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Um breve panorama da política externa

brasileira nos últimos vinte anos


Princípios, alterações e continuidade

Vicente Costa Pithon Barreto

Sumário
1. Introdução. 2. Os auspícios da redemocra-
tização. 3. A primeira metade da década de 90 e a
política externa no Pós-Guerra Fria. 4. A política
externa nos anos FHC. 5. A crise do modelo
liberal e a ascensão de Lula. 6. Conclusão.

Art. 4o A República Federativa do Brasil


rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios:
I – independência nacional;
II – prevalência dos direitos humanos;
III – autodeterminação dos povos;
IV – não-intervenção;
V – igualdade entre os Estados;
VI – defesa da paz;
VII – solução pacífica dos conflitos;
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IV – cooperação entre os povos para o pro-
gresso da humanidade;
X – concessão de asilo político.
Parágrafo único. A República Federativa do
Brasil buscará a integração econômica, política,
social e cultural dos povos da América Latina,
visando á formação de uma comunidade latino-
americana de nações.

1. Introdução
Vicente Costa Pithon Barreto é bacharel em
Direito pela Universidade Federal da Bahia Nos últimos vinte anos, desde a promul-
(UFBA) e mestre em Relações Internacionais gação da Carta Magna de 1988, o Brasil teve
pela Universidade de Brasília (UnB). Atua como cinco Presidentes da República. José Sar-
consultor legislativo do Senado Federal na área ney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fer-
de pronunciamentos. nando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula

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da Silva formam o grupo de mandatários tudo, uma nação mais madura, consciente
nacionais marcadamente heterogêneo, não de sua importância e de seu peso na comu-
somente em relação aos aspectos pessoais, nidade internacional e atinente ao papel de
partidários e ideológicos de cada um, mas liderança do qual não poderá se eximir.
sobretudo divergente na contextualização Na avaliação do comportamento ex-
histórica e nas circunstâncias internacionais terior brasileiro nos últimos vinte anos,
de cada época. percebe-se claramente relacionadas algu-
Nesse período, o mundo e o País pas- mas mudanças conjunturais de orientação e
saram por transformações profundas em percepção do sistema internacional aliadas
substância e amplitude. Na seara interna- à manutenção de parâmetros de conduta
cional, deu-se o fim do confronto bipolar historicamente consolidados pela especia-
que condicionava todo o conjunto das lizada diplomacia nacional.
relações entre os Estados. A reboque, novas Nesse sentido, se é verdade que, durante
esferas e coalizões de poder emergiram o período, ocorreram importantes alterações
e conformaram espaços diversificados e de rumo na participação brasileira nos esfor-
plenos de oportunidades e desafios. O ços multilaterais, nos mecanismos de segu-
multilateralismo foi alçado ao patamar de rança global, nas discussões sobre o comércio
ambição universalista e exeqüível, e o insti- internacional, no ímpeto pela integração
tucionalismo que lhe é subjacente, a despei- regional e sub-regional e na busca de novos
to de descrenças dos adeptos da realpolitik, parceiros e alianças, tais manobras sempre
ampliou de forma nunca d’antes vista o se deram pela regular observância do acu-
espaço global de discussão e regulamenta- mulado histórico que a diplomacia nacional
ção, mesmo que ainda sem correspondência galvanizou ao longo do tempo, e que inspi-
com uma efetiva distribuição de poder. rou a relação dos princípios norteadores de
O processo de globalização econômica e nossas relações internacionais consagrados
interligação de mercados em escala trans- no artigo quarto da Constituição Federal.
nacional aprofundou-se de tal forma que
tornou irresistível a integração comercial 2. Os auspícios da redemocratização
e financeira. Formas autárquicas e auto-
centradas de projetos de desenvolvimento A conduta exterior brasileira durante o
deixaram de ser alternativas plausíveis Governo Sarney, o primeiro após a redemo-
no leque de opções de políticas públicas cratização, notabilizou-se, em suas carac-
contemporâneas, sob pena de condenar terísticas essenciais, pelo caráter de manu-
uma nação ao ostracismo e à irrelevância tenção do modelo de inserção internacional
no sistema econômico mundial. herdado do regime anterior. A mudança do
No plano interno, deu-se continuidade ambiente institucional e político não trouxe
ao processo de aprofundamento do regime consigo a ruptura do padrão de pensamento
democrático e do fortalecimento de suas e comportamento de nossa política externa,
instituições. Choques competitivos foram reforçando o argumento de que regimes po-
impostos aos segmentos produtivos, e os líticos não necessariamente moldam visões
setores do agronegócio e de commodities internacionais à imagem e semelhança de
destacaram-se como pontas-de-lança no suas características internas1.
crescimento da participação brasileira no O modelo perseguido à época continu-
intricado jogo do comércio mundial. A ava a ser desenvolvimentista de caráter
estabilidade econômica possibilitou maior 1
José Flávio Sombra Saraiva, na instigante obra
segurança tanto para investidores quanto sobre o tema Foreign policy and political regime (IBRI,
para a massa assalariada, vítima contumaz 2003) refuta a tese da relação direta entre regime
do dragão inflacionário. Restamos, sobre- político e política externa.

