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A CRISE DO COVID-19 E AS POLÍTICAS ECONÔMICAS EMERGENCIAIS

NA AMÉRICA DO SUL

Nas últimas semanas, vários países da América do Sul anunciaram medidas


econômicas para combater aquilo que já se anuncia como a maior crise do século,
resultado do COVID-19. As previsões mais otimistas já preveem, no mínimo, uma
queda de 30% do PIB estadounidense no próximo trimestre [1].

É de vital importância a ação do Estado nesse momento para atenuar os impactos


da crise. Utilizam-se como instrumentos a política fiscal, que envolve gastos públicos, e
a política monetária, de controle de juros e emissão de moeda. Ambas coordenadas
conformam a política econômica, que no momento é utilizada para produzir um efeito
inverso à queda da renda geral.

Nesse sentido, com raras exceções, os governos sul-americanos vêm propondo


medidas que englobam o financiamento de seus sistemas de saúde, manutenção da
renda dos mais vulneráveis e impedimento do colapso da sua estrutura produtiva e
financeira.

A Argentina, que já havia anunciado um pacote econômico no fim de 2019 para


reavivar a sua claudicante economia, divulgou em 23 de março [2] recursos para
financiar o seu sistema de saúde – foram anunciados a construção de oito hospitais de
emergência para atender casos relacionados ao novo coronavírus –, recursos para a
assistência social, com transferências extras para setores vulneráveis, programas de
assistência financeira para suprir de liquidez (dinheiro em caixa) de setores mais
prejudicados e diretamente ligados à pandemia, além de um tabelamento de preços para
produtos relacionados ao vírus, como o álcool em gel [3].

Entretanto, a medida mais controversa tomada pelo governo foi a extensão dos
swaps cambiais [4]. Uma receita tradicional para a dolarização da economia argentina,
visto a fragilidade de sua moeda, da sua indústria e a dependência dos dólares
emprestados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) desde a gestão Macri.

A novidade é que a Argentina costura swaps bilaterais com a China, o que pode
ser um indicativo de que sua dependência passará dos dólares para o yuan, prometendo
ser um capitulo da guerra comercial entre China e Estados Unidos no pós crise.
Na Colômbia [5], o ministro da Fazenda Alberto Carrasquila anunciou um
pacote de $38 bilhões de pesos, nos quais $15 bilhões vão direto para a população em
gastos no sistema de saúde e em transferências de renda para grupos mais vulneráveis.
Enquanto os outros $23 bilhões serão usados indiretamente na capitalização do Banco
de la República para enfrentar o problema da liquidez. Adicionalmente, o governo vai
deixar US$ 1 bilhão como uma espécie de reserva para tranquilizar os mercados.

No Chile, o governo planeja despejar na economia US$ 12 bilhões [6] no reforço


do sistema de saúde e na manutenção da renda, com medidas que vão desde a redução
da jornada de trabalho e dos salários, que serão compensados com recursos de um fundo
governamental, até medidas de redução tributária e provisão de liquidez, através de
pagamento adiantado de fornecedores e capitalização do banco público nacional. São
medidas que vão de encontro ao histórico neoliberal do Chile e que utilizam a politica
fiscal de maneira firme para manutenção da renda, o que pode ter sido resultado das
manifestações ocorridas em 2019 que quase derrubaram o governo do presidente
Sebastian Piñera.

Outros países menores que passaram por convulsões sociais recentemente


também foram obrigados a operar seus instrumentos, mas de forma ainda tímida até o
momento. No Equador [7], a ajuda econômica veio do FMI, Banco Mundial, BID e
também da China, assim como na Argentina. Os credores prometeram US$ 2 bilhões
para o país e a partir destes créditos o governo de Marin Moreno planeja cobrir as ações
de combate ao vírus, o que pode ser um caminho no escuro. Na Bolívia [8], as eleições
presidenciais foram adiadas e o governo impôs quarentena total e um bônus de R$ 342
para famílias com crianças na escola pública primária. Enquanto na Venezuela, que vive
um clima de convulsão há alguns anos, as medidas são basicamente sanitárias e de
isolamento, contando com ajuda internacional. Vários meios de comunicação noticiam,
entretanto, que as solicitações de Maduro foram negadas pelo FMI [9].

