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2º Semestre – 2019/2020
i
Ao colega Dr. Carlos Alberto Revez Inácio,
um especial agradecimento pela generosidade
com que sempre se dispôs a receber-nos e a ajudar-nos,
e ao qual este trabalho muito deve.
Índice
Introdução ....................................................................................................................... 1
I. Objetivos e Metodologias.......................................................................................... 1
Conclusão ...................................................................................................................... 20
Bibliografia .................................................................................................................... 23
Anexos ............................................................................................................................... i
Gráficos: ........................................................................................................................ i
i
Introdução
I. Objetivos e Metodologias
1
constatámos o reduzido número de trabalhos académicos focalizados no bairro. Não
obstante esta circunstância, decidimos avançar com o estudo do processo de formação do
Bairro da Encarnação, uma vez que a documentação encontrada se revelou bastante
extensa e rica.
Com efeito, uma investigação desta natureza exige uma contextualização o mais
completa possível da época em que se insere e do ideário político vigente. Para tal, além
da legislação consagrada à política habitacional, consultámos discursos políticos
referentes a esta matéria, muitos deles presentes nas publicações do Secretariado da
Propaganda Nacional e nos boletins do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência,
onde se encontram também as listas dos requerentes e da atribuição definitiva das
habitações do Bairro da Encarnação. No sentido de dar consistência ao nosso trabalho e
expor a retórica propagandística do regime em relação a estes bairros, optámos por
analisar também as peças jornalísticas que deram conta da inauguração do Bairro da
Encarnação.
Não obstante esta situação, é de referir que todas as fontes apresentadas no plano
de trabalho foram analisadas exaustivamente. De igual modo, a bibliografia também foi
alvo de várias leituras, tendo sido toda previamente compilada nas poucas vezes que
fomos à Biblioteca Nacional de Portugal, ainda antes do eclodir da pandemia, embora
não tenhamos tido oportunidade de explorar uma bibliografia suplementar como
pretendíamos. Deste modo, apesar dos inevitáveis reajustes que tivemos de fazer, os
objetivos inicialmente propostos mantiveram-se, sendo que para a sua prossecução
trabalhámos coordenados, em regime de teletrabalho, um com o outro, sempre que isso
foi possível.
1
Francisco Santana, Eduardo Sucena, Dicionário da História de Lisboa, Lisboa, C. Quintas, 1994, p.132.
3
e Eduardo Sucena, que se assume como um bom ponto de partida para um enquadramento
genérico do complexo tópico da história da habitação social em Portugal.
No campo dos estudos relativos à habitação social durante o Estado Novo, que
constitui o foco do presente trabalho, é inevitável evocar Marielle Christine Gros, cuja
obra O alojamento social sob o fascismo, publicada em 1982, constitui o primeiro ensaio
relativo a esta matéria, embora abordando sobretudo a cidade do Porto. De igual modo, é
de referir as contribuições pioneiras de Carlos Nunes Silva, com o livro Política urbana
em Lisboa, 1926-19745 e o artigo “Mercado e políticas públicas em Portugal: a questão
da habitação social na primeira metade do século XX”6, ambos publicados em 1994, que
nos oferecem uma imagem sumária, mas rigorosa, da problemática da habitação social.
Outra referência obrigatória é Cidade e Habitação social: o Estado Novo e o programa
das casas económicas em Lisboa7, de Luís V. Baptista, importante no seu esforço de
traçar as primeiras políticas públicas em matéria habitacional em Portugal e a sua
evolução ao longo do tempo.
2
Maria Júlia Ferreira, Habitação Social em Portugal - Breve história e alguns problemas, Lisboa,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1988 & Maria Júlia Ferreira,
“O Bairro Social do Arco do Cego — uma aldeia dentro da cidade de Lisboa”, Análise Social, vol. 29, n.
127, 1994, Instituto Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
3
Manuel C. Teixeira, “As estratégias de habitação em Portugal, 1880-1940”, Análise Social, vol. 27, n.
115, 1992, Instituto Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
4
Maria da Conceição Tiago, “Bairros Sociais da I República: projectos e realizações”, Ler História, n. 59,
15 de outubro 2010.
5
Carlos Nunes Silva, Política urbana em Lisboa, 1926-1974, Lisboa, Livros Horizonte, 1994.