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autônomo, e o agonizante sistema bipolar Declaração de Iguaçu em 1985, passa pe-
ainda não permitia manobras internacio- los protocolos bilaterais firmados dentro
nais arrojadas que buscassem novos espa- do Programa de Integração e Cooperação
ços de oportunidades. Mas as dificuldades Econômica entre Brasília e Buenos Aires de
econômicas extremas apresentadas pela 1986 e encontra seu desabrochar na assina-
crise da dívida, pela espiral inflacionária e tura do Tratado de Integração, Cooperação
pela defasagem tecnológica, além da queda e Desenvolvimento, em 1988. Tal instru-
dos preços internacionais das matérias- mento idealizou e traçou as premissas para
primas, influenciaram de forma decisiva a criação de um espaço comum no prazo de
a mudança paradigmática que viria a ser 10 anos, estipulando a paulatina remoção
efetuada na década seguinte. de barreiras tarifárias e não-tarifárias e a
A “década perdida”, dessa forma, entre- convergência progressiva de políticas al-
meada por planos econômicos heterodoxos, fandegárias e comerciais comuns.
moratória e baixo crescimento, a despeito Transpostos os temores do passado e
do alvorecer libertário e do otimismo repre- alguns episódios marcados pela rivalidade
sentado pela democracia rediviva em sua de vizinhança na década de 70, Brasil e
segunda metade, acabaria por promover a Argentina viram-se impelidos, a partir do
fadiga do padrão desenvolvimentista que momento histórico de redemocratização
vinha pautando a inserção internacional interna, ocaso da Guerra Fria e novos con-
brasileira desde a era Vargas. dicionantes econômicos e globais, a buscar
Como afirma Letícia Pinheiro sobre o o destino manifesto da integração regional,
contexto do final dos anos 80: da troca favorável de potencialidades pro-
“Ao contrário das questões de nature- dutivas e tecnológicas e da aliança estraté-
za econômica, as de natureza política gica para o enfrentamento das negociações
não tiveram muito impacto sobre os internacionais.
paradigmas diplomáticos. De fato, Ao Brasil, cabia a missão de estabelecer
a redemocratização responde muito uma liderança no processo sem o escopo
pouco por qualquer alteração no de aspirações hegemônicas regionais. A
conteúdo da política externa. Se, com tradição histórica de cordialidade no trato
o novo regime, tornou-se mais fácil e com seus vizinhos sul-americanos2, um dos
mesmo recomendável aproximação pontos mais consagrados de nossa continu-
política com a Argentina, não se pode ada ação diplomática desde a República,
negar que essa já era uma tendência deu à chancelaria brasileira o aval para
anunciada desde o Governo Figuei- dirimir possíveis contestações ao caráter
redo” (PINHEIRO, 2004, p. 53). essencialmente cooperativo dos esforços
Entretanto, não há dúvidas de que o integrativos, negando-lhes qualquer cono-
principal legado prático da política externa tação de afirmação imperial.
do Governo Sarney está na reaproximação Assim, o projeto de integração regional e
e na construção das vias para a parceria a aproximação mais estreita com a América
estratégica sub-regional. Nos encontros e Latina davam o tom nos rumos da política
na identificação de conjunturas semelhan- externa brasileira naquele momento. A
tes entre Sarney e Alfonsín, foi concebido redação do parágrafo único do art. 4o da
o embrião para o projeto integracionista do nova Carta Magna traduzia tal proposição,
Mercado Comum do Sul, ou Mercosul.
Esse processo de germinação, encam- 2
A cordialidade no trato com os vizinhos é realça-
da por Cervo (2007) como tradição arraigada de nossa
pado pelo Itamaraty e penhorado pela diplomacia, refletida em episódios como a crise dos
diplomacia presidencial dos mandatários hidrocarbonetos com a Bolívia e a “paciência” com os
argentinos e brasileiros, começa com a arroubos intempestivos do Coronel Chávez.

