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RIO DE JANEIRO/2014
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Resenha de Sobre a Questão Judaica, de Karl Marx
Para Bruno Bauer, os judeus não poderiam demandar direitos no Estado cristão
pois não teriam legitimidade para recorrer a tais direitos tendo como embasamento seus
princípios religiosos. Da mesma forma, o Estado cristão não poderia conceder direitos
aos judeus por não se poder despir de seu próprio caráter cristão. O judeu, portanto, só
poderia se emancipar ao deixar de ser judeu, e o Estado cristão não poderia emancipar os
judeus sem antes emancipar a si mesmo, sem antes se tornar um Estado político. O
antagonismo que se estabelece só poderia ser resolvido, para Bauer, com a superação da
religião. O estabelecimento de um Estado laico, e, no seu limite, a própria superação da
religião, seria, portanto, condição para a emancipação do judeu.
Negar a religião, para Marx, entretanto, não traria a solução da questão. Marx
contextualiza a questão judaica para os países onde tal questão toma forma. Na Alemanha,
onde o Estado ainda não havia se desvinculado do cristianismo, tal questão se coloca de
forma teológica. Na França e nos Estados Unidos, entretanto, países que haviam passado
por mudanças políticas de caráter laico, a questão judaica toma sua forma secular. Marx
observa, entretanto, que mesmo nos Estado Unidos, que estabeleceram o Estado político
por excelência, a religião se faz presente de forma reveladora. Tal constatação suscita a
reflexão: “Se até mesmo no país da emancipação política plena encontramos não só a
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existência da religião, mas a existência da mesma em seu frescor e sua força vitais, isso
constitui a prova de que a presença da religião não contradiz a plenificação do Estado”
(Marx, 2010: 38).
A negação da religião, dessa forma, não traria solução à questão judaica, nem seria
fonte depositária da liberdade humana. A questão, para Marx, passa a ser, portanto,
formulado de outra forma: não se trata mais de se estabelecer os parâmetros entre
emancipação política e religião, como o faz Bruno Bauer, mas de se pensar a relação entre
emancipação política e emancipação humana. O Estado político, diz Marx, ao se libertar
da limitação da religião sem que o homem esteja liberto desta, demonstra os limites da
emancipação política. O Estado, destituído de suas obrigações religiosas, relega à esfera
privada o exercício da religião, mas de forma alguma prescinde dele, sendo a constituição
do Estado notadamente cristã, não em termos de sua confissão oficial, mas no arcabouço
humanista que o constitui.
Da mesma forma que o faz com a religião, o Estado constitucional relega à esfera
privada a determinação da propriedade privada, da educação, do trabalho etc. Ao
estabelecer tais assuntos como de interesse privado, o Estado não faz com que eles sumam
ou deixem de ser questão de interesse social, mas faz, isso sim, com que tais questões se
resolvam fora do Estado, mesmo sendo a sua existência imprescindível. Nas palavras de
Marx:
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A questão da emancipação política, portanto, apesar dos avanços inegáveis que
significam à época, encontra seu limite na própria constituição do Estado. Tal constatação
pode ser vista como um avanço no pensamento marxiano, tendo em vista que em escritos
anteriores Marx exalta os avanços na liberdade de imprensa, parte constitutiva da
emancipação do Estado político. As características burguesas que formam tal Estado
pressupõe uma série de princípios que limitam a emancipação humana de forma ampla.
A crítica dirigida por Marx a Bauer se estabelece não por conta da exaltação da
emancipação política do homem, mas na questão que deixa de ser formulada por este: não
se deveria tratar de entender as condições de emancipação do povo judeu, mas se deveria
perguntar de que emancipação se está falando. Dados os limites da emancipação política
na forma como que se coloca diante do Estado, a emancipação verdadeira, de interesse
de toda sociedade, só poderia ser a emancipação do homem em sua plenitude.
A percepção dos limites da emancipação política apontam para uma crítica mais
ferrenha e certeira do próprio grupo social que dá suporte a tal emancipação, a burguesia.
Aos “direitos do cidadão”, comtemplados pela emancipação política, seguindo o
raciocínio de Marx, é necessário somar “os direitos do homem”, aqueles direitos que
pressupõe a cidadania, mas extrapola-a, estendendo-se, pretensamente, a todo e qualquer
ser humano. Esse homem, entretanto, diz Marx, nada mais é que o burguês: “antes de
tudo constatemos o fato de que os assim chamados direitos humanos, os droits de
l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, nada mais são do que os direitos do
membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem
e da comunidade” (p. 48). O Estado político, ao reduzir as associações, guildas,
cooperativas à sua menor unidade, o indivíduo, assume os princípios burgueses do
homem egoísta, do interesse individual sobre o interesse coletivo.
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A Constituição Francesa em 1793, em seu artigo 2°, citado por Marx, normatiza
os direitos do homem e do cidadão, postos como naturais e imprescindíveis. E quais são
esses direitos? Igualdade, liberdade, segurança e propriedade, o que suscita uma
inevitável relação entre o que se intitula direitos humanos e os interesses de classe
burgueses:
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A partir do reconhecimento dos limites da emancipação política, e do aparato
ideológico que o dá suporte, a emancipação humana plena, para Marx, pressupõe o
próprio rompimento com a sociedade burguesa, com os direitos burgueses falsamente
assumidos como universais. Este texto, escrito por Marx na sua juventude, revela, como
já foi apontado, um rompimento com o grupo de jovens hegelianos do qual fazia parte e
uma guinada no seu pensamento que abandona a especulação filosófica para se referir aos
indivíduos em suas práticas cotidianas, com consequência metodológicas fundamentais
que irão se desdobrar em suas obras posteriores. O recurso ao “judeu real, o judeu
cotidiano”, em contraposição ao “judeu sabático” analisado por Bruno Bauer, é um índice
de tal movimento metodológico.
Referência Bibliográfica