Você está na página 1de 84

2

3
U
m ano (e muitos mais... pantes que “calcorreou” gentes
os que se seguem, entre os 17 e os 101 anos
certamente) para cuidar de idade; – da diversidade:
da nossa memória... os temas e o conhecimento
apresentados depois, a partir
É certo que, não raras vezes, de 19 verbos que ilustram,
replicamos que um povo sem tão afetivamente, as memórias
passado é um povo sem recolhidas.
futuro, assim como é passí-
vel aceitar que o Homem, à Pois, de facto, as múltiplas di-
hora da sua morte, não é o mensões do 140 Mil Memórias
sistema biológico que viveu, permitiram-nos, a partir das
mas essencialmente o lastro memórias recolhidas, construir
das memórias que deixa na atividades paralelas, como resi-
comunidade. dências, ações de mediação e
de capacitação, mas sobretudo
Conscientes da importância iniciar um percurso!
da memória, esse traço que
(de)marca inexoravelmente Voltando à memória, pois é
o Homem, assim como da tão necessária, foram reco-
capacidade unificadora que lhidas memórias implícitas e
a memória tem, partimos à explícitas, memórias do fazer e
procura das memórias de uma do ser, que doravante ativarão
comunidade alargada. Percor- novos circuitos de ligação,
remos as 31 freguesias do em múltiplos suportes, entre
concelho de Santa Maria da os quais se destacam esta
Feira, encontrando, entre os publicação e o documentário
digníssimos representantes dos associado ao processo de
140 000 que nos compõem, trabalho.
motivos para uma viagem tão
necessária para a consolida- Cumpre-me, orgulhosamente,
ção e compreensão de uma agradecer a toda a equipa
identidade. artística e técnica do projeto
e, sobretudo, às gentes Feiren-
Foi assim que o 140 Mil ses que, tão generosamente,
Memórias, projeto âncora do partilharam connosco as suas
Imaginarius, mobilizou uma memórias.
comunidade para uma viagem
cuja chegada só o futuro Que as Memórias estejam
alcançará. sempre connosco e com todos
aqueles que nos queiram
Do projeto, fazendo jus às encontrar. Estas são parte do
múltiplas dimensões que a Cul- que nos trouxe até aqui, das
tura tem e deve ter, destaco a gentes que somos e do futuro
participação cultural da comu- que queremos.
nidade, a intergeracionalidade
e a diversidade.

Da participação cultural da co-


munidade: – os 120 participan-
tes diretos e os mais de 700
espetadores que assistiram às Gil Ferreira,
atividades em torno do proje- Vereador do Pelouro da
to; – da intergeracionalidade: o Cultura, Turismo, Bibliotecas e
espetro de idades dos partici- Museus

4
O
ne year (and many between 17 and 101; regarding
more... will follow, I’m its diversity: the themes and
sure) taking care of knowledge presented later, from
our Memory... 19 verbs that so affectively
illustrate the memories that
It is true that, not rarely, we were collected.
say that a people without a
past is a people without a fu- For, indeed, the multiple
ture, just as one can state that dimensions of 140 Mil Memóri-
Man, at the time of his death, as have enabled us, from the
is not the biological system memories that were collected,
that has lived, but essentially to construct parallel activities,
the trace of the memories he such as residencies, mediation
left in the community. and training actions, and,
above all, to begin a path!
Aware of the importance of
memory, a trait that inexo- Returning to memory, as it
rably (de)marks Man, as well is so necessary, we collected
as of the unifying capacity implicit and explicit memories,
that memory has, we set out memories of doing and of
in search of the memories of being, that from now on will
an extended community. We activate new circuits of con-
travelled across the 31 parishes nection, in multiple supports,
of the municipality of Santa among this publication and the
Maria da Feira, finding among documentary concerning the
the worthy representatives of work process stand out.
the 140,000 that make up
our population reasons for a It is with pride that I thank
journey so necessary for the the project’s entire artistic and
consolidation and understand- technical team and, above all,
ing of an identity. the people of Feira who, so
generously, shared their memo-
This is how 140 Mil Memórias, ries with us.
an anchor project of Imaginarius,
mobilized a community for a May the Memories be always
journey, whose finish only the with us and with all those who
future will reach. want to meet us. They are part
of what has brought us here,
Of the project, doing justice to the people we are and the
the multiple dimensions that future we want.
culture has and should have,
I would like to highlight the
cultural participation of the
community, its intergeneration-
ality and diversity.

Regarding the cultural partici-


pation of the community: the
120 direct participants and
more than 700 spectators
who attended the activities
around the project; regarding
its intergenerationality: the age Gil Ferreira,
spectrum of the participants Councilman for Culture,
which bridged people aged Tourism, Libraries and Museums

5
D
ebaixo da chuva intensa a vivacidade única do seu por-
dos primeiros meses de tador e contador, protagonista
2018, a equipa do 140 ou conhecedor dessa história,
Mil Memórias foi-se reu- acresce de forma aguda e sen-
nindo para as primeiras acções, sível ao património colectivo da
essenciais para o desenrolar do memória de um concelho.
projecto, no antigo matadouro
de Santa Maria da Feira, agora Este foi o trabalho de reco-
Imaginarius Centro de Criação lha que serviu de base para
(ICC). À equipa composta por a elaboração artística, tanto
mim, enquanto encenadora expositiva como performativa,
e mediadora cultural para que foi apresentada em Maio
os conteúdos e relação com de 2018 no Festival Imagina-
a comunidade, e pelo artis- rius. Resultou num conjunto
ta plástico Patrick Hubman, avultado de vídeos, gravações
“convocado” para a construção áudio, fotografias, cader-
de uma instalação, juntou-se nos anotados, muito embora
ainda uma incansável equipa corresponda apenas a uma
de apoio com Ricardo Falcão, pequena amostra de toda a
produtor do projecto, João sabedoria e experiência que
Ferreira, no vídeo, João Aze- há por descobrir no concelho.
vedo, na fotografia, bem como Foi igualmente uma forma de
toda a equipa do ICC que no aproximação à comunidade
grafismo, na comunicação, na alargada de Santa Maria da
técnica e coordenação esteve Feira e espaço de encontro
presente ao longo dos quatro ao qual se dedicou tempo e
intensos meses de trabalho. disponibilidade.

Debaixo da mesma chuva fize- Seguiu-se a criação artística,


ram-se visitas por todo o nos seus aspectos conceptuais
concelho, pelas várias fregue- e de materialização e surgiram
sias, visitando instituições e cinco propostas que se con-
pessoas com histórias para cretizaram nos dias do festival
contar. Rapidamente se revelou no Mercado de Fernando
um processo muito profícuo Távora: uma Máquina de Me-
e potencialmente interminável, mórias; um Percurso Sensorial;
pois havia ligações que eram uma instalação vídeo intitulada
sugeridas pelos conteúdos e Perto; e duas performances:
pelas pessoas abordadas que, Roda de Memórias e 31 Ma-
por sua vez, sugeriam outras, neiras de Comer uma Fogaça,
numa teia de relações que se pelo que falarei brevemente de
ia revelando e desfiando. cada uma delas de forma a se
fechar, em termos de regis-
Foi um momento como que de to, esta primeira fase de um
prospecção de um bem precio- ciclo de três anos de muitos
so. O objectivo era conhecer e variados projectos relaciona-
memórias particulares e relacio- dos com a memória e com a
ná-las com uma história mais comunidade.
oficial guardada nos consagra-
dos templos de memória, ou A “Máquina de Memórias” foi
seja, a memória individual e a colocada mesmo no centro do
colectiva, ideia bem presente no mercado. É uma estrutura em
nome do projecto 140 Mil Me- altura, com um carril em dia-
A autora escreve com a mórias. É curioso verificar como gonal que a percorre, transpor-
antiga ortografia. uma memória individual, com tando carrinhos com objectos,

6
concebida e construída por poética da memória, numa relação próxima que aconteceu
Patrick Hubman, e é portado- instalação vídeo apresentada com os vários intervenientes,
ra de um vasto conjunto de numa das lojas do mercado e tornando a experiência não só
memórias. Lá dentro tem uma intitulada “Perto”. artística, mas também relacio-
tenda escura para a visuali- nal e humana.
zação dos vídeos. A ideia é a Durante dois meses dediquei-
activação da memória individual -me igualmente a um trabalho Uma outra dimensão funda-
contada em vídeo, através de de construção dramatúrgica e mental foi a relação com os
um objecto que tem um códi- de encenação tendo por base agentes artísticos e educativos
go. O lado escultural grandioso as várias memórias encontra- do concelho. Dois workshops
remete para o colectivo, cada das anteriormente. A fogaça levaram ao desenvolvimento de
objecto para o particular e o teve lugar em palco, manu- partes importantes do projecto.
seu funcionamento para meca- seada minuciosamente sobre Um workshop de construção
nismos digitais de guardar e de a mesa como no teatro de com Patrick Hubman envolveu
lembrar. O conceito e constru- objectos e transformando-se pessoas locais na construção
ção aliou-se, pois, aos conteú- para percorrer histórias das da instalação Máquina de
dos recolhidos no trabalho de várias freguesias no espectácu- Memórias. Um workshop sobre
campo, sendo uma colaboração lo “31 Maneiras de Comer uma mediação cultural, orientado
entre toda a equipa. Fogaça”. Intérpretes e co-cria- por mim, possibilitou a criação
dores foram três membros da de uma equipa de agentes que
O “Percurso Sensorial” foi comunidade com relação com contribuíram para delinear e
apresentado nas bancas do o teatro, José Pereira, Raquel dinamizar duas visitas guiadas
mercado, aproveitando a sua Brandão e Armanda Queiroz. durante o festival para escolas
arquitectura e função social Ricardo Falcão tomou as ré- e famílias: “Memória de Rato”
de mostrar e dispor. Tantas deas da música, fazendo uma e “M&M’s”.
memórias que não foram paisagem sonora com objectos.
filmadas foram aqui coloca- Como referi, foram quatro me-
das em relação, através de Também muito interessante ses intensos de trabalho num
um conjunto de verbos que foi o espectáculo “Roda de projecto âncora que convocou
têm dimensão colectiva, pois Memórias” que contou com a muitas pessoas, com participa-
derivam da experiência comum colaboração interpretativa e ção a diferentes níveis e com
e inspiraram esta “dramaturgia criativa de Fábio Pinto e do diferentes características (a
expositiva”. Uma leitura atenta grupo Cantadeiras de Antanho. quem agradeço, desde já, toda
aponta para as especificidades, Cada uma das senhoras levava a colaboração e disponibilida-
concordâncias ou divergências um objecto “testemunha daqui- de), corpo de trabalho esse que
entre as memórias individuais lo que conto” e partilhava com considero um óptimo ponto de
e cada conjunto de objectos o público, em roda, uma sua partida para todos os outros
era como uma cenografia memória. O grupo ia cantando projectos artísticos de relação
pronta a ser cena para essas (maravilhosamente) músicas com a comunidade a concre-
mesmas histórias. Promovia tradicionais intercaladas com tizar. No último dia do Festival
a interacção com o público, as histórias e que, claramen- Imaginarius, fomos brindados
através de dispositivos sonoros te, com elas se relacionavam, com um belíssimo dia de sol a
e propostas de relação com trazendo a dimensão colec- abrilhantar as iniciativas realiza-
os objectos e apelava ao tiva do coro e da experiên- das e a desejar bons auspícios
deambular pelo espaço. Um cia comum do canto como àquelas que se seguem.
projecto expositivo da minha vida. O modelo de encontro
responsabilidade e com a inspirou-se no ritual social da
contribuição dos objectos de desfolhada, começando com Vera Alvelos,
muitos feirenses. um toar e terminando numa Direção artística e mediação
ceia, bem no final de cada com a comunidade
A sensibilidade e filmagens do dia do festival. Uma dimensão
João Ferreira levaram a um performativa que me agradou
trabalho de edição de movi- imenso pela exploração das
mentos, texturas e presenças possibilidades dramatúrgicas
que apelam a uma evocação e cénicas do material e pela