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firmado-a como ponto central de nossos mento nacional, desde a primeira metade
negócios internacionais. do século passado, foi entronizada como
A reativação dos laços diplomáticos eixo fundamental de nossa ação externa.
com Cuba, outro legado da política externa Nesse sentido, o padrão de comportamento
brasileira do Governo Sarney, insere-se internacional brasileiro é historicamente
exatamente nesse contexto. A superação pautado pela superação dos entraves ao
dos tabus advindos da luta armada à épo- desenvolvimento como seu vetor essencial,
ca do regime militar, marcando a inflexão adequando-o às condições e conjunturas
política que não se viu na diplomacia, e a apresentadas pelo sistema internacional de
prioridade estratégica conferida ao diálogo cada momento.
latino-americano impuseram a necessidade Desde 1930, conforme considera Cervo
de trazer Havana para o esforço cooperati- (2007), “a diplomacia brasileira respondeu
vo de nossa chancelaria. ao processo de desenvolvimento em curso,
Empreendimento igualmente impor- incumbindo-se de trazer insumos externos,
tante da política externa da época, e que função que lhe foi explicitamente confiada
também se insere no espírito do esforço pelos homens de Estado”.
cooperativo e de integração Sul-Sul, dá-se Na transição trazida no bojo da virada
com a criação da Zona de Paz e Cooperação da década, com o fim da divisão do mundo
no Atlântico Sul, que se constituiu, como em dois grandes blocos e a condensação
salienta Altemani (2005), “em um primeiro de um cenário econômico de maior inter-
ordenamento de um processo em marcha conexão produtiva e financeira, o modelo
no campo da paz e da cooperação, aproxi- do desenvolvimentismo puro e calcado na
mando os países ribeirinhos do Atlântico substituição de importações foi posto em
Sul e pondo fim às especulações relativas á xeque. No mundo pós-bipolar marcado
criação de um pacto para o Atlântico Sul”. pela potência capitalista hegemônica, os
Em suma, constata-se que a política ex- dados estavam lançados em um novo
terna empreendida pelo Governo Sarney, tabuleiro, onde a autonomia distanciada
marcada pelo signo da redemocratização, de outrora já não configuraria mais como
acabou por manter os princípios de autono- opção válida de inserção internacional
mia e universalização consagrados por civis pragmática.
e militares ao longo das últimas décadas. No mundo e no subcontinente ameri-
Mas, diante dos novos desafios advindos cano, a onda neoliberal tornava irresistível
da distensão da bipolaridade e das con- e sedutor o adensamento da participação
tingências impostas pelas dificuldades nacional na estrutura econômica global de
econômicas, o paradigma desenvolvimen- comércio e rotas financeiras. As regras da
tista começava a dar lugar a importantes nova cartilha econômica tornavam-se con-
alterações de direção em nossos negócios sensuais e indicavam o caminho da supera-
externos que viriam a se efetivar na década ção do subdesenvolvimento pela abertura
seguinte sem, contudo, deixar de observar econômica e prevalência do mercado como
os princípios incrustados em nosso padrão seu principal indutor.
de comportamento internacional. A política externa de Fernando Collor
de Mello, eleito sob o signo do novo e da
3. A primeira metade da década esperança trazida pelos novos tempos
globais, adequava-se a tais parâmetros sem
de 90 e a política externa no
exclusividade e dentro de um movimento
Pós-Guerra Fria avassalador que fugia às nossas frontei-
Como premissa básica, faz-se mister ras. A Argentina de Menem, o México de
salientar que a busca pelo desenvolvi- Salinas de Gortari, a Venezuela de Perez,

