-se o tempo moderno, caracterizado
pela velocidade, pelo encurtamento das distâncias, pela fugacidade dos fatos e
pelo menor tempo possível para tudo o que se deve fazer. É o que o modo
moderno de ser está a exigir.
Esse é o ponto de partida de Sitte, o tempo impresso na cidade antiga
que se realiza através dele, e constitui o arcabouço de memória e referência do
homem. "Dificilmente (se) contestaria tal suposição da forte influência do meio
externo sobre o espírito humano" (SITTE, 1992, p. 14).

3
SITTE, 1992, p. 14.

21
Sitte nos remete a Aristóteles “(...) que resume os princípios da
construção urbana ao dizer que uma cidade deve ser construída para tornar o
homem ao mesmo tempo mais seguro e feliz" (SITTE, 1992, p. 14).
Não basta que a construção da cidade seja pautada apenas pela
técnica e pelo utilitário, deve haver lugar também para a representação do
processo civilizatório com base na sensibilidade estética e artística. Aqui, Sitte
contrasta as cidades da Antiguidade, da Idade Média, da Renascença, "em toda
parte onde as artes receberam a atenção merecida" (SITTE, 1992, p. 15), com
aquela do "nosso século matemático" em que "os conjuntos urbanos e a expansão
das cidades se tornaram uma questão quase puramente técnica" (SITTE, 1992, p.
15).
Mas, se o empenho do autor é resgatar à dimensão artística da cidade
o devido valor, há a ressalva de não haver a intenção de “lamentar a proverbial
monotonia dos conjuntos urbanos modernos, condenar isso ou aquilo, ou crucificar
tudo o que já foi realizado em nosso tempo dentro desse âmbito” (SITTE, 1992, p.
15).
Sitte parece querer conciliar sua posição com a realidade inexorável,
que o permita proceder de forma isenta a uma “análise sob um aspecto puramente
técnico-artístico” das cidades antigas e das modernas, assim como tentar “uma
saída para nos libertar do sistema moderno de blocos de edifícios e, a medida do
possível, para nos resgatar da tendência ao aniquilamento das belas cidades
antigas, ao mesmo tempo permitindo o florescimento de uma produção
equivalente à dos mestres antigos” (SITTE, 1992, p. 15).

2.3.4. Ruskin, Sitte e a questão da preservação

John Ruskin (1819-1900) anunciou os maus presságios deste processo


e testemunhou seus efeitos cerca de quarenta anos antes. Encontramos em Sitte

22
ecos do aforismo nº 27 de Ruskin: “A Arquitetura deve ser feita histórica e
preservada como tal” (RUSKIN, 2008, p. 55), o que parece fazer do crítico e
ensaísta inglês, teórico defensor pioneiro da preservação, sua clara referência.
Em As sete lâmpadas da arquitetura, na lâmpada dedicada à memória,
Ruskin (2008, p. 35) postula que “(...) a Arquitetura deve ser considerada com a
maior seriedade. Nós podemos viver sem ela, e orar sem ela, mas não podemos
rememorar sem ela.”
Insinua-se aqui um valor que será mais tarde formulado por Riegl: o
valor de rememoração. Segundo Ruskin:

[...] há apenas dois fortes vencedores do esquecimento dos homens,


Poesia e Arquitetura; e a última de alguma forma inclui a primeira, e é
mais poderosa em sua realidade: é bom ter ao alcance não apenas o que
os homens pensaram e sentiram, mas o que suas mãos manusearam, e
sua força forjaram, e seus olhos contemplaram, durante todos os dias de
sua vida (RUSKIN, 2008, p. 54).

E ainda:
E se de fato houver algum proveito em nosso conhecimento do passado,
ou alguma alegria na ideia de sermos lembrados no futuro, (...) há dois
deveres em relação à nossa arquitetura nacional cuja importância é
impossível superestimar: o primeiro, tornar a arquitetura atual, histórica; e
o segundo, preservar, como a mais preciosa de todas as heranças,
aquela das épocas passadas (RUSKIN, 2008, p. 55).

É importante destacar aqui alguns princípios que emanam do


pensamento de Ruskin: o historicismo como premissa de preservação da
memória, que irá influenciar inúmeras vertentes projetuais por todo o século
seguinte, e a importância da materialidade na produção do conhecimento.
Em Sitte, como em Ruskin, há a convicção da necessidade da
preservação de valores e princípios historicamente acumulados, protegendo-os
das grandes transformações sociais, econômicas e institucionais que vieram a
ocorrer a partir da Revolução Francesa, e com maior intensidade e velocidade
depois da Primavera dos Povos e da Revolução Industrial.
Segundo Azevedo (2010), Ruskin foi o primeiro a elaborar a ideia da
“rememoração na arquitetura, estabelecida como exercício de reflexão sobre o

23
legado do passado” tornando-a uma questão cultural. Tal ideia, assimilada por
Sitte, manifesta-se numa arquitetura que até a Revolução Industrial “era feita para
durar gerações”, pautada pela busca da permanência; e que depois desse
processo transformador, de ruptura, torna tal perspectiva menos relevante. Ruskin
irá denunciar:
(...) essas lastimáveis concreções de cal e argila que brotam,
precocemente emboloradas, dos campos comprimidos em volta de nossa
capital (...) sinais de um grande e crescente espírito de
descontentamento popular, (...) e que a vida passada de cada homem é
seu objeto de desprezo habitual; quando os homens constroem na
esperança de abandonar os lugares que construíram, e vivem na
esperança de esquecer os anos que tiveram (RUSKIN, 2008, p. 57).

A notável visão antecipatória de Ruskin e a atualidade de seu texto nos


remetem à destruição da memória histórica dos centros históricos das metrópoles
de hoje e à destituição da dignidade humana em espaços anômicos, desprovidos
de significado, característicos das imensas periferias urbanas, fatos urbanos que
não podem ser considerados acidentais ou decorrentes de um processo
descontrolado como se quer fazer crer.
Ruskin aponta para a importância da permanência das coisas do
homem, daquilo que o faz permanente e duradouro à revelia de sua
transitoriedade natural. A construção de um artefato cujas características
permitem ao homem superar suas limitações naturais “significa transcendê-las e
produzir as condições para a transcendência de sua própria existência”
(AZEVEDO, 2011, p.16).
Na transcendência está implícita a ideia de cultura que, segundo
Alfredo Bosi:
Supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da
vida presente os planos para o futuro. Essa dimensão de projeto,
implícita no mito de Prometeu, que arrebatou o fogo dos céus para mudar
o destino material dos homens, tende a crescer em épocas nas quais há
classes ou estratos capazes de esperanças e propostas como na
renascença florentina, nas Luzes dos Setecentos, ao longo das
revoluções científicas ou no ciclo das revoluções socialistas (BOSI, 1992,
p.11).

24
Comparece nos dois autores o traço comum da consciência do valor da
cultura e dos processos históricos que a constroem, representados pelos bens
patrimoniais materiais e imateriais. Ambos, historiador e crítico, compartilham de
uma mesma circunstância, a mudança dos paradigmas culturais como
consequência de uma revolução técnica, cientifica e social transformadora e, em
alguns casos, devastadora.
Sitte compreende o significado e as consequências de tais
transformações, e irá buscar, como “criatura mortal e instável”, assegurar uma
estabilidade supostamente garantida pelos princípios historicamente acumulados
e culturalmente consagrados na arte de construir cidades. Preservar a memória da
civilização pelos seus monumentos artísticos parece de alguma forma garantir o
porvir. Talvez se possa perceber em Sitte que a ideia de uma memória do futuro.
Como se dá, entretanto, este processo de valorização dos
monumentos? O que de fato nos representa no mundo dos artefatos? Como
discernir sobre o que é representativo e deve ser preservado?
Caberá a Alois Riegl elaborar o desenvolvimento teórico sobre a
questão. Viena servirá mais uma vez de laboratório para um pensador da cultura
que entende a necessidade de pensar as coisas em si, e de compreender a
natureza das relações que estabelecemos com os artefatos que produzimos.

25
2.3.5. Sitte, Riegl e a questão dos valores a preservar

Figura 6. Alois Riegl


Fonte: Wikimedia Commons
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alois_Riegl.jpg

Se a referência a Ruskin é obrigatória dada sua influência sobre Camillo


Sitte, a importância de colocá-lo em relação à Alois Riegl (1858-1905), está em
reconhecer que certos aspectos do pensamento do autor de A construção das
cidades segundo seus princípios artísticos serão tratados de forma sistematizada
em Le culte moderne des monuments – Son essence et sa gênese.
Num ambiente de intensa discussão teórica, movido pelas
transformações modernizadoras que ocorriam nas cidades europeias, Riegl é
designado, em 1902, presidente da Comissão Central para a Arte e os
Monumentos Históricos da Áustria, com vistas à sistematização legal e normativa
para conservação dos monumentos locais. Para desempenhar a função, irá
desenvolver um corpo teórico com base nos valores subjacentes ao bem
patrimonial e numa metodologia que os articule, de modo a estabelecer os
possíveis critérios de sua preservação.
Na introdução da tradução francesa de Le culte moderne des
monuments – Son essence et sa gênese, Francoise Choay, observando que o
processo de aniquilação e destruição dos conjuntos edificados e das construções
históricas acompanha o homem em seu processo civilizatório, aponta o atavismo

26
da “destruição progressista a serviço da inovação cultural” (CHOAY apud RIEGL,
1984, p. 8). Choay registra que, na Europa dos anos 1850, “a evisceração das
cidades antigas destrói, em beneficio de uma arquitetura que se pretendia virgem
de referências históricas, edifícios prestigiosos e tecidos urbanos intersticiais,
marcos consagrados pelos séculos” (CHOAY apud RIEGL, 1984, p. 9).
A propósito da ideia de Le Corbusier de soterrar o bairro antigo do
Marais e a maior parte da velha Paris sob arranha-céus de 220 m de altura -
proposta que alguns argumentam que seria apenas uma provocação, e da
demolição dos pavilhões de Baltard (Le Halles) na década de setenta, Choay
pergunta sobre o sentido da conservação dos monumentos antigos, e sobre o
papel que poderiam ou deveriam exercer nas sociedades atuais. Vale lembrar que
se o processo de transformação das cidades ocorreu de forma inexorável e muitas
vezes irrefletida, a ele correspondeu o desenvolvimento de um conjunto de
doutrinas de salvaguarda dos monumentos históricos, que por vezes levou a
posturas conservacionistas dogmáticas. Tais posturas, contestadas ao longo do
tempo, “no quadro das novas políticas de reabilitação e participação dos usuários”,
colocaram a questão da preservação do patrimônio em novo patamar, no qual o
papel da participação social tem novo peso.
De modo inovador, Riegl distancia-se da coisa-em-si, busca observar
os fatos artísticos com isenção e construir “um inventário dos valores não ditos e
dos significados não explicitados subjacentes ao conceito de monumento
histórico” (CHOAY apud RIEGL, 1984, p. 17). O que implica dizer que os valores e
os significados evocados pelos monumentos nos grupos sociais passam a ser
reconhecidos.
Destarte, Riegl rejeita um código preestabelecido do que deva ser a
arte e suas manifestações. Seu modelo de apreciação do fato artístico parece ter
muito do método científico cartesiano, em que o objeto de estudo é repartido em
fragmentos definidos que são para analisados separadamente, e depois
recompostos num mosaico articulado que permitirá o juízo, o discernimento e o
estabelecimento de critérios objetivos do que se deva ou não preservar.

27
É curioso como Riegl, assim como seu contemporâneo Sigmund Freud
(que nasce apenas dois anos antes), percorrem caminhos aparentemente
paralelos quanto à percepção da existência de relações e significados ocultos ou
latentes, na mente como nas manifestações artísticas e construtivas humanas,
ambos reconfigurando o modo de pensar o homem moderno e suas
manifestações, num contexto de profunda crise das instituições sociais e políticas,
e de seus respectivos espaços.
Segundo Choay, em Riegl “o dilema destruição/conservação não
comporta jamais uma solução – justa e verdadeira –, mas soluções alternativas,
de pertinência relativa.” Choay destaca que Le culte moderne des monuments –
Son essence et sa gênese nos convida a uma meditação sobre a nossa
sociedade, em que o monumento histórico, com o cotejo de instituições e pessoas
que o celebram, com seus ritos e mitos, “não é mais apenas um modo inocente de
autopreservação.”
O interesse dessa observação, renovado nestes dias em que a
dimensão artística do urbanismo parece restrita apenas à eventual eleição de
certos elementos urbanos históricos, reside no fato de que Arte supõe a
representação não apenas de si mesma, mas da própria condição humana num
dado momento histórico. Há, na manifestação artística, a intenção de comunicar
algo, o que faz dela um fenômeno de comunicação que possibilita o contato e
relação entre autor e público, a estabelecer vínculos de natureza identitária.
A partir de uma perspectiva histórica, o modelo de valores proposto por
Riegl interpreta o modo pelo qual nos relacionamos com os monumentos, o que
neles valorizamos e como o fazemos, com a premissa de que seu valor existe
porque somos nós que o atribuímos.
Os conceitos trabalhados por Riegl tais como arte, rememoração,
historicidade, antiguidade e contemporaneidade, estão presentes, ainda que de
forma não sistematizada, no pensamento de Sitte. A análise de Sitte dos
monumentos, praças e conjunto de edifícios baseia-se na espacialidade e nos
aspectos plásticos de cada elemento, mas sempre em relação aos valores que

28
representam: valor de arte, valor de memória construtiva, valor de representação,
valor de referência. A leitura sistemática de inúmeros espaços, especialmente
praças, revela os diversos valores artísticos e históricos acumulados ao longo do
tempo, que Sitte contrapõe às transformações urbanas em curso.
Ao observá-las, Riegl reconhecerá, no lugar de um valor artístico
absoluto, um valor relativo, constatando que não há mais lugar para a ideia
canônica da arte uma vez que o valor artístico é uma atribuição conferida num
certo momento, numa dada circunstância histórica, o que define ao longo do
tempo um processo de desenvolvimento evolutivo da noção de valor.
Quanto ao conteúdo simbólico atribuído aos monumentos, Sitte aponta,
sem o formular expressamente, para um valor outro que aquele intencionalmente
convocado (o símbolo nacional, o herói), qual seja um valor artístico
historicamente conferido. É sobre essa ideia de valor que Sitte constrói sua
imagem de cidade, relativizando o monumento histórico ao seu tempo,
historicizando-o nos termos que Argan fará depois, como veremos.
Ao buscar identificar os valores permanentes de que as cidades antigas
são portadoras e a eternização desses mesmos valores pela preservação dos
monumentos, Sitte aponta para aquilo que será posteriormente definido por Riegl
como valor de rememoração intencional, a exigir do monumento “a imortalidade, o
eterno presente, a perenidade do estado original”. Ideia que remete à busca do
presente eternizado através de uma imagem imune ao tempo e seus efeitos.
O valor de rememoração intencional, por sua vez, é próximo aos
valores de contemporaneidade que segundo Riegl podem ser de dois tipos: o valor
de uso prático, que responde pelas necessidades materiais do homem e diz
respeito às condições materiais de utilização prática dos monumentos; e o valor
de arte – que pode ser relativo ou de novidade – que atende às necessidades
espirituais.
Em especial, o valor de arte relativo, definido segundo a formulação
teórica da kunstwollen de Riegl, seria a capacidade que o monumento antigo
mantém de sensibilizar o homem moderno a despeito de sua aparência não

29
moderna, tornando-o capaz de satisfazer uma vontade artística moderna ainda
que criado segundo uma kunstwollen4 diferente da nossa. É possível perceber em
Sitte a ideia de que existe uma vontade artística inerente, própria a cada período
histórico e que permanece ativa e significativa ao longo do tempo, que transcende
sua condição temporal, sendo capaz de suprir a necessidade espiritual do homem
moderno e por isso mesmo devendo de ser preservada através dos monumentos.
É o que justifica a apaixonada defesa que Sitte faz dos monumentos como
elementos capazes de sensibilizar o cidadão moderno quanto ao seu lugar no
mundo hoje, a partir da experiência cotidiana da memória do passado dos
espaços públicos da cidade e de seus monumentos.
Passado e presente, antigo e contemporâneo, conceitos e situações
idealizadas e concretas, superadas ou em processo, permanente e transitório:
estas, as marcas de um tempo matizado por transformações profundas, em que a
busca da imortalidade pela permanência eterna dos monumentos expõe o
reconhecimento da morte em curso de um modo de vida e de um sistema de
valores.
Para Carl Schorske, “Sitte situava-se como um defensor do lado
artístico, contra o que considerava um planejamento espacial frio, adaptado ao
fluxo do tráfego. Aceitando o estilo histórico na arquitetura, com toda sua
capacidade de significação simbólica, ele defendia o renascimento do projeto
histórico também para o espaço urbano, com ênfase nas praças, em vez de nas
ruas dominadas pelos veículos, tal como acontecia no projeto da Ringstrasse. (...)
A praça era para ele a forma urbana que poderia gerar e sustentar a comunidade,
restaurar o sentimento de pertencer a uma polis que a febril cultura comercial
moderna estava matando” (SCHORSKE, 2000, p. 181).

4
Termo que expressa um “movimento dinâmico o qual, distintamente das formas de desejo
expressas na religião, nas leis e na política, estava unicamente dirigido para o ordenamento artístico do
mundo perceptual.” (HATT e KLONK, 2006, p. 82).

30
Ao levantar minuciosamente as praças de cidades europeias
“consideradas significativas do ponto de vista da qualidade estética”, sua obra
constitui um conjunto de princípios artísticos que regem estes ambientes urbanos,
não se tratando, vale notar, de simplesmente “(...) retomar o modo de construir do
passado, mas de alguma maneira, diante das novas necessidades advindas com
o progresso, reter como lições a lógica espacial daqueles espaços públicos"
(SCHORSKE, 2000, p. 181).

2.4. História da arte como história da cidade, de Giulio Carlo Argan

O Coliseu de Roma, a cúpula da catedral de Florença, a estatuária


da Igreja do Bom Jesus dos Matozinhos em Sabará, a Baía da Guanabara, a
ponte de São Francisco, o skyline de Chicago e de Nova York, as cidades
astecas, a Acrópole de Atenas. É curioso observar que a imagem da cidade que
escolhemos como exemplar, isto é, aquela que mostra o melhor que o homem
conseguiu produzir a partir de sua cultura, e que melhor representa aquilo que
entendemos por cidade, sempre traz objetos, elementos e paisagens urbanas
características, de algum modo significativas e belas, às quais atribuímos valores
estéticos, históricos, podemos dizer: artísticos. Há um valor de ordem estética que
revela uma sensibilidade artística e determina tal escolha.
A cidade como artefato, isto é, algo feito com arte, é o pano de fundo
comum ao conjunto de ensaios e textos que compõem História da arte como
história da cidade. Escritos em diferentes momentos, num período de treze anos,
trazem o percurso do pensamento do notável pesquisador italiano sobre a relação
entre arte e cidade, e seu testemunho das iniludíveis crises da cidade e da arte,
ambas submetidas a profundas transformações decorrentes de processos tão
diversos quanto interligados: a brutal expansão das cidades contemporâneas, a
abdução do cidadão pelo sistema de produção e consumo em massa, a imensa

31
disponibilidade de informação que transforma o mundo em mera notícia, a
hipervalorização do ego.
Não há mera coincidência entre as duas crises, que, na verdade,
talvez sejam apenas a mesma crise, uma vez que a arte é, por definição, um
fenômeno típico do meio urbano.
Argan parte da premissa de que é necessário historicizar um objeto
de arte, isto é, colocá-lo em perspectiva histórica, para que ele possa ser
reconhecido como tal. Neste processo, é determinante a relação entre sujeito e
objeto, assim como entre sujeito e cultura. O posicionamento histórico do objeto
permitirá ao sujeito, a apreensão do processo histórico cultural ao qual pertencem
sujeito e objeto, cujo lugar de origem e destino é a cidade.
Desta maneira, não há, para o autor, a obra de arte
descontextualizada, isolada. Argan reitera, a cada momento, os aspectos
relacionais, contextuais e coletivos que originam, caracterizam e legitimam a obra
de arte, demolindo assim o mito do artista divinamente aquinhoado com um dom
especial, inacessível aos demais. O artista não está sozinho e não existe sozinho,
precisa da sociedade e da cultura para existir. E, se o artista não pode prescindir
se seu contexto histórico, social e cultural para existir, o mesmo valerá para a arte.
Para Argan, a ideia da separação da arte do contexto cultural das demais
atividades humanas implica uma crise da arte, já que ela não pode existir fora do
contexto que a gerou.
Tal separação talvez esteja implícita no processo de transformação
da cidade moderna, pois se não podemos ignorar ou prescindir da técnica e das
infraestruturas na definição do ambiente urbano moderno contemporâneo, a
predominância absoluta destas acabou por determinar um lugar subalterno senão
inexistente da arte no contexto da cidade moderna.
Neste sentido, são fundamentais para este trabalho as
considerações que o autor fará à arte como fato urbano e à cidade como fato
artístico; quanto à dimensão criativa inerente à ideia de projeto quanto à dimensão
da realidade concernente à sua concreção; quanto às questões do sublime e do

32
fugaz; e quanto ao sagrado e ao profano, tendo a cidade como lugar ou como não
lugar deste permanente embate entre o inferno do presente perpétuo – é possível
a condição a-histórica? - e a memória como condição do devir, uma possibilidade
de futuro.

2.4.1. Giulio Carlo Argan, teórico, político, militante

Giulio Carlo Argan (Torino, 1909 – Roma, 1992) permanece como um


dos maiores críticos de arte do Novecentos, sendo referência obrigatória também
no debate da arte moderna, da preservação do patrimônio, da arquitetura e do
urbanismo.
Formado na Universidade de Turim, interessa-se, sobretudo, pela
arquitetura e pela história da crítica de arte. Em 1930, escreve para diversas
revistas (La Cultura, L’Arte, Casabella) e milita na administração pública, quando
ocupa o cargo de inspetor da Administração Antiguidades e Belas Artes em Turim,
Modena e afinal em Roma. Com a ascensão do fascismo de Mussolini, defende as

Figura 7. Giulio Carlo


Argan.
Fonte:
http://www.infooggi.it/articolo/c
osenza-giulio-carlo-argan/11291/

33
correntes artísticas não subservientes à propaganda do regime e, durante a
guerra, dedica-se ao salvamento e transferência para o Vaticano das mais
importantes obras de arte italianas, recolhidas em todo o território italiano.
No pós-guerra, defende e divulga a arte abstrata e a arquitetura
moderna com livros sobre as obras de Henry Moore (1948); Walter Gropius e a
Bauhaus (1951); a escultura de Picasso (1953); e Pier Luigi Nervi (1955). Ocupa-
se ainda de urbanismo, museologia, design, relação arte-técnica e da função
educativa da arte, e colabora ainda com inúmeras revistas como L’immagine, de
Cesare Brei, e L’Architettura, de Bruno Zevi.
Em 1955, inicia atividade didática universitária em Palermo e, em 1959,
em Roma. Ainda em 1958 entra para o Conselho Superior de Antiguidades e
Belas Artes onde atuará em várias seções, até a instituição do Ministério de Bens
Culturais, em 1974.
Nos anos 1960, ocupa lugar de destaque no debate sobre o
desenvolvimento das correntes mais modernas da arte – a arte povera, a pop art,
a gestaltart, que resultou na elaboração da tese sobre a morte da arte, que é a
crise irreversível do sistema da arte tradicional na sociedade industrial e
capitalista.
De 1976 a 1979, é eleito prefeito de Roma pela Esquerda Independente
e, em 1983, elege-se senador pelo Partido Comunista Italiano por duas
legislaturas. Em 1992, o Partido Democrático da Esquerda o comissiona como
“ministro” dos bens culturais e bens culturais no assim chamado “governo
sombra”.

2.4.2. Argan e a nova condição das cidades italianas

A Itália, no período em que Argan exerceu sua legislatura como prefeito


de Roma, foi marcada pela extrema radicalização do processo político, com a

34
atuação de grupos de extrema esquerda de orientação maoísta e pela prática do
terrorismo. À prisão de Renato Curcio, líder das Brigadas Vermelhas, em 1974, o
grupo responde com o sequestro e a morte de Aldo Moro, primeiro ministro da
Itália e líder histórico da Democracia Cristã Italiana.
A violência programática dos grupos políticos terroristas procurava
combater o evidente avanço das práticas neoliberais, caracterizadas entre outros
aspectos pela redução dos gastos públicos e pela desregulamentação das leis
econômicas e trabalhistas.
Na prática, isto representou o desmonte do welfare state, política de
bem-estar social baseada no amplo provimento pelo Estado de educação, saúde,
saneamento e habitação aos povos de maneira geral, no âmbito particular de uma
Europa destruída pela Segunda Grande Guerra.
São emblemáticas as palavras de Giovanni Agnelli – presidente da
FIAT - em entrevista à revista L’Expresso em 1972:

Minha opinião é que na Itália o aluguel se espalhou de forma patológica.


E porque os salários não são compressíveis em uma sociedade
democrática, o que cobre todas as despesas é o lucro da empresa. Este
é o mal que sofremos, e contra o qual devemos responder. Hoje,
portanto, é necessária uma clara ruptura. Temos apenas duas
perspectivas: um confronto por salários mais baixos ou uma série de
iniciativas ousadas e de ruptura para eliminar os fenômenos mais
intoleráveis do desperdício e da ineficiência (AGNELLI, 1972, apud
SALZANO, 2012).

A FIAT, como a Benetton, a Zanussi e outros grupos empresariais


diversificaram seus investimentos, buscando o lucro também em outros mercados,
envolvendo-se ativamente no campo da especulação financeira e imobiliária. Em
correspondência, o Estado abandona várias políticas públicas de cunho social,
entre as quais o planejamento urbano e territorial definido nas décadas anteriores.
Esta foi a circunstância política que marca a atuação administrativa de
Argan como prefeito de Roma. O recrudescimento da luta política corresponde à
mudança da orientação geral da economia, com o predomínio da mentalidade de
mercado em detrimento das políticas sociais.