6
Carlos Nunes Silva, “Mercado e políticas públicas em Portugal: a questão da habitação na primeira metade
do século XX”, Análise Social, vol. 29, n. 127, 1994, Instituto Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
7
Luís V. Baptista, Cidade e habitação social: o estado novo e o programa das casas económicas em
Lisboa, Oeiras, Celta Editora, 1999.
4
Publicado mais recentemente, já em 2012, o livro Na modesta cidadezinha.
Génese e estruturação de um bairro de casas económicas do Porto8, de Virgílio Borges
Pereira e João Queirós, figurou-se uma aportação importante, lançando pistas de
orientação interessantes para o nosso trabalho, embora dedicando a análise, mais uma
vez, a um bairro portuense. Por fim, neste campo, é de mencionar o artigo9 de Gonçalo
Antunes, José Lúcio, Nuno Pires Soares e Rui Pedro Julião, que corresponde a uma boa
sistematização das políticas sociais de habitação implementadas durante a Primeira
República e o Estado Novo, na medida em que traça um percurso cronológico, mas
também crítico, da legislação promulgada em matéria habitacional desde a implantação
da República até 1974, identificando as diferentes soluções e estratégias que estes dois
regimes procuraram aplicar para resolver o problema da habitação.
8
Virgílio Borges Pereira e João Queirós, Na “modesta cidadezinha”: génese e estructuração de um bairro
de “casas económicas” do Porto (Amial, 1938-2010), Lisboa, Afrontamento, 2012.
9
Gonçalo Antunes et al., “Políticas de habitação social precedentes a Abril de 1974”, 2016.
10
Carlos Alberto Revez Inácio e Fernando Furtado Barreiros, O Bairro da Encarnação e as Antigas Quintas
dos Olivais, Lisboa, CML - Imprensa Muncipal, 2012.
5
O problema da habitação em Portugal na primeira metade do século
XX
11
Fernando Rosas e Maria Fernanda Rollo (eds.), História da Primeira República Portuguesa, 2a edição.,
Lisboa, Edições Tinta da China, 2009, p. 33.
12
Idem., p. 240.
6
destinadas ao alojamento das classes mais desfavorecidas, “com todas as possíveis
condições de conforto, independência e higiene”13. Com esta medida, pretendia-se criar
um enquadramento jurídico e legislativo propício ao surgimento de entidades privadas
dispostas a investir na construção de casas de renda controlada, ficando o Estado com a
possibilidade de investir, mas apenas em “circunstâncias especiais e urgentes”14. No
entanto, esta estratégia de captação de capital privado não alcançou os efeitos pretendidos,
devido ao reduzido interesse dos empreendedores particulares em investir na promoção
de habitação social, o que fez com que os poucos bairros sociais mandados construir
durante a Primeira República tivessem acabado por ter sido integralmente financiados
pelo Estado.
13
DG, I Série, 25 Abr. 1918, 87, p. 451
14
Idem., Art 1, Alínea 1ª, p. 455.
15
José Mattoso, História de Portugal, vol. VII, Lisboa, Círculo de Leitores, 1992, p. 151.
7
caracterizou, desde logo, o que viria a ser o seu regime: conservador, nacionalista,
autoritário e corporativo16. Institucionalizado em 1933, com o plebiscito de uma nova
Constituição, o Estado Novo seria, nas palavras de Salazar, uma antítese da “desordem
política, financeira, económica e social”17 da Primeira República, através do “reforço da
autoridade do Estado”18. Para tal, regulamentou-se o direito de reunião e a censura prévia
à imprensa; reorganizou-se a polícia política, com a criação da Polícia de Vigilância e
Defesa do Estado (PVDE) e formalizou-se a dimensão social-corporativa do regime com
a publicação do Estatuto do Trabalho Nacional, a criação dos Grémios, Sindicatos
Nacionais e Casas do Povo, e a criação do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência,
tutelado pelo Subsecretariado das Corporações e Previdência Social, também criado nesse
ano19.
Segundo Fernando Rosas, nos anos 30, a sociedade portuguesa conheceu “um dos
períodos de maior pujança demográfica”20 do século XX, registando-se, no espaço de
duas décadas, entre 1920 e 1940, um aumento populacional global de cerca de 1,7 milhões
de pessoas.