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enfim, a América Latina parecia render-se Área de Livre Comércio Sul-Americana –
às forças da globalização de mercado que ALCSA. A integração hemisférica represen-
prometiam e apresentavam um novo mun- tada pela Alca, em um primeiro momento
do, repleto de oportunidades e perspectivas ventilada, é tangenciada posteriormente
de desenvolvimento associado. com extrema cautela e desconfiança.
Entretanto, sem haver oposição de Em 1991, o Mercosul ganha materialida-
ideias, o processo de liberalização comercial de física e força institucional com o Tratado
e abertura da economia implementado pelo de Assunção. Com a adesão de Uruguai
Brasil nesse contexto e a adesão aos prin- e Paraguai, consolidando a integração
cípios capitalistas de mercado não acaba- sub-regional, estavam colocadas as bases
ram por subverter o padrão universalista, para um novo patamar de cooperação e
autônomo, independente e diversificador desenvolvimento associado de âmbito con-
de nossa conduta externa, já enraizado na tinental, mola propulsora do pensamento
matriz do pensamento internacionalista estratégico nacional que, de sua matriz
brasileiro. legal-constitucional, passa a moldar cora-
Nesse sentido, a despeito de movimen- ções e mentes ligados ao internacionalismo
tos iniciais que indicavam uma possível brasileiro.
aliança especial com a potência hegemônica Das negociações da Conferência das
da América do Norte, tal empreitada foi Nações Unidas para o Meio Ambiente e
liminarmente dissuadida tanto pelo corpo o Desenvolvimento, a chamada Eco-92,
técnico diplomático, quanto pela sociedade realizada no Rio de Janeiro naquele ano,
em geral. Na avaliação de Flávia Mello, os constata-se nitidamente o caráter globalis-
fatores determinantes da manutenção do ta e universal que o liberalismo brasileiro
viés universalista foram: manteve na política externa nacional. Da
“o alto grau de enraizamento desse retórica ambiental pautada pelas necessida-
paradigma no âmbito do Ministério des de desenvolvimento das nações ao Sul,
da Relações Exteriores; a coesão da percebe-se claramente que o alinhamento
corporação diplomática na coordena- automático mostrava-se incondizente com
ção de suas preferências e o contexto as aspirações históricas brasileiras e as pos-
de incerteza quanto á distribuição sibilidades múltiplas de sua ação exterior.
das preferências do sistema político Após a crise política que leva ao impeach-
doméstico” (MELLO in: ALTEMANI, ment de Fernando Collor, é alçado ao poder
2005, p.233). seu vice, Itamar Franco, cujas diferenças
A assunção do paradigma liberal no co- ideológicas e comportamentais levaram
meço da década de 90, portanto, não deixou ao afastamento mútuo quase no momento
de lado os ícones históricos e arraigados de imediatamente posterior à eleição. Político
nossa ação internacional. Nem de longe se mais tradicionalista, ungido à condição de
logrou reproduzir no Brasil, por exemplo, mandatário da República sob condições
as “relações carnais” com os EUA procla- precárias e extremamente frágeis do pon-
madas por nuestros hermanos da Argentina to de vista institucional, para Franco não
de Menem e Di Tella. restava alternativa senão um governo de
Deu-se prosseguimento, assim, no coalizão, sem premissas ideológicas muito
contexto do pós-guerra fria, a ênfase ao fortes e pautado pela conservação de várias
regionalismo e ao processo de integração diretrizes anteriores.
continental. O projeto do Mercosul é adota- Assim pode-se dizer que foi a sua po-
do com fulgor pela nossa diplomacia como lítica externa. Sem rótulos enunciativos ou
objetivo prioritário, e seu conceito é amplia- etiquetas marcantes, a conduta internacio-
do pela proposta brasileira de criação da nal de seu governo reafirmou o sentido