35
Outro aspecto que marca o período é o forte crescimento das cidades
italianas. Após o fim da Segunda Grande Guerra, os esforços pela reconstrução
de uma Europa destruída pelo conflito resultaram num período de grande
crescimento econômico, que implicou num intenso processo de urbanização: entre
1951 e 1961, a população de Milão cresce 25%; Roma, 30%; e Turim, 43%. A
emigração é significativa, com a transferência em massa da população do sul do
país para o norte, atraída pelos novos empregos gerados pelo crescimento
industrial (UNIA, 2011).
As áreas periféricas da capital, ainda livres de ocupação, eram
caracterizadas por espaços abertos e vegetados de propriedade privada, parte
dos quais foram vendidos à administração pública, em troca da autorização aos
proprietários de construir na maior parte das áreas remanescentes. Extensas
áreas da paisagem rural de Roma foram transformadas “para dar lugar a
loteamentos que arrasaram ruínas, pontes e aquedutos. Arrasados um pedaço
depois do outro, dia após dia, debaixo dos olhos de todos, sem qualquer
intervenção de parte das autoridades” (LUPO 2008, p. 57).
A consequência desta espécie de laissez faire do uso e ocupação das
áreas de expansão urbana de Roma, foi o desequilíbrio “na previsão de expansão
da cidade. (...) Novos quarteirões surgiram muito longe do centro, repetindo pela
enésima vez, o erro de isolar e guetizar núcleos habitacionais” (LUPO 2008, p.
57). Os romanos foram apresentados à “inconveniência do movimento pendular,
dificultado pela inadequação do transporte público”, sendo que “o único incentivo
destes anos foi o encorajamento ao transporte privado, como por exemplo, a onda
verde (dos semáforos) e os grandes estacionamentos perto do centro histórico”
(LUPO 2008, p. 58).
O registro desses fatos busca contextualizar a Roma que Argan
encontra como prefeito, e a defesa incondicional do bem patrimonial que marcou
sua legislatura, num quadro de devastação de monumentos e paisagens. São
compreensíveis as muitas alusões em seus textos às tristes periferias construídas
da cidade, anômicas, destituídas de significado e identidade, e também à

36
importância por ele atribuída à fundamental questão da participação do cidadão
nas decisões que envolvem seu futuro e de seus descendentes, aspectos
inseparáveis da vida na cidade.
É importante destacar a coerência que fez convergir o teórico e
intelectual, e o político situado à esquerda do espectro político italiano, que não
impediu o exercício da crítica. Em tempos de fascismo, Argan recusou a
manipulação da arte pela ordem política, defendendo e divulgando as obras dos
arquitetos e artistas modernos.
Mas tal postura não significou aceitação inconteste das posições
modernistas. No urbanismo, é patente a crítica que Argan empreende ao assimilar
correntes de pensamento outras que não as dogmáticas posições modernas. A
crítica que faz a Gropius, a quem não obstante respeita de forma clara, estende-se
ao movimento moderno de forma geral e refere-se à postura ideológica dogmática
predominante, que determinou a atuação de arquitetos e urbanistas vinculados ao
movimento.
O ponto central da questão levantada por Argan é a da participação do
cidadão como elemento fundamental da base da construção do lugar do homem
no mundo. Sendo a cidade o lugar das manifestações artísticas portadoras do
significado da existência humana no mundo, não é possível admitir uma única
orientação e, por única, redutora abordagem formal restrita a um repertório de
poucas soluções formais padronizadas. Trata-se em verdade de uma questão de
natureza política, em que se discute a forma pela qual se dá a representação do
homem no contexto político e social.
Em Arquitetura e cultura (1980), Argan justifica a razão pela qual um:
racionalismo arquitetônico se apresentasse como rígida anticonografia,
visando reduzir a arquitetura ao grau zero de linguagem, onde se
reafirmava uma inalienável racionalidade de fundo, quase uma moral
geométrica, mas excluíam-se, com o dogmatismo formal do classicismo,
todas as possíveis morfologias, tipologias, sintaxes e estilísticas da
arquitetura (ARGAN, 1992, p. 247).

Para o autor, será equivocado opor Wright a Gropius e Mies porque


“não se contrapõe de forma alguma a criatividade ao cálculo”. Não se trata de

37
reivindicar apenas o fim das “prescrições e censuras” que o classicismo impunha e
que arquitetura moderna, justamente, negou. A liberdade conquistada deveria ir
além de uma nova possibilidade criativa, promovendo a partir desta “necessária e
profunda renovação das metodologias de projeto” (ARGAN, 1992, p. 247), pela
remoção da “axialidade ideológica da pesquisa urbanística” o que é algo “sem
duvida, legítimo e necessário” (ARGAN, 1992, p. 219). Oportunamente, o autor
ressalva que as transformações necessárias – “a revolução social” – devem
ocorrer no campo político, sem delegação de qualquer espécie e a quem quer que
seja.

2.4.3. Percepção, imagem e representação: aproximações entre Giulio Carlo


Argan e Kevin Lynch

2.4.3.1. A questão da representação

Uma metodologia projetual desenvolvida com base científica, não


direcionada ideologicamente, e que posiciona politicamente o cidadão quanto aos
desígnios de sua cidade: é a proposta do trabalho de Kevin Lynch, que coloca
novas possibilidades para compreender e se apropriar da cidade a partir da ideia
de uma cidade comum a todos, posto que é feita e construída por todos. Ou,
melhor, de uma imagem de cidade como resultado das muitas imagens
produzidas por seus cidadãos. O viés psicológico como elemento agregador e a
criação de uma imagem coletiva e pública da cidade como uma forma participativa
“orgânica” são algumas das referências da pesquisa de Lynch encontradas no
pensamento de Argan.

38
Figura 8. Broadway Boogie-Woogie, Piet Mondrian, 1942-3
Fonte http://www.artchive.com/artchive/m/mondrian/broadway.jpg.html

Em O design dos italianos (1980), Argan aborda o fenômeno do caráter


dos objetos industriais produzidos na Itália que constrói uma identidade própria. O
autor faz o contraponto entre arte e cidade num texto de grande densidade e
beleza:
A cidade industrial do urbanismo construtivista era como um tabuleiro de
xadrez em que as pessoas se moviam segundo percursos obrigatórios e
tempos pré-calculados, uma cidade cuja estrutura era como um quadro
de Mondrian. Mas o próprio Mondrian, em seu último período americano,
percebeu que era utópica. Não é decerto por acaso que o dinamismo
ritual que subtende as pequenas e infinitas mitologias do mundo
moderno, a imagem urbana que corresponde à nossa experiência, é a
do espaço pictórico de Pollock: densa reticula de signos, de linhas
traçantes, talvez os itinerários habituais e sem um ponto de chegada de
milhares e milhões de pessoas que se movem sem cessar, cruzando-se
e com frequência voltando ao ponto de partida. Essa miríade de

39
itinerários e trajetórias diferentes para cada indivíduo, é constelada por
uma infinidade de pontos intensamente coloridos, que representam
infinitas coisas ou, talvez, as pessoas que no vertiginoso espaço
citadino, retém o olhar (ARGAN, 1992, p. 277).

Figura 9. Lavender Mist: Number 1, Jacson Pollock, 1950.


Fonte: http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/pollock/lavender-mist/

O excerto revela a contribuição essencial da pesquisa de Lynch


(desenvolvida dez anos antes) ao pensamento do teórico italiano. Os termos
parecem vir diretamente dos conceitos usados por Lynch: imagem urbana como
resultado de uma experiência; linhas traçantes que se cruzam como vias e

40
cruzamentos; pontos intensamente coloridos como marcos, e o olhar retido pelo
espaço citadino.
A pesquisa de Lynch, com base em três cidades americanas – Boston,
New Jersey e Los Angeles, buscou conhecer como as pessoas percebiam,
apreendiam e organizavam mentalmente os espaços nas cidades em que viviam.
Os resultados revelaram o léxico básico de elementos urbanos percebidos pelos
entrevistados, e a sintaxe coletiva que resulta numa imagem de cidade
comumente percebida.
O léxico revelado pela pesquisa compõe-se das vias, que “para a maior
parte dos entrevistados (...) constituíam os elementos predominantes”; dos limites,
“elementos lineares não entendidos como ruas (...) são normalmente, mas nem
sempre, fronteira entre duas áreas”; dos bairros, “áreas citadinas relativamente
grandes que o observador pode penetrar mentalmente, e que tem alguns aspectos
comuns”; dos marcos, “pontos de referência considerados exteriores ao
observador (...) (cuja) característica chave é a originalidade, um aspecto que é
memorável ou único no contexto”; e dos cruzamentos, “pontos estratégicos nos
quais o observador pode entrar, típicas junções de vias ou concentrações de
alguma característica” (LYNCH, 1979, p.60-62).
Os elementos deste léxico, “matéria prima do meio ambiente à escala
urbana”, são articulados mentalmente pelos habitantes da cidade, que a revelam
como uma imagem resultante de uma sintaxe específica. Está colocada a
possibilidade de um novo paradigma para o urbanismo, calcado na experiência
individual e na ideia da cidade como uma construção social coletiva, em que a
percepção, a consciência e a participação do homem cidadão concorrem para a
formação da identidade de um lugar a partir de uma linguagem comum. “Parece
haver uma imagem pública de qualquer cidade, que é a sobreposição de imagens
de muitos indivíduos” (LYNCH, 1979, p. 57).
Há, em Argan e em Lynch, a ideia da cidade como algo que se lê. Em
Argan, “a função urbana (...) pode ser facilmente comparada a um discurso, com
sua concatenação linear. O que chamamos de espaço visual, (...) é feito de

41
relações associativas e constitui aquele tesouro interior que é o pensamento da
cidade”, havendo aqui referência expressa à Saussure5 (ARGAN, 1992, p. 238).
Lynch, por sua vez, propôs compreender a cidade “como uma página impressa,
que é apreendida visualmente como um modelo análogo de símbolos
identificáveis”, afirmando que a “a legibilidade é crucial para o cenário urbano”
(LYNCH, 1979, p. 12). Trata-se, para Argan, de uma analogia entre o fenômeno
da estruturação do espaço urbano e o fenômeno da estruturação da linguagem. “A
configuração urbana, enfim, não seria mais do que o equivalente visual da língua,
(...) os fatos arquitetônicos estão para o sistema urbano assim como a palavra
está para a língua" (ARGAN, 1992, p. 238).

2.4.3.2. O processo de construção mental da cidade

Para Lynch, a cidade é algo que se constrói na dimensão espaço-


temporal: “a cidade é uma construção no espaço que só pode ser percebida ao
longo do tempo” (LYNCH, 1979, p. 2). Não se trata de um programa
preestabelecido que organiza uma construção, nem de uma ideologia que se quer
espacializada. Não é um conjunto de fragmentos tomados isoladamente, como
queria Sitte, nem é composta somente por seus elementos construtivos.
Trata-se de um espaço em que:
nada é vivenciado em si mesmo, mas em relação aos seus arredores, às
sequências de elementos que a eles conduzem, à lembrança de
experiências passadas”; e (trata-se) de uma política do espaço, na qual
“não somos meros observadores desse espetáculo, mas parte dele;
compartilhamos o mesmo palco com os outros participantes (LYNCH,
1979, p. 2).

5
Ferdinand de Saussure (1875-1913), linguista e filósofo suíço, cujos estudos contribuíram para a
autonomia da disciplina da linguística e tiveram grande influência no campo do estudo da literatura e dos
estudos sobre a cultura.

42
Como observa Bernardo Secchi, o urbanismo é também uma narrativa,
que em Lynch se humaniza ao afirmar a cidade como o “o lugar das experiências
humanas, coletivas” e como aquilo que “se constitui também das dinâmicas e
processos (humanos)”.
Desta forma, Lynch renega qualquer posição totalitária ao reconhecer
a primazia da percepção que temos da cidade, e a natureza fragmentária e
diversificada inerente a esta forma de compreender a cidade, pois não há apenas
um indivíduo – ou, vale dizer, apenas um pequeno e seleto grupo – capaz de
perceber o mundo a sua volta, mas uma sociedade que interage num espaço
coletivo. A cidade “é o produto de muitos construtores” (LYNCH, 1979, p.12),
fenômeno de construção coletiva.
Por sua vez, é Argan que pergunta: “Mas, como essa interpretação
individual do espaço urbano pode interessar ao urbanismo?”, mencionando os
métodos de pesquisa Gallup6 e a sondagem Kinsey7 quanto às suas colaborações
para o conhecimento do “comportamento citadino dos homens e mulheres de
nossa época” (ARGAN, 1979, p. 233).
O autor, observando que a análise sociológica não pode prescindir da
análise psicológica, valoriza a experiência individual como premissa, isto é, “o
estudo da experiência urbana individual é o princípio de qualquer pesquisa sobre
os modos de vida urbana de uma sociedade real”. E convoca o urbanismo à
realidade, uma vez que o campo de pesquisa delimitado pelo urbanismo “não
pode ser a cidade ideal feita de uma sociedade ideal para indivíduos ideais”
(ARGAN, 1992, p. 233).
Argan cita Marcilio Ficino para apontar que “a cidade não é feita de
pedras, mas de homens.” São eles que atribuem valor às pedras, e “todos os
homens, não apenas os arqueólogos e os literatos” (ARGAN, 1992, p. 228). A

6
Referência à metodologia de pesquisa com base em sondagem de opinião desenvolvida por
George Gallup, nos Estados Unidos. Gallup previu a vitória de Roosevelt nas eleições para a presidência
norte-americana de 1930.
7
Referência a Alfred Kinsey, graduado em psicologia e biologia, criador da disciplina de sexologia,
publicou em 1948 uma pesquisa pioneira sobre sexualidade masculina, conhecida como Relatório Kinsey.

43
questão de atribuição de valor, tema elaborado pioneiramente por Riegl, é
remetida à cidade e “é o que lhe é atribuído por toda a comunidade”, numa
reiteração da importância da participação do cidadão as decisões sobre a cidade e
da política como elemento estrutural do urbanismo.

2.4.3.3. A questão da imaginabilidade

Lynch discute o papel social desempenhado por uma imagem da cidade


claramente definida, na medida em que esta fornece matéria-prima para a
construção simbólica, para certas práticas coletivas e para os conteúdos
reminiscentes da sociedade, destacando o papel das paisagens como “o
esqueleto sobre o qual muitas raças primitivas erigem seus mitos socialmente
importantes” (LYNCH, 1979, p.83).
O autor nos fala de uma cidade que está além de sua concretude física,
de sua materialidade, sugerindo a existência de uma cidade que nasce da
interação entre observador e ambiente como uma imagem ambiental, que pode
variar segundo os muitos e diferentes observadores, que são aqueles que dão
significado ao que se vê. Por esta imagem emanar de muitos indivíduos, Lynch
trabalha com o conceito de imagem pública, elaboração mental associada a
“vastos contingentes de habitantes de uma cidade: áreas consensuais que se
pode esperar que surjam da interação de uma única realidade física, de uma
cultura comum e de uma natureza fisiológica básica” (LYNCH, 1979, p.18).
A pesquisa de Lynch distingue os três componentes da imagem
ambiental: identidade, estrutura e significado. Metodologicamente, o autor
estabelece a necessidade inicial de identificar o objeto, através de sua
diferenciação de outros e seu reconhecimento como ente autônomo. A seguir,
deve ser feita uma relação espacial ou paradigmática do objeto com o observador

44
e com outros objetos. E, finalmente, deve haver um significado, seja prático ou
funcional.
A pesquisa revela também as qualidades que a imagem ambiental
construída deve apresentar para que tenha valor como “orientação no espaço
ocupado pelas pessoas”: deve ser suficiente; pragmaticamente verdadeira, de
modo a permitir a atuação do indivíduo em seu ambiente “na medida de suas
necessidades”; deve ser clara e econômica em termos de esforço mental; e deve
“conter espaços em branco nos quais ele possa ampliar pessoalmente o desenho”
(LYNCH, 1979, p.19).
A partir dos conceitos de identidade e estrutura e das qualidades
associadas de suficiência, realidade, economia, e alguma imponderabilidade como
espaço de expansão individual, Lynch elabora o conceito-síntese de
imaginabilidade.
A imaginabilidade atenderia à "necessidade de identidade e estrutura
em nosso mundo perceptivo”, permitindo a um observador familiarizado (pré-
requisito), o contato e a absorção de novos fatos urbanos sem ruptura da imagem
básica, sem a interrupção de ligações ou relações com os elementos
preexistentes. A cidade poderia ser apreendida, com o passar do tempo, “como
um modelo de alta continuidade com muitas partes distintas claramente
interligadas” (LYNCH, 1979, p. 20).
É absolutamente atual a posição de Lynch, considerando as
transformações em larga escala que ocorrem no ambiente físico, uma vez que
hoje “do ponto de vista técnico, podemos criar paisagens completamente novas
em breve espaço de tempo”, o que inclui “uma nova unidade funcional – a região
metropolitana – para a qual deveria corresponder também uma imagem
ambiental”. Citando Suzane Langer: “É o ambiente total tornado visível” (LYNCH,
1979, p. 23).
Para Lynch, a imaginabilidade é chave para compreender e lidar
ativamente com o meio em que se vive, sendo a cidade imaginável aquela que
nos evoca imagens fortes e duradouras, em que forma, cor, disposição, volumetria

45
e localização contribuem para a produção de imagens mentais identificadas,
estruturadas e “altamente uteis no meio ambiente” (LYNCH, 1979, p. 20).

Temos a oportunidade de formar o nosso novo mundo citadino como


sendo uma paisagem ideal: visível, coerente e clara. Será necessária
uma nova atitude por parte do habitante desta cidade, dando novas
formas ao meio físico que ele domina, formas essas que agradam a vista,
que se organizam gradualmente no tempo e no espaço, e que podem ser
símbolos representantes da vida urbana (LYNCH, 1979, p.103).

Mas existem “funções fundamentais que podem ser expressas pelas


formas de uma cidade: circulação, aproveitamento dos espaços mais importantes,
pontos focais.” As esperanças e satisfações comuns podem ser humanizadas.
Especialmente, se “o meio ambiente está visivelmente organizado e nitidamente
identificado”, o habitante poderá conhecê-lo ao com ele estabelecer suas relações
e a dar seus próprios significados. “Neste momento tornar-se-á um verdadeiro
lugar notável e inconfundível” (LYNCH, 1979, p.104).
Na construção da ideia de lugar há um fenômeno de identidade e de
pertencimento. Nele, o ambiente comparece como o elemento de sustentação e
possibilidade para os conteúdos simbólicos que conferem sentido à experiência do
lugar. É curioso observar que, para ilustrar conceito de imaginabilidade, a
pesquisa de Lynch, estruturada em termos científicos, irá valer-se de uma
imagética carregada de conteúdo artístico, sensível, que denota a manifestação
artística como elemento estruturador do espaço.
Lynch descreve Florença e seus principais elementos, transitando entre
o meio físico, o ambiente construído e o espaço cultural. A cidade “símbolo do
Renascimento” e dona de “uma história econômica, cultural e política de grandes
proporções” tem grande visibilidade, estando inserida num vale cercado de colinas

46
que, como terraços, permitem
a apreensão de seu todo a
partir de várias visadas
diferentes.
Florença “situa-se
ao longo do rio Arno, de tal
modo que o panorama da
cidade é quase sempre
alternado com o das colinas.”
No centro da cidade “ergue-se
a enorme e inconfundível
catedral da cidade, o Duomo,
ladeada pelas torres de sinos
de Giotto, que constitui um
Figura 10. Florença, Rio Arno.
Fonte http://www.panoramio.com/photo/42791946 ponto de orientação visível de
todos os pontos da cidade e
ainda a quilômetros de distancia dela. A catedral é o símbolo da cidade de
Florença.”

O centro da cidade tem em seus bairros pequenos símbolos de enorme


significação: ruas estreitíssimas com o pavimento de pedra, edifícios altos
de cor cinzenta amarelada, gradeamentos de ferro (...). A zona do centro
está cheia de aspectos marcantes, possuindo cada um deles seu nome e
sua história. O rio Arno atravessa tudo isto, e liga o todo à vasta
paisagem ao redor. (LYNCH, 1979, p.104)

O conteúdo do discurso de Lynch, profundamente sensível, valoriza


aquilo que a percepção humana é capaz de conceber, em termos de relações e
significados que constituem um lugar.

47
Figura 11. Vista aérea de Florença.
Fonte: http://www.kingsacademy.com/mhodges/02_The-West-to-1900/08_The-Renaissance/pictures/REBR-074-
5_Florence_aerial-view.jpg

O poderoso exemplo de Florença, com toda a carga simbólica de um


período de importantíssimo desenvolvimento humano, está a serviço não da
exceção ou da perfeição, mas de uma forma de entender a cidade como
depositária física de toda a nossa produção simbólica que se quer ou se
transforma num ato de fé coletivo na possibilidade do homem como ser social.

Figura 12. Santa Maria


del Fiore e Palazzo
Vecchio.
Fonte
http://mw2.google.com/m
w-
panoramio/photos/mediu
m/72187761.jpg

48
Figura 13. Florença, vista aérea.
Fonte: http://i258.photobucket.com/albums/hh245/faizanrashid/Italy/Florence_aerial_2.jpg

“O meio ambiente visual torna-se parte integrante da vida dos habitantes”


(LYNCH, 1979, p.105).
Para Lynch, a cidade deveria ser “concebida para uma melhoria
possível, construída com arte, adaptada aos fins que interessam ao homem. (...)
Nos nossos próprios terrenos temos que começar a adaptar o ambiente ao modelo
perceptual e ao processo simbólico do ser humano” (LYNCH, 1979, p.107).
Não basta, segundo o autor, que o ambiente que seja apenas bem
organizado, deve ser também “poético e simbólico”. Deve ser, neste sentido,
artístico. Ou, como quer Argan, “a cidade deixa de ser lugar de abrigo, proteção,
refúgio e torna-se aparato de comunicação; comunicação no sentido de
deslocamento e de relação, mas também no sentido de transmissão de
determinados conteúdos urbanos” (ARGAN, 1992, p. 236).

49
2.4.4. Argan e Cullen: percepção, flânerie e a construção do lugar

O pensamento urbanístico racionalista caracteriza-se pela primazia da


função dos elementos urbanos, amparado por significados de natureza ideológica.
O “programa” de uma nova cidade ou de um novo bairro compreende as funções
consideradas básicas para a vida urbana segundo uma lógica produtiva
predominante, e organiza-se num discurso baseado, em boa medida, em
abstrações tais como “a sociedade”, “a comunidade”, “a função urbana”.
Como nos aponta Argan, tais abstrações são “interessadas”, isto é, nos
conduzem a pensar a cidade como “uma máquina que deve realizar uma função
que, naturalmente, é sempre uma função produtiva”. As funções urbanas,
hierarquizadas, organizam-se num ciclo (virtuoso?) que alterna habitar, trabalhar,
o lazer e circular. Mas “são justamente essas abstrações que corroem em
profundidade o conceito histórico de cidade, porque afastam da experiência, e,
portanto, da consciência” (ARGAN, 1992, p. 230).
Mas, como afirma o próprio Argan, a função nada mais é que a razão
de ser de qualquer elemento urbano, sendo equivocado identificá-la com o
significado. O autor se vale do exemplo da estação ferroviária. O edifício, que tem
a função de receber quem chega de viagem e despachar quem parte, é usado, e o
fazemos com frequência, como ponto de referência urbano. Para além da
dinâmica própria que lhe confere função específica, o edifício da estação tem um
significado relacionado ao contexto urbano (ARGAN, 1992, p. 230).
Esta é a linha de desenvolvimento de Paisagem urbana, de Gordon
Cullen, em que a crítica ao urbanismo racionalista se assenta na reiteração do
valor, para o urbanismo, da experiência vivida, do ponto de vista perceptual puro,
da visão e do sentir decorrentes do ato de percorrer e perceber a cidade.
Entretanto, o ato de perceber está ligado à apreensão do espaço, pressuposto de
sua apropriação – tornar próprio de si – pelo cidadão; e está condicionado pela

50
visão, sentido humano que “tem o poder de invocar as nossas reminiscências e
experiências, com todo o seu corolário de emoções” (CULLEN, 1983, p. 10).
Cullen, assim como Lynch, busca referências para o pensamento
urbanístico em outros campos do conhecimento. A proposição de uma visão
serial, o primeiro determinante conceitual de Paisagem urbana, guarda relação
com a psicologia das formas, apontando para uma estruturação da imagem na
mente do observador. Esta referência deixa ao observador-fruidor uma parcela do
trabalho de construção de uma ideia – ou imagem – do espaço que o contém.
Mas, do ponto de vista da percepção, o que é espaço? Rudolf Arnheim
elabora duas respostas para a pergunta. A primeira define o espaço como uma
“entidade autônoma, infinita ou finita, um veículo vazio e pronto com a capacidade
de ser preenchido de coisas” (ARNHEIM, 1977, p.10). Seja de modo consciente
ou inconsciente, as pessoas obtém esta noção do mundo como elas o veem. O
espaço é experimentado como um dado que precede os objetos nele contidos,
como um estabelecimento no qual as coisas tomam seu lugar.
Arnheim observa que é necessário que levemos em conta “a maneira
espontânea e universal de ver o mundo” sem o que não será possível “entender a
natureza da arquitetura como um arranjo de edifícios colocados num espaço
contínuo.” Mas esta resposta não é suficiente, pois “este conceito não reflete o
conhecimento da física moderna, nem descreve a maneira pela qual a percepção
do espaço se processa psicologicamente” (ARNHEIM, 1977, p.13).
As elaborações de Arnheim nos permitem contextualizar certas razões
que permeiam os trabalhos de Lynch, Cullen e Argan. Em lugar da ortodoxia
racionalista do pensamento moderno e, mais especificamente, do urbanismo
racionalista moderno, os autores propõem sistemas de pensamento que admitem
a imponderabilidade e a incerteza como fatores relevantes do processo de
elaboração do conceito de espaço urbano, dando nova dimensão à ideia de escala
humana.
Como explica Arnheim, para a ciência da física o espaço é definido pela
extensão dos corpos materiais ou campos que se limitam mutuamente, como uma

51
paisagem de terra e pedras que tangenciam corpos de água e ar. O espaço entre
as coisas materiais é determinado pelas influências mútuas entre elas na medida
que:
a distância pode ser descrita como a quantidade de energia luminosa que
alcança um objeto que vem de um corpo de luz, ou como a força de
atração gravitacional emanada de corpo a outro, ou pelo tempo que uma
coisa leva para viajar de um ponto ao próximo. A não ser pela energia
que o preenche não se pode dizer que o espaço exista (ARNHEIM, 1977,
p.10).