7
U
nder the heavy rain onist or connoisseur of that
of the first months of story, adds in an acute and
2018, the team of 140 sensitive way to the collective
Mil Memórias gathered heritage that is the memory of
for its first actions, essential to a municipality.
the development of the project,
in the former slaughterhouse This was the collection work
of Santa Maria da Feira, now that served as the basis for
the Imaginarius Creation Centre the artistic elaboration, both
(ICC). The team, made up of expository and performative,
myself, as director and cultural that was presented in May of
mediator for content and 2018 at the Imaginarius Festi-
connection with the commu- val. It resulted in a large num-
nity, and visual artist Patrick ber of videos, audio recordings,
Hubman, who was “recruited” photographs and annotated
to build an installation, was notebooks, although it only
joined by a tireless support corresponds to a small sample
team, with Ricardo Falcão, as of all the wisdom and experi-
producer of the project, João ence that can be discovered
Ferreira - video, João Azevedo in the municipality. It was also
- photography, as well as the a way of getting closer to the
entire ICC team, which, through extended community of Santa
graphics, communication, tech- Maria da Feira and a meeting
nique and coordination, was place to which time and avail-
present throughout those four ability were dedicated.
intense months of work.
Then came the artistic cre-
Under the same rain, we toured ation, in its conceptual and
the municipality and its various materialization aspects, and
parishes, visiting institutions five proposals came up that
and people with stories to tell. took shape during the festival
It quickly turned out to be in Fernando Távora’s Market: a
a very fruitful and potentially “Memory Machine”; a “Senso-
interminable process, for there ry Path”; a video installation
were links that were suggested entitled “Perto”; and two per-
by the content and the people formances: Roda de Memórias
we approached, which in turn and 3”1 Maneiras de Comer
suggested others, in a web of uma Fogaça”, so I will speak
relationships that kept unfold- briefly of each one of them in
ing and shifting. order to close the record of
this first phase of a three year
That moment was like pros- cycle with many and varied
pecting for a precious com- projects related to memory and
modity. Our purpose was to the community.
get to know private memories
and relate them to a more of- The “Memory Machine” was
ficial story guarded in the con- placed right in the middle of
secrated temples of memory, the market. It is a vertical
that is, individual and collective structure with a diagonal track
memory, a very present idea that crosses it, carrying carts
in the name of the “140 Mil with objects, designed and
Memórias” project. It is curious built by Patrick Hubman, and
to see how an individual mem- carries a vast set of memories.
ory, with the unique vivacity of Inside there is a dark tent for
its bearer and teller, protag- viewing the videos. The idea

8
is to activate the individual construction and staging based opment of important parts
memory told in video through on the various memories found of the project. A construction
an object that has a code. The previously. Fogaça had its workshop with Patrick Hub-
grand sculptural feature refers place on stage, as it was me- man involved local people in
to the collective, each object ticulously handled on the table building the “Memory Machine”
to the particular, and its func- as in the theatre of objects installation. A workshop on
tioning to digital mechanisms and transformed itself to travel cultural mediation, led by me,
for saving and remembering. across stories from the various made it possible to create a
The concept and construction parishes in the show “31 Ma- team of agents who helped to
therefore joined the content we neiras de Comer Fogaça”. Its plan and promote two guided
collected in the field work and players and co-creators were tours during the festival for
was a collaboration between three members of the commu- schools and families: “Memória
the whole team. nity linked to the theatre: José de Rato” and “M&M’s”.
Pereira, Raquel Brandão and
The “Sensory Path” was Armanda Queiroz. Ricardo Fal- As I mentioned, these were four
presented in the market cão oversaw the music, making intense months of work in an
stalls, taking advantage of a sound landscape with objects. anchor project that summoned
its architecture and social many people, which partici-
function to show and lay out. Also very interesting was the pated at different levels and
So many memories that were show “Roda de Memórias”, with had different characteristics (to
not filmed have been put in the interpretative and creative whom I would like to thank
relation here, through a set of collaboration of Fabio Pinto their collaboration and avail-
words that have a collective and the group Cantadeiras de ability), a body of work that I
dimension, since they derive Antanho. Each of the ladies consider to be great point of
from the common experience carried an object that was the departure for all other future
and inspired this “expository “witness of what I tell” and artistic projects related to the
dramaturgy”. An attentive read- shared with the audience, in community. On the last day
ing points to the specificities, turn, a memory. The group of the Imaginarius Festival, we
concordances or divergences sang (wonderfully) traditional were greeted with a beautiful
between the individual memo- songs that were interspersed sunny day, which brightened
ries, and each set of objects with the stories and clearly re- the initiatives we carried out
was like a scenography ready lated to them, bringing the col- and bode well for those that
to become the scene for those lective dimension of the choir will follow.
same stories. It promoted the and the common experience
interaction with the audience, of singing as life. The meeting
through sound devices and model was inspired by the so- Vera Alvelos,
proposals of relation with the cial ritual of husking the maize, Artistic direction and mediation
objects and invited the audi- beginning with a toar and
ence to wander through the ending at a supper at the very
space. An expository project of end of each day of the festival.
my responsibility and with the A performative dimension that
contribution of the objects of pleased me immensely for the
many people from Feira. exploration of the dramaturgical
and scenic possibilities of the
The sensibility and filming of material and the close relation-
João Ferreira led to a work ship that happened with the
of editing movements, textures various participants, making the
and presences that call for a experience not only artistic, but
poetic recall of memory, in a also relational and human.
video installation presented at
one of the stores on the mar- Another fundamental dimen-
ket and entitled “Perto”. sion was the relationship with
the artistic and educational
For two months there was agents of the municipality. Two
also a work of dramaturgical workshops led to the devel-

9
2
COM CURADORIA DO IMAGINARIUS
CENTRO DE CRIAÇÃO, O “140 MIL
MEMÓRIAS” TEVE O SEU PRIMEIRO
CICLO DE APRESENTAÇÕES NO
FESTIVAL IMAGINARIUS 2018. ESTE
PROJETO ARTÍSTICO TRABALHOU A
MEMÓRIA COLETIVA ATRAVÉS DE
HISTÓRIAS RECOLHIDAS POR TODO
O CONCELHO DE SANTA MARIA DA
FEIRA. HISTÓRIAS QUE SURGIRAM DO
ENCONTRO DE PESSOAS QUE QUEREM
PRESERVAR AS MEMÓRIAS E OS
SABERES E PESSOAS QUE SÃO ELAS
PRÓPRIAS MEMÓRIAS VIVAS.
HISTÓRIAS PARA INSPIRAR
NOVOS PROJETOS.

CURATED BY THE IMAGINARIUS CREATIVE


CENTRE, “140 MIL MEMÓRIAS” HAD ITS FIRST
CYCLE OF PRESENTATIONS AT THE 2018
IMAGINARIUS FESTIVAL. THIS ARTISTIC PROJECT
WORKED ON OUR COLLECTIVE MEMORY
THROUGH STORIES COLLECTED THROUGHOUT
THE ENTIRE MUNICIPALITY OF SANTA MARIA
DA FEIRA. STORIES THAT EMERGED FROM THE
MEETING OF PEOPLE WHO WANT TO PRESERVE
THE MEMORIES AND THE KNOWLEDGE AND
PEOPLE WHO ARE THEMSELVES LIVING MEMORIES.
STORIES TO INSPIRE NEW PROJECTS.

3
4
CAMINHAR
“A VIDA É UMA VIDA A PERCORRER”
DONA MIMOSA DE PAÇOS DE BRANDÃO

NO TEMPO EM QUE NÃO HAVIA RUAS MAS


SIM LUGARES, EM QUE IR À FEIRA ERA IR À “COVA”
E EM QUE AS CAMARINHAS FAZIAM AS DELÍCIAS
DE MUITOS, TAMBÉM NÃO HAVIA ESTRADAS MAS
SIM CAMINHOS. NESTE PERCURSO ESTÃO HISTÓRIAS
E LEMBRANÇAS DE GENTES QUE ANDAVAM MUITO,
DURANTE O DIA OU DURANTE A NOITE, ILUMINADAS
POR UM LAMPIÃO. CHEGADOS A CASA O RITUAL
ERA LAVAR OS PÉS PARA TIRAR O PÓ DO CAMINHO.

PERCORRA TAMBÉM ESTE CAMINHO FEITO DE


VERBOS - VIVÊNCIAS DA GENTE DE SANTA MARIA
DA FEIRA, MEMÓRIAS ANTIGAS E RECENTES,
PEDAÇOS DE CADA UM.