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universalista e autônomo na orientação exterior para a consecução desse novo mo-
de nossos negócios exteriores e ressaltou delo paradigmático de gestão.
a busca pelo desenvolvimento como seu Assim, termos como privatização, libe-
vetor principal. ralização e fiscalismo são ungidos como
Os projetos de integração regional e palavras de ordem nesse novo padrão de
sub-regional são mantidos e aprofunda- desenvolvimento, não mais fundamentado
dos. Com a consolidação do Mercosul, na ação direta e onipresente do Estado. E o
impulsiona-se o projeto da ALCSA, propos- processo de reforma e modernização inter-
ta em 1993. Diante do panorama mundial na acabaria por influenciar a estratégia de
de concertações continentais, dentro da inserção internacional a ser executada pela
dualidade globalização versus regionalismo diplomacia brasileira no período.
que caracteriza o seu contexto, a política Partindo da percepção realista de uma
externa praticada pelo Governo de Franco potência média com espaços reservados
caracteriza-se pela estreita aproximação de poder, a política externa de Cardoso
com os vizinhos sul-americanos. aposta no institucionalismo internacional
Finalmente, no final de 1994, o Protocolo como cenário otimizador para ganhos ab-
de Ouro Preto firmou a condição de união solutos e preservação de autonomia. Dessa
aduaneira entre os quatro países do bloco forma, pela maior participação nos fóruns
austral, mesmo que imperfeita pelas inú- mundiais e adesão vigorosa aos esforços
meras exceções à tarifa externa comum. A multilaterais, acreditava-se que o País teria
grande nau da obra de agregação regional, sua capacidade de barganha ampliada e
dessa forma, seguia de vento em popa, seu respaldo na comunidade internacional
singrando os mares abertos da interdepen- robustecido.
dência econômica global. Cardoso mostrou-se um entusiasta do
novo internacionalismo. Executou com
vigor e sob holofotes a diplomacia presi-
4. A política externa nos anos FHC
dencial, legitimada na busca por reconhe-
A gestão de Fernando Henrique Cardo- cimento internacional à tradição brasileira
so à frente dos desígnios da Nação começa de aceitação plena dos valores globais e da
sob o signo da estabilidade econômica ordem mundial. Buscava reconhecimento
alcançada pelo Plano Real. Tendo sido e abrigo no ocidentalismo, mas sem deixar
Chanceler e Ministro da Fazenda do gover- de preservar os princípios históricos de
no anterior, o festejado sociólogo chega ao universalidade e diversidade que lastreiam
poder pelos confetes do sucesso do combate o nosso comportamento externo. Nas pala-
à inflação, chaga nacional durante largo vras de Letícia Pinheiro:
tempo. Munido de expressiva legitimidade “(...) buscou-se reforçar a opção pelo
eleitoral e maciço apoio popular, Cardoso fortalecimento das instituições mul-
sente-se à vontade para implementar um tilaterais internacionais já que, por se
desmonte do grande aparato estatal que autodefinir como país intermediário
representava o modelo desenvolvimentista com recursos limitados de poder, su-
das décadas passadas. punha-se que a adesão às normas de
Impulsionado pela necessidade da regulação internacional lhe garantiria
abertura comercial como premissa do plano a preservação de espaços de autono-
estabilizador e identificando nova confi- mia” (PINHEIRO, 2004, p. 62).
guração no sistema mundial, Fernando No sentido de ampliar seu acesso a no-
Henrique Cardoso abraça com incontido vos mercados e padrões produtivos, requi-
as proposições do novo internacionalismo sito básico para o novo modelo de desen-
econômico e instrumentaliza a sua política volvimento que se desejava implementar,