Uma característica comum a todos os sulamericanos, em especial Argentina,


Venezuela e Equador, é a necessidade de recursos externos para combater a crise. Eles
não têm soberania sobre sua moeda e se tornam dependentes da política econômica dos
Estados Unidos, que aprovou um pacote de US$ 2 trilhões, o maior da história.

Quem poderia estar com menor dependência desse sistema seria o Brasil, a nona
economia do mundo. Porém, sua política econômica esteve na contramão das demais
medidas tomadas, como se fosse um grande caminhão atravessado em uma pista
movimentada.

O Brasil anunciou inicialmente um plano contraditório de redução de jornadas e


salários, sem uma contrapartida aos desalentados, como no Chile, além de um pequeno
auxilio de R$ 200 aos trabalhadores informais. Dada a incredulidade desta medida para
assegurar a renda durante o período de confinamento, houve pressões que forçaram o
parlamento a aumentar o valor para faixas entre R$600 e R$1.200. As medidas iniciais
aprofundariam a aposta, consolidada na reforma de dois anos atrás, de flexibilização dos
direitos trabalhistas como a melhor medida para redução de custos para o empresariado
produtivo.

O ímpeto chegou a ser tão grande que a medida provisória nº 927 de 22 de


março de 2020 [10] autorizava a demissão de funcionários com coronavírus, uma
questão que fugiu à humanidade e ao bom senso e não observava que a renda e o
emprego são variáveis sociais. Tão logo foi divulgada, a medida foi revogada.

Em contraponto às ações diretas de manutenção do emprego e da renda via


transferências, o Banco Central brasileiro anunciou a disponibilização de R$ 1,2 trilhão
para os bancos manterem a liquidez do sistema. Do mesmo modo, o BNDES anunciou
R$55 bilhões para socorrer as empresas. Isso demonstrou que o governo brasileiro
preferia intervir na economia indiretamente, via bancos, que por sua vez emprestariam
aos cidadãos, em vez de promover transferências diretas aos setores mais fragilizados,
como fizeram a Argentina, o Chile e a Colômbia.

Na prática, o risco está na possibilidade dos bancos e empresas entesourarem


esses recursos como forma de segurar suas posições acionárias derretidas pelo
despenque das bolsas mundiais nas ultimas semanas. E com a economia cada vez mais
“financeirizada”, essa probabilidade é alta. Seria como “enxugar gelo”, caso o objetivo
do governo fosse o bem-estar social.

Devido as pressões, a proposição do BNDES se alterou e o banco vai


disponibilizar R$40 bilhões para financiar a folha de micro e pequenas empresas nos
próximos dois meses, conforme anunciado no dia 27 de março.

A cartilha brasileira na macroeconomia não é liberal strictu sensu, é neo-


keynesiana, uma vertente do pensamento econômico que prediz que a redução da taxa
de juros, como vem sendo feito pelo Banco central, o controle da política fiscal, como
aprovado no teto dos gastos e na reforma da previdência, assim como a flexibilização do
trabalho, são garantias para dar credibilidade ao país e fazer com que o empresário
tenha confiança para investir. Todas as reformas prometidas vieram nesse sentido e
tornam um pecado falar em gasto público social.

Conta em desfavor os pronunciamentos presidenciais minimizando os efeitos da


doença e incentivando a volta à normalidade. O staff presidencial não percebeu que no
pronunciamento do ministro da saúde do dia 20 de março [11] diagnosticou em três
meses a duração do período mais drástico da crise, criando expectativas para o fim do
confinamento e retorno da atividade econômica. Assim, em julho o governo deveria
anunciar medidas para retomar a economia, que necessariamente seriam fiscais, para
criar demanda e inclusive melhorar o estado de espirito da população, abalado pelos
cinco anos de baixo crescimento. Entretanto, durante o confinamento, a atitude do
governo seria manter o mínimo de renda para a população mais vulnerável, como vem
praticando os países sulamericanos. Porém, os dogmas são arraigados e tal medida só
foi aceita no fim de março, após intensas pressões sociais e de partidos políticos, tanto
da oposição quanto da base de apoio.