16
Rui Ramos et al., História de Portugal, 7a edição., Lisboa, A Esfera dos Livros, 2012, p. 627.
17
António de Oliveira Salazar, Discursos (1928-1934), vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, Lda, 1935, p. 46.
18
Idem, p. 285.
19
Fernando Rosas, Salazar e o poder: a arte de saber durar, Lisboa, Tinta-da-China, 2015, pp. 81–82.
20
José Mattoso, História de Portugal, Vol. VII, Lisboa, Círculo de Leitores, 1992, p. 21.
21
Idem., p. 23.
8
salubridade das habitações, com o surgimento de numerosos aglomerados improvisados,
os chamados “bairros de lata”.
Será neste caldo económico e demográfico que o Estado Novo, imbuído das
premissas político-ideológicas já referidas, tentará dar resposta ao premente e permanente
problema da carência habitacional. A sua ação política neste campo pautar-se-á por uma
crescente atividade de regulação estatal, que se iniciará com a publicação do Decreto-Lei
n.º 23.052, de 23 de setembro de 1933, que estabelecerá o Programa das Casas
Económicas.
Com esta iniciativa legislativa, o Estado Novo lançava as bases do regime jurídico
no qual se deveria desenvolver a atuação do Estado em matéria de habitação social,
através da definição das normas de construção e distribuição de “casas económicas”.
Logo nos primeiros artigos do documento fica bem patente a intenção do Estado em
controlar a condução de todo o processo, ao promover a construção das casas “em
colaboração com as câmaras municipais, corporações administrativas e organismos
corporativos”22. A supervisão da fase de construção ficaria a cargo do Ministério das
Obras Públicas, através da Secção de Casas Económicas da Direção-Geral dos Edifícios
e Monumentos Nacionais23, e ao Subsecretariado das Corporações e Previdência Social
competiria a fiscalização do processo de distribuição, bem como a “realização dos fins
económicos e sociais das casas económicas”24.
22
DG, I Série, 23 Set. 1933, 217, Art 1º, p. 1664.
23
Idem, Art 4º.
24
Idem, Art 5º.
25
António de Oliveira Salazar, Discursos (1928-1934), vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, Lda, 1935, p.
323.
26
Boletim do INTP, ano II, nº 8, de 15 de março de 1935.
9
afortunadas”27 como “um dos principais objetivos da política social do Estado Novo”28.
Esta lógica benemérita foi intensamente propalada pela máquina de propaganda do
regime, para quem a política habitacional do Estado Novo seguia o “fim ético da justiça
social”29, e concebia o Programa das Casas Económicas como um instrumento de auxílio
às classes mais desfavorecidas, pois concedia-lhes a oportunidade de adquirirem uma
casa a custo reduzido.
O Decreto previa que as casas fossem agrupadas por classes, cujas classificações
dependiam das suas áreas e qualidade de acabamentos. Por outro lado, estipulava que os
moradores-adquirentes ficassem na posse plena das habitações no final do pagamento das
240 prestações32 previstas para a amortização da casa, ou seja, apenas ao fim de 20 anos.
No concurso de atribuição das habitações, o diploma previa que se considerasse os
rendimentos de cada agregado familiar. A Classe A destinava-se a rendimentos diários
inferiores a 20$00 (i.e., entre os 600$00 e os 1200$00 mensais) e a Classe B a rendimentos
auferidos na ordem dos 20$00 aos 45$0033 (i.e., entre os 1100$00 e os 1700$00 mensais),
estando estas classes subdivididas em três tipologias diferentes34 (I, II e III), em função
do tamanho e composição da família. Posteriormente, com o Decreto-Lei n.º 33.278, de
24 de novembro de 1943, acrescentar-se-iam as classes C e D, que correspondiam a
habitações maiores35 e de melhor qualidade, destinadas às classes médias, nomeadamente
às “famílias com proventos mensais de 1500$00 a 3000$00”36. Para além dos
vencimentos e da composição dos agregados, tinha-se igualmente em consideração a
27
SPN, Secção Casas Económicas, 1943, p. 5.
28
Ibid.
29
Idem, p. 6.
30
DG, I Série, 23 Set. 1933, 217, Art 2º, p. 1664.
31
Ibid.
32
Idem., Art. 36, p. 1667.