A mesma acepção da percepção espacial será verdadeira em termos


psicológicos. Uma vez estabelecido, o espaço é experimentado como um dado
autossuficiente perene, mas a experiência é gerada apenas através da inter-
relação das coisas. Daí advém a segunda resposta para a pergunta inicial: a
percepção espacial ocorre apenas na presença de coisas que são percebíveis. O
que permite deduzir que a presença do observador é fundamental para o conceito
de espaço. E que o papel que lhe cabe vai além do simples e passivo observador.
A noção de existência do espaço como aquilo que dá lugar às coisas
que se relacionam entre si parece refletir na visão de Cullen quando este afirma
que “existe, sem dúvida, uma arte do relacionamento, tal como existe uma arte
arquitetônica” com o objetivo de reunir “elementos que concorrem para a criação
de um ambiente, desde os edifícios aos anúncios e ao tráfego, passando pelas
árvores, pela água e por toda a natureza, enfim, e entretecendo esses elementos
de maneira a despertarem emoção e interesse” (CULLEN, 1983, p.10).
O mesmo viés psicológico para a apropriação dos elementos espaciais
desenvolvido por Cullen comparece no segundo dos conceitos determinantes de
seu trabalho: a localização. “Dentro e fora”, “aqui e além”, “acima de e abaixo de”,
são aspectos posicionais que concorrem para “o sentido de localização que não
pode ser ignorado”, devendo este ser necessariamente considerado no
“planejamento” do ambiente.
O terceiro conceito determinante de Paisagem urbana é o que o autor
define como conteúdo, isto é, aquilo que se relaciona “com a própria constituição

52
da cidade: a sua cor, textura, escala, o seu estilo, a sua natureza, a sua
personalidade e tudo o que individualiza” (CULLEN, 1983, p.11).
Assim como Lynch, Cullen coloca em perspectiva a questão da
participação dos cidadãos ao colocar seu trabalho no âmbito de um jogo, o “Jogo
do Meio-Ambiente, o jogo que se processa continuamente à nossa volta”. O autor
destaca que não fala de “valores absolutos, de beleza, de perfeição, de arte com
“A” maiúsculo, de moral.” O meio ambiente ao qual ele se refere está mais para
uma “conversa amena entre pessoas vulgares falando de coisas simples.” Não há
mais lugar para a posição superior do urbanista a ditar as regras do devir da
cidade. Mas, como declara Cullen, “o objetivo fundamental dos urbanistas
continua a ser a comunicação com o público, não tanto pela via democrática, mas
pela via emocional.”
O autor nos convida a participar de um “jogo” em que o processo de
descoberta do ambiente é central. De certa forma, Cullen parece encarnar uma
espécie de flaneur baudeleriano que perambula em muitos lugares do mundo, e
compõe um léxico urbano que se revela através dos “recintos”, “enclaves”,
“recintos múltiplos”, “espaços intangíveis”, articulados como “paisagem interior e
compartimento exterior”, “compartimentos e recintos exteriores”, “edifícios-
barreira”, “aqui”, “aqui e além”, “desníveis”, entrelaçamentos”, “perspectivas
grandiosas”, “perspectiva delimitada”, deflexões”, “saliências e reentrâncias”,
“acidentes”, “pontuações”.
São conceitos que se desenvolvem por meio de inúmeras imagens:
perspectivas, fotografias, implantações de trechos urbanizados, paisagens
naturais, cenas urbanas, tipos humanos, detalhes, texturas e alguns pouquíssimos
exemplos daquilo que o autor denomina de “nova arte” da paisagem urbana, como
Wall Hall Estate, em Eltham (1915) e Redgrave Road, em Basildon, (1953), dos
quais destaca os atributos que lhes conferem qualidade espacial: “repetição”,
“desníveis”, “exterior”, “interior”, “árvore”, “aqui”, “detrás da sebe”. Há uma
classificação de elementos ambientais, aqui incluídas as formas de sua
apropriação, segundo uma sistematização que “deverá seguramente ser a

53
organização deste campo de modo que os fenômenos possam ser classificados
logicamente num Atlas do ambiente" (CULLEN, 1983, p. 196).
A escassez de exemplos é coerente com o desejo de Cullen de reiterar
que se trata de um jogo cujas regras são estabelecidas por cada um de nós, cujo
convite à participação denota um acento democrático na apropriação do espaço
urbano.

54
3. Capítulo 2: a dimensão artística da cidade

3.1. A dimensão artística da cidade em Camilo Sitte

Oh! Sim, as ruas têm alma. Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas
sinistras, ruas nobres, delicadas, depravadas, puras, infames, ruas sem
história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma
cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, speenéticas,
esnobes, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam
sem pinga de sangue...
8
João do Rio

3.1.1. A cidade segundo a abordagem sitteana: fragmentos, elementos,


escala

A praça, elemento central do discurso de Sitte, é o leitmotif que articula


sua crítica e sua visão das cidades europeias, e de Viena em particular. A praça,
antagônica às grandes esplanadas modernas, os pequenos jardins particulares “a
salvo da poeira e do vento”, as arcadas, as estátuas e os chafarizes evocados
pelo autor estabelecem o arcabouço através do qual Sitte elabora sua análise e
suas propostas urbanísticas.
Como observa Carlos Roberto Monteiro de Andrade (in SITTE, 1992,
p.vii), é a escala do fragmento que interessa a Sitte. Seus objetos de análise não
são colocados num contexto maior, mas uns em relação aos outros, moldando

8
JOÃO DO RIO apud MARTINS, 2005, p. 23.

55
assim a imagem de cidade com base em modelos relacionais de escala bastante
controlada, talvez ainda sob o controle de um artista, arquiteto ou urbanista.
Sitte utiliza recortes precisos da paisagem urbana, "em vez das
perspectivas voo de pássaro, ou de plantas de conjunto reunindo dados diversos".
O todo urbano não interessa a Sitte, e os problemas de escala relativos não serão
tratados por ele. Em A construção das cidades segundo seus princípios artísticos
não há uma única imagem “de corpo inteiro” de Viena.
O crítico e historiador vive a polêmica com os construtores da
Ringstrasse da Viena moderna. Vive também sentimentos contraditórios quanto às
possibilidades oferecidas pelo novo contexto: há um Sitte que enaltece os espaços
em escala humana das cidades antigas, e outro que se deixa encantar pela
grandiosidade do Palácio Hofburg e do conjunto de edifícios monumentais em
construção na Heldenplatz do Imperador Francisco José I.
Sitte observa as cidades antigas onde vielas estreitas desembocam em
praças de tamanho proporcional, isto é, estreitas. Mas as novas dimensões
impostas pela cidade em transformação exigem “espaços gigantescos”. E
exemplifica através da Ringstrasse de Viena com 57 m de largura, da Esplanade
de Hamburgo com 50 m e da Av. Campos Elíseos em Paris com 152 m. O autor
observa que “nem mesmo a Piazza San Marco tem essa largura.”
Fica evidente que as novas exigências de mobilidade impõem
modificações estruturais à cidade. O lugar de sociabilização das pessoas na
cidade, para o exercício daquela especial habilidade referida por Bauman (2001),
a civilidade, desloca-se das praças, antes fechadas – característica fundamental
destacada por Sitte – para as praças abertas e vias que, alargadas, agora
concentram os fluxos urbanos vitais da cidade moderna, e polarizam as atividades
principais da cidade antes constritas às praças: da praça do comércio à rua do
comércio, e desta ao eixo comercial.
A produção em escala, um novo fator do mundo moderno, determina
novos parâmetros de vida na cidade a partir das novas relações de trabalho.
Mudam os espaços de uso coletivo, que serão cada vez mais produtivos e

56
funcionais. Transforma-se também o espaço das representações simbólicas,
tomado pela escala monumental.
A defesa das referências tradicionais faz com que Sitte reitere o
“modelo barroco” historicamente consagrado pela cultura europeia. O Barroco
(que vai do séc. XVII a meados do séc. XVIII) que, segundo Kostof (1991), foi um
“prolongamento em escala” do Renascimento. Ainda que negasse suas
proporções “rígidas e imutáveis”, manteve a perspectiva como fundamento da
concepção dos espaços e como instrumento de valorização dos elementos
urbanos, como edifícios, monumentos, praças e vias.
Sitte anota que “Paris foi a (cidade) que menos se distanciou do modelo
barroco.” Como Roma, Paris enfrentou desde muito cedo a condição de metrópole
moderna em função de seu expressivo crescimento, mas ambas tiveram “sua
origem num momento superior no aspecto artístico”, isto é, são cidades cujas
origens remotas lhes garantiram alguns de seus principais aspectos pinturescos, a
despeito do primevo crescimento que sofreram.
Aqui, Sitte trata da questão da escala da cidade que, nos exemplos
utilizados, mesmo transformada em metrópole, preservou a característica mais
importante – a escala – das praças, seus elementos urbanos fundamentais.
Criticando o “moderno sistema de blocos”, mas admitindo sua
inevitabilidade como estratégia de desenvolvimento da metrópole, Sitte investe na
tentativa de nela garantir o lugar da arte, reconhecendo a nova escala que se
impõe aos artistas construtores. Toma por exemplo dois projetos do arquiteto
alemão Gottfried Semper (1803 -1879): o Zwinger de Dresden (não realizado) e o
conjunto de edifícios junto ao Hofburg, palácio originado de um castelo medieval
sucessivamente ampliado e modernizado (mas apenas parcialmente realizado),
que era a principal residência do Imperador Francisco José I.
Ambos os projetos, que se caracterizam especialmente pela escala
gigantesca e pelos programas que supõe tudo o que seria acessível somente às
classes abastadas, são feitos depois da Primavera dos Povos de 1848, podem ser
entendidos como uma manifestação do status quo em reação à agitação política

57
de então, fruto das crises econômicas. A exigência de representatividade dos
extratos médios das sociedades europeias e a defesa do nacionalismo foram
fatores que concorreram para o desmoronamento da ordem política tradicional
baseada nas monarquias absolutistas e nos regimes centralizadores e
autocráticos, tais como aquele vigente no então Império Austro-Húngaro,
dominado pela dinastia do Habsburgos.
A escolha de tais projetos por Sitte chama a atenção. A defesa da manutenção
dos valores representados na cidade medieval-renascentista o conduz à cidade liberal com
sua escala agigantada e seus programas excludentes, e o leva a uma paradoxal defesa da
onipresença e da perenidade de uma forma de poder que estava sendo severamente
questionada, e que viria ser definitivamente derrotada por força de uma ampla articulação
política e social cerca de vinte e cinco anos depois da publicação de A construção das
cidades segundo seus princípios artísticos.
A suntuosidade e a escala monumental dos edifícios, aliadas a rigorosa
simetria imposta por eixos perspécticos do “modelo barroco” que organizam um programa
constituído pelo palácio imperial, por um museu, uma igreja e um teatro, opõem-se às
características mais caras a Sitte das praças das cidades antigas. A praça da cidade
medieval-renascentista, lugar das atividades urbanas cotidianas e espaço da
representação popular, ganhará novo e diverso sentido, passando a ser o lugar das
atividades institucionais e da representação máxima do poder. Não haverá mais o
mercado, assim como o espaço das festas e manifestações populares. A Heldenplatz,
com suas dimensões agigantadas (130 x 240 m), não se destina à reunião do povo, mas
antes à celebração de uma ordem imutável.

58
Figura 14. Heldenplatz, vista aérea, Viena, Áustria.
Fonte: http://austria-forum.org/attach/Heimatlexikon/Wiener_Hofburg/scaled-
447x300_Hofburg%2C_Wien1.jpg

Figura 15. Estátua do Arquiduque Carlos da Austria, Heldenplatz.


Fonte: ttp://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/9b/
Statue_of_Archduke_Charles_of_Austria_on_the_Heldenplatz_%28Heroes%27_Square%29.jpg/800px-

59
3.1.2. Os lugares da vida citadina

A escolha preferencial de Sitte pela praça não é acidental. É onde o


autor encontra os valores da celebração, do encontro, da identidade, das trocas
urbanas. É este lugar da vida pública e da esfera pública que Sitte coloca no
centro de seu discurso urbanístico. A praça, na escala tal como desenvolvida por
séculos nas cidades europeias, é o elemento de agregação e convívio social, de
representação e significação urbanas em essência e é a partir dela que se assenta
a crítica sitteana à cidade moderna, à cidade industrial.
A praça, em sua nova condição moderna, passará a responder por
outra lógica. Sitte aponta a mudança dos significados – poderíamos falar das
funções – “das praças abertas (um fórum ou uma praça de mercado) em meio à
cidade” (SITTE, 1992. p. 15), e lamenta que sejam cada vez menos usadas no
cotidiano das pessoas ou para “as grandes festas públicas”, servindo no mais das
vezes:
a nenhum outro propósito além de garantir maior circulação de ar e luz,
provocar uma certa interrupção na monotonia do oceano das moradias e,
de qualquer maneira, garantir uma visão mais ampla sobre um edifício
monumental, realçando seu efeito arquitetônico (SITTE, 1992. p. 16).

O que qualifica um espaço urbano como lugar? Sitte coloca essa


questão, ao apontar as mudança de qualidade do espaço urbano com a passagem
da cidade pré-industrial para a cidade industrial, em que as mudanças
morfológicas urbanas correspondem às mudanças de significado e de uso dos
espaços públicos. Por outro lado, o autor registra que na Europa e especialmente
na Itália:

(...) as principais praças das cidades mantiveram-se fiéis sob vários


aspectos (...) ao modelo do velho fórum. Uma parte considerável da vida
pública continuou a realizar-se nas praças, conservando assim tanto uma
parte de seu significado público quanto algumas de suas relações
naturais entre elas e as construções monumentais que as circundam
(SITTE, 1992. p. 25).

60
Na Idade Média e na Renascença, as praças concentravam o
movimento e os eventos mais importantes – exibições, cerimônias, anunciação
das leis. Manifestavam as diferenças entre o secular e o eclesiástico, cujas
funções e significados resultavam em morfologias diferenciadas, desenvolvendo-
se “como modelo independente” a praça da catedral que incluía o batistério, a
campanilha e o palácio episcopal, e a praça laica, com a signoria (o átrio da
residência principesca), e o mercato em cuja praça localizava-se “quase sem
exceções” e a prefeitura (a rathaus, ou casa do conselho, conforme nota do
tradutor) onde “nunca há a ausência de um chafariz e seu espelho d’água” (SITTE,
1992. p. 27).
O “sistema de blocos” ditado pela racionalização do espaço urbano
acompanhou a especialização das funções urbanas e implicaram sua
internalização no lote e no edifício. Sitte lamenta que “a alegre balburdia do
mercado há muito tenha sido encarcerada nas gaiolas de ferro e vidro de um
edifício fechado” (SITTE, 1992. p. 27), numa clara referência aos modernos
mercados que passaram a concentrar a função de abastecimento de gêneros.
Atento, Sitte observa a dissociação entre a história da construção
urbana e a história da arquitetura e das belas artes, identificando a origem do
fenômeno já na Renascença e no Barroco. Há uma disparidade, por ele
denominada de contraste, entre a modernização do tecido urbano – o “sistema de
blocos” – e a adoção coetânea de adoção de estilos clássicos antigos para os
edifícios. Ressalvando que “dessa feita, a imitação foi levada bem mais a sério,
preconizando-se a maior fidelidade possível ao modelo da Antiguidade” (SITTE,
1992. p. 93), o autor observa que:

(...) construíram-se novamente basílicas do velho cristianismo, propileus


gregos e catedrais góticas. Mas onde ficaram as praças correspondentes
a tais edifícios? A ágora, o fórum, a praça do mercado, a acrópole –
ninguém lembrou de tudo isso (SITTE, 1992. p. 93).

De fato, há uma crescente internalização dos lugares da vida citadina,


das atividades cotidianas assim como dos elementos de representação simbólica,

61
conforme comentado acima. Se antes ocorriam nos espaços civis, como os define
Bauman (2001), tais atividades passam agora a ser incorporadas aos espaços
privativos, sejam mercados de vidro e aço que organizam as trocas ou museus
que organizam a memória segundo um discurso predeterminado. A disparidade,
como apontada por Sitte, acentua-se pela prevalência do edifício sobre o espaço
urbano enquanto lugar preferencial das atividades e das manifestações da vida
urbana.
Sempre com base no valor das relações sociais urbanas que reitera a
cada momento, Sitte propõe que:
constatemos, apenas teoricamente, que, na vida pública da Idade Média
e da Renascença, houve uma valorização intensa e prática das praças
da cidade e uma harmonização entre elas e os edifícios públicos
adjacentes, enquanto hoje as praças se destinam, quando muito, a servir
como estacionamento para os automóveis, quase não mais se discutindo
a relação artística entre praças e edifícios (SITTE, 1992. p. 30).
Tal relação artística, que supõe uma ética relacionada a uma estética,
define a natureza do lugar que cria e o tipo de espaço que propicia. Queiroga
observa que:
O espaço é entendido, pois, como um híbrido entre materialidade e
sociedade, entre forma e conteúdo, entre fixos e fluxos, entre inércia e
dinâmica, entre sistema de objetos e sistema de ações. Tem-se, portanto,
o espaço como uma instância social, da mesma maneira que são
instâncias sociais a economia, a cultura e a política (QUEIROGA, 2005,
p. 25).

É importante registrar que a mudança do paradigma de cidade


manifesta-se também no processo acelerado de transformação dos valores
atribuídos ao espaço urbano, com a substituição implacável do valor de uso pelo
valor de troca do solo urbano, agora mercadoria a serviço da reprodução
acelerada do capital. Coerentemente, a cidade não será mais tratada como obra
de arte, mas estritamente manipulada como um objeto da técnica: “Tudo será
tratado do ponto de vista técnico, como se estivéssemos traçando uma linha
férrea, onde não há questões artísticas envolvidas” (SITTE, 1992, p. 94).

62
Figura 16. Praça de Santa Maria
Novella, Florença, Itália.
Fonte: Google Earth

Figura 17. Praças do Duomo,


Republica e Signoria,
Florença, Itália.
Fonte: Google Earth

Figura 18. Praça do Duomo,


Florença, Itália.
Fonte: Google Earth

Figura 19. Praça da Signoria,


Florença, Itália.
Fonte: Google Earth

63
Figura 20. Palio, Siena, Itália.
Fonte: Google Earth

Figura 21. Praça São Marco,


Veneza, Itália.
Fonte: Google Earth

Figura 22. Paris, 1889. Vista aérea.


Ao centro, o eixo da Avenida dos
Campos Elíseos que liga a Praça da
Concórdia ao Arco do Triunfo. À
esquerda, o rio Sena.
Fonte: “El disegno de la ciudad”
(BENEVOLO, vol. 5, p. 67, 1978)

Figura 23. Paris, 2004. Vista aérea.


Ao centro, o eixo da Avenida dos
Campos Elíseos que liga a Praça da
Concórdia ao Arco do Triunfo. À
esquerda, o rio Sena.
Fonte: Google Earth.

64
Num tempo de grandes transformações políticas, a modernização das
cidades será pautada ainda pela necessidade de garantir a segurança de
governos e instituições. A arte estará presente, mas submetida à técnica e a
serviço de sistemas políticos essencialmente centralizadores que submeterão os
espaços públicos às suas necessidades de representação simbólica de poder.

3.1.3. Novos elementos urbanos: o parque e o jardim

Outro elemento urbano significativo que surge com a cidade industrial, o


jardim ganhou uma nova forma e um novo significado urbano como parque
público, sucedâneo do jardim renascentista, do jardim barroco e dos espaços
ajardinados privativos. Este elemento urbano renovado está imbricado no sistema
que conforma a cidade moderna, sujeito, portanto, ao isolamento pelas vias que
desenham o grid ortogonal e as dimensões ampliadas determinadas por uma nova
escala urbana.
Mas, para Sitte (1992, p. 109), “os jardins assim como os edifícios e os
monumentos, não deveriam ser dispostos isoladamente no centro dos espaços
vazios, mas sim encaixados nas construções”.
Por outro lado, o historiador avalia parques e jardins a partir da
consideração de que a paisagem natural poderia contribuir para a restauração da
arte e construir cidades com atributo pinturesco: “Merece atenção particular os
efeitos de perspectiva e o aproveitamento de eventuais panoramas oferecidos
pela geografia local” (SITTE, 1992. p. 134).
Bernardo Secchi propõe que: “No jardim, se expressam e são postos à
prova, a importância teórica e os limites das novas ideias” (SECCHI, 2006, p.25).
Os dois excertos do texto da obra de Sitte revelam um discurso
marcado pela transição de forma e de significado destes elementos. Novamente,
Sitte parece hesitar entre a defesa dos valores da cidade antiga pelos jardins

65
“encaixados nas construções”, e o “aproveitamento de eventuais panoramas
oferecidos pela geografia local”, posições distanciadas pela escala (controlada e
restrita no primeiro, alargada e ampliada no segundo) e diferenciados pelo papel
no ambiente urbano, entre privado e público respectivamente.
Como discurso urbanístico, o texto é orientado por uma visão de
superação das condições atuais com vistas a melhorias da qualidade de vida. A
preservação – até onde e quando possível – das características artísticas e dos
valores morais das cidades antigas deverá estar a serviço do resgate de uma
qualidade que a cidade industrial perdeu.
A construção da ideia de cidade de Sitte se dá sobre seus fragmentos,
por ele criteriosamente escolhidos e analisados, que estruturam a defesa
peremptória da cidade como fato artístico e de sua construção segundo princípios
artísticos segundo uma necessidade de natureza moral. É subjacente a ideia de
emancipação tanto individual como coletiva, no sentido do progresso e da
“superação do obscurantismo e da ignorância”, constituindo assim uma narrativa
que “ocupa um papel construtivo fundamental”.
Considerada a inexorabilidade da cidade moderna e seus sistemas,
Sitte caminha então para uma espécie pacto, ponderando que “se podem obter
efeitos artísticos em qualquer traçado de ruas”, lembrando ainda do papel
essencial dos espaços civis na formação cultural de uma sociedade, tratados
como lugares de formação do espírito, especialmente dos jovens. O papel do
pinturesco, isto é, da arte como elemento estruturador material e imaterial da
cidade é colocado assim de forma distintiva, como fator da maior importância no
processo de estruturação social.

66
3.2. A dimensão artística da cidade em Giulio Carlo Argan

3.2.1. A cidade segundo a abordagem arganiana: a arte como fato urbano, a


cidade como fato artístico

Assim como Camillo Sitte abordou a questão artística enquanto questão


eminentemente urbana, Giulio Carlo Argan fará do tema da cidade como artefato
um dos aspectos centrais do conjunto de textos que compõe História da cidade
como história da arte. O autor parte da premissa do caráter indissociável da arte e
da cidade, considerando que a arte está na gênese da cidade, que a manifestação
artística sempre esteve ativa presente no espaço urbano.
Ainda que sejam artísticas as manifestações pictóricas das cavernas de
Lascaux, do Parque Nacional da Serra da Capivara ou de qualquer outro sítio
arqueológico, a arte como a conhecemos é um fato urbano por excelência. A arte
surge como fenômeno expressivo, significativo e representativo dos processos
sociais urbanos, tendo na cidade seu lugar de desenvolvimento e manifestação.
A arte, “como uma atividade (...) ligada à burguesia”, é “não apenas
inerente, mas constitutiva da cidade que, de fato, foi considerada durante muito
tempo (...) a obra de arte por antonomásia.” A cidade, ao concentrar a arte e a
cultura, “coroava a formação cultural dos jovens destinados, por classe ou por
censo, a funções de governo” (ARGAN, 1982, p. 43).
A cidade provia o contato com as resoluções plásticas formais e a
técnica dos monumentos e demais artefatos artísticos, e através deles com seus
significados e com os valores que representavam, os quais, por sua vez,
significavam não apenas a memória de um passado, mas “um passado que
permaneceu presente, uma história feita espaço ou ambiente concreto da vida”
(ARGAN, 1992, p. 43).

67
Sendo a arte constitutiva da cidade, será equivocado restringir a
compreensão do seja a cidade ao traçado e aos edifícios, ao zoneamento e às
funções, aos sistemas técnicos e aos fluxos. Para além da dimensão técnica e de
sua materialidade, o espaço urbano tem, para Argan, “seus interiores”, e é espaço
urbano todo o elemento que tem um papel a representar “na dimensão cênica da
cidade”.
O autor enfrenta a questão dos valores atribuídos à cidade e à arte.
Para Argan, falar da cidade implica automaticamente em posse, em propriedade
das coisas da cidade. Mas, ainda que num contexto dominado pela mentalidade

Figura 24. Le Pont au Change, Charles Meryon, 1854, Paris.