O governo brasileiro também ainda não se atentou para o cenário que se avizinha
no pós-crise, com rearranjo da economia interna e acirramento geopolítico das tensões
entre China e Estados Unidos. Parece que o governo escolheu o lado do segundo, ao
aceitar o “privilégio” concedido de US$60 bilhões pelos estadunidenses para compensar
a desvalorização do real. Na prática, isso contribui para a maior dolarização da
economia brasileira, um projeto que já vem sendo praticado há alguns anos. Com isso,
nossa moeda perde força e a margem para iniciativas de retomada do crescimento
econômico baseadas no parque industrial nacional ficam mais estreitas. Para consolidá-
las, só com aval americano, o que é arriscado visto a polarização com a China. E nessa
história, pode ser que o Brasil fique no lado derrotado do cenário pós-crise, que tem
tudo para trazer um novo panorama para a economia brasileira e mundial, mesmo que
isso custe milhares de vidas.
[1] https://www.bloombergquint.com/global-economics/morgan-stanley-sees-u-s-
economy-plunging-30-in-second-quarter

[2] https://www.lanacion.com.ar/economia/coronavirus-la-receta-martin-guzman-
enfrentar-crisis-nid2346483

[3] https://www.infobae.com/economia/2020/03/21/las-30-medidas-economicas-que-
tomo-el-gobierno-para-paliar-las-consecuencias-del-coronavirus/

[4] Swap cambial é uma troca de ativos de uma moeda para outra. Por exemplo, a
Argentina, para se capitalizar, oferece aos EUA contratos (e seus juros e amortizações)
em pesos e em troca recebe dólares. E quanto maior o desespero de quem precisa, maior
o poder de quem oferece.

[5] https://www.eltiempo.com/economia/sectores/coronavirus-medidas-para-proteger-
la-economia-en-colombia-475736

[6] https://www.docdroid.net/3h0LUqK/200319-estudios-medidas-economicas-por-
coronaviruspdf.pdf#page=2

[7] https://www.eluniverso.com/noticias/2020/03/25/nota/7793967/fmi-recursos-
emergencia-sanitaria-ecuador-coronavirus

[8] https://noticias.r7.com/internacional/coronavirus-bolivia-entra-em-quarentena-total-
e-adia-eleicoes-21032020

[9] https://www.cronista.com/internacionales/Coronavirus-Maduro-ira-hasta-el-mismo-
infierno-para-pedir-ayuda-por-Venezuela-20200319-0055.html

[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm

[11]
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/03/20/interna_politica,
835626/ministro-da-saude-anuncia-previsao-de-colapso-do-sistema-no-fim-de-abr.shtml
Rodrigo Portugal é economista e pesquisador associado do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA). É doutorando em Planejamento Urbano e Regional no
IPPUR/UFRJ e foi professor de Política Econômica na UFRJ.

Na atualização de hoje, o economista e pesquisador do IPEA Rodrigo Portugal analisa


de forma comparada as medidas econômicas adotadas até então pelos países sul-
americanos para lidar com as consequências sociais da pandemia do novo coronavírus.

“É de vital importância a ação do Estado nesse momento para atenuar os impactos da


crise. Utilizam-se como instrumentos a política fiscal, que envolve gastos públicos, e a
política monetária, de controle de juros e emissão de moeda. Ambas coordenadas
conformam a política econômica, que no momento é utilizada para produzir um efeito
inverso à queda da renda geral. Nesse sentido, com raras exceções, os governos sul-
americanos vêm propondo medidas que englobam o financiamento de seus sistemas de
saúde, manutenção da renda dos mais vulneráveis e impedimento do colapso da sua
estrutura produtiva e financeira”.

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