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o Brasil avaliza o novo intistucionalismo lítica externa percepções próprias e deter-
do comércio internacional materializado minadas alterações de rumo, mas preserva
na criação da Organização Mundial do os conceitos e os princípios arraigados que
Comércio (OMC). Para a grande aventura pautam e moldam historicamente a essência
de ingresso ao jogo do comércio planetário, de nosso comportamento internacional.
desejava-se uma grande concertação para a
definição e consolidação de seu regramen-
5. A crise do modelo liberal e a
to, projeto do qual uma nação como o Brasil
não poderia nem deveria deixar de tomar ascensão de Lula
parte. E assim procedeu a diplomacia de Em 2002, em meio às contestações à
Cardoso, participando dos grandes esforços ortodoxia liberal preponderante na déca-
multilaterais. da passada, ascende ao poder o ex-líder
A agenda internacional, da mesma operário Luiz Inácio Lula da Silva, após
forma, ampliava-se em seu rol temático. três tentativas eleitorais fracassadas.
Questões ambientais e ligadas ao crime Manifestando, todavia, sinais de maior
internacional, ao narcotráfico, aos direitos conservadorismo desde a campanha, Lula
humanos, fluxos migratórios e à não- chega ao poder sob novos condicionantes e
proliferação impuseram novas discussões parâmetros. Mantendo o compromisso com
e alinhamentos. Em sua índole kantiana e os princípios da responsabilidade fiscal, da
multilateral, a política externa do governo estabilidade e da política macroeconômica
Fernando Henrique Cardoso reafirmou da gestão anterior, Lula envia à comuni-
o seu endosso à regularidade sistêmica dade financeira internacional a inequívoca
internacional e incorporou vários desses mensagem de que não se insurgiria contra a
temas ao seu plano de inserção. ordem vigente e as regras contratuais.
Assim se explica a adesão ao Tratado Em contraponto ao tom conservador e
de Não-Proliferação Nuclear e à criação do cauteloso adotado na condução da política
Tribunal Penal Internacional, a participação econômica, o governo Lula assume posi-
ativa na elaboração do Protocolo de Kyoto cionamento mais agressivo na divulgação
e diversas outras medidas de adensamento de sua política externa. Identificando o
da dimensão multilateral de nossa conduta comportamento exterior assumido por
exterior no período. seus antecessores próximos como exces-
À empreitada da integração regional foi sivamente passivo e dócil frente aos gran-
dado prosseguimento prático e funcional. des entraves e desafios multilaterais, sua
Como plataforma para se alcançar maiores retórica internacionalista passa a cobrar
ganhos absolutos no nível mundial, o Mer- maior assertividade e altivez na busca dos
cosul é instrumentalizado externamente interesses nacionais em mundo ainda com
para a articulação dos interesses comuns poucos espaços para a periferia.
dos países membros. Internamente, maiores Inspirada pelos parâmetros diversifi-
ambições à dimensão institucional do bloco cadores inaugurados na Política Externa
são inibidas, preservando-se o poder rela- Independente de Jânio Quadros, mas sem
tivo brasileiro dentro de sua formatação. deixar de reconhecer e instrumentalizar a
Cardoso também encampa a ideia da comu- nova dinâmica da interdependência eco-
nidade sul-americana, cujo ponto alto se dá nômica, a condução dos negócios externos
com a realização em Brasília, no ano 2000, pelo governo Lula salta de patamar na
da cúpula da América do Sul, mantendo-se autodefinição nacional: o Brasil não podia
a lógica aplicada ao bloco sub-regional. ser apenas um coadjuvante no sistema in-
Em resumo, assim como vários de seus ternacional, mas um global player de papel
antecessores, Cardoso imprime à sua po- protagônico e influenciador.

