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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIAIS E POLÍTICOS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

TRABALHO APRESENTADO NA DISCIPLINA ESTUDOS EXEMPLARES

RESENHA DE “SOBRE A QUESTÃO JUDAICA”, DE KARL MARX

LEONARDO NÓBREGA DA SILVA

RIO DE JANEIRO/2014

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Resenha de Sobre a Questão Judaica, de Karl Marx

Leonardo Nóbrega da Silva

A publicação de “A Questão Judaica” marca uma guinada no pensamento de Karl


Marx, estabelecendo-se como um momento de ruptura com o grupo de jovens hegelianos.
A reivindicação dos judeus por direitos de cidadania na Alemanha se coloca como questão
política latente, demandando diversas discussões. Bruno Bauer, então colega de Marx no
grupo de jovens hegelianos, publica, em 1842, nos Anais Alemães, o texto intitulado Die
Judenfrage [A Questão Judaica], e posteriormente, em 1843, outro artigo, intitulado “Die
Fähigkeit der Juden und Christen, frei zu werden” [A capacidade dos atuais judeus e
cristãos de se tornarem livres]. A resposta crítica de Marx viria em Zur Die Judenfrage
[Sobre a Questão Judaica], publicado em 1844 no único volume dos Deutsch-
Französische Jahrbücher [Anais Franco-Alemães].

Para Bruno Bauer, os judeus não poderiam demandar direitos no Estado cristão
pois não teriam legitimidade para recorrer a tais direitos tendo como embasamento seus
princípios religiosos. Da mesma forma, o Estado cristão não poderia conceder direitos
aos judeus por não se poder despir de seu próprio caráter cristão. O judeu, portanto, só
poderia se emancipar ao deixar de ser judeu, e o Estado cristão não poderia emancipar os
judeus sem antes emancipar a si mesmo, sem antes se tornar um Estado político. O
antagonismo que se estabelece só poderia ser resolvido, para Bauer, com a superação da
religião. O estabelecimento de um Estado laico, e, no seu limite, a própria superação da
religião, seria, portanto, condição para a emancipação do judeu.

Negar a religião, para Marx, entretanto, não traria a solução da questão. Marx
contextualiza a questão judaica para os países onde tal questão toma forma. Na Alemanha,
onde o Estado ainda não havia se desvinculado do cristianismo, tal questão se coloca de
forma teológica. Na França e nos Estados Unidos, entretanto, países que haviam passado
por mudanças políticas de caráter laico, a questão judaica toma sua forma secular. Marx
observa, entretanto, que mesmo nos Estado Unidos, que estabeleceram o Estado político
por excelência, a religião se faz presente de forma reveladora. Tal constatação suscita a
reflexão: “Se até mesmo no país da emancipação política plena encontramos não só a

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existência da religião, mas a existência da mesma em seu frescor e sua força vitais, isso
constitui a prova de que a presença da religião não contradiz a plenificação do Estado”
(Marx, 2010: 38).

A negação da religião, dessa forma, não traria solução à questão judaica, nem seria
fonte depositária da liberdade humana. A questão, para Marx, passa a ser, portanto,
formulado de outra forma: não se trata mais de se estabelecer os parâmetros entre
emancipação política e religião, como o faz Bruno Bauer, mas de se pensar a relação entre
emancipação política e emancipação humana. O Estado político, diz Marx, ao se libertar
da limitação da religião sem que o homem esteja liberto desta, demonstra os limites da
emancipação política. O Estado, destituído de suas obrigações religiosas, relega à esfera
privada o exercício da religião, mas de forma alguma prescinde dele, sendo a constituição
do Estado notadamente cristã, não em termos de sua confissão oficial, mas no arcabouço
humanista que o constitui.

Da mesma forma que o faz com a religião, o Estado constitucional relega à esfera
privada a determinação da propriedade privada, da educação, do trabalho etc. Ao
estabelecer tais assuntos como de interesse privado, o Estado não faz com que eles sumam
ou deixem de ser questão de interesse social, mas faz, isso sim, com que tais questões se
resolvam fora do Estado, mesmo sendo a sua existência imprescindível. Nas palavras de
Marx:

O Estado anula à sua maneira a diferenciação por


nascimento, estamento, formação e atividade laboral ao declarar
nascimento, estamento, formação e atividade laboral como
diferenças apolíticas, ao proclamar cada membro do povo, sem
consideração dessas diferenças, como participante igualitário da
soberania nacional, ao tratar todos os elementos da vida real de um
povo a partir do ponto de vista do Estado. Não obstante, o Estado
permite que a propriedade privada, a formação, a atividade laboral
atuem à maneira delas, isto é, como propriedade privada, como
formação, como atividade laboral, e tornem efetiva a sua essência
particular. Longe de anular essas diferenças fáticas, ele existe tão
somente sob o pressuposto delas, ele só se percebe como Estado
político e a sua universalidade só torna efetiva em oposição a esses
elementos próprios dele. P. 39-40.

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A questão da emancipação política, portanto, apesar dos avanços inegáveis que
significam à época, encontra seu limite na própria constituição do Estado. Tal constatação
pode ser vista como um avanço no pensamento marxiano, tendo em vista que em escritos
anteriores Marx exalta os avanços na liberdade de imprensa, parte constitutiva da
emancipação do Estado político. As características burguesas que formam tal Estado
pressupõe uma série de princípios que limitam a emancipação humana de forma ampla.
A crítica dirigida por Marx a Bauer se estabelece não por conta da exaltação da
emancipação política do homem, mas na questão que deixa de ser formulada por este: não
se deveria tratar de entender as condições de emancipação do povo judeu, mas se deveria
perguntar de que emancipação se está falando. Dados os limites da emancipação política
na forma como que se coloca diante do Estado, a emancipação verdadeira, de interesse
de toda sociedade, só poderia ser a emancipação do homem em sua plenitude.