5
A D. Fernanda, nascida em para alguns juntava-se-lhe
São João de Ver, era a mais uma superstição: não se podia
velha dos 8 irmãos e por isso atirar essa água de lavar os
ajudava muito em casa e ai pés porta fora à noite, para
dela se não ajudasse. A mãe não chamar as más almas ou
andava nos campos, era jor- o mau-olhado.
naleira, e quando chegava ao
final do dia, a filha tinha de ter Também de São João de Ver
já preparada a bacia para lavar era a avó do Fábio que to-
os pés: um banquinho, a toalha das as sextas-feiras ia buscar
e o sabão e a bacia com água roupa a Espinho. No fim-de-
temperada, entre a água quen- -semana lavava e engomava e
te aquecida ao fogão e a fria à segunda-feira tornava a ir,
que lhe juntava. Ouvia a mãe a levando a roupa engomada à
vir ao longe e apressava-se a cabeça, aproveitando depois
arranjar tudo, senão atrasava o para ir à feira de Espinho e
jantar e lá vinha o ralhete. voltava. Tudo isto a pé. Nos
restantes dias levava o almoço
Lavar os pés era, em geral, ao marido a Paços de Bran-
um ritual de final de dia, e dão. O neto perguntava-lhe

6
porque não usava o Vouguinha co, durante muitos anos até
afinal?! A resposta era: “Ó finalmente haver a camioneta
filho, eu ia lá deixar o dinheiro do Feirense.
no combóio!” Andavam muito
as mulheres antigamente. As recoveiras eram senhoras
que iam da Feira fazer reca-
A Dona Josefina das Caldas dos ao Porto, entregar papéis
de São Jorge nunca perdeu o ou comprar algo muito especí-
hábito de andar a pé, andou fico numa loja, uma fitinha, um
sempre que pode, até agora. ingrediente, quem sabe… iam e
E andar para esta senhora era vinham a pé para fazer reca-
mesmo andar descalça. “Tínha- dos, as recoveiras - profissão
mos os pés tão calejados que de outros tempos!
a gente caminhava por cima
de tudo”. De vez em quando Nas romarias também se
fazia feridas nos pés e era caminhava, da serra ao mar
ela própria que as cosia com e do mar à serra. “Quantas
agulha e linha. Senhoras da Saúde é que há?”
Interroga-se a Dona Augusta
A Dr.ª Manuela Coelho explica Espassandim que é uma apai-
que caminhar descalço era xonada pelas Terras de Santa
para poupar os sapatos. Havia Maria. Movimentações sem
quem só tivesse um par de fim com paragem obrigatória
sapatos ou de tamancos e no Rossio, um sítio agradável,
para as procissões traziam-se com sombra, à beira do Cáster
os sapatos debaixo do braço onde se merendava e cantava
para os poupar ao caminho. ao despique entre grupos.
Histórias de gente que ia a pé
para o trabalho também não A vida é mesmo um longo ca-
faltam, como a Dona Justina minho, talvez por isso a Dona
que ia todos os dias a pé de Mimosa diga o que diga: “A
sua casa em Travanca até vida é uma vida a percorrer.”
à fábrica de papel no Cava-

TO WALK
In the old days, people used to walk a lot. They would go to the fields or to
the factory where they worked, they would walk in religious processions,
some of them would walk to go run errands in Porto, and sometimes they
would do it barefoot to spare the only pair of shoes they had. At night, the
ritual would be to wash their feet before dinner.

Here there is path of actions – for you to walk by – and discover memo-
ries of Santa Maria da Feira, recognizing a collective experience through
individual testimonies. Memories of older and younger people throughout
the territory, bits of existence.

7
8
PENEIRAR
“PENEIRAR É A PRIMEIRA DE UMA
SUCESSÃO DE AÇÕES NECESSÁRIAS
PARA FAZER PÃO. ”

PELO MENOS É O QUE DIZ A DONA MINERVINA,


FAZEDORA DE REGUEIFAS DE ARRIFANA, QUE
SE LEVANTAVA ÀS DUAS E MEIA DA MANHÃ
PARA, ANTES DE TUDO, PENEIRAR A FARINHA
PARA TIRAR A LAGARTA.

9
Depois de peneirar vem o Há quem não consiga esperar
“desenfarinhar”, ou seja, juntar por tudo isto. O Tiago, de
água a ferver à farinha, com a Escapães, lembra-se da Ti Ti-
ajuda de um coco para deitar quinhas, sua vizinha, que fazia
água e de uma colher de pau, fogaças quando ele era miúdo,
para mexer sem queimar as o que não foi assim há tanto
mãos. Depois de desenfari- tempo: “O melhor de tudo era
nhada a massa junta-se-lhe o ir lá a casa roubar um bocadi-
crescente, já levedado e ben- nho de massa crua!”
zido, e depois vem o amassar,
amassar tudo muito bem numa A Diana Lima recorda reuniões
masseira até que fique “enxu- de família em casa da tia mais
ta”. Deixar levedar e finalmente velha, no Cavaco. Aí, os pri-
cozer, de preferência em forno mos todos juntos faziam umas
de lenha. E há quem, antes de boas trinta regueifas, numa
tudo isto, ainda moa. A suces- noite interminável, uma tarefa
são de verbos é, portanto, a que tinha tanto de brincadei-
seguinte: ra como de pressão para a
perfeição pois mais tarde a
Moer, peneirar, desenfarinhar, família estaria toda à espera
amassar, levedar, cozer e do resultado.
finalmente comer. Lá pelo
meio, o fazer e o benzer do Quase todos têm relação com
crescente, que é o fermento à o pão doce da terra, mesmo
antiga, feito com ovos e fari- os que não tinham anterior-
nha. O processo de fazer pão mente tradição de fazer em
é especial e moroso, tem algo casa, agora, nem que seja
de amor, de amoroso, e talvez pela Páscoa, compram uma
por isso tenha sido objecto da bela regueifa ou mesmo foga-
promessa a São Sebastião. ça para ter à mesa, conta o
João Silva, da Feira.

10
A fogaça pela sua forma pare- Sr. Joaquim Pinto que tem um
ce o castelo da Feira, e pare- enorme gosto em apresentar
ce que antes de existirem as a sua regueifa, ambos com
torres do castelo também não produção em Santa Maria da
existiam maminhas na fogaça. Feira. A Dona Judite, em Lo-
Seria um pão doce achatado bão, trata a farinha por tu e
mais parecido com a regueifa, conta anedotas tão bem como
pedaço de história contado faz broa ou regueifa.
pela Drª Ana José.
A farinha era também usada
Quando se pergunta, cada pelas saqueiras, para fazer
um responde com uma forma goma que depois servia para
diferente, a forma ideal para colar os sacos ou os cartuchos.
comer as fogaças. Uns optam Água a ferver e farinha, muito
por descascar a lasca lateral, mexida para ficar macia era a
outros preferem começar pelas receita desta cola artesanal.
maminhas, outros ainda por
comer em torrada com doce Época houve em que o “trigo
ou manteiga e há quem prefira não era para todos os dias” e
comer as fogaças com “pito”, o pão se guardava na gaveta
ou seja, as que estão “mais de uma mesa ou numa pra-
mal cozidas”. teleira alta. Que o diga a D.
Albina, de Arrifana, que quan-
Há outros, os ferranhos da do era miúda se fazia doente
regueifa, que fazem disto uma para que lhe dessem pão.
competição. Certo é que a Quando não resultava lá subia
farinha ainda hoje faz parte a escada às escondidas para
da vida de muita gente, como o depenicar, depois dizia que
da do Sr. Diogo que mantém tinham sido os ratos. Era o
a tradição de fazer a fogaça tal tempo “em que não havia
no forno de lenha, e como do fartura de nada”.

TO SIEVE
To sieve is the first action of many to make the traditional sweet bread
that is so famous in Santa Maria da Feira, quite needed in the old days
to pick the caterpillar out, as D. Minervina says. Then comes a long loving
process that includes kneading the dough, adding the handmade yeast
and let it set until it rises. Finally cook it in a firewood oven. Delicious “reg-
ueifas” and “fogaças” are done this way. You should try them out and don’t
forget to eat it in small bits so it tastes better, a recommendation of Amelia,
in Café Castelo.

11
12
ACORRER
O REI D. CARLOS ENCOMENDOU A
LINHA DO VOUGUINHA

MAS FOI D. MANUEL II QUE A INAUGUROU A


26 DE NOVEMBRO DE 1908. SAIU NO APEADEIRO
DO CAVACO PARA IR À ENTÃO VILA DA FEIRA E AO
CASTELO QUE NESSA ALTURA ESTAVA EM RUÍNAS
E VIRIA ENTÃO A CONSTITUIR-SE A COMISSÃO
DE VIGILÂNCIA DO CASTELO PARA O REABILITAR.
A ESTAÇÃO DA PIEDADE ESTAVA PRONTA MAS A
ESTRADA POR AÍ ABAIXO ERA APENAS UM CAMINHO
DE BOIS E A COMITIVA NÃO PASSAVA. NESSE DIA
UMA QUANTIDADE IMENSA DE GENTE ENCHEU AS
RUAS DE UMA EXCITAÇÃO MIUDINHA, ERA O POVO
QUE ACORRIA PARA VIR VER AS
DUAS NOVIDADES: O REI E O VOUGUINHA.

13
“A gente acorria” soa a frase E ainda hoje se acorre a muita
antiga, “daqueles” tempos. A coisa. A gente acorre ao Imagi-
verdade é que a gente acorria narius, acorre à Viagem Medie-
a muita coisa: A gente acorreu val, acorre à Volta de Bicicleta
ao lançamento da primeira das Terras de Santa Maria e
pedra do Convento dos Lóios aos jogos de futebol no Fei-
em 1560 e acorreu à inaugu- rense. Acorrer é uma acção
ração do Vouguinha em 1908, que junta pessoas. Acorrer é
dois acontecimentos marcantes intemporal.
na Feira.
Oiça a Dona Preciosa, da
Às procissões, a gente acorria. freguesia de Souto, a explicar
Aos cortejos, a gente acorria. como a gente acorre à Fes-
À desfolhada, a gente acorria. ta das Fogaceiras: “É povo à
Às romarias, a gente acorria. pinha para ver a procissão das
Também os Malapeiros, os de raparigas com as fogaças à
São João de Ver, acorriam a cabeça, os estandartes das fre-
lançar malápios ao Vouguinha guesias e para ir à Igreja ouvir
quando ele passava! a fanfarra dos Bombeiros.”

14
TO FLOCK
There are key events to which everyone just goes to, in a mass movement
directing itself toward something. Such is the case of the inauguration
of the train Vouguinha, in 1908, by king D. Manuel II. The two novelties
attracted a mass of people, people that flocked downtown to see the king
and the new train.

Religious events generate the same movement such as “Procissão das


Fogaceiras” that takes place each year on January 20th.

15
16
PEDALAR
PEDALAR É ALGO IMPORTANTE NO
CONCELHO DE SANTA MARIA DA FEIRA

JÁ O ERA ANTIGAMENTE QUANDO MUITOS


PEDALAVAM PARA O TRABALHO NO SEU
VELOCÍPEDE, COMO O SR. RAUL SOARES FERREIRA,
DE FORNOS, QUE TINHA A BICICLETA REGISTADA
COM O NÚMERO 2085.