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Fortemente calcada na figura midiática mundo em desenvolvimento e exportador
e inspiradora do ex-operário Lula, exortan- de produtos primários, cujo emblema é a
do-o como porta-voz das iniqüidades do formação do G-20 em meio às negociações
mundo e pela reforma no funcionamento da Rodada Doha de liberalização comercial,
do sistema internacional, sua política exter- a diplomacia brasileira protagoniza sucessi-
na conflagra um articulado movimento de vos embates pelo fim dos subsídios agrícolas
ampliação das novas esferas de poder e de concedidos pelas potências do Norte e realça
movimentação econômica. as cores de sua retórica mais pró-ativa.
É a época da elevação dos BRICs3 à con- O caminho do multilateralismo, nesse
dição de nações com efetivo peso no cenário contexto, é trilhado sob o pleito reformista,
econômico mundial, e a aproximação bra- de apelo à aproximação com uma nova
sileira com seus parceiros de crescimento configuração internacional nascente. Quer-
vertiginoso é natural e irreversível. Dotados se tomar parte de seu conjunto, mas subli-
de imensas potencialidades de recursos nhando a necessidade de seu redesenho. A
humanos e produtivos, notadamente Chi- postulação por um assento permanente no
na, Índia e Brasil compartilham aspirações Conselho de Segurança da ONU da atual
e reivindicações quanto à remodelagem chancelaria demonstra tal condição, asso-
das estruturas decisórias relacionadas às ciada a uma participação mais efetiva e de
grandes questões internacionais. liderança em empreitadas como a Missão
A importância da cooperação com o de Paz no Haiti – MINUSTAH. Para Celso
grande parceiro comercial norte-americano Lafer, tal conduta é mais espalhafato que
continua sendo reconhecida como peça cha- substância:
ve no tabuleiro de nossa política exterior, “Mas, também, contém mudanças de
mas foge-se de qualquer tipo de alinha- ênfases, às vezes perigosas, e sobre-
mento automático ou coordenação com tudo de figuração: a atual diplomacia
as posições hegemônicas estadunidenses. dá a política externa uma feição de
Não faltam exemplos de tal linha de ação: política-espetáculo, reminiscência
o acordo dos biocombustíveis e o diálogo da festa republicana destinada a
estratégico para a contenção do bloco anti- transmitir ao público interno a idéia
EUA no subcontinente, por um lado, e o re- de um recomeço radical” (LAFER in:
púdio à invasão do Iraque e o enfretamento ALTEMANI, 2005, p. 253).
nas negociações comerciais no âmbito da Como contraponto, Amado Cervo reco-
OMC, pelo outro viés. Fato marcante des- nhece na mudança dos rumos da política
sa nova dimensão do internacionalismo externa brasileira operada na era Lula uma
brasileiro também se dá com a tentativa de inflexão importante e absolutamente legí-
protagonizar um acordo nuclear com o Irã, tima, que retoma a defesa dos interesses
a despeito da desconfiança das potências nacionais:
militares quanto às reais pretensões da “Da era Cardoso para Lula, o Brasil
república islâmica nesse diapasão. evoluiu de uma aliança estratégica
Entretanto, é na seara das negociações com o Ocidente, feita de subservi-
multilaterais do comércio internacional que ência decisória e de ilusão kantiana,
a atuação brasileira se dá com maior vigor para o universalismo de ação, feito
e desenvoltura. Assumindo a liderança do do jogo duro e realista das relações
movimento de defesa dos interesses do internacionais” (CERVO in: ALTE-
MANI, 2005, p. 257).
Acrônimo criado pelo economista Jim O’Neil,
3

formado pelas iniciais de Brasil, Rússia, Índia e China,


Se tal postura representa mero espe-
para designar as quatro grandes locomotivas do cres- táculo ou realismo de ação, pura retórica
cimento econômico mundial nas próximas décadas. mudancista ou efetivo aggiornamento práti-

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co, não há consenso entre os analistas. Mas Referências
o que é absolutamente inquestionável é a
contínua validade do acumulado histórico ALTEMANI, H. Política externa Brasileira. São Paulo:
Saraiva, 2005.
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internacional passou por alterações profun-
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cionais. São Paulo: Paz e terra, 1998
sistêmico. Novos esquemas de poder e de
concertação política e econômica trouxe- GUIMARÃES, S.P. Quinhentos anos de periferia: uma
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v. 38, n. 1, p. 5-23, 1995.
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de desenvolvimento foram aposentados, LAFER, C. A identidade internacional do Brasil e a política
externa brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo:
reformulados, resgatados e reinventados
Perspectiva, 2001.
com a mesma velocidade que as conjuntu-
ras do sistema internacional sofriam novos PINHEIRO, L. Política externa brasileira. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2004.
arranjos e criavam novos condicionantes.
No mesmo diapasão, a estratégia de inser- RICUPERO, R. Visões do Brasil: ensaio sobre a história e a
ção global, fundamentada na percepção da inserção do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1995.
identidade internacional e dos interesses da SARAIVA, J. F. S. (Ed.). Foreign policy and political
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panhando, em alguma medida, os fluxos e SARAIVA, J. F. S. O lugar da África: a dimensão atlântica
refluxos dessa torrente de mudanças. da política exterior brasileira. Brasília: EDUnB, 1996.
Entretanto, no meio dessa correnteza SEIXAS CORRÊA, L. As relações internacionais do Brasil
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Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 329

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