Fonte: http://www.fulltable.com/vts/aoi/m/meryon/13.jpg

do mundo-mercado e que hoje o mercado de arte possa determinar muitos de


seus aspectos, a arte e os valores que a definem nada tem a ver com a posse. A
arte é feita por uma necessidade de representação, por quem vive no espaço, da
“situação de fato em que age” (ARGAN, 1992, p. 44). Como esclarece o autor, o
termo “de fato” refere-se a “imaginário, porque a dimensão em que se projeta e se
faz não é certamente o local em que ocasionalmente nos encontramos, mas a
imagem mental que cada um faz do espaço” (ARGAN, 1992, p. 44).

68
Figura 25. Boulevard des Italiens , Gustave Caillebotte, 1880, Paris.
Fonte: http://www.pt.wahooart.com/@@/6WHKXV-Gustave-Caillebotte - Boulevard-des-Italiens

É patente a referência a Kevin Lynch, que revelou a existência de uma


“imagem pública” de cidade, constituída por inúmeras imagens criadas pelos
indivíduos que nela moram, cada uma própria e única.

Cada imagem individual é única e possui algum conteúdo que nunca ou


raramente é comunicado, mas ainda assim ela se aproxima da imagem
pública que, em ambientes diferentes, é mais ou menos impositiva, mais
ou menos abrangente (LYNCH, 1997, p.17).

Tomada como construção mental que transcende sua materialidade


para validar sua realidade física, a cidade constitui-se, sim, um fato artístico, uma
concepção de caráter artístico que “lembra o caráter artístico intrínseco da
linguagem, indicado por Saussure: a cidade é intrinsecamente artística”.

69
Como a arte, a cidade é o resultado de algo que foi elaborado e
engendrado previamente, isto é, resulta de um projeto concebido preliminarmente.
Mas é também uma construção real, é a concreção física do fato mental, para o
que é necessário construí-la e colocá-la “em relação às técnicas de projeto"
(ARGAN, 1992, p.75). Segundo Bassani, a cidade “é ideia e techné (termo que se
refere à capacidade de produzir um objeto por meios racionais), como a produção
artística, incluindo – e principalmente – a arquitetura, e os demais objetos que
compõe o chamado espaço urbano” (BASSANI, 203, p. 140).
Sendo a cidade o lugar da arte, de todas as artes, será lugar também
da literatura, como o campo para seu pleno desenvolvimento e do qual passará a
fazer parte, como um dos atributos característicos da vida urbana. Aqui, o artista
paradigmático será Baudelaire que representará na literatura a transformação da
Paris surgida pelas mãos do “artista-demolidor”, como se autointitulava o barão

Figura 25. Rua de Paris, dia de chuva , Gustave Caillebotte, 1877, Paris.
Fonte: http://www.artic. edu/aic/collections/artwork/20684?search_no=1&index=4

70
Haussmann.
Também um respeitado crítico de arte, Baudelaire identifica um novo
gênero na pintura, “a paisagem das grandes cidades” na obra do gravurista
Charles Meryon, cujas imagens traziam “a coleção das grandezas e belezas que
resultam de uma poderosa aglomeração de homens e de monumentos, o encanto
profundo e complicado de uma capital idosa e envelhecida nas glórias e nas
atribulações da vida.”
O novo gênero dessa arte visual representou bastante bem os bulevares
parisienses. Concebidos por Napoleão III e planejados e construídos por
Haussmann, foram concebidos como um conjunto de infraestruturas subordinados
a um sistema arterial de circulação viária. Mas permitiram, muito além das
exigências funcionais e metabólicas da cidade, o surgimento de uma verdadeira
nova paisagem, a paisagem urbana – talvez um novo valor – a ser fruída e gozada
na flânerie, o deambular pela cidade. Walter Benjamim aproximará as duas
entidades: “paisagem – eis no que se transforma a cidade para o flaneur”
(BENJAMIN, 1987, p. 35). Vir e ser visto passou a fazer parte do cotidiano da vida
metropolitana parisiense, redefinindo em termos o público e o privado e
redimensionando seus pesos relativos.
A escrita urbana, novo gênero surgido das angústias originadas pelas
profundas transformações urbanas ocorridas na transição do séc. XIX para o séc.
XX baseou-se na observação direta da vida urbana para estudá-la criticamente em
toda a sua complexidade. Baudelaire, (As flores do mal, O spleen de Paris) Marx e
Engels (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra), Dostoievski (Crime e
castigo), Stendhal (O vermelho e o negro), Dickens (Tempos difíceis). No Brasil,
Machado de Assis (em crônicas como Um caso de burro), Aluízio de Azevedo (O
cortiço), e João do Rio, cronista carioca congênere de Baudelaire em nosso país,
que fez do Rio de janeiro “sua matéria, o seu cenário, o seu assunto permanente,
o seu mundo literário” (MARTINS, 2005, p.15), são os escritores que, entre tantos
outros, farão da temática urbana o foco da sua arte, ratificando o papel das
cidades como “ambientes geradores de novas artes, pontos centrais da

71
comunidade de intelectuais, e mesmo de conflito e tensão entre estes”
(MENEZES, 2006, p. 3).
Marshall Berman anota que Baudelaire, na introdução de O spleen de
Paris, “proclama que a vie moderne exige uma nova linguagem”, em função “da
observação das cidades enormes e do cruzamento de suas inúmeras conexões.”
Em "Os olhos dos pobres" n'O spleen de Paris nº 26, o escritor moderno por
definição revela as contradições típicas das metrópoles. Num texto poético, expõe,
lado a lado, um casal de namorados que sentados numa mesa de um café
parisiense – outra inovação da cidade moderna – ora perdem-se em suas próprias
divagações, ora incomodam-se com uma família de pobres que os observa,
faminta e extasiada, imaginando o que poderia ser a vida que se desenrolava do
outro lado da vitrine que separava os dois mundos.

3.2.2. Cidade real, cidade ideal

A cidade á a própria arte, favorece a arte.


9
Lewis Mumford

A um só tempo imagem e concreção, produto mental e realização, a


cidade é sustentada por entidades distintas, mas complementares. O ideal e o real
se cruzam de modo permanente e estabelecem a condição de sua existência.

9
Lewis Mumford, 1961

72
Figura 26. Pienza, Itália.
Fonte: Google Earth

Figura 27. Sermoneta, Itália.


Fonte: Google Earth

Figura 28. Palmanova, Itália.


Fonte: Google Earth

73
Figura 29. Welwyin, Inglaterra.
Fonte: Google Earth

Figura 30. Lechworth, Inglaterra.


Fonte: Google Earth

74
A mudança de paradigma representada pelo antropocentrismo da
Renascença permitiu que a arte passasse a ser concebida como expressão da
personalidade e da visão de mundo do artista. Tornou possível também a
existência de uma cidade ideal concebida, por um artista, como uma obra de arte
total a partir de uma visão pessoal.
Ainda que a possibilidade de concretizar o desenho da cidade ideal
tenha sido possível apenas em raríssimas oportunidades como Pienza, Sermoneta
e Palmanova na Itália; as “garden cities” inglesas Welwyn e Lechworth; São
Petersburgo na Rússia; Chandighard na Índia, e Goiânia e Brasília no Brasil, entre
outras, o valor dessas experiências reside no fato de estabelecer um “ponto de
referência em relação ao qual se medem os problemas da cidade real” (ARGAN,
1992, p. 74).

Figura 31. São Petersburgo. Acima, a


Fortaleza de Pedro e Paulo, ligada ao
Campo de Marte pela ponte sobre o rio
Neva.
Fonte: Google Earth

Figura 32. Goiânia, Brasil. Ao centro, a


Praça Ludovico Teixeira, que, com a Praça
do Cruzeiro faz o eixo SE-NW ocupado pela
Av. Goiás. À esquerda, o Parque dos Buritis.
Fonte: Google Earth

75
Figura 33. Brasília, Brasil. O eixo gerador SE-NW define o setor institucional e articula os
setores N e S, compostos por superquadras mistas e setores residenciais distribuídos ao redor
do Lago de Paranoá.
Fonte: Google Earth

Figura 34. O desenho conceitual de Brasília, o


cruzamento de dois eixos tensionados para
acomodarem-se ao Lago Paranoá.
Fonte: COSTA, Lucio. “Memória descritiva do Plano Piloto”
(1957). In: Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das
Artes, 1995, p. 283.

76
A cidade real, determinada por processos socioeconômicos históricos,
refletirá “as circunstâncias contraditórias do mundo em que se faz” (ARGAN, 1992,
p. 74), e será um modelo de desenvolvimento. “Todavia, sempre existe uma
cidade ideal dentro ou sob a cidade real, distinta desta como o mundo do
pensamento o é do mundo dos fatos” (ARGAN, 1992, p. 73).
A cidade ideal, “mais que um modelo propriamente dito, é um modulo
para o qual sempre é possível encontrar múltiplos e submúltiplos que modifiquem
sua medida, mas não a sua substância: dada uma planta em forma de tabuleiro,
centralizada ou estelar, sempre é possível desenhar o mesmo esquema numa
dimensão maior ou menor” (ARGAN, 1992, p. 74).
Os esquemas de Ebenezer
Howard em Garden Cities of To-morrow
ilustram bem tal afirmação, em que um
mesmo diagrama de geometria rádio
concêntrica ampliada continuamente
parece ser capaz de resolver lógica e
proporcionalmente as relações
espaciais, produtivas e sociais, dos
setores da cidade à rede de cidades no
território. A proposição teórica quer
indicar a possibilidade de manutenção
da qualidade por meio de uma relação
proporcional entre qualidade e
quantidade.
Talvez seja essa dualidade
que esteja por trás daquilo que,
segundo Secchi, possibilita e justifica o

Figura 35. Diagrama “Ala e centro – Cidade


urbanismo. Aquilo que justifica o
jardim”, Ebenezer Howard. urbanismo, isto é, o desejo de melhorar
Fonte: Garden Cities of To-morrow (HOWARD, 1965,
M.I.T.Press) a qualidade de vida na cidade, parte da

77
cidade real e se realiza por meio de um desenho que agregue o melhor que
espírito e o engenho humano são capazes de realizar por meio da arte e da
técnica, a cidade ideal.
Desenho como invenção e intenção. É oportuna a elaboração de
Villanova Artigas:
O “disegno” do Renascimento, donde se originou a palavra para todas as
outras línguas ligadas ao latim, como era de se esperar, tem os dois
conteúdos entrelaçados. Um significado e uma semântica, dinâmicos, que
agitam a palavra pelo conflito que ela carreia consigo ao ser a expressão
de uma linguagem para a técnica e de uma linguagem para a arte.”
(ARTIGAS, 1967).
A experiência urbana a partir da Revolução Industrial deu-se
especialmente pelo atributo da quantidade, isto é, pelo crescimento desmensurado
da cidade real. O surgimento de novas categorias de assentamentos urbanos –
metrópole, região metropolitana, macrometrópole, indicam um processo em que a
quantidade subjugou de forma absoluta a qualidade. Aqui reside, segundo Argan,
“a base de toda a problemática urbanística ocidental.”
É o que explica, segundo o autor, a não continuidade do
desenvolvimento das cidades e a ocorrência característica de sucessivas rupturas
da paisagem, na passagem da cidade histórica para a cidade moderna, e desta
para a cidade contemporânea ou pós-industrial.
Tal como em Brasília, para Argan a cidade ideal é representativa de
conceitos e valores, sendo que a ordem urbanística não refletirá “apenas a ordem
social, mas a razão metafísica ou divina da instituição urbana” (ARGAN, 1992, p.
75). O conceito de “partir do zero”, tão caro ao movimento moderno, traz em si a
ideia de mudança continua, e nega a ideia de continuidade de uma tradição “de
modo que o que resta do antigo é interpretado, sim, como pertencente à história,
mas a um ciclo histórico já encerrado.” (ARGAN, 1992, p. 75)
Mas é claro que não é possível “partir do zero” no caso da cidade real.
Entretanto, mesmo sendo real, como um organismo vivo ela crescerá e se

78
desenvolverá, sempre haverá na cidade real novas áreas, novos setores,
expansões que incorporam o novo ao existente.
Neste processo, deve ser mencionado o plano diretor, cujo papel é
promover o encontro da cidade existente, real, com a cidade nova, ideal. Vale
notar que ele mesmo é uma idealização da cidade, mas que busca objetivar-se
como instrumento de gestão concebido sobre e aplicado na cidade real, voltado ao
equacionamento de problemas reais e às propostas das melhorias demeadas pela
cidade real.
Em particular, ao lado dos instrumentos legais de preservação do
patrimônio, o plano diretor tem como objetivo específico proteger a cidade antiga,
o núcleo histórico, pela significativa e prestigiosa carga simbólica e pelo valor
histórico que guarda. Ele tem por missão resolver o permanente conflito entre o
desenvolvimento moderno da cidade e seu núcleo original, conflito este irresolvido
uma vez que a cidade moderna, ainda que antagônica à cidade histórica, nunca
pôde dela prescindir.
O fato é que os novos e brutais fluxos gerados pela cidade industrial em
sua expansão exponencial alteraram de tal forma a estrutura do tecido urbano,
que sua coesão praticamente desapareceu, dando lugar a um tecido fragmentado
e descontínuo. Os espaços urbanos perderam significação e identidade, isto é,
qualidade, em razão inversamente proporcional ao fenômeno da explosão das
demandas.
Em reação, criou-se o conceito de centro histórico que possibilitaria a
preservação patrimonial do núcleo original, histórico. Em nossas cidades, de modo
geral, a iniciativa foi parcialmente bem sucedida. De um lado, a gentrificação e o
abandono dos núcleos históricos devido à sua onerosa manutenção, que afastou a
população original; do outro, a localização referencial com a atração de atividades
administrativas; e a criação de novas centralidades em resposta ao processo
especulativo de produção e expansão do espaço urbano.
Paradoxalmente, esse processo instalou uma cidade ideal dentro da
cidade real, não na forma idealizada de cidade como nos exemplos citados, mas

79
como um conteúdo ideal em contradição com um conteúdo real, pois, como Argan
alerta, “não se pode admitir que dela (a cidade) conste uma parte histórica com
um valor qualitativo e outra não histórica com valor puramente quantitativo”
(ARGAN, 1992, p. 79). Para Argan, é a cidade como um todo que deve ter
substância histórica, seja a cidade antiga e a cidade moderna.
A problemática falta de continuidade existente entre os assentamentos
originais e suas expansões torna evidente a separação dos espaços dotados de
conteúdos simbólicos e históricos daqueles supostamente carentes de tais
aspectos. Se não podemos falar em não artisticidade e não historicidade dos
novos espaços, “simplesmente porque o sistema de técnicas industriais não tem
culminâncias artísticas” (ARGAN, 1992, p.78), a segregação dos núcleos originais
implica perda importante para a cidade quanto a sua identidade e sua capacidade
de preservar para transmitir significados e valores acumulados historicamente.
Para o autor, a “cultura moderna tem ou deveria ter a capacidade de
compreender em sua estrutura histórica tanto o valor de memória, presença de
seu passado, como uma previsão-projeto do seu futuro” (ARGAN, 1992, p.80).

3.2.3. Cidade, natureza e arte: lugares do sublime e da transcendência

As transformações originadas com a Revolução Industrial e


posteriormente pela revolução das comunicações tiveram um impacto profundo,
continuo e sempre crescente na vida do homem civilizado, praticamente na vida
de todos os homens sobre a Terra. Segundo Argan, ”o tecido urbano inteiro é hoje
explorado pelas tecnologias do consumo”, num contexto que aponta para a
urbanização de toda a superfície terrestre (ARGAN, 1992, p. 212).
É fato que a tecnologia permite pensar como organizável todo o nosso
planeta. Buckminster Fuller, citado por Argan, nota que é apenas uma questão
financeira. O urbanismo, cujo campo é a esfera social, assume o mundo como

80
uma realidade estruturável e o toma como “oiké, a habitação do homem” (ARGAN
1992, p. 212).
O movimento de conquista das áreas à natureza, primeiro na
vizinhança, depois nas regiões próximas, seguidas pelos territórios além-mar, e
assim progressivamente, mesmo em direção ao espaço sideral e às profundezas
oceânicas, sempre esteve presente na empresa humana. As guerras, sejam no
campo militar ou comercial, sempre foram, e continuam a ser, a expressão mais
visível – e de longe a mais sórdida – desse processo, em que as disputas
pautadas por interesses comerciais estratégicos determinam a conquista
ininterrupta de novos territórios a explorar.
São inúmeras as referências à necessidade humana de domar a
natureza, de conquistar à natureza os lugares que serão a morada do homem.
Mas a natureza, cuja eliminação sempre esteve historicamente em perspectiva,
sempre foi também o território do mito e do sagrado. Por estar “além dos muros da
cidade, o espaço não protegido, não organizado, não construído”, por ser a
“misteriosa região das potências incontroláveis do mito e do sagrado”, a natureza
sempre esteve ali “como realidade indefinidamente estendida além do horizonte
do conhecimento e das possibilidades exploratórias e operativas do homem”
(ARGAN, 1992, p. 212). A ideia de natureza como “inimiga, inacessível, inviolável”
persistiu até o início do século XIX, período em que ocorre o início da Revolução
Industrial.
Entre a natureza e a cidade, havia o campo, como uma “zona de
fronteira” que fazia a transição entre o civilizado e o natural, onde o “citadino ia
procurar um momentâneo e regenerador contato com a grande mãe”, campo este
que permitia vislumbrar alguns aspectos da vida natural que obedecia aos ritmos e
aos ciclos naturais – as estações, as fases da lua, que pautavam uma atividade
milenar, a agricultura, desenvolvida por homens rudes, incultos, tão semelhantes
como diferentes do homem citadino.
A natureza como região, assim distante, intocável e temida por
desconhecida, era a região do sublime, representação simbólica do perfeitíssimo,

81
do grandioso, do poderoso, limite ou fronteira entre o dimensionável, geométrico,
projetável, e o ilimitado, o incomensurável, o indeterminável. Argan observa que o
tema do “sublime” sempre esteve presente no urbanismo: “as catedrais góticas, a
arquitetura de Michelangelo e de Borromini, o geometrismo de Ledoux, o
asceticismo tecnológico de Gaudi, o expressionismo de Mendelsohn.”
Ocorre que o crescimento metastásico das cidades aconteceu à custa
dos espaços livres cada vez mais distantes, com a supressão progressiva da
natureza, e com a implacável subjugação do sublime e do transcendente pela
tecnologia criada pelo homem.
Como aponta o autor, o que está em jogo é a capacidade humana de
transcender. Houve, segundo Argan, uma inversão de posições, em que a
natureza foi substituída pela técnica no lugar do sublime: tudo o que vemos é a
técnica, convertida em mito, essa poderosa construção mental pela qual o homem
coloca-se além de qualquer limite, e para quem torna tudo possível, realiza assim
a fantasia de sua plena onipotência.
Como aponta Nelson Brissac Peixoto (2004, p.301), a cidade
contemporânea “deixou de ser um testemunho cultural, a arquitetura deixou de ser
pensada como um espaço de habitação.” A cidade não tem mais lugar para a arte,
para o sublime, para o transcendente. E o homem “chega a envergonhar-se com a
imperfeição e a fraqueza de seu ser biopsíquico em comparação à perfeição de
seu fazer tecnológico. (...) As máquinas agem melhor que suas mãos. Os
computadores raciocinam melhor que suas cabeças” (ARGAN, 1992, p. 214).
A combinação da ideia da satisfação ilimitada do desejo com a fantasia
de superação dos próprios limites parece estar ligada à questão do consumo
como ideologia, fenômeno tantas vezes denunciado por Argan, que acaba por
determinar as relações sociais, produtivas e econômicas no espaço da cidade. Na
perspectiva da vida urbana, não há mais o mito do desconhecido, simbolicamente
representado pela natureza, assim como o sublime e o transcendente
representados pela arte.

82
A cidade agigantada, industrial e pós-industrial, moderna e
contemporânea, incontinente e ilimitada, trouxe a insegurança, o medo, a angústia
e a incerteza. A mesma cidade que eliminou o transcendente representado pela
natureza subjugada, que desdenhou o sublime presente na arte, e que ignorou o
território delimitado pelo apreensível, é aquela que sobrecresceu, se desmediu.
Este processo condiciona uma realidade que “não é mais dada em
escala humana, isto é, na medida em que pode ser concebida, pensada,
compreendida pelo homem, mas na medida em que não pode e não deve ser
pensada, e sim apenas dominada ou sofrida” (ARGAN 1992, p. 214).

83
84
4. Capítulo 3 - O plano urbano como suporte da memória da cidade. O
estudo do caso do Plano de Chicago

4.1. A experiência de Chicago

Figura 36. Maquete da área


central de Chicago, na mostra
comemorativa dos 100 anos do
Plano de Chicago.
Fonte: foto do autor.

Uma viagem a trabalho para Chicago ofereceu a oportunidade de uma


reflexão sobre a questão da valorização dos espaços públicos urbanos. Chicago
conta com um importante sistema de parques e praças que contribui de forma
significativa para a qualidade de vida de seus habitantes. Constituem lugares de
referência, que concorrem para a construção da paisagem e da vida urbana como
um todo. Neles, uma notável coleção de obras de arte – esculturas, baixos relevos
e instalações artísticas – nos levou a pensar sobre a questão do componente
artístico na concepção do espaço urbano e no papel dos objetos artísticos nos
espaços públicos.
Há pouco mais de três anos, a cidade comemorou o centenário do
Plano de Chicago, conjunto de diretrizes e propostas urbanísticas desenvolvidas

85
pelos arquitetos Daniel Burnham e Edward H. Bennett, sob patrocínio do Clube
Comercial de Chicago, a mais poderosa e influente organização comercial e
industrial da cidade.
O Plano de Chicago é o resultado da articulação de diversos setores da
sociedade, motivados pela constatação dos efeitos desastrosos causados da
transformação acelerada e irrefletida da cidade em metrópole, e pela necessidade
de reconstruir parte significativa da cidade destruída por um gigantesco incêndio
ocorrido em 1871. Apresentou-se a oportunidade de eliminar as mazelas da falta
de transporte, infraestrutura e equipamentos públicos, com especial atenção aos
espaços verdes, livres, públicos.
Convocados pelo patrocinador, Burnham e seu assistente Bennet
assumiram a coordenação do trabalho e a elaboração da síntese das
necessidades e desejos revelados pelo trabalho sistemático de comissões
temáticas específicas, cujos resultados foram validados dos por meio de um amplo
processo de divulgação e comunicação do plano.

86
Figuras 37, 38, 39. Parque do Milênio, Chicago Loop, Chicago. Acima, visadas SW e SE.
Fonte: fotos do autor, Google Earth.

Merece destaque o fato de que a iniciativa de estabelecer enfrentar e


resolver as diversas questões da cidade partiu de setores da elite da sociedade
civil organizada que, articulada com a administração municipal, promoveu um
trabalho de divulgação e consulta das proposições contidas no plano para efeito
de legitimação popular de suas proposições.
Como pano de fundo, a percepção geral da necessidade de reorganizar
o espaço urbano, melhorando a qualidade de vida de todos os cidadãos. Um

87
movimento que se inicia no topo da pirâmide social, mas que se articula com os
demais estratos para criar um movimento citadino, que se legitima enquanto tal.
A leitura do plano revela a noção de que não bastaria apenas corrigir os
muitos problemas urbanos existentes, seria necessário também antecipar-se a
eles, preparando a cidade para o futuro. Essa consciência foi um fator decisivo
para as transformações que se seguiram. E a tradicional estrutura da organização
comunitária da sociedade norte-americana foi um fator adicional importante para a
divulgação e a aceitação do plano.
Se não logrou ser implantado em sua totalidade, o Plano de Chicago
foi, em seus aspectos mais importantes, um instrumento de planejamento potente,
ativo e que permanece referencial até os dias de hoje. Prova disso é a
implantação do Parque do Milênio (Millenium Park), no extremo norte do Parque
Grant. Constituído por um conjunto de edifícios e obras de arte que marcam a
comemoração da passagem do milênio, o Parque do Milênio reconfigurou uma
área antes ocupada por estacionamentos e um parque ferroviário. Da mesma
forma, outros espaços públicos distribuídos pela cidade contam com esculturas e
instalações artísticas.
A pesquisa mostra que a inclusão de obras de arte nos espaços
públicos citadinos é beneficiária da visão da cidade como artefato, construída pelo
Plano de Chicago. Ao componente artístico é reservado um lugar especial no
espaço urbano, seja na concepção projetual desse espaço, seja nas obras de arte
que lhes são destinadas. É algo que se institucionaliza ao longo do tempo, e que
continua até os dias de hoje por meio de programas públicos voltados para esse
fim.

88
4.2. Contextualização do Plano de Chicago: antecedentes

4.2.1. Os movimentos sociais e a cidade industrial norte-americana

Como acima referido, o Grande Incêndio de 1871, que devastou mais


de 70% da cidade, impôs a necessidade da reconstrução e da reconfiguração do
território urbanizado, tendo agido como fato catalisador de mudanças numa cidade
que já sofria de todos os males de uma metrópole atual: tráfego congestionado,
falta de infraestrutura básica, falta de transporte público, falta de habitação,
violência urbana, deseconomia produtiva.

Figuras 40. O Grande Incêndio de Chicago, 1871.