17
Mas a relação com a bicicleta Neste ano em que celebra caminho por ciclistas do FC
e o pedal vai muito além… o 100 anos, o Feirense junta-se Porto. Sousa Santos deu ao
ciclismo é um desporto vivo no ao Sport Ciclismo de São pedal de tal maneira que os
concelho, culminando na Volta João de Ver e nasce final- suplantou. Assim foi convidado
às Terras de Santa Maria. Três mente uma equipa de ciclismo a fazer parte do plantel e pas-
etapas constituem esta volta profissional, sob os comandos sou a profissional. Teve dois
e a última, o circuito do Cas- de Joaquim Andrade. filhos também ciclistas, José e
telo, é icónica pela prova de Joaquim Sousa Santos (filho)
esforço que é a subida e pelo Joaquim Andrade, antes de ser tendo este último vencido uma
cenário belíssimo. treinador já foi ciclista e antes Volta a Portugal.
dele já o tinha sido o seu pai.
Há também uma freguesia que No ciclismo acontece muito Por estas e por outras é que
é uma espécie de “viveiro” do isto, famílias de ciclistas, pais São João de Ver está no
ciclismo nacional pois apos- que passam o bicho aos filhos mapa do ciclismo nacional. Vá
ta na formação e no treino e assim sucessivamente por à rotunda e veja a homena-
de muitos atletas. Tudo isto várias gerações, como no caso gem ao ciclista, uma escultura
acontece no Sport Ciclismo dos Sousa Cardoso, dos Sá, que não deixa enganar quem
de São João de Ver, onde há dos Martins, dos Cardoso, dos passa mais distraído.
gente como o Sr. Carlos Car- Andrade, dos Santos... O pai
doso e o Sr. Fernando Vasco de Joaquim Andrade ganhou a Esta paixão não toca só ciclis-
que vêem a importância deste Volta a Portugal precisamente tas. Há todo um mundo em
desporto na formação de uma no dia em que o filho nasceu. estúdio, com comentadores
pessoa, uma formação física Dupla alegria e o destino tra- e gente a fazer relatos das
mas também de qualidades çado sobre duas rodas. corridas. Tal é o caso de
humanas que se promovem no Roberto Carlos, de Santa Maria
treino e na competição. Sendo Mítica é a personagem de da Feira, que diz que antiga-
um desporto singular mas feito Joaquim Sousa Santos (pai), mente até do cimo de postes
em equipa, os valores de en- um trabalhador do calçado se faziam relatos para se ver
treajuda são essenciais como que ia de São João de Ver melhor. O público interessado
táctica e como base. até à fábrica de bicicleta e ficava e ainda hoje fica com o
que um dia foi interpelado no ouvido colado à telefonia.

18
TO PEDAL
Santa Maria da Feira has a tradition of cycling. Many people used to ride
their bikes to work, and you can see an old license plate with the number
2085. But there is a special relationship with cycling through the parish
of São João de Ver that has been training young cyclists for many years
now and has a number of families with a cycling tradition and even has a
roundabout in tribute to the figure of the cyclist. In 2018, Feirense, the soc-
cer club, celebrates its 100th year and joins Sport Ciclismo de São João
de Ver, by forming a new professional cycling team.

19
20
ACARTAR
“ATRÁS DE UMA SERRA VEM OUTRA,
ANDA JUMENTA!”
ERA O QUE DIZIA A VELHINHA À D. MINERVINA, DE ARRIFANA

QUANDO ESTA ERA PEQUENA E ANDAVA NOS


CAMPOS, “AO MEIO-DIA”. NESSE TEMPO, ANDAR
NOS CAMPOS SIGNIFICAVA TAMBÉM CARREGAR,
ACARTAR. A ERVA CORTAVA-SE E TRAZIA-SE PARA
OS ANIMAIS, ERA PESADA. TAMBÉM SE ACARTAVA
MUITAS OUTRAS COISAS.

“AI AS MINHAS CEBOLINHAS,


AI AS MINHAS CEBOLINHAS!”

21
A verdade é que quase todos As leiteiras, depois de fazer como eu!” A carqueja também
os trabalhos significavam ter a ordenha, levavam o lei- se levava, em grandes molhos
de acartar alguma coisa. te em canados, à cabeça e à cabeça. Depois era vendida
nas mãos, andando ainda de nas cidades para os fornos
Para as jornaleiras a trabalhar madrugada até à Suil ou à do pão.
nos campos eram as gigas Máfida ou a outro posto de
com isto e aquilo: erva, cebo- leite. De volta traziam o soro O pior mesmo é levantar o
las, batatas, estrume, etc. Para para dar aos animais. Quanto carrego. Gil Raro, de Fiães,
as fogaceiras eram os carre- mais comiam, mais leite davam conta uma história engraçada
gos com as fogaças que iam as vacas, e era certo que na da serração do seu avô no
vender às feiras ou à estação Primavera, por haver mais erva, Lugar do Regadio. As mulheres
do Vouguinha. Os que traba- as leiteiras chegavam a carre- iam lá com lençóis apanhar
lhavam na pedreira levavam gi- gar três canados cheios. serrim para os fogões e o
gas com gravilha, como conta seu avô ia desapertar-lhes as
a D. Elisabete das Caldas de Os madeireiros, homens e fitas dos aventais. Elas ficavam
São Jorge. mulheres como o Sr. António e muito zangadas pois tinham
a Dona Clarinda da freguesia de pôr a carga no chão para
Já nas fábricas de papel, as do Vale carregavam troncos apertarem o avental e, claro,
botadeiras carregavam as pos- de madeira, “uma vida muito tornar a levantar o carrego
tas ou resmas. O pior era o dura” dizem. A Dona Clarinda para a cabeça.
papel “verde”, ainda molhado, diz que eram precisas quatro
que levantavam para botar a mulheres para levar um tron- Para levar um carrego à cabe-
secar, pois pesava muito mais. co mas as de dentro faziam ça era preciso uma protecção,
“Meninas! Para cima papel, batota e não carregavam nada. uma rodilha feita com um
para baixo madeira. Não ides O Sr. António fica muito triste pedaço de pano. É preciso gi-
no vento!” Esta ordem ouviu-a quando recorda esse tempo e rá-lo para que fique um rolo e
a D. Lucília muitas vezes e a Dona Clarinda explica: “Foi depois é preciso enrolá-lo para
tem-na na ponta da língua. um escravo lá na madeira, que fique uma rodilha.

22
TO CARRY
Many professions of the old days, whether be in the fields or in the facto-
ries, meant having to carry something. With a cloth pad they would protect
their heads and be able to carry a wicker basket with onions, grass or
manure, a canister of milk, or a big loaf of paper.

23
24
BENZER
A BENZEDURA DO CRESCENTE
É PRÁTICA ANTIGA.
A D. MINERVINA APRENDEU COM A SUA FALECIDA MÃE

“DEUS TE LEVEDE, DEUS TE ACRESCENTE,


DEUS TE FAÇA BOM PÃO, EM NOME DO PAI,
DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO.”

25
Já a D. Ana Maria, de Golfar, Pedro Paulo, volta atrás e “São Jerónimo! Santa Bárbara!
tem uma ligeiramente diferente: atandarás,
“São Mamede te levede, São Com sumo de oliva, água da Santa Bárbara se levantou, se
Vicente te acrescente, São fonte e urze do monte. vestiu e se calçou,
João te faça bom pão, e Deus
Nosso Senhor bote sua bên- Um Pai Nosso e uma Avé Ma- Seu cajadinho pegou e Nosso
ção. Em nome do Pai, do Filho ria, durante nove dias e está a Senhor encontrou, que lhe
e do Espírito Santo.” erisipela curada.” perguntou:

A D. Maria do Carmo, peixeira Mezinhas há muitas e a D. Santa Bárbara, onde vais? Vou
no mercado, benze-se a toda Minervina recomenda raminhos abrandar os trovões.
a hora com uma quadra es- de sabugueiro entre o lenço e
pecífica para cada situação o chapéu, para este problema Vai Bárbara, vai. Leva-os ao
do dia. Entre bênçãos, rezas e de erisipela, como fazia a sua Monte Maninho,
mezinhas, cada um vai avivan- mãe. A D. Emília, também de Onde não haja boi nem vaca,
do as suas crenças. A Dona Arrifana, confirma as benesses nem pão nem vinho, nem bafi-
Mimi, senhora de muita idade do sabugueiro: “Para lavar os nho de menino.
de Santa Maria da Feira, tem olhos, flor de sabugueiro. Flor
uma reza antiga para curar a de laranjeira e vinho quente Milagrosa Santa Bárbara, nos
erisipela: para os engripados.” dê a vida que viveu, e nos
livre da morte que morreu,
“Pedro Paulo foi a Roma, D. Ana Maria sabe uma reza a
Jesus Cristo encontrou. Santa Bárbara para noites de Pai Nosso e Avé Maria.”
trovões:
Que vai por lá, Pedro Paulo?
Muita zirpla, muito zirplão. (começam os trovões e o povo
chama)

26
TO BLESS
To bless the yeast is an old tradition of the sweet bread bakers. It was a re-
ligious tradition, because the outcome of the bread was important for their
survival, so asking for blessings was a common practice, but also because
it helped the bread rise better, by making a cross in it.

There were many other prayers mixing everyday life and the religious
feeling in Santa Maria da Feira. Here you may hear D. Ana Maria saying
the blessing of the yeast and also the prayer to Santa Bárbara, to take the
storms and thunders away.

27
28
BEBER
FOI UMA GARRAFA COMO ESTA QUE O
TONO BEBEU DE UM SÓ TRAGO UMA
MANHÃ ANTES DE ENTRAR NA OLIVA.
QUEM CONTA A HISTÓRIA É O SR. QUIM ABÍLIO

QUE NA SUA JUVENTUDE TRABALHOU NA PORTARIA


DESTA FÁBRICA E CONHECIA CADA UM DOS 2500
TRABALHADORES, GENTE QUE VINHA DE MILHEIRÓS,
DE ESPARGO, DE ARADA, DA FEIRA. O TONO
TRABALHAVA NA FUNDIÇÃO E, COMO O IMPEDIRAM
DE ENTRAR COM A GARRAFA, ELE BEBEU-A LOGO ALI.

29
O vinho faz parte da vida das onde se pode experimentar para si mas vão bebendo, e
pessoas e das celebrações da esta bebida há 40 anos. Diz-se bem, do copo dos maridos.
terra. Gravado nas mãos do que o nome vem dos trolhas Dizia-se também que beber do
São Cristóvão ficou o vinho que andavam a colocar para- copo do outro era uma forma
americano onde se molhava lelos nas ruas e quando iam de descobrir os seus segre-
a regueifa doce e se dava buscar a bebida diziam “Vem dos… saber os segredos dos
aos meninos com fastio, na aí mais um paralelo!” maridos: no vinho, a verdade.
altura da procissão do Corpo
de Deus, em frente à Câmara Há quem não saiba mas As papeleiras que trabalhavam
Municipal. em várias ocasiões se taxou nos engenhos do papel tam-
o quartilho de vinho bebi- bém tinham gosto pelo vinho,
O vinho americano era servido do pelos feirenses. Quer na bebia-se o “vinho das saquei-
no final das desfolhadas quan- construção do Convento dos ras”, mais leve, feito de tinto
do se ceava, nem que fosse Lóios, a dada altura em que com laranjada.
com broa e azeitonas. O vinho os Condes de Pereira pediram
doce servia-se em dias de ajuda ao rei e ele implementou
festa ou nas desfolhadas das este imposto, quer mais tarde
casas mais ricas. no desvio do rio Uima para
se chegar à nascente da água
Mítica ficou a “segunda-feira sulfurosa das Termas de São
dos sapateiros”. Sendo o seu Jorge e se construírem os pri-
dia de folga, os sapateiros de meiros balneários. Um imposto
todo o concelho iam à Feira sobre o vinho para ajudar a
ou a Espinho beber; era dia de pagar as obras. É caso para
alegria, portanto. dizer que quanto mais se
bebia, mais se construía.
Em Lamas, as recordações são
do paralelo, bebida feita com Gil Raro, sabe umas mãos
vinho branco, gasosa e açúcar, cheias de dizeres antigos e um
apreciado em muitas tascas, deles é que “as mulheres não
como a da D. Virgulina. No gostam de vinho mas escor-
jardim de Lamas encontra-se richam”. Quer isto dizer que
precisamente o café Paralelo não servem um copo

TO DRINK
The “american red wine” being poured onto the hands of São Cristóvão
in the Feast of Corpus Christi, so the poor children would soak the sweet
bread in it and eat it to get stronger is a good example of how iconic a
drink can get. This aspect of the ritual is still marked in the hands of the
huge statue that you may find in the Misericórdia Church.