“A contradição em que se encontra o adepto de uma religião em


particular com sua cidadania é apenas uma parte da contradição
secular universal entre o Estado político e a sociedade burguesa.
(...). Não estamos, portanto, dizendo aos judeus, como faz Bauer:
vós não podeis vos tornar politicamente emancipados sem vos
emancipar radicalmente do judaísmo. Estamos lhes dizendo, antes:
pelo fato de poderdes vos emancipar politicamente sem vos
desvincular completa e irrefutavelmente do judaísmo, a
emancipação política não é por si mesma a emancipação humana”
p. 46.

A percepção dos limites da emancipação política apontam para uma crítica mais
ferrenha e certeira do próprio grupo social que dá suporte a tal emancipação, a burguesia.
Aos “direitos do cidadão”, comtemplados pela emancipação política, seguindo o
raciocínio de Marx, é necessário somar “os direitos do homem”, aqueles direitos que
pressupõe a cidadania, mas extrapola-a, estendendo-se, pretensamente, a todo e qualquer
ser humano. Esse homem, entretanto, diz Marx, nada mais é que o burguês: “antes de
tudo constatemos o fato de que os assim chamados direitos humanos, os droits de
l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, nada mais são do que os direitos do
membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem
e da comunidade” (p. 48). O Estado político, ao reduzir as associações, guildas,
cooperativas à sua menor unidade, o indivíduo, assume os princípios burgueses do
homem egoísta, do interesse individual sobre o interesse coletivo.

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A Constituição Francesa em 1793, em seu artigo 2°, citado por Marx, normatiza
os direitos do homem e do cidadão, postos como naturais e imprescindíveis. E quais são
esses direitos? Igualdade, liberdade, segurança e propriedade, o que suscita uma
inevitável relação entre o que se intitula direitos humanos e os interesses de classe
burgueses:

“A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale


ao direito humano à propriedade privada”. (...). A égalité, aqui em
seu significado não político, nada mais é que igualdade da liberté
acima descrita, a saber: que cada homem é visto uniformemente
como mônada que repousa em si mesma. (...). A segurança é o
conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito da
polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só existe para
garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa,
de seus direitos e de sua propriedade” p. 49-50.

Para Marx, portanto, os direitos humanos previstos na Constituição francesa de


1793 nada mais são do que os direitos burgueses, que em última instância visam preservar
os interesses do indivíduo burguês e de sua propriedade privada. A pretensa
universalidade prevista no Estado político, através dos direitos do homem e do cidadão,
restringem-se à classe burguesa. Como constata Marx: “O homem não foi libertado da
religião. Ele ganhou a liberdade de religião. Ele não foi libertado da propriedade. Ele
ganhou a liberdade de propriedade. Ele não foi libertado do egoísmo do comércio. Ele
ganhou a liberdade de comércio” p. 53. A libertação defendida através do Estado político
são limitadas e falsas, no sentido de que não libertam o homem em seu sentido pleno, não
o faz encontrar-se consigo mesmo.

“Toda emancipação é redução do mundo humano e suas


relações ao próprio homem. A emancipação política é a redução
do homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa, a
indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa
moral. Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada
quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão
abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem
individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas
suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e
organizado suas “forces propres” [forças próprias] como forças
sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força
social na forma da força política” p. 54

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A partir do reconhecimento dos limites da emancipação política, e do aparato
ideológico que o dá suporte, a emancipação humana plena, para Marx, pressupõe o
próprio rompimento com a sociedade burguesa, com os direitos burgueses falsamente
assumidos como universais. Este texto, escrito por Marx na sua juventude, revela, como
já foi apontado, um rompimento com o grupo de jovens hegelianos do qual fazia parte e
uma guinada no seu pensamento que abandona a especulação filosófica para se referir aos
indivíduos em suas práticas cotidianas, com consequência metodológicas fundamentais
que irão se desdobrar em suas obras posteriores. O recurso ao “judeu real, o judeu
cotidiano”, em contraposição ao “judeu sabático” analisado por Bruno Bauer, é um índice
de tal movimento metodológico.

A capacidade de analisar fatos políticos no momento do seu acontecimento, como


esses comentários sobre a questão judaica, aponta para movimentos teóricos de amplo
alcance que viriam a se desdobrar em conceitos de caráter explicativo dos processos
sociais. Obras posteriores, destacadamente a “Ideologia Alemã”, onde critica diretamente
os jovens hegelianos e estabelece as bases do seu materialismo histórico-dialético, ou a
“Crítica à Economia Política”, avançam elementos já postos em “Sobre a Questão
Judaica”. Já estava presente em tal análise a necessidade de se observar os sujeitos em
suas práticas cotidianas, renegando-se a análise de conceitos desprendidos da realidade,
a percepção do Estado moderno, e dos direitos, como instituição burguesa e, mesmo que
de forma ainda não tão desenvolvida, a saída política para a emancipação humana em sua
plenitude. Conceitos posteriores, como o de mais-valia e sua teoria do valor, alienação,
reificação, a observação da universalidade da classe proletária, o próprio método do
materialismo histórico-dialético, viriam a se somar às observações feitas sobre a questão
pontual dos judeus, que, no final das contas, é uma questão social por excelência, diz
respeito a todos os indivíduos.

“Sobre a Questão Judaica” tem o mérito de, ao observar um caso específico,


expandir suas conclusões para a essência do ser humano, desdobrando-se em ferramentas
analíticas potentes que formaria o arcabouço teórico e prático de Marx, sendo seu
conhecimento fundamental para qualquer análise social empreendida até os dias de hoje.

Referência Bibliográfica

MARX, Karl. Sobre a Questão Judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

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