Fonte: http://homicide.northwestern.edu/images_fk/timeline/1871/large/215.jpg

Os Estados Unidos faziam a transição de país agrário para industrial de


modo irreversível. Assim como nos países europeus, a Revolução Industrial atraiu
para as cidades multidões em busca de trabalho e dos supostos benefícios que
morar na cidade poderia trazer. Entre 1860 e 1910, a população norte-americana
cresceu de 31,4 para 91,9 milhões de habitantes, sendo que, em 1910, 46%

89
moravam em cidades com mais de 2.500 habitantes, já que havia 78 cidades com
mais de 500.000 habitantes (HINES, 1979, p. 81). Em Chicago, a história não foi
diferente: apenas um posto de fronteira em 1830, em 1840 a cidade contava 4.470
habitantes. Cinquenta anos depois já era a segunda maior cidade norte-
americana, com uma população de 1.099.850 habitantes. No ano da publicação
do plano, somava mais de dois milhões de habitantes (PLANO DE CHICAGO,
2009, p. ix).
A explosão de crescimento dos assentamentos urbanos impunha
condições de vida bastante precárias à massa de trabalhadores, em sua grande
maioria de imigrantes, fato que, aliado aos períodos de depressão econômica,
gerou uma onda de manifestações, greves e revoltas sociais. Chicago conheceu
várias delas, como o massacre de Haymarket de Chicago10, em 1886, a greve de
Homestead, de 1892, e a de Pulmann, de 1894, entre muitos outros movimentos
organizados pelos então nascentes sindicatos de trabalhadores.
A situação de total precariedade social das massas trabalhadoras e de
insegurança da vida citadina nas grandes cidades norte-americanas levou à
constatação da necessidade de amplas reformas das cidades norte-americanas,

10
Esses movimentos marcam também o surgimento dos sindicatos, sendo o principal deles
neste momento o “Cavaleiros do trabalho”, que em meados de 1880 agregava mais de 700.000
membros. Seu objetivo imediato era a conquista da jornada diária de oito horas de trabalho, em
lugar das doze ou treze horas praticadas.
Em 1º de maio de 1886, trabalhadores da McCormick Harvesting Machine Co. iniciam uma
greve pela redução da jornada diária. No dia 3, a polícia faz a proteção dos fura-greve e uma briga
deixa uma pessoa morta e vários feridos. No dia seguinte, uma manifestação pacífica promovida
por líderes anarquistas em Haymarket – local de venda da produção de grãos – leva para as ruas
cerca de 2.000 pessoas, que a polícia procura dispersar. Uma bomba é jogada contra as tropas de
segurança, matando sete e ferindo mais de sessenta policiais. As tropas reagem disparando contra
a população, matando quatro e ferindo dezenas de pessoas.
Detenções em massa, espancamentos e confissões obtidas à força resultam na prisão de
oito líderes anarquistas pelas acusações de conspiração e assassinato. Quatro são executados em
1887, um suicida-se e três são sentenciados à prisão. Apenas em 1893 há o reconhecimento do
erro judicial e é concedido o perdão pelo governador de Illinois, John Peter Altgeld.

90
fato percebido por parte da elite urbana como oportunidade para o exercício do
controle social.

4.2.2. A Exposição Columbiana Mundial de 1893 e o movimento City


Beautiful

É neste contexto que surge um movimento protagonizado por


empresários, homens públicos, artistas, jornalistas, arquitetos e grupos voluntários
que atuaram em diversas cidades norte-americanas cujos princípios estabeleciam
a imagem de uma cidade ideal como modelo para uma renovação urbana geral.
O movimento, conhecido como City Beautiful preocupava-se, segundo
Thomas Hines, para além das questões estéticas, com a funcionalidade e com a
humanização das cidades.
É oportuno lembrar que havia então duas correntes dominantes no
pensamento arquitetônico norte-americano, que opunham inovação e invenção à
continuidade e tradição.
A primeira, de orientação claramente moderna, era protagonizada por
Louis Sullivan e Frank Lloyd Wright e baseava-se na ideia de um nacionalismo
cultural inovador, maduro o suficiente para suceder às tradições do Velho Mundo.
A segunda era representada por Daniel Burnham e seguidores, para
quem seus oponentes sofriam de um “americanismo em excesso”, de uma
“obsessão pela originalidade do Novo Mundo e de um horror exacerbado por tudo
que fosse europeu” (HINES, 1979, p. 54). Para Burnham, a América não estava e
nem poderia isolar-se culturalmente do resto do mundo. Esta corrente via seu país
como herdeiro das tradições culturais do Ocidente (leia-se: europeia), justificando
assim a escolha de uma linguagem historicista que as mantivessem vivas e
presentes na cultura norte-americana.
É interessante observar que Burnham, ao tempo de sua sociedade com
John Root (Burnham & Root) projeta diversos edifícios que viriam a constituir, com

91
a produção de outros escritórios (Adler & Sullivan, Holabird & Roche), a assim
chamada escola de arquitetura de arranha-céus de Chicago (HINES,1979, p. 83),
que está na raiz de um rigoroso modernismo arquitetônico. Com a morte de Root,
em 1891, Burnham redireciona seu pensamento arquitetônico e urbanístico a uma
postura mais conservadora e dependente de tradições preexistentes da cultura
europeia. Anos depois, Philip Jonhson faria o mesmo após a morte de Mies van
der Rohe.
Nas palavras de Thomas Hines:
A origem e o impulso do City Beautiful estavam no clássico e no barroco
com sua ênfase numa “procissão” de edifícios e espaços abertos
arranjados em grupos. O efeito de paralaxe (que consiste no aparente
deslocamento do objeto devido à modificação de posição do observador)
dependia do movimento humano em procissão através do espaço, de um
ponto especifico a outro. Os grandes edifícios eram implantados de modo
a se tornarem as vistas últimas de eixos longos, convergentes e
diagonais. O impacto no individuo desta disposição e da cerimoniosa
procissão era, no Barroco e na City Beautiful, calculadamente poderoso,
impressionante e dinâmico. (HINES, 1979, p.57)

Com tais convicções e dono de uma capacidade notável de


mobilização, Burnham, considerado o “pai” deste movimento, lança suas bases
com a “White City”, a “Cidade Branca”, um conjunto de edifícios em estilo
neoclássico que marcou a imagem da Exposição Columbiana Mundial de 1893.
Contratado para dirigir as obras do evento, Burnham montou uma
equipe com arquitetos formados na Escola de Belas Artes de Paris segundo os
princípios neoclássicos, perfil adequado ao City Beautiful. Contou ainda com
Frederick Law Olmsted11, autor do projeto do Central Park de Nova Iorque (1858)
e que, com Calvert Vaux, já havia projetado o Parque Jackson, então conhecido
como Parque Sul. Tendo sido este o local escolhido para receber as instalações

11
Frederick Law Olmsted (1840-1903), precursor e um dos mais importantes paisagistas dos Estados
Unidos. Autor, com o arquiteto inglês Calvert Vaux, do projeto vencedor do concurso para o Parque Central,
em Nova York (1858). Além de inúmeros outros projetos, notabilizou-se também por ações de preservação:
seu relatório para o legislativo da Califórnia pedindo a preservação do parque Yosemite e Big Tree Falls
(1865) estabeleceu as bases para a criação de parques estaduais e nacionais.

92
Figura 41. Plano da
Exposição Columbiana
Mundial de 1893,
Burnham e Olmsted.
Plano de Chicago, 1906.
Notar o extenso
redesenho da orla.
Fonte: Plano de Chicago.

da Exposição, Burnham convoca Olmsted e juntos trabalham no plano geral do


grande evento.
O traço pinturesco do trabalho de Olmsted revela-se na disposição dos
espelhos d’água, ora orgânicos, ora de feições geométricas definidas, que
organizam ao redor os diversos edifícios em composições e perspectivas de
grande efeito visual.

93
4.2.3. Os parques de Chicago, a orla urbana do lago Michigan e outros
planos urbanos

Ainda que o mote da criação do município de Chicago (1837) tenha sido


urbs in horto (“cidade em um jardim”), o fato é que, até 1860, a cidade cresceu
pautada pela ilimitada exploração do solo urbano, carente de normas urbanísticas
e cada vez mais disputado pelos especuladores imobiliários.
O espaço urbano resultante, com raríssimos parques e praças
destinados ao ócio e ao lazer da população, contribuiu para as crescentes tensões
sociais devidas às más condições de vida da classe trabalhadora e dos pobres em
geral.
Em resposta, campanhas lideradas por médicos, sanitaristas e
lideranças sociais em prol da melhoria da qualidade de vida, que conquistaram
amplo apoio popular, incluíam em suas pautas a criação de espaços para lazer e
descanso da população, com a expectativa da diminuição daquelas tensões.

Figura 42. Parque na orla lacustre, estendendo-se do parque Jackson ao parque Grant. Orla
sul do Lago Michigan, Daniel Burnham, plano modificado, 1904.
Fonte: Plano de Chicago

94
Em 1860, um antigo cemitério junto à orla do Lago Michigan deu lugar
ao Parque Norte (rebatizado de Parque Lincoln em homenagem ao presidente
assassinado cinco anos depois). No mesmo ano a legislatura estadual instituiu as
Comissões dos Parques Lincoln, Sul e Oeste, cuja atuação autônoma, mas
coordenada, visava a implantação de um sistema unificado de parques e
bulevares, como sugerido por F.L. Wright12 vinte anos antes.
A Comissão de Parques Sul, responsável pelo desenvolvimento do
Parque Jackson, irá contratar Burnham para elaborar uma proposta urbanística
para a orla urbana do lago Michigan (1896), conectando os parques Grant e
Jackson.
O sucesso da Exposição e da Cidade Branca projetam nacionalmente o
movimento City Beautiful e Burnham, que é contratado para o desenvolvimento
dos planos de Washington em 1902, com base no plano de Pierre Charles
L’Enfant (encomendado por George Washington em 1791); Cleveland, em 1903;
Manila, em 1904; e São Francisco, em 1905, cuja experiência será particularmente
de grande valor para o sucesso do Plano de Chicago, especialmente no que se
refere à sua validação junto à opinião pública. Particularmente é importante
registrar que a repercussão do trabalho foi praticamente nula devido à sua
precária comunicação aos cidadãos de São Francisco. O isolamento de um plano
de gabinete custou-lhe a legitimidade necessária para que pudesse ser
implementado.

12
Grosman, James R., Keating, Ann Durkin, and Reiff, Janice L.. Encyclopedia of Chicago. Chicago: Chicago
History Society; 2005. Disponível em: http://www.encyclopedia.chicagohistory.org.

95
4.3. O Plano de Chicago

4.3.1. As referências do Plano

O historicismo preconizado por Daniel Burnham determinou a razão e a


estrutura da imagem de cidade de que o plano era portador, de modo coerente
com as posições defendidas pelo arquiteto desde a construção da Cidade Branca
e o movimento City Beautiful.
O capítulo II do plano, “Planejamento da cidade em tempos antigos e
tempos modernos”, traz um conjunto de referências que busca justificar tal opção
do ponto de vista histórico, através de um percurso que refaz e interpreta o
processo de desenvolvimento das cidades desde as cidades da Babilônia e do
Egito, passando por Atenas, pelo século de Péricles, pela magnificência da Roma
capital do Império Romano, por Veneza e Siena e a riqueza dos mercadores,
culminando naquele que é o verdadeiro paradigma urbanístico da época: Paris.
O urbanismo de Paris é abordado em dois momentos distintos, de
modo a referenciar com fatos urbanísticos históricos relevantes para as
proposições de Burnham.
O primeiro deles se refere às proposições de Luís XIV e seus
“construtores de cidades” – Colbert, Le Nôtre, que estendem os limites da cidade
medieval para além de suas muralhas com avenidas e bulevares dispostas nos
espaços abertos adjacentes, que definiram “uma cidade expandida, bem
adornada” em perspectivas barrocas que exploravam a possibilidade do infinito e
de sua submissão ao infinito poder do rei. “A Madeleine, a Praça da Concórdia, os
Invalidos e a grande avenida axial do jardim das Tulherias à Praça da Estrela,
todas existiram no papel antes que fossem realizadas com o progredir da cidade”
(BURNHAM, BENNET, 2009, p. 15). É possível perceber certo paralelismo entre

96
esse avanço além muralha sobre a terra virgem, a representar um esforço de
civilizar o desconhecido simbolizado pelas áreas até então intocadas, e as
extensões além-cidade que a conectam com o território de entorno por meio de
sistemas de mobilidade que o incorporam à cidade numa nova escala: a
metrópole.
No segundo momento, sob Napoleão Bonaparte, as ações voltam-se
para o intra-urbano. A cidade existente, a cidade medieval, trazida à luz, revela
suas “feias, sujas, miasmáticas e estreitas ruas, berço do vício e do crime.”
(BURNHAM, BENNET, 2009, p.17). Paris sofrerá importantes intervenções: a
abertura da rua de Rivolis, os jardins ao norte das Tulherias, a renovação de
pontes medievais sobre o Sena, a construção das primeiras calçadas e das
primeiras ruas servidas por iluminação pública e, ainda, de três quilômetros de
cais no rio Sena, além de “seus maiores monumentos comemorativos, o Arco do
Triunfo da Estrela, (...), o Arco do Carrossel, e a Coluna Vendôme, todos previstos
nos desenhos de Louis XIV” (BURNHAM, BENNET, 2009, p.17).
O plano destaca ainda Napoleão III (sobrinho de Bonaparte) e o Barão
de Haussmann, que farão de Paris “um centro de um comércio tão amplo como a
civilização mesma”, observando que Haussmann nunca negligenciou “as grandes
linhas desenhadas por seus predecessores, e em boa medida seu trabalho foi
uma continuação dos planos preparados por Luís XIV nos últimos anos do séc.
XVII.” (BURNHAM, BENNET, 2009, p.18).
Aqui está a interpretação de Paris que interessa a Burnham quanto ao
estilo histórico do modelo de cidade a ser adotado em Chicago: a cidade barroca,
precisamente localizada no século XVII de Luís XIV, atualizada ao tempo da
indústria nascente por um gestor enérgico, Haussmann, a quem teria cabido não
mais que “prover meios adequados de circulação dentro da cidade velha, abrindo
novas ruas e alargando as velhas, eliminando viveiros insalubres e abrindo
grandes espaços de modo a desimpedir belos monumentos e de interesse
histórico” (BURNHAM, BENNET, 2009, p.18).

97
Outras referências europeias citadas no plano, que sofrem a influência
do modelo francês consolidado por Haussmann, são Viena (Ringstrasse),
Bruxelas “dividida por bulevares”, assim como Roma, Florença e Milão, cidades
que “realizaram extensos esquemas de melhorias baseados no modelo francês”
(BURNHAM, BENNET, 2009, p.19).
As referências prosseguem pelos exemplos de reurbanização das
cidades alemãs, com destaque para a questão do desimpedimento dos
monumentos e edificações históricas para a permitir sua visibilidade máxima,
dando-lhes novas perspectivas visuais em estruturas urbanas existentes. Aqui, a
referência explícita é Cornelius Gurlitt13 cujas posições contidas num texto
traduzido por Sylvester Baxter, “German City Planning”, publicado na revista
Architectural Record em 1908, ecoam a discussão europeia quanto à preservação
de bens patrimoniais e seus respectivos valores.
Notório historiador de arquitetura e planejador urbano alemão,
responsável pelas expansões de Dresden, Gullit adota “as ideias de Camillo Sitte
sobre o modo de estudar os fenômenos e a estrutura urbana” (CALABI, 2012, p.
101) e escreve Historiche Stadtbilde (Imagem da cidade histórica) em 1902, o
mesmo ano que Alois Riegl assume a presidência da Comissão de Monumentos
Históricos da Áustria, que resultou em Le culte moderne des monuments – Son
essence et sa gênese.

13
Cornelius Gurlitt (Nischwitz, 1850; Dresden, 1938), arquiteto, professor e escritor. Estuda arquitetura em Berlim e
Stuttgart. Em 1879, entra para a Dresden Kunstgewerbemuseum, onde escreve Geschichte des Barockstiles, des
Rococo und des Klassicismus (1887-9), estudo abrangente sobre a arquitetura pós-renacentista na Italia, Belgica, Holea,
França e Alemanha. Entusiasta do Barroco, rejeita as ideias de Schinkel e seguidores. Revela simpatia por
desenvolvimentos como o Art Noveau, e como editor da Stadtbaukunst alter und neuer Zeit, ajudará Bruno Taut a
publicar Frühlicht (Aurora).

98
Mas, se o método de Gurlitt é aquele preconizado por Sitte, suas
posições dele se distanciam: Sitte, como referido anteriormente, condena a
implantação de edifícios no meio das praças, assim como as intervenções para o
desimpedimento dos edifícios, uma vez que os efeitos de perspectiva seriam
anulados com o isolamento da construção, concorrendo para dar ao edifício a
imagem de “uma torta exposta numa bandeja” (SITTE, 1992, p. 42), havendo
ainda o comprometimento da composição da obra que foi pensada, projetada, de
acordo com um contexto existente.
Londres, outra das referências do plano, constituía à época seu sistema
de parques e espaços abertos. Não é mera coincidência a menção que o plano faz
ao grande incêndio de 1666, assim como à “chance perdida” representada pelo
preterimento dos planos de reconstrução de Christopher Wren, então “um dos
maiores arquitetos do mundo”, em favor de outros interesses. Tais planos
“contemplavam uma cidade com ruas irradiando de pontos centrais, e locações
dos prédios públicos determinadas de modo a proporcionar a vista de objetos em
longas perspectivas” (PLANO DE CHICAGO, 2009, p. 21).
As referências culminam com os trabalhos do próprio Burnham para
Cleveland, Manila, Washington e São Francisco. Em todos eles, os princípios do
City Beautiful comparecem nas perspectivas de fonte barroca que organizam
espacialmente os edifícios em sua monumentalidade, e no tratamento pinturesco
dos espaços abertos urbanizados.

99
4.3.2. O modelo de cidade e sua função de formação do indivíduo

Plano, substantivo masculino: conjunto de medidas, de ordem política,


social, econômica etc., que visam a determinado objetivo. (Houaiss. s/d,
http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=arte)

O termo plano enseja a ideia de algo que projeta o futuro, no sentido de


alcançar um determinado objetivo. O Plano de Chicago, assim como seus
congêneres, objetiva a melhoria da qualidade de vida numa nova condição para a
cidade, por meio de uma série de ações de naturezas e finalidades distintas e
complementares. Ao visar o futuro, o plano consagrou-se ao longo do tempo como
um instrumento vital de preservação da memória.
É oportuno lembrar que a década de 1960 marcou, na área do
patrimônio, um deslocamento, do objeto de preservação, do artefato excepcional
isolado para o conjunto da cidade. E que, na década de 1970, a comunidade
preservacionista internacional reconheceu o plano urbano como indispensável
fator de suporte e de construção da memória e identidade.
Parece ser este o caso do Plano de Chicago. Elaborado há mais de
cem anos, permanece válido até os dias de hoje, ordenando, ao longo do tempo,
importantes intervenções urbanas que constituíram um excepcional e relevante
acervo da produção modernista de arquitetura que valorizou, em especial, os
espaços públicos. Esses fatores foram determinantes para a construção da forte
identidade da cidade de Chicago e estão historicamente ligados às diretrizes
propostas no plano.
Como plano diretor, o Plano de Chicago é o instrumento de
planejamento e de ordenamento territorial, de espacialização das relações sociais
e produtivas e de seu melhor equacionamento no espaço territorial urbano. As
questões prioritárias são aquelas que afetam diretamente os fluxos econômicos e
vida cotidiana dos cidadãos tais como mobilidade, transporte, habitação, saúde,
infraestrutura.

100
Tais questões específicas, e aquelas mais gerais relativas ao
planejamento territorial e urbano, não serão aqui abordadas por extrapolar o
recorte adotado pela pesquisa. Mas é importante mencioná-las no sentido de
registrar a inserção da questão artística dentre tais questões, de ordem “prática”,
relativas a temas ditos “eminentemente” urbanos. A relevância do componente
artístico no discurso urbanístico do plano nos remete à questão de como a arte se
articula às demais questões urbanas.
O penúltimo capítulo do plano, intitulado “O Plano de Chicago”, traz um
resumo das ações preconizadas para a consecução de seus objetivos, denotando
a unidade e a interdependência entre eles.
Tais ações incluem propostas tanto práticas quanto estéticas e alinham-
se com importantes experiências anteriores de requalificação urbana:
“A Exposição Mundial de Chicago, a elevação do greide da cidade, a
criação de um sistema de parques e jardins e a construção do canal de
drenagem, foram (...) as quatro maiores obras já realizadas em Chicago.
(...) Duas delas o foram por considerações exclusivamente práticas,
enquanto as outras duas (...) eram por outro lado a expressão de um
profundo senso do valor dos ambientes belos” (PLANO DE CHICAGO,
2009, p. 120).
É possível notar um esforço deliberado no sentido de criar um nexo
entre ações de naturezas diferentes, as “práticas” e as “estéticas”. As principais
diretrizes do plano, resumidas nesse capítulo a seis pontos principais (PLANO DE
CHICAGO, 2009, p. 121), são reveladoras desse esforço:
 A melhoria da frente (orla) do lago.
 A criação de um sistema de vias expressas externas à cidade.
 A melhoria dos terminais ferroviários, e o desenvolvimento de um
sistema de tração completo para carga e passageiros.
 A constituição de um sistema de parques (urbanos e periurbanos), e
de circuitos de vias-parque.
 O arranjo sistemático das ruas e avenidas dentro da cidade, de modo
a facilitar o acesso ao distrito de negócios.

101
 O desenvolvimento de centros de vida intelectual e administração
cívica, relacionados de forma a dar coerência e unidade à cidade.
Dos seis pontos elencados, três tratam dos sistemas de infraestrutura
(sistema de vias expressas, terminais ferroviários, ruas e avenidas), dois da
questão da paisagem (a orla do lago, sistema de parques) e um, especificamente,
da questão do desenvolvimento da vida intelectual e da administração cívica da
cidade. Três deles, portanto, são determinados por aspectos “práticos”, outros três
por questões “estéticas”, sejam espaciais ou culturais.
O entrelaçamento entre eles, suas mútuas relações e interações,
“devem conferir unidade à cidade” a partir da construção de um nexo comum que
faça essa costura. Forma, função, ética, estética, representação e simbolismo são
os entes com os quais o plano opera na construção de seu modelo de cidade
ideal. Cenário e suporte do processo civilizatório, o modelo deverá desempenhar
um papel educativo e formador do espírito de seus habitantes.
De modo coerente com o pensamento urbanístico da época (e mesmo
com o pensamento vigente hoje), há uma função moralizadora intrínseca à cidade,
manifesta no viés artístico da concepção urbanística dos novos espaços, na
qualificação dos espaços públicos pela presença de objetos artísticos e nas
atividades ligadas ao desenvolvimento cultural da cidade. A manifestação artística
concorre para a construção do modelo de cidade ideal e está a serviço de uma
concepção ideológica moral de urbanidade. O plano revela a expectativa de
contribuir “para elevar o padrão do gosto público”, relacionando-o às “demandas
por melhores condições de vida”. (PLANO DE CHICAGO, 2009, p. 122).
A cidade, “mais que uma grande fábrica, é uma máquina filantrópica e
pedagógica que estimula para uma transformação social gradual” (SECCHI, 2009,
p. 66).
É o que revela a leitura do plano, cujas imagens dotadas de forte
conteúdo simbólico constroem a imagem de uma cidade ideal burguesa e
progressista, como veremos a seguir.

102
4.3.3. A arte e a representação simbólica nos espaços públicos

O plano propõe a criação de


um conjunto de espaços qualificados,
dotados de grande conteúdo simbólico,
nos quais objetos artísticos se associam
a uma morfologia urbana de claro vezo
liberal moderno.
A imagem desejada e
projetada para cidade de Chicago
Figura 43. Instituto de Arte de Chicago, 1900. requer a representação simbólica de
Fonte:
http://tigger.uic.edu/depts/ahaa/imagebase/intranet/ seu progresso. Sua transformação, no
chiviews/page155.gif
bojo das demandas da nascente cidade
industrial moderna, requer sua
emancipação cultural por meio de
ações, programas e obras que devem
corresponder à riqueza da segunda
maior cidade norte-americana.
Tomemos o caso do Parque
Grant. O projeto original de 1896 é
reproposto, sendo que o espaço da
Figura 44. Instituto de Arte de Chicago, 1893.
Fonte: http://tigger.uic.edu/depts/ahaa/ restauração física e mental é agora
imagebase/intranet/chiviews/page155.gif
associado a espaços simbólicos
representativos da civitas, isto é, da cidadania e da cidade como lugar do cidadão.

103
É o que se percebe no novo programa do parque, que propõe uma
biblioteca municipal e um museu de história natural – Museu de História Natural
Field14, junto a uma instituição já existente dedicada às atividades artísticas, o
Instituto de Arte de Chicago15.

Figura 45. Plano da


área central de
Chicago. O eixo
monumental E-W
alinha o porto, o
centro das artes e o
centro cívico.
Fonte: Plano de Chicago.

14
Instituição cultural estabelecida em 1894 com os recursos doados por Marshall Field, proprietário
de uma grande loja de departamentos homônima, e por doadores menores.

15
Instituto de Artes de Chicago, instituição fundada em 1889 com o nome de Academia de Belas
Artes de Chicago, dedicada à difusão e ao ensino de artes que, a partir de 1893, passou a ocupar
um edifício construído para a Exposição Columbiana Mundial.