Other examples include a milder drink that the women working in the
paper industry would make, with orangeade and red wine; the “paralelo”,
a drink with white wine, soda and sugar connected to the bricklayers;
and in the “desfolhadas”, after trimming the corncob, a late supper of
bread, olives and wine would be served to everyone that came to help.
A tax on wine helped to build the Loios Convent and the first thermal
spa in Caldas de São Jorge.

30
31
32
APRENDER
“AQUILO QUE VIA COM OS OLHOS
FAZIA COM AS MÃOS”
DONA ALZIRA, DE GUISANDE.

QUANDO SE FALA DE MEMÓRIAS MUITOS


RECORDAM O TEMPO DA ESCOLA, DAS TÁBUAS
DE LOUSA E DAS REGUADAS APLICADAS NAS
MÃOS DOS ALUNOS. MUITOS AFIRMAM QUE
GOSTARIAM DE TER ESTUDADO MAIS. É O CASO
DE D. MIMOSA, DE PAÇOS DE BRANDÃO, QUE
RECORDA O DIA EM QUE FOI À ESCOLA E
APRENDEU O “A, E, I, O, U”. NESSA MESMA NOITE
A MÃE DISSE-LHE QUE TINHA SIDO CHAMADA A
TRABALHAR NO CAMPO E SERIA A FILHA A FICAR
EM CASA A PREPARAR AS REFEIÇÕES PARA A
FAMÍLIA. A SUA “ESCOLA” FOI À VOLTA DE UMA
PANELA DE TRÊS PÉS COMO ESTA ONDE
PREPARAVA OS CALDOS DE COUVE E FEIJÃO.

33
A relação com o aprender já é outra coisa, quem acabou por
antiga na Feira. No tempo em receber uns belos bolos da
que havia o imposto sobre o professora foi ele. “Nunca mais
quartilho de vinho para ajudar emendei os erros de ninguém”,
à construção do convento, os conclui o Sr. Celestino.
feirenses pediram uma contra-
partida aos frades Lóios: nada Uma memória muito antiga
mais, nada menos do que a tem o Sr. Américo, de Pigeiros.
criação de uma escola para Estava ele na escola quando
aprenderem latim. se começou a ouvir um ba-
rulho de motor pelos céus. A
O Sr. Joaquim Pinto, de For- professora deixou que todos
nos, lembra as tábuas de saíssem das carteiras e fossem
lousa, os livros diferentes, lá fora ver e puderam avistar
o ponteiro, os tinteiros e as o primeiro avião, o primeiro
penas e lembra também como “aeroplano” a sobrevoar Pi-
ia para a escola se estava a geiros! Vinha do Porto e fazia
chover: torcia as pontas de um parte do golpe militar que deu
saco de linho ou de serapilhei- origem à ditadura, era 28 de
ra, fazia um bico e estava um Maio de 1926.
chapéu-de-chuva feito.
O Sr. Américo tem agora 101
A propósito da escola de anos e é de facto incrível
outros tempos, o Sr. Celestino lembrar-se logo do tempo da
Costa, de Espargo, recorda escola. Tendo passado a 4ª
que um dia a professora cha- classe com distinção, ele que-
mou um colega ao quadro ria continuar mas os irmãos
para resolver um problema de protestaram “tu queres é ser
matemática: “O problema está fidalgo!”.
mal, quem souber a solução
levante o dedo”. E o pequeno O pai do Sr. José Augusto, de
Celestino levantou o dedo e Souto, morreu quando ele tinha
foi ao quadro corrigir. “Está apenas sete anos e as pessoas
correcto. Agora vais ao teu começaram a dizer à mãe:
colega e dá-lhe dois bolos”. “Ó Rosa, põe o teu filho a
Como os “bolos” dados ao co- trabalhar” pelo que depois da
lega foram mais festas do que 3ª classe saiu da escola. Era

34
comum que nas férias da 3ª Hoje em dia as coisas são
classe as crianças começassem diferentes, há mais escolas,
a trabalhar. A quarta classe do muito mais possibilidades de
Sr. José Augusto foi feita muito estudar e há também gen-
mais tarde, no Ultramar. te muito atenta para ajudar
aqueles que por motivos vários
A D. Alzira, de Guisande, “teve não se adaptam à escola. Os
muitas artes”, que foi apren- jovens têm mais mobilidade e
dendo por si ao longo da vida. preparam o futuro, “vão apren-
Uma delas foi ser costureira; der a sua arte”. Por exemplo,
a mãe não a deixava aprender a Sofia Pais está a estudar
mas a D. Alzira “aquilo que via direito no Porto e o Emanuel
com os olhos, fazia com as Alexis, de Canedo, está a ter-
mãos”. E fazia a roupa para os minar o liceu e irá prosseguir
irmãos, eles que eram 6 ra- os estudos.
parigas e 3 rapazes e a mesa
posta parecia a “mesa dos Na Feira há outro tipo de
apóstolos”. aprendizagens que surgiram
com a vida cultural eferves-
O Sr. Plácido, da Feira, foi cente da cidade. A Viagem
“caçado” pelo pai para ir Medieval e o Imaginarius trou-
trabalhar na loja, depois de xeram um conjunto de artistas
ter completado o liceu em e companhias que sempre
Espinho. A D. Augusta também deram workshops e passaram
queria continuar os estudos saberes, pelo que os jovens
depois do liceu Rainha Santa do concelho ganharam “uma
Isabel no Porto mas come- sensibilidade enorme para
çou logo a dar aulas aos 18 as artes e para a expressão
anos. No entanto continua a artística”, lembra Hélder Duarte,
aprender todos os dias, e cria de Lamas. Também a música
oportunidades para aqueles corre aqui nas veias e há a
que ainda têm curiosidade, na Academia de Música, o Orfeão
Universidade Sénior em Santa e inúmeros ranchos folclóricos
Maria da Feira. espalhados pelo concelho.

TO LEARN
It’s remarkable how many people talk about school when asked about
their memories, in many cases regretting that they didn’t have the chance
to study longer. You may listen to D. Mimosa telling us how she only went
to school for one day, learning the a,e,i,o,u, and how she then had to stay
home and cook for her family that was working on the fields.

A curiosity is that the people of Feira asked for a school and Latin lessons
to the Loios Congregation when the wine tax was imposed, as a return for
their contribution.

Learning in Santa Maria da Feira, nowadays, includes a variety of expe-


riences such as theatre workshops in Imaginarius and music in several
schools, which means that there are generations of younger people with a
high sensitivity for arts.

35
36
BAILAR
“A MINHA SAIA VELHINHA, TODA
ROTINHA DE ANDAR A BAILAR,
AGORA TENHO UMA NOVA FEITA
NA MODA PARA ESTREAR…”

TODOS TÊM RECORDAÇÕES DE BAILARICOS E


O SR. JOÃO DIAS, UM ANTIGO CORTICEIRO
GARLOPISTA DE FIÃES, TEM ESTA MÚSICA NA
PONTA DA LÍNGUA QUANDO SE FALA EM FESTA,
EM DESFOLHADA, EM BAILARICO. É QUE AS
SAIAS ATÉ FICAVAM TONTAS DE TANTO RODAR.

37
38
Ao ser interrogada sobre me- Os vestidos eram feitos pelas
mórias de bailes e bailaricos, mães e pelas costureiras e se
a D. Augusta Espassandim, da era uma ocasião mais especial,
Feira, recorda imediatamente ia-se à modista, pois cada
vários tipos de bailes: baile era pensado a preceito.

Os bailes de fim de romaria, Em cada um dos tipos de


de adro de Igreja: ajuntamentos baile a base era a mesma, a
populares ao som de bandas expressão da alegria pela vida
com cavaquinho, acordeão e e a oportunidade de encontro
concertina, normalmente nal- com o outro.
guma festa de igreja, onde se
dava ao pé em roda, em coreo- O Sr. Américo Loureiro, homem
grafias que ainda hoje se recor- da indústria de papel de Ponte
dam nos ranchos folclóricos. Redonda, refere com carinho
um outro bailar que durante
Os “Bailus” que se faziam no anos aconteceu nos engenhos
pavilhão dos Bombeiros ali na do papel. É o “bailado das
direcção do Cavaco com músi- saqueiras”, aquele movimento
ca gravada e tocada com siste- ritmado que as mulheres fa-
ma de som. “Vai haver bailu!” ziam quando estavam a fazer
cartuchos – uma espécie de
Os bailes elegantes que se dança de batuque em que
davam em casa das pessoas todo o corpo se envolvia a
ou na Quinta do Castelo ou na cada dobradela do papel. A
estalagem de Santa Maria, com dança das saqueiras é recor-
uma pequena orquestra ou um dada por todos os homens
piano, já com bastante requinte. que trabalharam no papel.

TO DANCE
As a means of popular expression, dance would occur together with sing-
ing and playing typical instruments such as accordion and concertina, after
a religious pilgrimage, often in the churchyard. These songs and dances
are still remembered in traditional folk dance groups.

Other dances occurred in more elegant environments, with a live or-


chestra and included dresses made by mothers or in special occasions,
by a dressmaker. Other dances, less formal, in the firemen’s hall, would
be performed at the sound of recorded discs. In each of them, the same
expression of joy of living and encounter.

39
40
CANTAR
“PASSÁVAMOS A VIDA A CANTAR,
CANTÁVAMOS TANTO QUE EU ATÉ
ACORDAVA DE NOITE A CANTAR!”
D. MINERVINA, DA FREGUESIA DE ARRIFANA

QUEM TRABALHAVA NOS CAMPOS PASSAVA


A VIDA A CANTAR. FÁBIO PINTO, DO ORFEÃO
DA FEIRA, DIZ QUE NÃO SE SEPARAVA O CANTO
DA VIDA DAS MULHERES: “AS LETRAS DAS
CANÇÕES FALAM DA SUA VIDA, DO TRABALHO,
DOS NAMOROS, DOS DESGOSTOS, DAS ALEGRIAS,
DOS CASAMENTOS E DE DEUS”.

CANTAR DÁ RITMO E LEVA-SE O TRABALHO


COM MAIS GOSTO. D. ALZIRA, DE GUISANDE, ATESTA
ISSO MESMO. CONTA QUE LÁ EM CASA ERAM
SEIS RAPARIGAS E QUE SAIR PARA O CAMPO ERA
UMA ALEGRIA, SÓ DUAS OU TRÊS JÁ FAZIAM A
FESTA A CANTAR. UMA VIZINHA PEDIA SEMPRE
PARA A CHAMAREM, QUERIA IR COM ELAS:
“ASSIM ATÉ DÁ GOSTO TRABALHAR”. HOJE EM
DIA A D. ALZIRA CANTA COM A D. CLARINDA
NO CENTRO SOCIAL DO VALE.