33
Idem, Art. 12, ponto 2º, p. 1665.
34
Idem, Art. 12, ponto 1º.
35
Para ver as dimensões destas duas classes de moradias, Vide DG, I Série, 24 Nov. 1943, 256, Art. 6º, p.
823.
36
Ibid., Art. 7º, p. 825.
10
regularidade do emprego (no caso dos associados dos Sindicatos Nacionais), o
comportamento social e profissional e a idade (entre os 21 e os 40 anos)37.
Todos os dados aqui expostos permitem-nos constatar que o Programa das Casas
Económicas esteve longe de corresponder à imagem que o regime construiu em torno
dele. O discurso oficial e propagandístico do Estado Novo era negado pela realidade
legislativa, uma vez que a sua política habitacional se dirigia fundamentalmente “às
classes médias, a sua principal base de apoio”38, e não às classes trabalhadoras e mais
desfavorecidas.
37
DG, I Série, 23 Set. 1933, 217, Arts. 33 e 34, p. 1667.
38
Manuel C. Teixeira, “As estratégias de habitação em Portugal, 1880-1940”, p. 79.
39
Fernando Gonçalves, “A mitologia da habitação social”, Revista Cidade e Campo, n. 1, 1978, p. 39.
40
Virgílio Borges Pereira e João Queirós, Na“modesta cidadezinha,” p. 21.
41
Marielle Christine Gros, O Alojamento Social sob o Fascismo, Porto, Edições Afrontamento, 1982, p.
111.
42
Virgílio Borges Pereira et al., “Casas económicas e casas desmontáveis: Génese, estruturação e
transformação dos primeiros programas habitacionais do Estado Novo”, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa
da Moeda, 2018, p. 115.
43
Idem., p. 22.
11
perante “casas para quem as pudesse pagar”44. O regime reconhecerá inclusive em várias
ocasiões, embora de forma mais ou menos involuntária, que os preços das habitações
económicas não eram acessíveis às classes mais desfavorecidas. Por exemplo, em 1937,
o Comissariado do Desemprego informava, relativamente ao distrito de Lisboa, que “o
salário oscila entre os 8$00 e os 9$00 diários, julgados insuficientes para a manutenção
da família”45, e muito inferiores aos rendimentos exigidos aos candidatos a este programa.
Por outro lado, como nos lembra Marielle Christine Gros, a fixação de um limite de idade
(até aos 40 anos) era um critério consciente de que esse corresponde ao período de vida
em que se é mais produtivo46. Também o facto de os funcionários públicos e os inscritos
nos Sindicatos Nacionais serem os únicos grupos passíveis de serem contemplados com
uma moradia demonstra que a opção era “a de construir para os que têm trabalho seguro
e permanente”47. Por outras palavras, os segmentos da população mais carenciados e/ou
com inserção profissional mais precária, ou seja, os grupos com maior necessidade de
alojamento, encontravam-se paradoxalmente vedados ao acesso a estas habitações, que
acabavam por ser entregues a quem se mostrava capaz de cumprir com as exigências
financeiras das prestações, isto é, a quem tinha maiores disponibilidades financeiras.
44
Idem, p. 21.
45
Boletim do Comissariado do Desemprego, nº 16, de outubro a dezembro de 1937, p. 606.
46
Marielle Christine Gros, O Alojamento Social sob o Fascismo, p. 111.
47
Maria Júlia Ferreira, Habitação Social em Portugal - Breve história e alguns problemas, p. 24.
48
DG, I Série, 21 Jul. 1953, 155, Art 1º., p. 973.
49
Idem., Art. 2º.
50
Carlos Nunes Silva, Planeamento municipal e a organização do espaço em Lisboa: 1926-1974, Centro
de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa, I.N.I.C., 1987, p. 292.
12
o regime, na sua génese, procuraram defender, encerrando, por isso, o limite cronológico
da nossa análise.