104
Figura 46 – Centro Cívico, aquarela de Jules Guerin, Plano de Chicago, 1906.
Fonte: http://burnhamplan100.lib.uchicago.edu/node/1952/?size=thumbnail

Figura 47 – Centro Cívico, elevações - aquarela de Fernand Janin, Plano de Chicago,


1906.
Fonte: Plano de Chicago

105
Figura 48 – Detalhe do porto e dos edifícios do centro das artes.
Fonte: Plano de Chicago

Este conjunto arquitetônico e urbanístico, dedicado ao conhecimento e


definido pelo plano como o centro intelectual de Chicago, conecta-se a um centro
cívico, implantado no distrito de negócios, por um eixo monumental orientado no
sentido L-O. Conhecimento e poder estão indissociavelmente ligados, num
processo análogo ao registrado por Camillo Sitte quanto à ágora, ao fórum e ainda

106
a praça do mercado, “que são os pontos principais da cidade” e que concentram
“as construções mais eminentes e as obras de arte" (SITTE, 1992, p. 25).
As comparações com o Louvre de Paris, o Museu Metropolitano de
Nova York, a Galeria Nacional e o Museu Britânico de Londres demonstram a
valorização do Instituto de Artes de Chicago pelo plano, que lhe reserva áreas
próximas para sua futura expansão “em função do aumento de sua coleção e do
numero crescente de alunos e cursos de arte". A “escola do Instituto de Arte tem
mais de 4.000 alunos (e) na medida em que as coleções de arte e as
oportunidades de estudo aumentarem, Chicago atrairá mais estudantes de outros
estados.” (BURNHAM, BENNET, 2009, p. 112).
A nova configuração deste setor do Parque Grant reservava ao Instituto
de Artes um novo lugar, em função do alargamento projetado para a Avenida
Michigan. Seria implantado em posição simétrica à Biblioteca Pública, tendo o
Museu Field ao centro de uma composição espacial que nada fica a dever às
proposições projetuais urbanísticas da cidade liberal moderna, a exemplo do
Hofburg de Viena ou da Ópera para Paris. Como anotou Kostof (1991) “a
perspectiva permanece como fundamento da concepção dos espaços e como
instrumento de valorização de outros elementos urbanos, como vias e
monumentos”, que se combinam segundo o grid de ruas largas característico da
cidade moderna industrial, na melhor tradição do urbanismo europeu.
Ainda que a implantação deste programa tenha ocorrido de modo
diferente do previsto – o Instituto de Arte de Chicago permaneceu no mesmo
lugar, o Museu Field foi implantado na extremidade sul do Parque Grant, e a
biblioteca municipal jamais existiu ali, a ideia de um potente conjunto cultural neste
lugar especial permaneceu.
Junto à orla do Lago Michigan e ao rio Chicago, lugar de acesso
privilegiado à cidade, as sucessivas administrações consolidaram a proposta do
plano de implantação de um “centro intelectual”, ratificando a ideia de que “a arte,
em qualquer lugar, tem sido a fonte de riqueza e de influência moral” (BURNHAM,
BENNET, 2009, p. 112).

107
4.3.4. A paisagem e o pinturesco

A valorização artística dos elementos da paisagem, evidenciada pelas


imagens que ilustram o plano, ecoa as posições de Camillo Sitte, para quem o
olhar do autor do projeto para o meio físico, para a paisagem natural, poderia
contribuir para a restauração do sentido artístico e para a construção de cidades
com atributos pinturescos: “Merecem atenção particular os efeitos de perspectiva
e o aproveitamento de eventuais panoramas oferecidos pela geografia local”
(SITTE, 1992, p.134). Ainda que haja referência explícita à Sitte, preterido em
favor de Gurllit, o plano irá seguir tais recomendações à risca, confirmando a
influência de Sitte sobre os urbanistas europeus e americanos que lhe seguiram, o
que inclui Daniel Burnham.
Já incorporado como elemento natural fundamental da paisagem
construída da Exposição Mundial, o Lago Michigan, no plano, é referido como
“algo vivo, sempre em movimento, sempre mudando de cor e de forma em suas
ondas. (...) tudo deve ser feito para aumentar sua atratividade e suas belezas
naturais” (BURNHAM, BENNET, 2009, p. 50). O discurso reitera as posições de
Sitte, para quem o pinturesco representa a comunhão das obras humanas com o
sítio e com o meio físico, no qual o acaso e a surpresa são elementos valorizados.
Como já mencionado antes, para Sitte o papel do pinturesco, como elemento
estruturador material e imaterial do artefato cidade, é central, sendo fator da maior
importância no processo de estruturação social. Deve ser lembrada a contribuição
decisiva de Frederick Law Olmsted no desenho pinturesco dos espaços abertos
da Exposição Columbiana Mundial.

108
4.3.5. Um novo sistema de valores

A Europa vivia intensa transformação de suas maiores cidades,


fenômeno que assumiu um lugar de destaque nas discussões acadêmicas de
então. Um dos reflexos deste processo é a significativa produção de manuais de
arte urbana, “principalmente nos primeiros anos do séc. XX” quando “em toda a
Europa, são publicados manuais dedicados especificamente ao aspecto
emergente da cultura urbanística da época, representado pela estética urbana”
(CALABI, 2008, p.100).
Segundo a autora, entre o fim do séc. XIX e o começo do séc. XX, os
técnicos irão reiterar a necessidade da adoção de pressupostos artísticos no
processo de transformação urbana, numa fase que é “classificada como a do
nascimento da “arte urbana”, também chamada de “arte de construir cidades””,
referida também noutros lugares da Europa como “Art Urbain”, “Art Public”, “Civic
Art”, “Stadt-Baukunst”. E, nos Estados Unidos, como “City Beautiful”.
Ainda que na realidade seja “muito difícil defini-la”, por se referir a
contextos, tempos e exemplos bastante distanciados, a autora anota que “é
possível reconhecer um esforço (...) para medir a estética das transformações
urbanas” enquanto que, ao mesmo tempo, “a noção de patrimônio se faz presente
no debate sobre a arquitetura” (CALABI, 2008, p.100).
O plano reitera a importância dos pressupostos artísticos para a
desejada renovação urbana, revelando, em certa medida, uma característica de
manual para a construção da nova Chicago.
Iniciado em 1906 e publicado em 1909, o Plano de Chicago mostra a
influência da discussão urbanística europeia em suas concepções, indo além da
referência teórica única de Cornelius Gurllit. Vale lembrar que Le culte moderne
des monuments – Son essence et sa gênese, de Alois Riegl, é de 1903. Mesmo
que, como Sitte, não haja no plano qualquer referência explícita ao historiador
vienense e à sua obra, cuja data de publicação é anterior aos marcos temporais

109
do desenvolvimento do Plano, é possível perceber que algumas das elaborações
de Riegl parecem circunstanciar certas posturas assumidas pelo plano.
Como vimos, a postura historicista que o permeia justifica-se pela busca
de raiz e tradição nos valores da cultura clássica europeia, configurando o que
Riegl definira como valor de rememoração intencional, remetendo à busca da
eterna permanência por meio de valores imunes ao tempo.
O valor de contemporaneidade, por sua vez, corresponde às
necessidades materiais e imediatas, configuradas nas propostas de infraestrutura,
de mobilidade e de saneamento, repousando seu valor nos aspectos de uso
prático. O valor de arte, que corresponde às necessidades espirituais respectivas
à formação do cidadão moderno, toma forma na .
No plano, as necessidades materiais e imediatas E as necessidades
espirituais, na proposta da orla lacustre requalificada, dos espaços abertos para a
restauração do corpo e da mente, e de um centro intelectual dedicado à formação
do espírito.
Riegl apontava ainda um valor de arte relativo, referido à capacidade
dos monumentos antigos de sensibilizar o homem moderno devido aos seus
atributos plásticos – concepção, forma ou cor. Apesar de uma aparência não
moderna, tais obras satisfazem uma vontade artística moderna, a kunstwollen.
O historicismo, base do pensamento urbanístico de Burnham, patente
nos estudos arquitetônicos do plano, marca as soluções urbanísticas dos projetos
do centro cívico e do centro intelectual. Ainda que construídas ao tempo das
transformações de Chicago a partir do plano, isto é, contemporâneas a tais
transformações, a estatuária urbana, os baixos relevos nos marcos das pontes e
mesmo o desenho pinturesco dos espaços abertos, eram concepções artísticas
que obedeciam à esquemas clássicos de composição e resolução formal dos
quais emprestavam uma aparência não moderna, o que parece sinalizar a
presença da kunstwollen de Riegl no discurso urbanístico do Plano de Chicago.

110
Figura 49. Avenida
Michigan, visada sul.
Ao centro, o
Instituto de Artes de
Chicago. Aquarela de
Jules Guerin, Plano
de Chicago, 1906.
Fonte: Plano de Chicago

Figura 50. Setor sul


do Rio Chicago.,
visada sul. Aquarela
de Jules Guerin,
Plano de Chicago,
1906.
Fonte: Plano de Chicago

111
Giulio Carlo Argan, citando Marsilio Ficino16, lembra que “a cidade não é
feitas de pedras”, mas de homens “que atribuem valor às pedras” (ARGAN, 1992,
p. 228). É possível afirmar que é como um novo sistema de valores que o Plano
de Chicago introjeta-se na vida da segunda maior cidade americana da época.

4.3.6. Espaço público, esfera pública

Como antes mencionado, a lição aprendida por Burnham com o plano


diretor que fizera para São Francisco relacionava-se com a necessidade de sua
legitimação pública. A validação pela sociedade obtida pela ampla divulgação do
Plano de Chicago tornou-se uma de suas características mais importantes.
A dimensão pública marcou tanto as elaborações conceituais, com
propostas específicas para infraestrutura, transportes e criação de espaços
públicos, quanto o processo de desenvolvimento do plano em si mesmo, refletindo
a forma de organização social baseada na estrutura comunitária característica da
sociedade norte-americana. Dirigido para a consecução de um objetivo comum, o
Plano de Chicago foi engendrado pela elite industrial e comercial da cidade e
validado por estratos sociais mais amplos.
Esse aspecto permeia o discurso do plano, e tem origem numa política
decisiva para o usufruto público da infraestrutura urbana e dos bens da paisagem.
Em particular, a criação de um sistema de parques associados à ideia de espaços
públicos qualificados e valorizados simbolicamente, parece indicar o desejo de
criar espaços onde a vida pública tivesse lugar.

16
Marsílio Ficino (Florença, 1433 – Careggi, 1499), filósofo italiano, representante maior do
humanismo florentino. Junto a Giovanni Picolo dela Mireola, encontra-se na origem do pensamento
e da filosofia renascentista do séc. XVII. Tradutor e difusor da obra de Platão.

112
O sucesso dessa política pode ser observado pela profusão de espaços
públicos referenciais na vida cotidiana dos cidadãos de Chicago. Para sua
compreensão, será interessante explorar os conceitos de espaço público e esfera
pública.
Segundo Habermas (1984), a “esfera pública (...) pode ser entendida
como a esfera das pessoas privadas reunidas num público objeto da autoridade
do Estado, e a condição para seu desenvolvimento foi o surgimento de instituições
específicas, funções culturais das cidades que viabilizariam a representatividade
desse poder civil.” Tal acepção parece corresponder ao processo que levou à
requalificação do espaço urbano de Chicago que, a partir de um plano urbano,
levou à criação de espaços públicos correspondentes à criação de lugares de
manifestação da esfera pública.
Como afirma Pereira Leite, o espaço público é o “espaço de
propriedade pública e sobre o qual age o poder público para prover as condições
de funcionamento urbano” e, ainda, é o “espaço de apropriação pública onde se
realizam as ações da esfera pública.” Ele não é “a esfera pública e nem o lugar
necessário de sua realização, mas tem nos seus elementos constituintes
importantes aliados para essa realização” (PEREIRA LEITE, 2011, p.160).
Citando Habermas, a autora aponta que a esfera pública
“historicamente constituída com o fortalecimento da burguesia, acompanha a
crescente complexidade das sociedades capitalistas.” Tal afirmação descreve com
precisão o momento econômico de uma cidade em franco processo de
crescimento econômico que se vê na contingência de compreender novos atores
em novos papeis, novas demandas em novas escalas, e a formular novas ações e
novos instrumentos capazes de promover as desejadas mudanças. Lembremos
que a patrocinadora do plano foi a elite comercial e industrial de Chicago, e que o
mesmo foi amplamente comunicado antes de sua implementação.
Queiroga et. al. (2009), por sua vez, trabalham a ideia de esfera pública
com base na elaboração de Hanna Arendt (1991). A filósofa parte da expressão

113
vita activa e a compreende como sendo composta por três atividades humanas
consideradas fundamentais: o labor, o trabalho e a ação.
O labor diz respeito ao atendimento das necessidades do corpo
biológico, o trabalho constrói a artificialidade do mundo e seria o responsável por
sua duração além do período de vida humana, e a ação seria “(...) a única
atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas
ou da matéria” (QUEIROGA, 2009, p. 5).
“Portanto, a ação corresponderia à “esfera pública”, a da realização da
política stricto sensu, que desde a Antiguidade tem profunda relação com a
organização do poder na cidade” (QUEIROGA, 2009, p. 5).
É interessante observar que, em algum grau, os elementos
fundamentais apontados por Arendt encontram-se direta ou indiretamente
referidos nas definições ou ações contidas no plano. O labor, que diz respeito ao
atendimento das necessidades do corpo biológico, seria contemplado pela cidade
saneada e pelos espaços livres destinados à saúde, ao entretenimento e ao ócio
dos corpos.
O trabalho, por sua vez, estaria representado pelo esforço coletivo de
todos em torno da construção de uma nova cidade, um novo artefato, que
estabelece as condições para o futuro, para além do tempo da vida humana. E a
ação, a implementação do plano em si mesma, como ato político a manifestar-se
na esfera pública, a envolver “a produção cultural, a construção da cidadania, do
interesse público, do bem público constituído socialmente diante do conflito de
interesses individuais ou de grupos e teria a realização nos 'espaços públicos'”
(QUEIROGA, 2009, p. 5).

114
4.3.7. Paisagem como fato cultural

A característica teleológica do Plano de Chicago é evidente, uma vez


que sua intencionalidade está sempre presente. Não apenas por seu conteúdo,
mas a forma pela qual foi gerado contribuiu para transformá-lo numa espécie de
act of will geral, coletivo, público em essência.
A articulação em bases comunitárias para discussão e publicização
tanto das informações e dados sobre a cidade como das proposições decorrentes
para a cidade, estabeleceu um processo de declaração de limites, possibilidades e
intencionalidades declaradas.
É possível pensar que talvez esse processo tenha permitido a posterior
existência de uma dinâmica de consecução de alguns dos desejos e projetos
contidos no plano. Ou seja, uma dinâmica cultural que engendra a paisagem como
produto dos processos culturais coletivos incorporados ao território. Andre Corboz
lembra que o território é como “um palimpsesto: gerações diversas o têm escrito,
apagado e acrescentado” (in SECCHI, 2006, p. 15).
Nesse contexto de reconfiguração da paisagem física e cultural, o
jardim, a praça e o parque constituem-se em objetos centrais. Citando Fagiolo,
Bernardo Secchi observa que “o jardim, ornamento do solo, cidadela do otium, do
céu ou lugar do mito, sempre foi metáfora da cidade e da sociedade, lugar
investido como prefiguração e ideologização por uma sociedade bem organizada”
(FAGIOLO apud SECCHI, 2006, p. 25).

Dois séculos mais tarde, no crepúsculo da modernidade, tanto nos


parques e nos passeios parisienses da grande ordenação haussmaniana
– autêntico sistema de elementos hierarquizados e padronizados –
quanto nos contemporâneos sistemas de parques de Olmsted nos
Estados Unidos, a ideia de articulação e da ordem social correspondente
ao fim do Oitocentos é visualmente expressa (SECCHI, 2006, p. 15).

115
A intencionalidade do discurso do plano, a dimensão pública do
processo de sua elaboração e de suas proposições, a importância do papel dos
espaços públicos, livres e abertos no âmbito de um processo ambicioso de ampla
requalificação urbana e aqui, particularmente, a linguagem do pinturesco e a
valorização do componente artísticos no desenho destes espaços configuram a
paisagem como um fato cultural novo da cidade de Chicago.
Ou, de outro modo, a cidade passa a ser considerada como um artefato
– algo feito com arte.

4.3.8. A imagem da cidade prefigurada

Entre os vários aspectos abordados na proposição da requalificação


urbana de Chicago, o plano privilegiou a criação de espaços de usufruto público
que visavam, além do ócio e do lazer, à transmissão de valores que
representassem o novo estágio civilizatório que ensejava.
A cidade passava a encarnar uma função de formação do cidadão por
meio do conteúdo simbólico de seus espaços públicos. Este conteúdo se fez
representar através de diversos elementos articulados numa linguagem portadora
da mensagem de desenvolvimento material e espiritual que o plano propunha.
Ou, de outro modo, paisagens pinturescas, perspectivas grandiosas, a
monumentalidade da arquitetura historicista e os objetos artísticos de filiação
estética clássica articularam-se numa linguagem coerente, coesa, que pudesse
ser compreendida e assimilada e compartilhada por todos os cidadãos.
Em A imagem da cidade, Kevin Lynch propõe: “Temos a oportunidade
de formar o nosso novo mundo citadino como sendo uma paisagem ideal: visível,
coerente e clara. Será necessária uma nova atitude por parte do habitante desta
cidade, dando novas formas ao meio físico que ele domina, formas essas que

116
agradam a vista, que se organizam gradualmente no tempo e no espaço, e que
podem ser símbolos representantes da vida urbana” (LYNCH, 1979, p.103).
O paralelo da pesquisa de Lynch com as diretrizes do plano nos parece
possível. O postulado acima ecoa o discurso do plano quanto ao papel das
manifestações artísticas urbanas e sua relação com o cidadão.
Lynch, que é de Chicago e lá atua, trabalha em realidades urbanas
existentes. Sua pesquisa o leva a concluir que há tantas maneiras de realizar (to
realize) aquilo que chamamos de cidade quantos habitantes nela houver.
As entrevistas individuais revelaram que uma mesma realidade
possibilita imagens diferentes de cidade, mas a análise conjunta do material
tabulado mostrou que todos os entrevistados referem rua como rua, bairro como
bairro, cruzamento como cruzamento. Além da identificação individual desses
elementos, sejam físicos ou psicológicos, materiais ou imateriais, permite
diferentes correlações que cada habitante faz e que resultam em sínteses
particulares e diferentes imagens de cidade. Mas a pesquisa revela também que
há aspectos comumente percebidos que construirão uma imagem coletiva de
cidade ou, como Lynch define, a imagem pública da cidade.
Merecem menção certos paralelos entre os pontos notáveis destacados
pelo plano e os elementos urbanos identificados pela pesquisa de Lynch.
No plano, as vias – hidrovias, ferrovias, rodovias, ruas e avenidas – têm
um lugar relevante na construção da identidade moderna da cidade requalificada.
Para além da modernização funcional do sistema viário, demanda urgente que a
condição moderna impõe, as imagens do plano mostram a importância simbólica
que os elementos de mobilidade em geral têm. Em Lynch, “para a maior parte dos
entrevistados (as vias) (...) constituíam os elementos predominantes” (LYNCH,
1979, p.60).
Outros elementos referenciais do plano são o Lago Michigan, o rio
Chicago e suas orlas. O plano, que os valoriza, prevê a urbanização desses
elementos lineares que estabelecem o limite entre a terra e a água. Em Lynch, os

117
limites são “elementos lineares não entendidos como ruas (...) são normalmente
(...) fronteira entre duas áreas” (LYNCH, 1979, p.58).
As posturas do plano são pautadas por uma moralidade, como vimos.
Para que atue, é necessário que ela se manifeste plasticamente e simbolicamente
nos espaços públicos por meio de elementos que os qualifiquem em lugares de
referência. Ou, nos termos de Lynch, por meio de marcos urbanos, “pontos de
referência considerados exteriores ao observador (...) elementos físicos variáveis
em tamanho (...) (cuja) característica chave é a originalidade, um aspecto que é
memorável ou único no contexto” (LYNCH, 1979, p.60).
Estes elementos, como os pontos notáveis do plano, articulam-se em
linguagens, tornam-se discurso legível. Vale lembrar a analogia que Argan faz
“entre o fenômeno da estruturação do espaço urbano e o fenômeno da
estruturação da linguagem” (ARGAN, 1992, p. 237).
Lynch, para quem “a legibilidade é crucial para o cenário urbano”
(LYNCH, 1979, p. 12), destaca o papel das paisagens como “o esqueleto sobre o
qual muitas raças primitivas erigem seus mitos socialmente importantes” (LYNCH,
1979, p.83). Segundo o autor, a “imagem da cidade claramente definida” fornece
matéria prima para a construção simbólica, para certas práticas coletivas e para os
conteúdos reminiscentes da sociedade. (LYNCH, 1979, p.84).
O investimento do plano em mais de 140 imagens de forte teor
simbólico pode ser interpretado como a matéria-prima que permitiu aos cidadãos
verem além dos elementos em si mesmos representados, isto é, tornou-lhes
legível uma moral correspondente ao homem e à cidade modernos, tornando
possível enxergar, imaginar, as múltiplas possibilidades da cidade futura que se
projetava. De algum modo, o plano materializou a imagem da cidade moderna.

118
4.3.9. A cidade como artefato

A questão da arte se coloca no plano em dois níveis básicos: o nível


das proposições nele objetivadas, já abordado, e o nível mais geral que articula a
cidade aos processos culturais que permitem compreendê-la como um fato
cultural, um artefato.
Explorando as relações entre arte e cidade, Argan nos mostra a cidade
como o lugar em que a arte surge como fenômeno significativo e representativo
dos processos sociais.
A cidade, como a arte, é resultado de uma concepção prévia, de um
projeto, “normalmente impulsionada por uma necessidade, mas sempre uma
concepção (...)” (ARGAN, 1992, p.73). Não é outro o caso do plano, que propõe a
cidade como construção mental que transcende a própria materialidade para
validar historicamente sua realidade física, por meio de elementos portadores de
conteúdos simbólicos que lhe deem significado.
As resoluções formais urbanísticas e a estética dos monumentos e
demais artefatos artísticos contidos nas imagens do plano, que representam tais
elementos, querem ser não a memória de um passado de empréstimo, mas a
consagração de passado eleito que deve permanecer presente para ser história,
“uma história feita espaço ou ambiente concreto da vida” (ARGAN, 1992, p. 43).
O forte apelo imagético do plano demonstra a relevância da concepção
artística da cidade como elemento capaz de plasmar a memória histórica adotada
como esteio do futuro projetado para a cidade. O historicismo assumido do plano
postula para Chicago e seus habitantes um lugar na história das grandes cidades
e das grandes civilizações.
Mas, se é possível compreender a cidade como artefato, há que
compreendê-la também como construção real. O plano pensa Chicago em relação
“aos seus aspectos construtivos e às técnicas que a tornam concebível. É preciso
colocar a cidade em relação às técnicas de projeto” (ARGAN, 1992, p. 75).

119
Projeção e concretude, ideal e real: Argan propõe que a ideia de cidade
seja amparada por entidades distintas, mas complementares: o ideal e o real, que
se cruzam de modo permanente para estabelecer a condição de sua existência.
Verifica-se que o plano apoia-se numa extensa e minuciosa base de
dados físicos e econômicos, sistematizados e tecnicamente apropriados, e os
fundamenta com os ideais e valores que nele se manifestam plástica e
artisticamente, confirmando assim seu papel de ponto de encontro da cidade real
com a cidade ideal.
Mas, se a cidade real coloca-se no âmbito da objetividade dos “fins
preestabelecidos” nos termos de Christopher Alexander, a cidade ideal responde
pelo conteúdo ideológico daquilo que chamamos urbanismo, um urbanismo em
que o plano reafirma seu papel orientador, portanto ideológico, que age no sentido
da mudança de um estado de coisas.
O paradigma antropocêntrico surgido com a Renascença, que permitiu
a concepção da arte como expressão da individualidade, tornou possível também
a cidade concebida por um artista, como obra de arte total a partir de uma visão
pessoal. As concepções espaciais e arquitetônicas do plano expressam de modo
indelével as concepções de Burnham, antes experimentadas na Exposição
Mundial de 1893. A cidade ideal do plano representa um conjunto de conceitos e
valores, e a ordem urbanística não refletirá “apenas a ordem social, mas a razão
metafísica ou divina da instituição urbana” (ARGAN, 1992, p. 75).

4.4. Do plano à cidade: arte pública em Chicago

Como vimos, a dimensão artística da cidade ideal do Plano de Chicago


acabou por conformar alguns dos aspectos urbanísticos mais importantes da
Chicago real. A incorporação dos elementos da paisagem natural à paisagem
urbana (o Lago Michigan, o rio Chicago), o traçado monumental de alguns de seus

120
eixos viários (Avenida Michigan), o tratamento paisagístico pinturesco dos
parques, e a arquitetura dos edifícios, revelam a condição de artefato da cidade,
reiterada nos muitos espaços públicos qualificados pela presença expressiva de
monumentos e obras de arte.
É possível perceber a importância da arte pública na vida de Chicago
pela abundância de obras de arte de grande qualidade distribuídos pela área
central, parques, e ainda de muitos monumentos em diversos lugares da cidade.
Constitui, no conjunto, um grande acervo de arte pública, uma atração em si
mesmo. E parte dele são marcos de lugares referenciais da cidade.
Tal acervo de arte pública foi criado e é mantido não apenas pelas
muitas doações particulares que ocorreram, mas também com políticas públicas e
programas de incentivo ao desenvolvimento das obras artísticas em escala
urbana.
Diferentemente dos acervos dos museus, e os museus de Chicago são
bastante significativos no plano mundial, esse acervo a céu aberto integra-se à
cena urbana e contribui para qualificar cada um dos espaços que ocupa.
Estes objetos urbanos especiais – as obras de arte dos espaços
públicos – constituem alguns dos elementos mais visíveis da dimensão artística
que o urbanismo de Chicago oferece.
Para demonstrar essa condição, a pesquisa buscou avaliar a presença
de obras de arte através de uma base de dados secundária com um levantamento
quantitativo do acervo existente, por meio de informações obtidas pela pesquisa
na rede mundial de informações. Por outro lado, traz algumas informações
relativas à programas públicos de apoio ao desenvolvimento de arte pública.
Finalmente, investiga as relações espaciais, morfológicas e arquitetônicas
estabelecidas entre algumas obras de arte paradigmáticas e os espaços em que
se encontram, a revelar as qualidades surgidas dessa interação.
A pesquisa revelou uma boa quantidade de sítios e títulos específicos
dedicados ao tema, por exemplo:
 Index of American Sculpture. University of Delaware; 1985.