41
O senhor Manuel, da freguesia Na procissão das fogaceiras é vedos em Paços de Brandão
de Souto, já com muita idade, a banda dos bombeiros que podia-se cantar, “o patrão até
ainda passa o tempo a cantar. canta e toca na Igreja Matriz. gostava pois assim sabia que
Canta a música da Maria para se estava a trabalhar, pior
a sua mulher Maria que apesar Nos leilões e nos cortejos que era se estavam na conver-
de já não ouvir quase nada se faziam nas várias freguesias sa”, conta a D. Mimosa que
sorri pois conhece a música para angariar dinheiro e tam- lá trabalhou e a Sofia Faria
muito bem. Será que lhe lembra bém para andar ao despique que agora mantém a memória
outros tempos? Foi assim que entre lugares, compunham-se desses tempos acesa no Mu-
o senhor Manuel a conquistou? músicas e quadras populares seu do Papel. Já na fábrica de
que davam conta das novida- cartões onde trabalhava a D.
Também nas procissões se des da época e espicaçavam Justina, no Cavaco, não se po-
canta, músicas religiosas ma- os locais, conta a Sandra, de dia cantar: “Se o patrão vinha
ravilhosas como “Alegrai-vos ó Arrifana, cujo pai participava bem-disposto de casa punha a
Maria”, na procissão da Res- sempre e gostava muito. A D. rádio a tocar, se não, dava um
sureição nas Caldas de São Ricardina e a D. Maria Alice chuto nas caixas que vinham
Jorge que já se faz há mais de das Caldas de São Jorge pelo corredor abaixo”. A patroa
um século. A voz da D. Lininha ainda sabem muitas dessas da D. Lucília “não queria cá
Melo conhece cada sílaba desta quadras de cor. cantos, apenas rezas”.
música. Outro momento musical
solene pontua a tradição desta As viagens no Vouguinha, A verdade é que há algo de
freguesia, o “Apregoar das Al- sobretudo no Verão, nas idas especial em cantar, sobretudo
mas”, por altura da Quaresma, para a praia em Espinho, no cantar em roda, em grupo,
em que um homem que duran- também são embaladas com algo que se faz em conjunto,
te anos foi o Sr. Fernando “Fei- música: “o combóio vai cheio tal como se fazia nas desfo-
nho” vai cantando e subindo e todos vão a tocar tambor lhadas. Esse quê de especial
a uma serra, por etapas, sem e a cantar”, memórias mais da voz colectiva tem o grupo
nunca olhar para trás, num recentes contadas pela Cata- Cantadeiras d’Antanho, um
ritual de encomenda das almas rina Campos, de Santa Maria grupo de mulheres que quando
dos que já partiram. Lança o da Feira. se põe a cantar até parece
repto para que o acompanhem que move montanhas.
na jornada nocturna: “Almas O canto de trabalho dos
boas acompanhai-me e as más campos passou depois para as
desamparai-me”. fábricas. Na fábrica dos Aze-

42
TO SING
There was a time when people, especially women, sang so much, that life
and singing could not be separated, they were entangled. Women would
sing about joys and sorrows, about marriage, about work and about God.
So, there is a rich diversity of songs and lyrics speaking of these issues.
Working on the fields was better while singing, it would bring rhythm and
joy, and time would run by faster.

D. Alzira tells us that having 5 sisters, when they would go work on the
fields, it felt like a party.

43
44
45
DESFOLHAR
Ninguém melhor que a D. Pre- havia quando se tratava do
ciosa para recordar o que era trabalho de campo.
uma desfolhada. Quando aparecia o milho rei, a
tradição era ir dar um abraço
Sobre as desfolhadas a D. Lini- a todos os presentes, nalguns
nha Melo conta: “há quem lhes casos com a seguinte quadra:
chame espadeladas ou desca-
misadas, nós aqui chamamos “Trago uma espiguinha rei /
desfolhadas – era o desfolhar Semeada no meu jardim /
da espiga, havia grandes ex- Quero-lhe pedir um abraço /
tensões de milho maduro e vi- A menina, diz que sim?
nham todos os vizinhos ajudar
a tirar-lhe o folhelho.” Sim! Um abraço lhe vou dar
para o seu rei se consolar.”
A desfolhada trata-se de tirar
o folhelho do milho para ser No final, havia ceia para ani-
guardado nos espigueiros. E mar o corpo e o espírito,
que belos espigueiros existem servindo-se alguns petiscos e
pelo concelho fora. Era um vinho. Podia haver baile ou
trabalho conjunto que reflectia não, mas havia sempre anima-
o espírito de entreajuda que ção pela ideia de encontro.

TOAR SERANDAR
Toar é chamar para as desfo- O serandeiro é figura mítica, bocadinho com a sua amada,
lhadas. Um canto lento e pau- todos falam no serandeiro! Um sem que se soubesse qual era,
sado, com a voz alto a botar homem que aparecia disfarça- por se meter com todas, coisas
acima para que se ouvisse ao do na desfolhada, munido de de amores proibidos. Outros
longe: “Aí vem o luar, aí vem capuz na cabeça e lenço na dizem que era uma brincadeira
o luar por trás dos beirais. cara. Trazia um cajado para se e que vinha trazer agitação à
Adeus meu amor, adeus meu proteger e um lampião para o desfolhada.
amor para nunca mais.” Acon- caminho. Só se descobria aos
tecia ao final do dia, várias donos da casa, os outros não
mulheres toavam de um muro sabiam quem era. Trazia um
ou ponto mais alto e quem ramo de ervas de cheiro que ia
ouvia já sabia que estava a dar a cheirar às raparigas que
ser chamado: “Olha, hoje há estavam a desfolhar. Dizem que
desfolhada na Piedade”. era uma forma de namorar um

46
TOAR | DESFOLHAR | SERANDAR
Toar is a sort of chant, slow and in a high pitch voice so it could be heard
from afar. The purpose was to call everyone, the surrounding neighbors, to
come help in the “desfolhada”.

Desfolhar is to trim the corncob. Taking off its leaves so it can be stored in
the “espigueiro”, a typical granary. It was a job done by a group of people,
while singing, in a spirit of cooperation that used to happen while working
in the fields.

Serandar is related to “serandeiro”, a male figure that would make an


appearance in desfolhadas. He covered his face so he wouldn’t be rec-
ognized and bring a loaf of fresh smelling herbs with which he would play
and harass women, being able get close to them and bring agitation into
the group.

47
48
MIGRAR
EM CALDAS DE SÃO JORGE
HÁ UMA HISTÓRIA

MUITO SIGNIFICATIVA SOBRE EMIGRAÇÃO - FOI


UM EMIGRANTE QUE VOLTOU DO BRASIL QUE
VEIO COM A IDEIA DE CONSTRUIR UMA FÁBRICA
DE BRINQUEDOS, A ORIM, QUE É MIRO AO
CONTRÁRIO, UM DIMINUTIVO DO NOME DO DITO
SENHOR. COM ESTA INICIATIVA NASCEU O
PRIMEIRO BRINQUEDO PORTUGUÊS E UMA
TRADIÇÃO LIGADA À INDÚSTRIA DO BRINQUEDO
E DA PUERICULTURA QUE AINDA HOJE É FONTE
DE TRABALHO E RIQUEZA PARA A FREGUESIA,
COM FÁBRICAS HISTÓRICAS COMO A ORIM, A
FABRUIMA, A SOBRINCA. AQUI ESTÁ O PRIMEIRO
TRICICLO DO MIGUEL FERREIRA, PRECISAMENTE
FEITO NAS CALDAS DE SÃO JORGE.

49
A vida de muitos feirenses foi Em Caldas de São Jorge per- O Rodrigo virá pela primeira
marcada pela emigração. Toda cebe-se bem o fluxo de Verão vez a Santa Maria da Feira
a gente tem alguém da família dos emigrantes que vêm vera- para pesquisar mais sobre esta
ou um amigo que emigrou, near à sua terra natal, já que história. Dia 13 de Junho esta-
quando não foram os próprios, a festa de Santo António é rá cá. Quem sabe se não des-
nunca perdendo a ligação à adiada um mês para que todos cobre por aqui algum primo?
sua terra de origem. Nos iní- possam participar. A 13 de Ju-
cios do séc. XX houve uma lho há Sto. António nas Caldas! Os movimentos migratórios
vaga de emigração para Amé- fazem-se nos dois sentidos.
rica do Sul – Brasil, Venezuela, Rodrigo Leite Rocha é brasilei- Nos dias de hoje, em Maio de
e mais tarde para a Europa – ro mas descobriu recentemen- 2018, há imigrantes especiais
Alemanha, Suiça, França, sendo te que o seu trisavô era Fei- em Santa Maria da Feira. São
que outros tantos tiveram pas- rense, natural da Vila da Feira, jovens refugiados vindos de
sagem por África, como Angola bem como a trisavó, embora países em dificuldades, como
ou África do Sul, apenas para se tenham conhecido lá no da Eritreia ou da Síria. Têm
referir alguns. Brasil, num lugar chamado estado no Inatel da Quinta
Iguape. Sabendo do projecto do Castelo e, como todos os
Em alguns destes sítios, a 140 Mil Memórias, enviou-nos emigrantes, procuram oportuni-
presença dos feirenses faz-se um vídeo para falar dos seus dades para refazer a sua vida.
sentir com a Procissão das antepassados, vídeo que po-
Fogaceiras a ser celebrada derá encontrar na Máquina de
todos os anos a 20 de Ja- Memórias. Aqui estão as foto-
neiro ou no fim-de-semana grafias de Bernardino da Ro-
mais próximo. Este ano, em cha Carvalho e Escolástica da
Caracas, houve relatos da Rocha Carvalho e o passapor-
dificuldade que foi encontrar te do trisavô, o primeiro nome
farinha para fazer as fogaças da coluna da esquerda.
necessárias à procissão.

50
TO MIGRATE
Whether to South America or to Europe, the fact is that emigration is pres-
ent in the lives of many people of Santa Maria da Feira, everyone has a
migration story to tell. These movements are visible with emigrants coming
to spend the summer, with curiosities like the religious tribute to Santo
António being postponed one month, to the 13th of July so everyone can
attend to it, in Caldas de São Jorge. In this same parish it was a migrant
coming back from Brazil that came up with the idea to fabricate toys, lead-
ing to an industry that enabled the economic flourishment of the area.

51
52
BRINCAR
MUITAS BRINCADEIRAS MARCARAM A
INFÂNCIA DAS CRIANÇAS DA FEIRA NO
TEMPO EM QUE “O RELÓGIO ERA O SOL
E SE FICAVA NA RUA ATÉ SER NOITE”
COMO DIZ A D. AUGUSTA DE SANTA MARIA DA FEIRA.