Num dos seus célebres discursos ao país, Salazar descrevia aquele que
considerava ser o arquétipo de Casa Portuguesa, isto é, uma “casa pequena,
independente, habitada em plena propriedade pela família”52. Era exatamente este modelo
que se pretendia materializar no bairro da Encarnação, encarnando a mundividência do
regime, que assumia a família como o núcleo da vivência do cidadão, “como a mais pura
fonte dos fatores morais da produção”53, numa retórica ideológica que aglutinava
moralidade, família e economia. Desta forma, as futuras habitações do bairro deveriam
proporcionar às futuras famílias que as adquirissem um ambiente íntimo e privado,
seguindo também a estratégia do regime de evitar grandes concentrações, potenciadoras
de subversão, ao mesmo tempo promoveriam uma ideologia pró-propriedade e pró-
individualismo54. Por outro lado, segundo Maria Júlia Ferreira, este tipo de casa, com um
jardim anexo e de transmissão hereditária, para além de suscitar uma sensação de conforto
material e tranquilidade quanto ao futuro nas pessoas que as viessem habitar,
51
Carlos Alberto Revez Inácio e Fernando Furtado Barreiros, O bairro da Encarnação e as antigas quintas
dos Olivais, 1a ed., Lisboa, CML, 2012, p. 28.
52
Salazar, António de Oliveira, Discursos (1928-1934), Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, Ldª., 1935,
p.202.
53
Idem, p.201.
54
Marielle Christine Gros, O Alojamento Social sob o Fascismo, p. 117.
13
proporcionariam um sentimento de “segurança, estabilidade e confiança no poder
político”55.
O preço dos terrenos onde seria construído o bairro deve ser, porém, relativizado,
uma vez que o regime iniciara, em 1938, com o Decreto-Lei n.º 28.787, um processo de
expropriações, que retirou aos donos das quintas e herdades os hectares necessários para
a construção a um preço extremamente inferior àquele que era o seu valor real58. A
redução dos custos na construção passaria também pelo “aproveitamento dos espaços e a
simplicidade da construção, de forma a racionalizar economicamente”59, como nos diz
Carla Terceiro. Esta autora recorda-nos ainda que, à época, o bairro da Encarnação não
estava integrado na cidade de Lisboa, como acontece hoje em dia, constituindo uma área
bastante rural que só com expansão progressiva da cidade o deixa de ser60. A nosso ver,
esta circunstância é também um grande motivo para a escolha da localização, na medida
em que um dos principais pilares ideológicos em que assentava o Estado Novo era a
55
Maria Júlia Ferreira, Habitação social em Portugal: breve história e alguns problemas, Lisboa, s.e.,
1988, p. 24.
56
“Palavras de S. Exa. o Sub-Secretário de Estado das Corporações na cerimónia da inauguração do Bairro
da Encarnação, no dia 27 de Maio de 1944”.
57
Carlos Alberto Revez Inácio e Fernando Furtado Barreiros, O bairro da Encarnação e as antigas quintas
dos Olivais, p. 20.
58
Idem, pp.22-23.
59
Carla Sofia Fernandes Terceiro, De social a privilegiado: narrativas de bairros sociais em Lisboa: o
Bairro da Encarnação e a sua vivência, Mestrado, Lisboa, Instituto Superior Técnico da Universidade de
Lisboa, 2013, p. 53.
60
Idem, p.50.
14
defesa da ruralidade, uma das virtudes do povo português61, juntamente com o
individualismo e a aversão ao comunitarismo.
61
Luís Miguel Silva Saraiva, Os Tipos de Habitação do Estado Novo. Lisboa, Universidade Lusíada, 1998,
p.69.
62
Carlos Nunes Silva, “«A urbanística do Estado Novo (1926-1959): nem nacional nem fascista”, in O
Estado Novo das origens ao fim da autarcia 1926-1959, vol. I, Lisboa, Fragmentos, 1988, p. 379.
63
Margarida Sousa Lobo, Duas décadas de planos de urbanização em Portugal: 1934-1954, Lisboa, M.
Lobo, 1993, p. 132.
64
Carlos Nunes Silva, “«A urbanística do Estado Novo (1926-1959): nem nacional nem fascista”, vol. I, p.
385.
65
Ibidem.
66
Carlos Alberto Revez Inácio e Fernando Furtado Barreiros, O bairro da Encarnação e as antigas quintas
dos Olivais, p. 28.
67
Carlos Nunes Silva, Planeamento municipal e a organização do espaço em Lisboa: 1926-1974, Centro
de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa, I.N.I.C., 1987, p. 316.