121
 Bach, Ira J., and Mary Lackritz Gray, A Guide to Chicago's Public Sculpture
Chicago: University of Chicago Press; 1983, pp. 54-55.
 Riedy, James L., Chicago Sculpture. Chicago: University of Illinois Press;
1983, pp. 255-257.
 Gray, Mary Lackritz, Department of Cultural Affairs Loop Sculpture Guide
Chicago: Department of Cultural Affairs; 1990, no. 4.
 Save Outdoor Sculpture. Illinois: Chicago survey; 1992
 “Public Art in Chicago”, blog e site da estudante de arte Jyoti Srivastava;
que permite uma aproximação quantitativa e qualitativa de obras de arte na
cidade. Está organizado segundo as regiões da cidade O arrolamento
contabiliza 318 obras, entre monumentos históricos comemorativos,
esculturas, afrescos, mosaicos e instalações tais como:

Figura 51. (sem título). Pablo Picasso, 1967. Praça Federal, Chicago, Illinois. Conhecida por
”Picasso”.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/10/untitled-know-as-picasso.html

122
Figura 52. Construção no espaço e nas
terceira e quarta dimensões - Antoine
Pevsner, 1959. Escola de Direito da
Universidade de Chicago, Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-
sculptures.blogspot.com.br/2010/11/construction-in-
space-and-in-third-and.html

Figura 55. Batcolumn.- Claes


Oldenburg, 1977. Edifício
Administração Seguridade Social
Washington Plaza, Chicago,
Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-
sculptures.blogspot.com.br/2007/11/ba
tcolumn.html

123
Figura 53. Grande forma interior. Henry Moore, 1983. Jardim Norte do
Instituto de Arte de Chicago, Chicago, Illinois.
Fonte: foto do autor.

124
Figura 55. Monumento com besta em pé. Jean Dubuffet, 1984. Thompson Center,
Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/09/monument-with-standing-beast-
jean.html

Figura 56. Miró de Chicago (Chicago’s Miro).


Joan Miró, 1963/1981. Praça Brunswick,
Chicago, Illinois.
Fonte: foto do autor

125
Figura 57. Flamingo. Alexander Calder, 1974. Federal Plaza, Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/09/flamingo.html

Figura 58. Escultura sonora. Harry Bertoia, 1975. Aon Center, Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/11/sounding-sculpture.html

126
Figura 59. Fonte da coroa (Crown fountain). Jaume Plensa, 2004. Parque do Milênio,
Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/09/crown-fountain-millennium-park-v.html.

Figura 60. Portão da nuvem (Cloud gate). Anish Kapoor, 2006. AT&T Plaza, Chicago,
Illinois.
Fonte: foto do autor.

127
As obras históricas ou épicas, por sua vez, ocupam os pontos focais
dos parques, estrategicamente colocadas nas linhas visuais principais, criando
pontos de interesse nos percursos. Algumas obras estão em pontos de passagem
obrigatória, como o busto de Jean Baptiste Pointe DuSable junto ao Caminho do
Fundador DuSable (DuSable Founder’s Way), passeio junto ao rio Chicago que
liga a Corte do Pioneiros ao Parque DuSable, localizado no encontro com rio com
o Lago Michigan.
Os presidentes George Washington, Abraham Lincoln e Andrew
Jackson, os generais Ulysses Grant e John Logan, e muitos outros personagens
da história norte-americana e da cidade de Chicago são representados em bustos,
esculturas, afrescos e baixos relevos.

Figura 61. Caminho do Fundador


DuSable (DuSable Founder’s Way),
Chicago. Illinois.
Fonte: http://chicago-
infrastructure.blogspot.com.br/2011/06/dusable-
founders-way.html.

Figura 62. Busto de Jean Baptiste Pointe


DuSable. Erik Blome, 2009. Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-
sculptures.blogspot.com.br/2010/01/bust-of-jean-baptiste-

128
Figura 63. Robert Burns. W. Grant Stevenson,
1906. Parque Garfield, Chicago, Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-
sculptures.blogspot.com.br/2010/05/garfield-park-
robert-burns-by-w-grant.html

Figura 64. Monumento da Praça Heald, representando George Washington,


Robert Morris e Hyam Salomon. Lorado Taft e Leonard Crunelle, 1941.
Chicago, Illinois.
http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2007/11/heald-square-monument.html

129
É interessante observar que esta modalidade de arte pública, de cunho
figurativo histórico, é contratada junto às obras de caráter abstrato, sendo
igualmente apoiada pelos programas de arte pública.
Todavia, a pesquisa se aterá aos conjuntos urbanizados que
estabelecem o diálogo urbanismo-arquitetura-obra de arte e que constituem
espaços públicos inseridos na malha urbana ou em locais de interesse mais
diversificado, com grande afluxo de pessoas. Deixaremos para um
aprofundamento posterior o caso das obras comemorativas localizadas nos
parques ou em pontos notáveis da cidade, mas que não estão associadas
diretamente às edificações próximas, constituindo-se em elementos de certa forma
isolados na paisagem.

Figura 65. Abraham Lincoln. Augustus Saint-Gaudens, 1926. Parque Grant, Chicago,
Illinois.
Fonte: http://chicago-outdoor-sculptures.blogspot.com.br/2008/12/lincoln-statue.html

130
4.4.1. Os programas de arte pública

O acervo de arte pública de Chicago, assim como de muitas outras


grandes cidades norte-americanas, deve-se a uma já longa tradição de programas
públicos destinados ao fomento da arte pública.
O movimento City Beautiful está na origem dessa cultura. Entre 1900 e
1910, mais de 3.000 cidades norte-americanas criaram associações vinculadas ao
movimento. Em 1930, Franklin Delano Roosevelt, eleito presidente dos EUA em
meio à Grande Depressão, instituiu a política do New Deal, um amplo e ambicioso
programa de combate à miséria pela geração de empregos através de um vultoso
programa de obras públicas – a Administração de Obras para o Progresso (Works
Progress Administration – WPA), do qual fazia parte o Projeto Federal de Arte
(The Federal Art Project – FAP). Esse programa, que operou de 1935 a 1943,
produziu mais de 200.000 trabalhos artísticos entre cartazes, pôsteres, murais,
bem como pinturas e esculturas monumentais.
O Estado de Filadélfia foi o primeiro a aprovar, em 1959, um decreto de
repasse de verbas orçamentárias estaduais (um por cento) para fomento das
artes. O governo Kennedy, através de seu Comitê Federal para Arquitetura,
recomendou, em 1963, que “onde apropriado, as belas artes devem ser
incorporadas ao desenho dos prédios públicos federais, com ênfase nos trabalhos
de artistas norte-americanos vivos”, o que resultou, em 1965, no Fundo Nacional
para as Artes.
Em 1972, a Administração de Serviços Gerais dos Estados Unidos
(General Services Administration – GSA) estabeleceu o programa Arte na
Arquitetura, que, em 2012, desenvolveu mais de 350 programas de arte pública
disseminados por todo o território dos Estados Unidos. O programa é sustentado
por um fundo criado a partir da destinação de meio por cento do orçamento dos
projetos de edifícios públicos federais.
Em 1978, o Conselho da Cidade de Chicago aprovou o Decreto do
Percentual de Arte, que determinou que 1,33% do custo de construção ou de

131
reforma de edifícios ou espaços públicos da cidade e ainda metade dos contratos
fossem feitos com artistas locais. É importante observar que esse instrumento
legal condiciona a produção de espaço urbano edificado à produção de arte
pública, vinculando a atividade imobiliária à atividade artística e criando assim uma
relação duradoura entre a produção de espaço urbano e a produção de arte
pública. Trata-se de um processo de institucionalização das políticas e programas
de arte pública em favor da constituição de acervos de arte pública nas cidades
norte-americanas, e em particular na cidade de Chicago.

4.5. Marcos urbanos em Chicago: um registro de espaços artisticamente


qualificados

Mas, onde e como se manifesta a dimensão artística do urbanismo de


Chicago? A cidade mesma, como recebe a arquitetura e as obras de arte?
O capítulo final deste trabalho visa responder a essas questões, a partir
da leitura de alguns espaços públicos significativos de Chicago. Esses espaços
podem são considerados marcos urbanos como definidos por Lynch, isto é, são
lugares dotados de carga simbólica e significativa, lugares importantes que criam
identidade. Por isso mesmo tornaram-se referências obrigatórias.
A escolha dos espaços deu-se a partir da experiência pessoal do autor
nesses espaços quando de sua exploração local, e da reflexão provocada pela
pesquisa. Um percurso pedestriano revela tais espaços como pontos notáveis
pelas qualidades projetuais, urbanísticas e arquitetônicas, e especialmente
artísticas, pelo diferencial de conteúdo simbólico e significado neles encontrados.
Tais qualidades serão identificadas pela leitura do sítio segundo seus
atributos formais, plásticos e artísticos, em alguns casos antes e depois da
instalação das grandes esculturas. Neste sentido, a leitura procura reconhecer as
relações entre desenho urbano, arte e arquitetura e suas possibilidades.

132
4.5.1. Metodologia

Para tanto, adotaremos a seguinte metodologia: a. Descrição textual e


por meio de imagens dos lugares; b) Leitura dos espaços com base nos registros
fotográficos pessoais, em imagens Google e em imagens de fontes diversas, e na
aplicação dos conceitos extraídos da pesquisa, abaixo explicitados.
Aqui se agregam algumas chaves de interpretação utilizadas por
Edmund Bacon em Design of cities, de 1975.

4.5.2. Crivo de análise

Constituído por duas ordens de conceitos;

4.5.2.1. A primeira ordem agrega três dimensões fundamentais que balizam a


análise dos lugares:

a. Lugar: o foco de Sitte nas praças revela o reconhecimento


do valor do espaço público como espaço das relações
sociais, o lugar do encontro, da agregação social por
excelência,
b. Espaço público: adota-se a conceituação de Pereira Leite
(2011): “espaço de propriedade pública e sobre o qual age
o poder público para prover as condições de
funcionamento urbano” e, ainda, é o “espaço de
apropriação pública onde se realizam as ações da esfera
pública” nos termos de Habermas (1984): a “esfera pública
(...) como a esfera das pessoas privadas reunidas num
público objeto da autoridade do Estado.”

133
c. Paisagem Adotam-se as considerações de Bernardo
Secchi (2006) quanto ao papel dos espaços abertos - o
jardim, a praça e o parque – na configuração da paisagem
física e cultural da cidade, como objetos centrais que
atuam como “metáfora da cidade e da sociedade, lugar
investido como prefiguração e ideologização por uma
sociedade bem organizada”.

4.5.2.2. A segunda ordem abarca conceitos auxiliares presentes nas


metodologias de leitura e análise de Lynch e Cullen, utilizadas como
apoio eventual ao desenvolvimento das leituras.

a. Recessão: definida como a “arte da recessão” (CULLEN,


1983, p. 50), a diferença de escala entre os elementos de
composição do espaço urbano permitem criar a ilusão de
uma maior ou menor proximidade dos objetos em cena.
b. Recinto/enclave (CULLEN, 1983, p. 27): recorte de um
espaço maior, subcompartimento deste, por ele acessível,
mas desvinculado do movimento principal. No recinto, não há
o vai e vem, o movimento frenético, o ruído, Há o sossego, a
respiração, o descanso, o hiato. Remanso.
c. Pontos focais, (CULLEN, 1983, p. 28) associados (ou não) ao
recinto, são símbolos verticais de convergência, surgem
como confirmação enfática de um espaço.
d. Aqui e além: (CULLEN, 1983, p. 36) Cullen registra a
percepção daquele que vivencia o espaço quanto a sua
posição nele, e revela o jogo da contraposição entre estas
duas posições diferentes. Aqui é o imediato, o espaço
próximo percebido por sua contiguidade ou vizinhança do
fruidor. Além é o que está sugerido ou apenas parcialmente
revelado de modo a não ser inteiramente percebido, mas

134
fortemente sugerido, “é algo que está ao mesmo tempo
presente e sempre fora do nosso alcance” (CULLEN, 1983,
p.36). Entre a plena certeza do primeiro e forte impressão do
segundo, o autor registra um fluxo perceptual e emocional
com origem no arranjo e nas relações dos objetos no espaço.
e. Entrelaçamento: (CULLEN, 1983, p. 40) parte-se da ideia de
que o ambiente é um todo integrado, e o entrelaçamento
consiste na ligação dos diversos elementos urbanos num
todo coerente, num padrão reconhecível, a relacionar
escalas, posições relativas e demais atributos – textura, cor,
material.
f. Pontos no espaço: (BACON, 1975, p. 25) pontos situados
livremente no espaço estabelecem linhas de tensão entre si,
a observação em movimento ou o percurso entre os pontos
renovas as linhas de tensão: se oferecem novas
possibilidades de fruição. Obeliscos, pontos destacados
sobre cúpulas, torres.
g. Planos recessados: (BACON, 1975, p. 25) é o efeito do
proscênio, uma composição básica num plano de fundo que
estabelece uma composição básica de referência, um quadro
de referência que nos permite perceber as dimensões e a
escala dos objetos, colocando-os em relação.
h. Desenho em profundidade: (BACON, 1975, p. 26) recurso de
composição espacial usado repetidamente ao longo do
tempo, em que elementos arquitetônicos são colocados numa
espécie de hierarquia espacial, um na frente, outro atrás, a
permitir a experiência da visão perspéctica e o sentido do
tamanho do espaço criado.

135
E, ainda, agregamos três conceitos advindos da experiência perceptiva
e projetual do autor:

i. Massas positivas e negativas: massas construídas e objetos


estabelecem campos de força com os “vazios” circundantes,
como analogamente as polaridades magnéticas. É possível
falar em polaridades espaciais, zonas de atração, de retenção
ou de passagem.
j. Oposições: a localização relativa de massas e objetos pode
ser entendida como oposições e elementos no espaço,
unidas ou separadas por espaços.
k. Contrastes: entre texturas, cores, horizontal e vertical,
diferentes materiais, objetos com diferentes massas.

136
Figura 66. O percurso dos lugares visitados. Chicago Loop, Chicago, Illinois.
Fonte: Google Earth

4.5.3. Percursos

O percurso desenvolve-se numa das 77 áreas de comunidades de


Chicago, a área histórica central de Chicago, conhecido como Chicago Loop, ou o
Laço de Chicago. Conformada a norte e oeste pelo rio Chicago, e a leste pelo
Lago Michigan, é o centro vital de negócios e cultura da cidade, onde estão o
Instituto de Arte de Chicago, a Orquestra Sinfônica de Chicago, a Ópera Lírica de
Chicago, o Teatro Goodman entre outras instituições. Inclui as obras de arte em
espaços abertos, no Parque do Milênio e no setor sul do Parque Grant.

137
Figura 67. Thompson Center, Murphy e Jahn, 1985, Chicago, Illinois.
Fonte: foto do autor.

Nele há também mais de 53 obras de arte e objetos artísticos deles nas


praças e parque, numa concentração única de esculturas urbanas de qualidade e
significado indiscutíveis. A uma distância não superior a quatrocentos metros,
estão, entre outros, os mestres Jean Dubuffet, Pablo Picasso, Joan Miró, Marc
Chagall, Alexander Calder, junto a obras arquitetônicas de qualidade por vezes
icônicas. Desse número, percorremos oito lugares. Se o valor das obras de arte
pública é inquestionável, é de interesse investigar sua relação com as soluções
urbanísticas e arquitetônicas dos projetos que as abrigam. Cinco dos oito lugares
têm projetos que ocupam a quadra inteira, morfologia recorrente nesta região da
cidade. Neles, a obra de arte é um dos protagonistas da cena urbana, que divide
com as massas edificadas do entorno. Outros três estão no Parque Grant, dois
integram o Parque do Milênio (setor norte) e o último está no extremo sul do
parque, em alinhamento com os últimos. Nesses casos, são protagonistas em
primeiro plano da paisagem, que dão gravidade e organizam o espaço aberto
onde estão.

138
Figuras 68, 69, 70. Thompson Center, Murphy e Jahn, 1985, Chicago, Illinois.
Visadas (no sentido horário): oeste, sul, leste e oeste, as últimas a revelar a abertura visual –
esquina ampliada - proporcionada pelo arco do edifício.
Fonte: Google Earth

Figuras 71. Monumento com besta sentada, Jean Dubuffet, 1984. Chicago, Illinois.
O movimentado pano de fundo do edifício acaba por diluir a obra na paisagem.
Fonte: foto do autor.

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O primeiro ponto notável é o “Monumento com besta em pé”, escultura
em fibra de vidro de Jean Dubuffet, está situada na esquina das ruas Clark com
Randolph, em frente ao Centro James R. Thompson, projeto de C.S. Murphy e
Helmut Jahn, de 1985.
O edifício ocupa a quadra inteira, organizado em torno de um espaço
livre interno, vazio central iluminado por abertura zenital que interliga verticalmente
os 15 pavimentos. Uma estrutura aporticada determina o embasamento do
edifício, e se o recurso dos vedos recessados permite uma galeria aberta coberta
continua com cerca de 8 m de altura. essa, entretanto, se comunica com a praça
interna ao edifício apenas através de acessos determinados por portas duplas,
fechadas por exigência de condicionamento interno de ar.
Os vedos, executados em estrutura metálica e vidro reflexivo,
constituem uma caixilharia continua que obedece a um padrão reticulado
multifacetado. As cores utilizadas no revestimento quadriculado dos pilares da
estrutura aporticada, em branco e tons de vermelho e azul esmaecidos,
determinam uma arquitetura que contrasta com a sobriedade característica da
arquitetura moderna.
O programa do edifício atende às necessidades administrativas
públicas do Estado de Illinois, com exceção dos dois primeiros pavimentos, que
abrigam um pequeno centro comercial com 40 lojas. O espaço de agregação
desloca-se de fora para dentro, do público para o semipúblico ou semiprivado. O
espaço público – externo – resta como espaço de passagem.
O grande arco que faz a concordância entre as laterais do edifício das
ruas Clark e Randolph, abre espaço para uma esquina ampliada, pequena praça
que recebe a escultura de Dubuffet. A praça é também delimitada pela colunata
que se desprende do edifico para marcar o perímetro da quadra. O raio ampliado
de visão define o momento em que a vista se alarga para divisar a paisagem das
faces das quadras vizinhas.
Definida como “um desenho que projeta no espaço”, a escultura de
Dubuffet, executada em fibra de vidro, foi inaugurada em 1984, tendo sido

140
concebida em 1969. A obra reflete o conceito do artista de Arte Bruta, como “o
trabalho executado por pessoas intocadas pela cultura artística (...) a partir de
suas próprias profundezas, e não de clichês da arte clássica ou da arte que está
na moda” (DUBUFFET, 1949).
Vale observar que o espaço que é dominado pelo massivo edifício de
arquitetura pós-modernista, é o mesmo que recebe uma obra com uma ideia
radical da arte, aqui as praças parecem expressar o projeto e o desejo de uma
sociedade feliz com seus lugares de consumo e trabalho garantidos acima de
tudo. A transferência de peso das praças, da externa, seca, de passagem, para a
interna, transformada em um grande lobby de centro comercial. Ou, como aponta
Secchi (2006, p.25), são os espaços de “prefiguração e ideologização por uma
sociedade bem organizada”.
A despeito do efeito mimético que o padrão das fachadas do vizinho
impõem, acrescido da profusão de elementos que demarcam o perímetro da
praça, a “Besta” de Dubuffet, com seus 9 m de altura, é um ponto focal importante
nesta esquina ampliada que, entretanto, é apenas um espaço de passagem,
espécie de “hall de entrada” do edifício.
Em que pese o contexto um tanto rebuscado, a “Besta” estabelece um
contraste radical – como queria o artista – com o entorno e com as pessoas,
propondo uma geometria outra que prescinde de conceitos como simetria,
equilíbrio e outros elementos tradicionais da arte. Suas formas são objeto de
avaliações sempre apaixonadas, nunca indiferentes.

141
Figura 72. Praça Daley, Murphy, S.O.M., Loebl, Schlossman &
Bennett, 1965, Chicago, Illinois. Detalhe da visada norte, com o
Centro Thompson ao fundo.
Fonte: foto do autor.

Desta praça já se avista a sul o Centro Daley e o espaço aberto que


abriga o “cavalo” de Pablo Picasso. A grande escultura, instalada em 1967, está
junto ao edifício Richard J. Daley Center, projetado por C.F. Murphy Arquitetos,
com Skidmore, Owens & Merril – S.O.M. e Loebl, Schlossman & Bennett, em 1965.
O projeto abarca a totalidade da quadra. Um edifício único, que ocupa
cerca de 30% da área disponível, dialoga com a grande praça frontal onde está o
“cavalo”. A Praça Daley, cujo lado maior abre-se para a rua Washington, está
isolada das massas edificadas próximas pelas ruas que a conformam. Nela são
usados diversos elementos de mobiliário urbano de modo a criar um conjunto de
subespaços definidos, seja uma fileira de bancos que cria a separação com os
passeios, sejam as jardineiras que criam ambientes de estar em escala
diferenciada. Há ainda um espelho d’agua animado por composições de jatos de
água, e os acessos ao sistema de mobilidade subterrâneo que une diversos
pontos comerciais e de entretenimento da região (Pedway).
Neste “vazio” encontra-se estrategicamente instalado o “cavalo” de
Picasso, com 15 m de altura, contra cerca de 7 m do lobby do Centro Daley,

142
Figura 73. Praça Daley, Murphy, S.O.M., Loebl, Schlossman & Bennett,
1965, Chicago, Illinois. Visada norte, com o “Picasso” em edifício Richard
Daley. Notar a similaridade dos materiais estruturais e contraponto
orgânico da escultura ao ortogonalismo geral do ambiente.
Fonte: foto do autor.

Figura 74. Praça Daley, Murphy, S.O.M., Loebl, Schlossman & Bennett,
1965, Chicago, Illinois. Os vedos recessados alargam o passeio, e criam
uma espaço coberto que faz a transição das escalas.
Fonte: foto do autor.

organizando como elemento central o mobiliário satélite que contribui para a


143
escultura de Picasso achar seu lugar. Presentes aqui elementos da composição
paisagística tradicional como a posição descentrada da escultura em relação ao
centro geométrico da praça, mas no domínio do amplo espaço livre central. Em
posição oposta, um conjunto de duas jardineiras e espelho d’água, bancos e a
sombra de vegetação arbórea de pequeno porte funciona como contraponto
volumétrico à escultura, e estabelece com ela linhas de tensão diferentes, as
pequenas árvores a servir como pontos focais auxiliares.
O térreo do edifício segue o modelo proposto por Mies, com os
vedos transparentes do lobby recuados em relação à projeção do edifico,
recessão que cria um alargamento das calçadas laterais que se tornam espaço
aberto coberto, e fazem do lobby uma extensão da praça. No lobby, apenas a
massa das estruturas de circulação vertical se interpõe na visão que se tem da
Rua Randolf (paralela e oposta à Rua Washington), onde uma fileira de pequenas
árvores alinhada à rua, plantadas em jardineiras de 1,20 m de altura, faz o pano
de fundo do lobby e limite visual norte desse espaço. Aqui e além das torres dos
elevadores e das arvores enfileiradas.

Figura 75. Praça Daley, croquis da implantação.


Fonte: desenho Sylvia Ammar.

144
Figura 76. Manifestação na Praça Daley em 11 de setembro de 2001.
Fonte: http://freepages.genealogy.rootsweb.ancestry.com/~ladyejane/911-16-prayer.JPG

O “cavalo” é construído em aço Cor-Ten, o mesmo da estrutura do


Centro Daley, criando uma atenuação do contraste entre ambas. Assim como
outras praças, a Praça Daley recebe muitas manifestações populares civis, e é
outra referência obrigatória da cidade.
O lugar constituído pela Praça Daley demonstra que ainda que o projeto
tenha criado subespaços em escala humana através de elementos paisagísticos
específicos, a presença ostensiva do edifício do Centro Daley como massa
construída estabelece uma polaridade dominante com o vazio da praça por
oposição de cheio e vazio. A escultura do mestre catalão cumpre nesse contexto
um importante papel na transição das escalas, situando-se com equilíbrio entre a
escala monumental do conjunto e a escala humana. Pelas dimensões e por sua
pela localização, a Praça Daley é palco frequente das mais diversas
manifestações civis. É pois lugar de referência, carregado de simbolismo e
significado.

145
O próximo ponto notável
encontra-se do outro lado da rua
Washington, um espaço residual entre
duas imponentes massas edificadas.
Instalada depois da construção do
Edifício Brunswick, projeto de Skidmore,
Owings & Merrill de 1962, a escultura
Figura 77 – Ao pé de Miró: descanso, “Chicago de Miro” foi desenhada em
pequeno remanso.
Fonte: foto do autor. 1963, e inaugurada em 1981. Este
pequeno espaço, com não mais do que 15 m de largura recebe uma escultura
com 12 m de altura, transformando o espaço residual entre as massas edificados
num pequeno recinto ou enclave, segundo o conceito de Cullen.
A qualidade plástica da obra e o peso do nome de seu autor trazem
valor e significado a este pequeno espaço aberto, que dada sua característica de
espaço residual permite uma inserção apenas lateral na paisagem dominado pelo
conjunto da Praça Daley. Entretanto, é exatamente essa característica que a torna
um espaço de alguma forma acolhedor. Os passantes param, sentam-se na base
da escultura, não se demoram, mas lá permanecem por algum tempo. Parece
funcionar como o enclave ou recinto descrito por Cullen, acrescido de um ponto
focal poderoso, que transforma este pequeno espaço aberto. A obra acentua a
verticalidade do espaço enquanto faz a transição para a escala humana.
A seguir pela Rua Clark, ainda no sentido sul, encontra-se mais um dos
pontos notáveis deste breve percurso, outro exemplo de projeto que ocupa a
totalidade da quadra. A Torre Chase ocupa a metade norte desta, e libera um
grande espaço aberto na metade sul, ocupado por uma praça organizada em três
níveis.