BRINCAR ÀS ESCONDIDAS NA MISERICÓRDIA NO


TEMPO EM QUE AS IGREJAS FICAVAM ABERTAS,
A ESCADARIA ERA LUGAR DE CORRERIAS E O
ADRO ERA O CAMPO DE FUTEBOL É ALGO QUE
MUITOS RECORDAM. A DR.ª ANA JOSÉ E O
SR. PLÁCIDO, DA FEIRA, LEMBRAM-SE DESSE TEMPO
EM QUE O LUGAR FAVORITO PARA ESCONDERIJO
ERA DEBAIXO DAS SAIAS DO SÃO CRISTOVÃO.
SENDO UM SANTO DE ROCA COM UMA ARMAÇÃO
DE MADEIRA POR BAIXO, AQUELE LUGAR ERA IDEAL
PARA SE ESCONDEREM. O SÃO CRISTÓVÃO
SEGURA O MENINO JESUS NUMA MÃO QUE POR
SUA VEZ SEGURA O MUNDO NA SUA MÃOZINHA, AS
MÃES FARTAVAM-SE DE AVISAR: “NÃO VÃO
PARA O SÃO CRISTOVÃO, SE AQUELA BOLINHA
CAI, O MUNDO ACABA!”

53
O Sr. António de Lobão é so: Pisar as uvas nos lagares
carpinteiro e lembra-se que era tarefa feita pelas crianças
quando era criança já fazia mas era um sofrimento mui-
carrinhos de madeira na mar- to grande pois “dava imensa
cenaria do pai, “às escondidas comichão nas pernas e mesmo
claro, pois a canalha estraga lavando com sabão e desin-
tudo”! O pai ficava furioso se fectando com aguardente, só
lhe estragava uma ferramenta passava ao fim de dois ou
e era capaz de levar uma va- três dias”!
lente tareia: “nesse tempo não
se aplaudia a habilidade”. “Colocar o adubo no milho
era uma visão lindíssima pois
José Martins das Caldas de colocava-se um montinho de
São Jorge lembra os mergu- adubo branco num pézinho
lhos no açude do rio Uima e de milho verde sobre a terra
as brincadeiras pelos matos castanha” conta também José
num tempo não muito lon- Martins. Com o milho todo
gínquo em as crianças eram alinhado, a relação entre o
também chamadas a ajudar verde do milho, o branco do
no campo quando era preci- adubo e o castanho da terra,

54
pode dizer-se que era uma O jovem Emanuel Alexis teve
experiência estética fabulosa. uma infância à beira do rio
Inha em Canedo e o que era
O Sr. José Reis, de Rio Meão, uma brincadeira – pescar –
refere que havia um jogo tornou-se um desporto meda-
para cada estação do ano: lhado. A Sofia Pais lembra-se
no Inverno jogava-se ao pião, de ser pequenina e brincar no
na Primavera iam aos ninhos, infantário da Quinta do Cas-
no Outono jogavam à roda, telo, construído pelo avô, “um
e no Verão jogavam à bola. sítio incrível para se crescer”.
Esta ida aos ninhos era uma
espécie de prova de masculini- Não são só os jovens que
dade, e alturas houve em que brincam – no café Andorinhas,
a população de melros de- antiga escola primária de Es-
cresceu significativamente, até pargo, os velhos ainda hoje se
porque para além da caça aos juntam para jogar às cartas, à
ovos também se fechavam os sueca. Neste jogo, quem perde
melros em gaiolas em casa. paga uma rodada de vinho
tinto aos restantes jogadores.
Delícias de infância lembra a
D. Lídia Melo, nas idas à festa
de São Jorge, que duravam
três dias: “os chocolates Regi-
na que se recebiam conforme
se acertava nuns buraquinhos
na máquina de cartão ou as
laranjadas bebidas no café
central à beira do rio Uima”.

TO PLAY
Playing is of course a part of a collective memory, in times when play and
work mingled. Children would do certain agricultural work such as stepping
on grapes, which was terribly itchy in the following days, and placing white
fertilizer on the green corn stalk over the brown earth which would be a
fabulous first aesthetical experience.

The children that lived in downtown of Santa Maria da Feira would go play
hide and seek under the garments of São Cristóvão, an immense wood
statue in Igreja da Misericórdia.

55
56
TRABALHAR
“OS VELHINHOS NÃO PODEM, OS NOVOS
NÃO QUEREM”

DIZ A D. PRECIOSA, DA FREGUESIA DE


SOUTO, SOBRE O TRABALHO NOS CAMPOS
E OS DIAS DE HOJE.

57
Dos campos às fábricas, diver- nha, de São Paio de Oleiros.
sidade de trabalho e produção Os farrapos melhores serviam
não falta no concelho. As para se fazer o papel branco,
“artes” de saber tradicional e timbrado, nas fábricas de pa-
artesanal deixam saudades em pel, o restante ia para se fazer
alguns, enquanto outros nem liteiros, que serviam para as
querem ouvir falar, lembrando- camas ou para o chão.
-se de um tempo duro. Certo
é que as memórias são mui- Fábio Pinto fala das tecedeiras
tas, aqui ficam algumas. em Espargo, objecto das suas
pesquisas etnográficas. Tinham
Dos pregueiros do Lugar de vários tipos de produções, des-
São Domingos em Argonci- de os ditos liteiros de farrapos
lhe, conta o Sr. Vasco Rocha: aos tecidos de linho, fiados e
“faziam pregos para os tanoei- tecidos artesanalmente.
ros porem nos pipos e faziam
pregos para dar voz O papel era indústria familiar
às tamanquinhas”. forte em Paços de Brandão,
“só ali no Lugar de Rio maior
Tanoeiros havia em Canedo, eram seis engenhos”, conta a
bem como gigueiros, sapatei- D. Lucília. Conta também que
ros, serradores de madeira, en- comparando com a cortiça,
fim, em Canedo havia tudo, era no papel se ganhava misera-
auto-suficiente e todos tinham velmente e a vida era muito
um canastro, conta o Sr. Alexis. dura. Os homens trabalhavam
“Só não havia sal e açúcar”. de noite fazendo a pasta de
papel até se tornar um gran-
As farrapeiras que andavam a de rolo que sai da calandra
comprar farrapos de porta em e se enrola nos sarilhos. As
porta, com as suas balanças, mulheres trabalhavam de dia
como lembra a D. Emília Beli- colocando as postas a secar,

58
botando o papel no “espande”, Lamas, São Paio de Oleiros e
eram as botadeiras. Também Fornos são as freguesias que
faziam sacos e cartuchos, com formam o triângulo dos oleiros,
moldes, em papel pardo que ofício do qual saíam as famo-
servia para embrulhar comida, sas cântaras com as quais as
antes da invasão do plástico raparigas iam buscar água à
na indústria alimentar. fonte, história típica, contada
na primeira pessoa pela D.
A indústria da cortiça veio Natália, de Escapães, que não
impulsionar o norte do Con- se livrou de uma sova depois
celho, de que Lamas é bom de partir a cantarinha num dia
exemplo. Para além de toda a em que se assustou com uma
transformação da cortiça que enorme vaca.
ainda hoje se faz, há o mítico
fabrico da rolha. Artesanalmen- E, claro, os merceeiros que
te era com uma garlopa, a vendiam tudo a granel com as
máquina usada pelo Sr. João medidas – escabelos, escani-
Dias, que “durante mais de nhos, e os cartuchos em papel
40 anos fabricou milhões de mata-borrão, conta a D. Matilde
rolhas, ao ritmo de cerca de Reis, de Travanca. Os quarti-
cinco mil por semana”. lhos para o vinho, que corres-
pondia a meio litro, e as par-
Em terra de águas, barqueiros, tes de alqueire para os secos.
como o Sr. Alfredo, de Porto O Sr. Plácido, da Feira, conta
Carvoeiro, que levava o carvão que quando começou a traba-
de Gião até ao Porto. “Era um lhar na mercearia do pai, tudo
frete dum canudo!” Isto porque era medido e só as massinhas
o barco rabelo levava tonela- e a farinha maizena eram já
das de carvão e a travessia empacotados. “Aviar uma se-
era feita a remar. nhora que ia às compras podia
demorar muito tempo”.

TO WORK
Working memories are very significant. There are a series of stories about
working in the fields, raising a few animals and doing artisanal crafts, such
as tissue from linen and wool, pottery, iron work, wood crafting and so on.
There was a shift from the fields to the factories with industries like paper
and cork transformation, shoe factories, toy industry and cars for babies,
and many others.

You may see some objects of such “arts”, ways of doing, like the bench of
the shoe maker or the scale of the “farrapeiras”, women who would go from
door to door buying rests of fabrics destined to make fine white paper with
water marc or covers for the bed, depending on the quality of the tissues.

59
60
MERGULHAR
“À SEMANA ANDAVAM NOS CAMPOS.
AO SÁBADO LAVAVAM A ROUPA E AO
DOMINGO IAM NUM BARQUITO A REMOS
PASSEAR PELO RIO UIMA”
CONTA A D. JOSEFINA, DE CALDAS DE SÃO JORGE

AS ÁGUAS, OS RIOS, AS NASCENTES FAZEM PARTE


DA VIDA E DAS RECORDAÇÕES DOS FEIRENSES.
ESTE PEQUENO RELATO DA D. JOSEFINA MOSTRA
BEM A RELAÇÃO COM AS ÁGUAS, NO TRABALHO
OU NO LAZER.

61
62
Os campos eram regados com banho de higiene, era feito em
um sistema chamado o “giro Santo Aleijo num lugar onde
das presas”. Cada consorte havia umas lagoas. Pelo facto
fazia rodar o giro à vez, para de os adultos tomarem banho
irrigar os seus cultivos, sistema nus, “a canalha estava proibida
que servia vários campos e agri- de lá ir ao fim-de-semana”. Era
cultores. Em todo o concelho também um local de mergulhos
havia muitas noras a funcionar, para todos, no Verão.
quer em sistema árabe quer em Deste banho de higiene tam-
sistema romano, fazendo mover bém recorda o Sr. António, de
moinhos para moer os cereais Lobão, que ia ao rio Inha lavar-
ou o linho. Os próprios enge- -se, já que “em casa não havia
nhos de papel situavam-se ao forma”. Quando foi à inspecção
lado de cursos de água para da tropa, “ia um brinco”.
fazer mover as máquinas.
O rio Inha era “como uma
As mulheres juntavam-se nos piscina para muita gente, era
tanques, os antigos lavadouros, lindíssimo, com enorme diver-
mergulhando as mãos para sidade de flora e fauna”. O Sr.
lavar a roupa com o saudoso Alexis concorda que o lugar
sabão azul ou cor-de-rosa. A onde sempre viveu ainda hoje
D. Hermínia Silva, de Sanfins, é bonito, mas nada tem a ver
conta como se usavam umas com outros tempos, antes da
joelheiras de madeira para poluição, dos aterros, do eu-
proteger os joelhos, o mesmo calipto e da acácia que vêm
objecto que usavam em casa alterar a paisagem e o equilí-
para encerar os soalhos. Ro- brio ecológico.
berto Carlos, da Feira, diz que
os lavadouros eram “o antigo A D. Lininha refere igualmen-
facebook, uma ocasião para as te a poluição causada pela
mulheres porem as novidades indústria e os danos ao rio
em dia”. Uima. A D. Alzira, de Guisande,
recorda as nascentes da sua
O Sr. Sidónio Sá, também de terra, que foram soterradas
Sanfins, conta que o banho, o pela auto-estrada.