15
aviões68, o bairro da Encarnação se assemelhasse à figura de uma borboleta. É também
Montez que define a disposição das moradias, de forma a que os futuros adquirentes
dispusessem de espaço suficiente para expandir a sua casa, consoante os seus recursos69,
devendo ser construídas entre as três amplas alamedas que compõem o bairro70.
68
Carlos Alberto Revez Inácio e Fernando Furtado Barreiros, O bairro da Encarnação e as antigas quintas
dos Olivais, p. 28.
69
Carla Sofia Fernandes Terceiro, De social a privilegiado: narrativas de bairros sociais em Lisboa: o
Bairro da Encarnação e a sua vivência, p. 56.
70
Carlos Alberto Revez Inácio e Fernando Furtado Barreiros, O bairro da Encarnação e as antigas quintas
dos Olivais, p. 29.
71
Idem., p. 33.
72
Carlos Nunes Silva, Planeamento municipal e a organização do espaço em Lisboa, p. 315.
73
Carlos Alberto Revez Inácio e Fernando Furtado Barreiros, O bairro da Encarnação e as antigas quintas
dos Olivais, p. 37.
74
Idem, p.45.
75
As 1112 moradias que formaram o Bairro da Encarnação só viriam a ser terminadas em 1958, com a
construção das últimas 20.
76
Idem, p.44.
16
Tal inauguração foi largamente noticiada a 28 de maio pela imprensa, que rasgou
os mais largos elogios ao mais recente bairro de casas económicas e, por extensão, ao
Estado Novo. O jornal O Século afirmava que o bairro “é dos mais formosos de Lisboa o
local, numa ligeira encosta, à direita da estrada para Vila Franca, um pouco adiante da
larga rotunda da Encarnação e com excelente panorama para o rio”77, admitindo ainda
assim as precárias vias de acesso que a Encarnação ainda sofria. Não obstante, reforçava
aquele que seria o objetivo do regime em construir as habitações, o de “fixar ali famílias
modestas e pobres”78. O Diário de Notícias, por seu turno, destacava que o bairro se
encontrava “muito bem localizado quanto a condições higiénicas – batido pelo sol e
arejado – desfrutando-se linda paisagem (...)”79. Numa curta-metragem produzida pela
Sociedade Portuguesa de Actualidades Cinematográficas para o SPN, a Encarnação é
qualificada como “o novo bairro social”80, afirmando que “é lindo, e muito grande,
podendo abrigar centenas de famílias”81, num claro elogio à eficácia do Estado Novo na
resolução da questão habitacional.
As entradas das famílias nas novas casas iniciaram-se em 1945, mas antes disso
todos os chefes de família tiveram de ir a concurso para saberem se eram elegíveis para
77
O Século (edição de 28 de maio de 1944).
78
Ibidem.
79
Diário de Notícias (edição de 28 de Maio de 1944).
80
Película presente na edição nº 47 do Jornal Português, Sociedade Portuguesa de Actualidades
Cinematográficas (28 de Julho de 1944).
81
Ibidem.
82
Secretariado de Propaganda Nacional, “Na Encarnação: Um novo Bairro Social”.
17
habitar as moradias83. Também este processo não correu como o esperado, surgindo
vários problemas. Inicialmente, o número de concorrentes que compareceu aos concursos
situou-se muito abaixo do estimado, chegando-se à situação de existirem mais moradias
disponíveis do que pessoas interessadas nelas. Este facto justificava-se por consequência
das características dos bairros já expostas, nomeadamente a sua localização periférica
relativamente ao centro de Lisboa, onde trabalhariam as pessoas, assim como a falta de
acessibilidade e comunicações com a cidade84, suprimida mais tarde com a criação de
carreiras de autocarros85. Por outro lado, apesar de o preço das casas poder ser inferior ao
de outros pontos do concelho, as condições das casas deixavam muito a desejar para
grande parte dos potenciais interessados, que não queria habitar ali86. Surgia ainda outro
problema, desta vez por parte do regime, pois dos poucos candidatos que se apresentaram,
muitos deles não cumpriam os requisitos mínimos estipulados no decreto87,
demonstrando, assim, que os bairros económicos não eram realmente acessíveis a toda a
gente, nomeadamente às classes mais carenciadas.