146
No nível do passeio estão um edifício térreo ocupado por uma
lanchonete e o acesso aos sistemas de mobilidade subterrâneos. No plano
intermediário, a escultura “Quatro estações”, de Marc Chagall. E, no plano inferior,
uma praça rebaixada forma um ambiente protegido que abriga áreas de estar com
mesinhas e guarda-sóis em volta de um espelho d’água e fonte centrais. “Quatro
estações” é um grande monólito horizontal revestido por belíssimos mosaicos
elaborados pelo artista, com materiais trazidos dos mais diferentes lugares do
mundo. Cada face revela um mural com temas figurativos e alegóricos,
constituídos por paisagens diáfanas que alternam luz e sombra. O ambiente é
preservado do movimento das ruas, e propicia momentos de relaxamento e fruição
da obra, sendo quase um espaço de exceção. Ou é um recinto no sentido de
Cullen.

Figura 78. Chicago de Miró (Miró’s Chicago), Joan Miró,


1963/1981
Fonte: foto do autor.

147
Como a Praça
Daley, um grande edifício
e três ruas conformam a
praça, mas neste caso o
térreo do edifício de 259 m
de altura, projetado de
C.F. Murphy Associados,
Stanislaw Z.
Gladych e Perkins e Will
em 1962-64, não é
permeável. Serve de limite
físico opaco para a o
conjunto. O caráter desse
espaço público é oposto às
duas outras praças que
Figura 79. Praça Exelon, Chicago, Illinois.
Fonte: Google Earth. vimos. Aqui, há a praça no
nível do passeio que
emoldura de uma praça
menor, central, rebaixada
em 2 m e assim protegida,
quase uma sala de estar
ao ar livre. No seu lado
leste, num nível
intermediário, está “Quatro
estações” que, devido à
diferença de cotas, mais
parece um quadro

Figura 80. Praça Exelon, Chicago, Illinois. pendurado na sala de


Fonte: foto do autor. estar. O zoneamento rígido
acompanha a

148
fragmentação do espaço em pequenas partes, ambientes distintos, o que pode
revelar certa preferência por espaços públicos de dimensões reduzidas, que não
permitem mais que um pequeno número de pessoas, sentadas em simpáticas
mesinhas guarnecidas por guarda-sóis. É um recinto isolado do movimento.
A escultura de Chagall, que mede 21 m comprimento, 2,4 m de altura e
3,9 m de largura, está colocada em recinto próprio, de certa forma isolada do
conjunto pelos bancos de observação que a circundam. Inicialmente não havia

Figura 81. Praça Exelon,


Chicago, Illinois.. Visada da
praça rebaixada e espelho
d’água.
Fonte: foto do autor.

Figura 82. “Quatro estações”, Marc Chagall, 1974, Praça Exelon, Chicago, Illinois.
Fonte: foto do autor

149
cobertura. A que vemos nas fotos foi agregada à obra para protegê-la, em 1996.
Os pesos aproximados das massas construídas na praça, a lanchonete, a
cobertura da pedway e a cobertura da escultura têm proporções e alturas
próximas, podendo ser vistos como focais que competem.

Figuras 83, 84. Edifício Everett M.


Dirksen - Fórum dos Estados
Unidos. Mies van der Rohe 1964,
Federal Plaza, Chicago, Illinois.
Fonte:
http://3.bp.blogspot.com/_zJpnTu57Koc
/TO6Z9dAVY8I/AAAAAAAAYyk/xqFl5qdp
6X0/s400/LI-sculp-0030a.jpg

O próximo ponto notável visitado é o Centro Federal Chicago (Chicago


Federal Plaza) e o “Flamingo”: o vermelho de Calder sobre Mies em preto.
Projetado por Ludwig Mies van der Rohe entre 1959 e 1964, a praça recebeu
“Flamingo”, obra escultural monumental de Alexander Calder em 1974, cinco anos
após a morte de Mies.

150
O conjunto é
composto por quatro
elementos, sendo três
edifícios: o edifício Everett
M. Dirksen – Fórum dos
Estados Unidos (U.S.
Courthouse), de 30
pavimentos; o Edifício
Federal (Federal Building)
Figura 85. Centro Federal Chicago. Implantação, Mies van
der Rohe 1959/64, Chicago, Illinois. John C. Kluczynski, de 42
Fonte: Mies van der Rohe at work, Phaidon Press, 1974
pavimentos, que articulado

Figura 86. Centro Federal Chicago, hall do edifício Everett M. Dirksen. Chicago, Illinois.
Fonte: Mies van der Rohe at work, Phaidon Press.

à Agência dos Correios dos Estados Unidos (U.S. Post Office), de um pavimento,
conforma a praça, junto à Rua Dearborn.

151
Os edifícios maiores conformam as quadras assim como outros nas
ruas do entorno e de grande parte da área central da cidade, uma vez que
ocupam o terreno a partir do alinhamento de divisa.
O arquiteto faz a transição entre o publico e o privado através da
recessão dos vedos do pavimento térreo, e o passeio, que avança sob a projeção
dos edifícios, transforma-se em galeria coberta aberta.
Os planos recessados dos vedos transparentes de cristal temperado
garantem a continuidade espacial e delimitam os halls de acesso aos edifícios.
Através deles é possível ver a escultura de Calder, o edifício da agência dos
Correios e todas as fachadas do entorno. Tal transparência sugere ainda o efeito
do aqui e além: o edifício dos correios permite ver as fachadas que estão atrás de
si, além deste edifício que se interpõe entre o observador e o que está situado
depois dele.
O ritmo estrutural dos edifícios e os materiais usados – aço e vidro –
estabelecem um diálogo que entrelaça os elementos do conjunto.
A escultura de Calder, “Flamingo” situa-se num dos extremos da praça,
o que nos faz lembrar da recomendação de Sitte de não ocupar com monumentos
o centro das praças. É o ponto focal do lugar e introduz um elemento diferenciado
na cor e no aspecto formal, e se relaciona com o sítio pela ideia de contraste. O
“vermelho Calder” se destaca do preto das estruturas arquitetônicas e dos tons
semitransparentes de cinza dos vedos dos edifícios. Estes, marcados pela
absoluta ortogonalidade, têm seu contraponto nas curvas orgânicas da escultura.
Todos, entretanto, usam do mesmo material, aço, para manterem-se em pé.
A “cabeça” do flamingo se desprende do corpo, parece querer alçar
voo, e as patas da ave tocam delicadamente o solo. Leveza e peso contrastam em
forma e conceito, leveza do conceito de algo que voa em contraponto com o peso
da estrutura metálica que ancora o voo, que assim o nega para afirmá-lo. De
modo quase análogo, as enormes massas verticais negras dos edifícios da Justiça
e da Administração repousam sobre pilares delgados que suportam o espaço livre
dos térreos, transparentes.

152
Morfologicamente, “Flamingo” estabelece seu diálogo com a escala
urbana pelo seu porte. Seus quase 16 m de altura estão em relação com os 10 m
de altura do edifício do correios e os 7 m dos halls de entrada dos edifícios. Seu
porte e sua localização na praça fronteiriça ao correio estabelece um jogo de
massas positiva e negativa, um campo de força entre o grande objeto vermelho e

Figura 87. Croquis de escala.


Centro Federal Chicago, hall do
edifício Everett M. Dirksen ,
Chicago, Illinois.
Fonte: desenho do autor.

o “vazio” que completa área da praça unida ao passeio da rua Dearborn, para a
qual se abre, pontuada apenas por jardineiras distribuídas ritmicamente em sua
extensão. Em oposição, quatro indivíduos arbóreos com não mais do que 8 m de
altura atuam como novos pontos focais e demarcam uma espécie de véu que
delimita este espaço, junto à rua Walker.
Referência obrigatória para quem visita Chicago, o lugar aqui é
plenamente qualificado pela morfologia urbana constituída pelos elementos –
edifícios, sistema viário, cheios e vazios – em permanente diálogo entre si e com a
escultura de Calder, evidenciando a potência dos elementos simbólicos e
conteúdo artístico representado pela arquitetura e pela escultura.
Mies retoma o tema central de Sitte, ao criar uma praça (ainda que
parcialmente) definida por edifícios, uma espaço conformado por massas
edificadas, ainda que inserida no grid viário ortogonal. Os edifícios abrigam
programas de serviços públicos essenciais, tais como a corte federal e os correios.
No melhor da tradição renascentista, barroca e neoclássica, a praça recebe a
posteriori do projeto, uma escultura em escala compatível com a escala dos
edifícios vizinhos, feita do mesmo material estrutural que eles – numa espécie de

153
citação ou reiteração construtiva poética – e os confirma pelo contraste da cor, o
preto das estruturas arquitetônicas, o vermelho da estrutura escultural.
Constitui-se aqui uma paisagem física e cultural da cidade, em que o
espaço atua metaforicamente pelo seu conteúdo ideológico: presentes, aqui, o
poder público a representar a sociedade civil, a relação de transparência entre o
público e o privado na arquitetura, e o conteúdo simbólico e artístico da escultura
ali residente.

Figura 88 – Marcha Pró Imigração, Federal Plaza, Chicago, Illinois. Pierre Tristam,
Daytona Beach News Journal, janeiro de 2008. Fonte:
http://www.pierretristam.com/images2/i08/0109-calder-flamingo.jpg

É espaço público na medida em que nele age o poder público para


prover as condições de seu funcionamento e que é apropriado publicamente no
sentido da realização de ações da esfera pública.

154
4.5.3.1. Parque do Milênio

Como já referido, o Parque do Milênio surge para comemorar a


passagem do milênio. Projetado em 1997 e inaugurado em 2004, a área, antes
ocupada por pátio ferroviário e estacionamentos, a área foi requalificada por um
programa que abriga as artes da pintura, da escultura, da música, além de
parques e restaurantes, num amplo conjunto de espaços públicos conectados. Os
quase 100.000 m2 do parque abrigam um extenso programa:
 Pavilhão Jay Pritzker
 Teatro Harris
 "Fonte da Coroa" (Crown Fountain)
 Passarela BP
 Jardim Lurie
 Escultura “Portão das Nuvens” (Cloud Gate)
 Pavilhões Exelon
 Praça e peristilo Wrigley
 Promenade Chase
 Tribuna Plaza McCormick e rinque de patinação no gelo
 As passarelas desenhadas por Renzo Piano e por Frank Gehry
(BP).
 Junto ao Pavilhão Jay Pritzker, de Frank Gehry (1999) e
conectados ao projeto de Renzo Piano para a nova ala de arte
moderna do Instituto de Artes de Chicago estão os espaços do
"Portão das Nuvens" (Cloud Gate), de Anish Kapoor; e da "Fonte
da Coroa" (Crown Fountain), de Jaume Plensa.

155
Figura 89. Parque do Milênio,
1997/2004, Chicago, Illinois.
Fonte:
http://upload.wikimedia.org/wikipedia
/commons/thumb/7/77/Millennium_P
ark_Map_labels.png/400px-
Millennium_Park_Map_labels.png

Figura 90. Parque do Milênio, 1997/2004, Chicago, Illinois.


Fonte: Google Earth

156
Figura 91. O percurso completo: as obras
em espaço abertos
Fonte: Google Earth.

Figuras 92, 93, 94. Portão das nuvens.


Fonte: foto do autor.

157
O artista, cujo trabalho se caracteriza pela reflexão das imagens em
superfícies ultrapolidas de aço inoxidável, é reconhecido pelo uso intenso da
modelagem geométrica em computação. Com volume equivalente a um pequeno
prédio de 3 andares, a escultura mede 19,8 m de comprimento, 9,9 m de altura e

Figura 95. Portão das nuvens.


Fonte: foto do autor.

12,6 m de largura, e está instalada na Praça AT&T com superfície de 2 800 m2. A
referência às dimensões da obra serve para situar a questão da escala do objeto
em relação ao entorno, suficiente para tornar-se uma das “centralidades”
obrigatórias do parque.
"Portão das nuvens" é parte de um grande conjunto de atrações,
fazendo do parque uma espécie de parque de diversões ou de entretenimento. A
ser isto verdade, talvez se explique a diversificação dos itens do programa e das
soluções formais.
Mesmo nesse meio disputado, a obra de Kapoor destaca-se por inverter
uma lógica estabelecida de leitura da paisagem. Ao invés de construirmos a

158
paisagem através de elementos novos introduzidos em contexto existente, o
Portão propõe um olhar para a cidade a partir de sua imagem total refletida num
espelho convexo continuo, modelado matematicamente em computador.
Refletem-se numa única superfície toda a abobada celeste, o skyline
marcante da cidade, as cenas de que todos participam ao nível de solo e o próprio
solo. A cidade e a obra passam a serem tema e suporte do tema,
simultaneamente.
A concavidade inferior, que convida a passagem sob a enorme
estrutura, também oferece visões espelhadas inusitadas, por se tratar de espelho
curvo.
Um pouco mais ao Sul está, também em ambiente próprio, a fonte do
catalão Jaume Plensa, a “Fonte da Coroa”. Polêmica desde sua inauguração, a
instalação atualiza o tema tradicional das fontes. Como as gárgulas, mecanismos
que funcionavam como os desaguadouros dos telhados para levar a água longe
das paredes da edificação, representações mitológicas do diabo a espreita a exigir

Figura 96 – Fonte da coroa (Crown fontain), Jaume Plensa, 2004.


Fonte: foto do autor.

159
a eterna vigilância das almas, os dois totens da “Fonte da Coroa” jorram água
enquanto mostram imagens das faces dos cidadãos de Chicago.
Para Plensa, “uma fonte não é decoração. É algo mais. “Fonte” está
falando de vida, porque a água é a origem de toda forma de vida. A fonte pode ser
também um arquivo, de pessoas morando na cidade, as pessoas reais, que estão
construindo a cidade.” (LABB, 2006)
As torres, que emulam as formas arquitetônicas gerais da paisagem,
são o suporte de imagens das faces dos cidadãos de Chicago. São, também, as
fontes das quais jorram as águas que criam uma pequena praça molhada, que é
um atrativo às parte.
Como o “Portão”, a obra de Plensa traz conteúdos simbólicos
importantes – a água como fonte da vida, os habitantes da cidade como a vida
mesma da cidade – atividades lúdicas e interativas. A arte ganha uma dimensão
publica pelo envolvimento afetivo que a
obra desperta.
É, ao mesmo tempo, uma
arquitetura de volumes, de cheios e
vazio, texturas e materiais cuja escala
dialoga, com os planos recessados das
elevações dos edifícios da Avenida
Michigan e os da Rua Randolph (limite
norte do parque), distantes cerca de 70
m e 400 m respectivamente.

Figura 97. Fonte da coroa (Crown fontain),


Jaume Plensa, 2004.
Fonte: foto do autor.

160
Figuras 98, 99. 100. Fonte da coroa (Crown fountain), Jaume Plensa, 2004.
Fonte: fotos do autor.

161
A população da “Ágora” de Magdalena Abakanowicz, que habita o
extremo sul do Parque Grant, é mais umas obras escultóricas que vieram com o
Parque do Milênio. Mas está a mais de 1.500 m do Loop, do lado oposto do
parque. Trata-se de um conjunto escultórico figurativo de 106 figuras em ferro
fundido com 3 m de altura ocupa o último gomo do parque junto à Avenida
Michigan, esquina com Rua Roosevelt; criado na Polônia, foi inaugurado em 2006.
A artista, filha de família aristocrática das cercanias de Varsóvia,
nasceu numa época marcada pelo genocídio da Segunda Grande Guerra e pelo
jugo soviético de 45 anos de duração. A percepção das “diversas formas de ódio
coletivo e adulação coletiva” nas “marchas e desfiles com líderes adorados,
grandes e bons, que logo acabaram por ser assassinos em massa” a levariam a
dizer: “Eu estava obcecada pela imagem da multidão (...). Eu suspeitava que, sob
o crânio humano, os instintos e emoções subjugam o intelecto sem que estejamos
consciente disso."

Figura 101, 102. Ágora. Magdalena Abakanowicz,


2004/2006. Situação e implantação.
Fonte: Google Earth.

162
Figuras 103, 104. Ágora, Magdalena Abakanowicz, 2004/2006.
Fonte: foto do autor.

A artista nos traz, sob a forma escultórica, a mesma questão levantada


por Hanna Arendt em As origens do totalitarismo e Elias Canetti em Massas e
poder, quanto aos fenômenos políticos totalitaristas de massa. As figuras, sem
cabeça e sem braços, parecem caminhar de modo errático, mais ou menos juntas
ou dispersas, a sugerir uma dinâmica de formação e dispersão e formação das
massas humanas. Fenômenos marcadamente urbanos. Hoje, as massas seguem
os comandos do consumo sem pensar nem agir, sem cabeças ou braços. Para
que o consumo seja de massa, é necessário desindividualizar.

163
Figura 105. Ágora, Magdalena Abakanowicz, 2004/2006.
Fonte: foto do autor.
As figuras da “Ágora”, portadoras de um significado atualíssimo,
também atuam simbolicamente no sentido do perene e do transitório da condição
humana. O ferro fundido pereniza o corpo humano e o desfragiliza perante o
tempo implacável cuja passagem está presente, entretanto, na lenta degradação
do ferro e nos rastros de material oxidado que o vento espalha.
Como o lugar da ideologização e da prefiguração, o parque ganha uma
obra que confirma o espaço aberto, público, como o lugar do discurso público e
coletivo, no sentido da mensagem que diz respeito a todos. Subjacente à
dimensão artística do fato urbano, há a dimensão política que o discurso encarna.

164
É importante observar que a instalação artística está localizada num
espaço antes ocupado apenas por gramado e junto ao passeio, por uma pequena
fonte junto à Avenida Michigan, a Fonte Rosemberg, instalada em 1893 e
restaurada em 2004. Sobre a cúpula da estrutura que protege o vertedouro, há
uma escultura do artista alemão Franz Machtl.

Figura 106. Fonte Rosemberg, 1893 e “Ágora”, Magdalena Abakanowicz, 2004/2006.


Fonte: foto do autor.

165
166
5. Considerações finais

“A arte é, ou deveria ser um elemento vital da cidade.”

É possível concluir que as premissas adotadas foram confirmadas pela


pesquisa. De fato, o olhar histórico revela a arte como componente original da
cidade, ainda que vivamos em cidades cuja prática urbanística relegou o
componente artístico, esvaziando-as de seus conteúdos simbólicos fundamentais.

É também possível afirmar que o objetivo geral estabelecido para a


pesquisa foi alcançado, com a identificação, análise e avaliação da importância da
dimensão artística do urbanismo tanto como premissa básica dos instrumentos de
planejamento, como dos programas dos projetos de requalificação urbana. A base
teórica e o estudo de caso permitem tal afirmação. Permitem concluir também que
não apenas é possível como é necessário que a arte volte a ter um lugar central
na vida urbana das cidades, como elemento de identidade cultural e de agregação
social.

As posições teóricas de Camillo Sitte e Giulio Carlo Argan esclarecem de


modo incontornável a existência de um componente artístico genético nas
cidades. A gênese da arte está na gênese da cidade.

As praças das cidades europeias estudadas por Sitte demonstram que


estes espaços, públicos na origem, sempre cumpriram funções sociais,
econômicas e simbólicas. A presença de obras de arte foi uma constante e seu
papel, fundamental na formação do espírito do homem, segundo o pensamento
urbanístico da época. Com bem situou Carl Schorske (2000), Sitte colocou uma
questão que se revelou permanente: como, diante das novas necessidades do
progresso, reter como lição uma lógica de qualificação dos espaços públicos que a
cidade já conheceu.

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Argan estabelece de modo claro a profunda relação entre arte e cidade,
cujas origens se fundem no tempo. Para ele, a arte é inseparável do contexto
cultural das demais atividades humanas, pelo simples fato de que não pode existir
fora do contexto que a gerou. Sendo a cidade um artefato, não pode prescindir da
manifestação artística em seus espaços representativos. Os espaços anômicos
abundantes nas aglomerações urbanas contemporâneas testemunham o fato.

O estudo de caso, por sua vez, revelou a permanência e a aderência da


ideia de uma dimensão artística do urbanismo, já presente no Plano de Chicago, e
antes no movimento “City Beautiful” e na Exposição Columbiana Mundial de 1893.

O plano enfrenta a questão da metrópole, caracterizada pela nova escala


proporcionada pelo grande crescimento da cidade e sustentada pelo transporte
rápido em rede a grandes distâncias. Ao mesmo tempo, estabelece critérios para
a qualidade de vida a ser proporcionada aos moradores de Chicago, considerando
necessário incrementar os transportes, implantar infraestrutura, dar habitação a
todos e, com mesmo peso, prover espaços públicos, livres, abertos, e dotados de
obras de arte, dada a importância da arte para a formação do cidadão, conforme o
cânone urbanístico do pensamento europeu da época.

A visita a Chicago foi marcada por duas importantes percepções correlatas:


a importância da arte pública na cidade, e dos espaços públicos para qualidade de
vida dos cidadãos; e as possibilidades de um plano diretor abrangente, inclusive
por representar um amplo pacto da sociedade.

Os espaços públicos de Chicago são marcos urbanos e lugares referenciais


da cidade, que tornam visível a dimensão artística no espaço público, manifesta
no desenho urbano, nas obras de arte, no paisagismo, e também no seu conteúdo
simbólico, que é coletivo.

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Este sentido de coletivo contrapõe a lógica de valores associado ao solo
urbano, disputado pelos agentes econômicos como mercadoria. Situação
particular das nossas cidades, em que o interesse privado prevalece sobre o
público, e a expansão urbana exige novos estoques de solo, fazendo com que os
lugares históricos tradicionais centrais sejam constrangidos a uma posição
secundária, com a consequente descaracterização e perda de valor.

Ocorre que o produto do espaço público não é o valor econômico potencial


que poderia gerar. Seu valor não é de troca, é de uso e é simbólico. O espaço
público deve promover a agregação humana e social, deve acolher as
manifestações políticas e cívicas, e permitir assim a identificação do cidadão com
aquele espaço. É o lugar do coletivo, e do espírito coletivo o que inclui a arte
pública, elemento urbano artisticamente concebido com função estética e a
vocação para provocar emoções, sentimentos, evocar a memória e a historia
deste lugar.

Podendo ser tratado já como um fenômeno de ordem cultural, a arte pública


em Chicago tem uma já longa tradição, que começou com a Exposição
Columbiana Mundial de 1893 e culminou nos anos 2000 com o Parque do Milênio.

Ao longo deste período, muitas intervenções resultaram em conjuntos


urbanísticos verdadeiramente paradigmáticos quanto à qualidade do espaço
alcançada. Estes lugares não apenas belos, são espaços ativos e referenciais no
cotidiano da vida em Chicago.

Devem ser mencionadas especialmente as políticas públicas federais de


desenvolvimento dos anos 30, especialmente aquelas de fomento à arte pública,
que resultaram numa política pública permanente, hoje com centenas de
programas em todo o território americano.

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Lembrando que os planos já foram considerados pela comunidade
preservacionista internacional como elementos importantes para a preservação
patrimonial, é possível perceber a importância do Plano de Chicago para a vida
pública, e para a atividade artística plástica em particular, numa cidade que a partir
de 1906 iniciou um processo de mudança de padrão para posicionar-se como uma
das melhores cidades do mundo.

Se a lógica de produção do espaço urbano determina a primazia dos sistemas


técnicos como elementos de suporte a vida urbana, fica claro que, ainda que isto seja
indiscutivelmente essencial, não parece ser suficiente para conferir à cidade espaços
qualitativamente referenciais.

Por muito tempo, o lugar da arte na cidade foi o espaço público. Se os patrícios
romanos ou os mercadores vênetos adornavam suas casas com estátuas e afrescos e
mosaicos, também entregavam à cidade obras de arte pública para serem fruídas por
todos. Artistas especialmente contratados representavam o melhor que o espirito
humano podia fazer com criatividade e engenho.

Isto significa dizer que toda a carga de informações, de símbolos, da moral e da


imagem, representadas nas esculturas de temas épicos míticos muito empregados
então, estavam ali disponível para serem assimiladas por todos. De fato, esta foi uma
característica do espaço público: ser lugar de mensagens e conteúdos formadores do
espirito do cidadão, sem esquecer-se de práticas sociais como o comércio, a
publicação, a justiça, as celebrações e as festas. Portanto, espaços de agregação
social sujeito à contaminação que Tólstoi referiu quanto ao poder de a arte nos
convocar pelo seu conteúdo simbólico, pelas obras de arte presentes nas praças. É por
isso que lhes atribuíam um valor de formação dos espíritos e de educação para os
novos.

Os parques e as praças de Chicago, com suas obras de arte constituem um


conjunto de espaços públicos importantes e significativos, que contribuem para

170
qualidade de vida que a cidade oferece. O Plano de Chicago, documento fruto de
amplo acordo social e legitimado, criou as condições para existência de uma cidade de
forma que os espaços foram apropriados pelo coletivo dos cidadãos, sendo
reconhecida e identificada plenamente por eles.

No campo urbanístico brasileiro, se quer revitalizar espaços centrais da cidade,


ou requalificar espaços que mudaram uso e função. Parece ser oportuno que se inclua
na pauta das discussões urbanísticas – como a revisão do Plano Diretor Estratégico de
São Paulo, hora em curso – a recuperação dos espaços públicos em suas funções
estética e artística.

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Figura 107. Vis-à-vis, 2011. Chicago.
Fonte: foto do autor.

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