TO DIVE
Delicious memories of the times when rio Inha, in the parish of Canedo
was like a great swimming pool, and when people didn’t have showers at
home and would go bathe in the streams and creeks throughout Santa
Maria da Feira. Diving hands in the waters of the old rustic wash-houses,
at the weekends, to wash the clothes and catch up on the novelties. But
the most special dive might as well be the one in the sulfurous waters of
the thermal spa in Caldas de São Jorge.

63
64
NAMORAR
“QUEM ATIRA PEDRINHAS QUER FALINHAS”

RESPOSTA NA PONTA DA LÍNGUA TINHA A MÃE


DA MARIA DO CÉU, DE SANTA MARIA DE LAMAS,
DE CADA VEZ QUE O PAI LHE ATIRAVA PEDRINHAS
QUANDO ELA PASSAVA PELO SEU LOCAL DE
TRABALHO. UM INÍCIO DE NAMORO À ANTIGA.
“ERA ASSIM QUE SE NAMORAVA, COM RECADINHOS,
BILHETINHOS, MUITAS DECLARAÇÕES”, CONTA A
D. MIMI, DE SANTA MARIA DA FEIRA.

65
As cartas também são referi- já foi o local preferido por mui-
das por muita gente. Sobre- tos para namorar, tal como o
tudo as cartas trocadas entre jardim das Caldas de São Jor-
as madrinhas de guerra e ge ao fim-de-semana: “Vinham
os soldados portugueses que todos a pé, era um corre-corre
estiveram no Ultramar. Uma ju- das freguesias à volta das Cal-
ventude onde a distância fazia das até ao jardim das termas,
nascer relações pelas pala- ao muro junto ao rio Uima,
vras trocadas. É o caso da D. local de encontro dos jovens
Fernanda, de São João de ver, para arranjar uma namorada
que acabou por casar com o ou namorar um bocadinho, era
seu afilhado de guerra. o cantinho dos namorados.”
refere José Martins.
O Sr. Joaquim, de Paços de
Brandão, explica que muita E o Sr. Manuel, de Souto, que
música de namoro surgiu para cantava a Maria? Tantas vezes
comunicar, num tempo em que cantou, de roda do forno onde
não havia telemóvel. Agora, ela trabalhava, ou acompa-
com telemóvel, marcam-se en- nhando-a ao posto de leite,
contros à noite, no centro da que lá ela se encantou.
Feira. Ou então nas guimbras,
na Quinta do Castelo, onde há Com imensa ternura recordam
bancos para namorar e até há o Sr. Américo e a D. Etelvina
uma “árvore do amor” em que os tempos de namoro que
os apaixonados escrevem os começou com umas aulas de
seus nomes, conta a Sofia e o costura que a irmã do Sr.
Emanuel, que andam pela casa Américo dava à jovem Etelvina.
dos vintes. Agora, com 101 e 91 anos
respectivamente, celebram já
Sítios bonitos não faltam e a 77 anos de casados.
margem esquerda do rio Inha

TO BE IN LOVE
There are beautiful places to date, hang out and be in love in Santa Maria
da Feira. Rio Douro in Porto Carvoeiro, the left bank of rio Inha in Canedo,
the garden of the thermal building in Caldas de São Jorge and, of course,
the gardens that go up to the Castle in Santa Maria da Feira where there
is even a love tree.

With the colonial war at the end of the 60’s and beginning of the 70’s,
many still remember the letters exchanged with the young boys that went
far away to fight. Many of these relationships ended up in marriages, such
is the case of D. Fernanda.

66
67
68
CUIDAR
HÁ DUAS SENHORAS IGUAIS NO CENTRO SOCIAL
DO VALE, UMA É A DONA ÂNGELA, A OUTRA
É A DONA ANGELINA. A D. ÂNGELA ANDA DOENTE
E PASSA MAL A NOITE. QUEM CUIDA DELA É A
D. ANGELINA, SUA IRMÃ GÉMEA QUE POR ISSO
MESMO DORMITA DE MANHÃ ENQUANTO OS
RESTANTES SENHORES DO CENTRO CONVIVEM,
REZAM O TERÇO E CANTAM.

NÃO É DE AGORA ESTA SUA VEIA CUIDADORA.


DURANTE ANOS A D. ANGELINA IA, RELIGIOSAMENTE,
APANHAR UM MOLHO DE FLORES NO CAMPO PARA
COLOCAR NO ALTAR DA IGREJA DO VALE, QUER
NA ANTIGA, COM ALTAR EM FORMA DE BOLO
DE NOIVA, QUER NA IGREJA NOVA. ESTA É UMA
MEMÓRIA QUE TODOS TÊM DELA.

TAMBÉM NO MERCADO HÁ UMA CUIDADORA,


A D. MARIA DO CARMO QUE TODOS OS
DIAS VEM VENDER PEIXE. VIVEU OS TEMPOS EM
QUE LOJA SIM, LOJA SIM, HAVIA ALGUÉM A
VENDER E O MERCADO ERA ANIMADO, CHEIO DE
GENTE. AGORA ESTÁ CÁ MUITAS VEZES SOZINHA,
É UMA RESISTENTE.

ESTAS FLORES SÃO PARA ELAS.

69
70
TO CARE
In the parish of Vale there are two older women that look the same: D.
Angela and D. Angelina. D. Angelina sleeps on and off in the morning
while the other elderly people sing and pray in Centro Social do Vale. It’s
because during the night she takes care of her twin sister, who is ill. Her
caring was visible over the years as well, since she would pick up fresh
flowers daily and put them in the altar of the church.

D. Maria do Carmo, the woman who sells fish in the market place, remem-
bers the times when theses tables were full of products and market sellers.
Now that she is many times alone, she takes care of this place, a resistant
in giving life to such a beautiful market.

71
Ficha Técnica Agradecimentos
Artistic Team Acknowledgments

Coordenação | Coordination Grupo de Jovens 3 Pontes Adelaide


Imaginarius Centro de Cria- Orfeão da Feira Adelson Oliveira
ção – Arte e Espaço Público
Museu do Convento dos Lóios Albano Campos
Direção artística e mediação Museu do Papel de Paços Albina Carvalho
com a comunidade | Artistic Brandão Alcides Azevedo
direction and mediation Termas das Caldas de São
Vera Alvelos Alda Fernanda
Jorge
Aleksandar Caric Zar
Conceção e criação de instala- Biblioteca Municipal da Feira
Alexis Faísca
ções e cenografia | Installation Centro Social Paroquial de
and scenography S. Jorge Alfredo Silva
Patrick Hubmann Centro Social e Paroquial Alfredo Henriques
do Vale Alice
Fotografia e Vídeo | Photogra-
Centro Social de Souto Alice Oliveira
phy and Video
João Azevedo e João Miguel Centro Social de Arrifana Amélia Gomes
Ferreira Junta de Freguesia de Santa Américo Loureiro
Maria da Feira
Produção executiva | Executive Américo Silva
União de Freguesias das Cal-
Production Ana Carvalhinho
das de São Jorge e Pigeiros
Ricardo Falcão
Sport Ciclismo de São João Ana Fonseca
de Ver Ana José Oliveira
Café Castelo Ana Pedrosa
Café Renascer Ana Rita Leite
Rancho de Argoncilhe Ana Santos
Rancho de S. Paio de Oleiros André Avelelas
Universidade Sénior de Santa Ângela Conceição
Maria da Feira
Angelina Conceição
CIFIAL
Angelina Pinto
Tuna de Mozelos
António Cardoso
Câmara Municipal de Santa
Maria da Feira António (Carpinteiro)
António Fernando Soares

Grupo das Cantadeiras d´Anta- António Oliveira

nho: Ana Valente, Ana Marques António Silva Santos

Sá, Cátia Soares, Catarina da Armanda Queiroz

Luz, Fábio Sá Ferreira Pinto, Augusta Espassandim

Maria do Céu Paiva, Maria Go- Belmira Assunção

reti Abelha, Maria Almeida Silva, Bernardo Gomes

Maria Moreira da Silva, Maria Carlos Cardoso

Tavares, Natália Silva, Vanessa Carminda Gomes

Inácio Pita, Rosa Rocha Catarina Campos


Catarina Fernandes Santos
Clarinda Costa

72
Cláudia Baptista José Augusto Miguel Grácia Carvalho
Dalila Oliveira José Cardoso Mimosa Orquídea
Dalila Santos José Guimarães Neusa Fernandes
Diogo Almeida José Martins Palmira Assunção
Elídio Santos José Pereira Paulo Moreira
Elisabete Lima José Reis Paulo Sérgio
Emanuel Alexis Josefina Jesus Preciosa Martins
Emília Alvim (D. Mimi) Judite Freitas Quim Abílio
Emília Belinha Justina Raquel Brandão
Emilia Rosa Pinto Laurinda Pereira Ricardina Valente
Ester Gomes Lídia Melo Rita Pinto
Etelvina Araújo Lininha Melo Roberto Carlos
Etelvina Costa Lisete da Costa Rodrigo Leite Rocha
Fábio Pinto Luciana Cardoso Rosa Ferreira
Fátima Magalhães Lucília Silva Sandra Ferreira
Fernando Feinho Luis Marques Sandra Leite
Fernando Vasco Luisa Tavares Sara Clemente
Francisca Neves Manuel Sara Martins
Francisco Silva Manuel Alves Sérgio Martins
Frederico Rodrigues Manuel Plácido Silvina Soares
Gabriel Cardoso Manuel Silva (Lucas) Sofia Faria
Gil Ferreira Manuela Coelho Sofia Pais
Gil Raro Mara Rodrigues Susana Milhões
Helder Duarte Márcia Gomes Teresa Ferreira
Hisham Harba Marco Chaves Teresa Vieira
Inês Jesus Maria Alice Silva Tiago Oliveira
Iulia Mutu Maria Alzira Correia Vasco Rocha
Jacinta Sá Maria Cardoso
Jaime Campos Maria da Conceição
Jeanneth Vieira Maria do Carmo
João Dias da Silva Maria do Carmo Sousa
João Ferreira Maria Isabel Cruz
João Miguel Ferreira Maria Isabel Pinho
João Miguel Silva Maria João Pinto
João Rosa Maria Jorge
João Silva Maria Luísa Tavares
Joaquim Andrade Maria Maia
Joaquim Pinto Maria Manuel Gonçalves
José Augusto Onofre Mariana Teixeira

73
Título | Title
140 Mil Memórias

Edição | Edition
Câmara Municipal de Santa
Maria da Feira

Tradução | Translation
Vitor Magalhães

Fotografia | Photography
João Azevedo

Design Gráfico | Graphic Design


Estrela Silva

Impressão | Printed by
Rainho&Neves, Lda –­ Artes
Gráficas

Tiragem | Circulation
1.500 exemplares | copies

Distribuição gratuita
Free distribution

74
75

Você também pode gostar