83
Carlos Alberto Revez Inácio e Fernando Furtado Barreiros, O bairro da Encarnação e as antigas quintas
dos Olivais, p. 52.
84
Ibidem.
85
Carlos Nunes Silva, Planeamento municipal e a organização do espaço em Lisboa, p. 315.
86
Carlos Alberto Revez Inácio e Fernando Furtado Barreiros, O bairro da Encarnação e as antigas quintas
dos Olivais, p. 53.
87
Idem, p.52.
88
Ibidem.
18
Não obstante, não são estes gráficos que nos mostram realmente a capacidade
económica dos habitantes da Encarnação. No Gráfico 6, realizado a parte da dissertação
de Carla Terceiro, são apresentadas as diversas profissões dos habitantes do bairro da
Encarnação, a partir de um levantamento do INTP. A partir deste gráfico, podemos
verificar que a maior parte dos habitantes trabalhava em ministérios e câmaras
municipais, representando no seu conjunto cerca de um terço do total do bairro. De
seguida, o grupo ligado aos ministérios e câmaras municipais e o grupo de funcionários
bancários ou de escritório representam, cada um, 15% das moradias. Estes três grandes
ramos laborais representam por si só dois terços do bairro da Encarnação, e tendo estes
dados em mente, podemos observar que realmente o local não era habitado por pessoas
de classes baixas ou necessitadas, uma vez que os rendimentos auferidos nestas profissões
se distanciavam dos parcos salários do operariado e dos grupos socioeconómicos mais
pobres. Deste modo, observamos que os primeiros moradores do bairro possuíam
empregos ligados mais, ou menos, diretamente ao Estado Novo, rompendo com a lógica
apresentada por este de serem construções destinadas às “populações de fracos recursos
económicos”89.
89
DG, I Série, 23 Set. 1933, 217, Art 1º, p. 1664.
19
Conclusão
20
Fontes e corpos documentais
Fontes impressas
I. Legislação
i. Diário do Governo nº 87/1918, Série i, de 25-04-1918
a. Decreto-Lei nº 4.137, de 25 de Abril de 1918
II. Imprensa
Diário de Notícias (edição de 28 de Maio de 1944)
O Século (edição de 28 de Maio de 1944)
21
V. Comissariado do Desemprego
i. Boletim do Comissariado do Desemprego, nº 16, de Outubro a Dezembro
de 1937
Fontes Audiovisuais
Película presente na edição nº 47 do Jornal Português, Sociedade Portuguesa de
Actualidades Cinematográficas (28 de Julho de 1944). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=CpavJbuorng
22
Bibliografia
Obras Gerais e Dicionários sobre o Estado Novo e de Lisboa
Mattoso, José (ed.), História de Portugal: O Estado Novo (1926-1974), vol. VII, Lisboa,
Editorial Estampa, 1993.
Almeida, Sandra Vaz Costa Marques de, O país a régua e esquadro: urbanismo,
arquitectura e memória na obra pública de Duarte Pacheco, Dissertação de
Doutoramento, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009.
Antunes, Gonçalo; Lúcio, José; Soares, Nuno Pires; Julião, Rui Pedro, “Políticas de
habitação social precedentes a Abril de 1974”, 2016, p. 29.
Baptista, Luís V., Cidade e habitação social: o estado novo e o programa das casas
económicas em Lisboa, 1. ed., Oeiras, Celta Ed, 1999.
Bodenschatz, Harald; Sassi, Piero; Guerra, Max Welch, Urbanism and Dictatorship: A
European Perspective, Basel, Birkhäuser, 2015.
Ferreira, Maria Júlia, Habitação social em Portugal: breve história e alguns problemas,
Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,
1988.
Ferreira, Maria Júlia, “O Bairro Social do Arco do Cego - uma aldeia dentro da cidade de
Lisboa”, Análise Social, vol. 29, n. 127, 1994, pp. 697–709.
23
Gonçalves, Fernando, “«A Mitologia da Habitação Social: O Caso Português»”, Cidade
Campo, n. I, 1978, pp. 21–83.
Santos, Filipa Viegas Serpa dos, Entre habitação e cidade, Doutoramento, Lisboa,
Faculdade de Arquitetura de Lisboa, 2015.
Saraiva, Luís Miguel Silva, Os Tipos de Habitação do Estado Novo. Lisboa, Lusíada
Arquitetura, 1998.
Silva, Carlos Nunes, “«A urbanística do Estado Novo (1926-1959): nem nacional nem
fascista”, in O Estado Novo das origens ao fim da autarcia 1926-1959, vol. I, Lisboa,
Fragmentos, 1988.
Silva, Carlos Nunes, Política urbana em Lisboa, 1926-1974, Lisboa, Livros Horizonte,
1994.
24
Terceiro, Carla Sofia Fernandes, De social a privilegiado: narrativas de bairros sociais
em Lisboa: o Bairro da Encarnação e a sua vivência, Mestrado, Lisboa, Instituto Superior
Técnico da Universidade de Lisboa, 2013.
25
Anexos
Gráficos:
Moradias Classe A
16; 4%
i
Moradias Classe B
28; 11%
91; 25%
Funcionários Públicos
Sindicatos Nacionais
271; 75%
ii
Ocupação das Moradias Classe B
A1
A2 192; 18%
348; 32%
A3
B1 244; 22%
B2 218; 20%
B3
50; 4%
iii
Profissões dos habitantes do Bairro da Encarnação (anos
40)
Atividades marítimas 24; 3% 29; 3%
17; 2%
Construção Civil 46; 5%
Atividades industriais
43; 149; 15%
Forças armadas e policiais
4%
Ministeriais e camarários 147; 15%
Transportes e comunitários
101; 10%
Comércio e serviços
Ofícios 107; 11% 316; 32%
Bancários/Escritórios
Profissões liberais
(Gráfico 6) – “Profissões dos habitantes da Encarnação nos anos 40”. Elaborado a partir
de Carla Sofia Fernandes Terceiro, De social a privilegiado: narrativas de bairros sociais
em Lisboa: o Bairro da Encarnação e a sua vivência, Mestrado, Lisboa, Instituto Superior
Técnico da Universidade de Lisboa, 2013, p.55.
iv
Fotografias:
v
(Fig. 2) - Panorâmica do bairro da Encarnação (posterior a 1940). Fotografia de Mário de
Oliveira, in Arquivo Municipal de Lisboa. Disponível em: http://arquivomunicipal2.cm-
lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=277607&Apl
icacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1
vi
(Fig. 3) - Rua do bairro da Encarnação (c. 1946). Fotografia de Salvador de Almeida
Fernandes, in Arquivo Municipal de Lisboa. Disponível em:
http://arquivomunicipal2.cm-
lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=281357&Apl
icacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1
vii
(Fig. 4) - Bairro da Encarnação (c. 1940). (s.a.), in Arquivo Municipal de Lisboa.
Disponível em: http://arquivomunicipal2.cm-
lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=342714&Apl
icacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1
viii
(Fig. 5) - Rua do bairro da Encarnação (c. 1940). Fotografia de António Castelo Branco,
in Arquivo Municipal de Lisboa. Disponível em: http://arquivomunicipal2.cm-
lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=271734&Apl
icacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1
ix
(Fig. 6) - Rua do bairro da Encarnação (s.d.). Fotografia de Artur João Goulart, in Arquivo
Municipal de Lisboa. Disponível em: http://arquivomunicipal2.cm-
lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=294459&Apl
icacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1
x
(Fig. 7) – Rua do bairro da Encarnação (194?). Fotografia de Kurt Pinto, in Arquivo
Municipal de Lisboa. Disponível em: http://arquivomunicipal2.cm-
lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=275623&Apl
icacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1
xi
(Fig. 8) - Rua bairro da Encarnação (20-5-1945). Fotografia de Kurt Pinto, in Arquivo
Municipal de Lisboa. Disponível em: http://arquivomunicipal2.cm-
lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=275622&Apl
icacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1
xii
(Fig. 9) - Panorâmica do bairro da Encarnação (1954). Fotografia de Armando Maia
Serôdio, in Arquivo Municipal de Lisboa. Disponível em: http://arquivomunicipal2.cm-
lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=276246&Apl
icacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1
xiii
(Fig. 10) - Bairro da Encarnação (c. 1940). (s.a.), in Arquivo Municipal de Lisboa.
Disponível em: http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt/x-
arqweb/ContentPage.aspx?ID=952be572824a0001e240&Pos=1&Tipo=PCD
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