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DOSSIÊ POLÍTICA INTERNACIONAL REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 12: 7-20 JUN.

1999

O CONCEITO DE POLÍTICA
POSTO À PROVA PELA MUNDIALIZAÇÃO1

Catherine Colliot-Thélène
Universidade de Rennes/Escola Normal Superior de Fontenay-Saint-Cloud/CNRS

RESUMO
Este artigo procura caracterizar o conceito moderno de política diante dos fenômenos que se designam pelo
termo “globalização”. Examina-se como o Estado moderno consolidou sua capacidade de dominação à
medida em que se revelou capaz de estruturar simbolicamente uma identidade coletiva particular, expressa
pela idéia de cidadania. Sustenta-se que a diversificação dos espaços de decisão e a transferência de
competências econômicas, jurídicas e militares para instâncias supranacionais, regionais ou transnacionais,
ao mesmo tempo em que questiona a soberania estatal, começa a redefinir de modo inédito o espaço da
política, visto que as relações de poder, neste novo contexto, deixam de ser acompanhadas por processos de
identificação coletiva, até agora assegurados pela capacidade de decisão do Estado.
PALAVRAS-CHAVE: política; Estado; soberania; identificação coletiva; globalização; mundialização.

I. A NOÇÃO MODERNA DE POLÍTICA preensível que seja extremamente difícil apreciar


as transformações que o fenômeno que se designa
É evidentemente arriscado comprometer-se
pelo termo mundialização pode induzir para o
com uma determinada definição de política, mes-
entendimento da política, assim como as conse-
mo que essa definição seja limitada à compreensão
qüências que devemos extrair daí no plano con-
moderna do que política quer dizer. Esse conceito
ceitual.
é ele mesmo objeto de discussão, discussão na
qual se reflete a diversidade de abordagens e tradi- As variações da apreensão da política não di-
ções que contribuíram para a redação dos textos zem respeito unicamente às posições dos autores
do corpus da Filosofia Política ou da teoria política que defendem uma ou outra definição, mas tam-
moderna. Entre Hegel e Tocqueville, os filósofos bém — e talvez sobretudo — à diversidade das
contratualistas e Marx, Rousseau e Hannah Arendt, tradições nacionais e conjunturas. E o risco é
as divergências não dizem respeito tão-somente sempre grande de elevar à condição de essência
às respostas que seriam dadas a um conjunto de da política uma maneira de vivê-la e compreendê-
questões sobre as quais existiria concordância ge- la que corresponde tão-só à experiência de uma
ral. As questões diretrizes variam, e tanto a locali- geração, em uma ou algumas décadas, em um
zação da política (notadamente sua relação com espaço geográfico limitado. Não se pode compre-
o econômico e o social) quanto suas implicações ender seriamente Maquiavel sem levar em conta
(a liberdade, a emancipação, o poder?) são interpre- as lutas internas e externas das cidades-Estado da
tadas diferentemente de um autor para outro, a Itália do século XV, Hobbes sem o pano de fundo
ponto de desencorajar toda tentativa de caracteri- das guerras religiosas, Hegel sem as guerras napo-
zação unívoca de um conceito de política que seria leônicas, as lutas de libertação sem a obra dos
próprio dos modernos. Nessas condições, é com- grandes Reformadores etc. Nada mais banal que
essa exigência de contextualização, porém é bom
evocá-la antes de aventurar-se, na base de uma
experiência ela também circunscrita geografica e
1 Este texto, com o título Le concept de politique à l’epreuve de
temporalmente, em diagnósticos temerários sobre
la mondialisation, foi apresentado no Colóquio “Política na
o estado presente e o provável devir do conceito
mundialização, mundialização da Política”, em Hamburgo,
em 1997. Tradução do francês e do alemão: Luciano Nervo moderno de política. Em suma, qualquer um que
Codato. Revisão técnica: Vinicius de Figueiredo. fale em mudanças hoje em dia e acredite ler em

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 12, jun. 1999, p. 7-20


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nossa contemporaneidade as premissas de uma da mais duvidoso invocar esse fenômeno para con-
compreensão radicalmente nova da política deve cluir uma mudança radical do conceito de política
se sujeitar à exigência metodológica mínima de que afetaria o papel do próprio Estado. A centrali-
precisar a escala de seu diagnóstico. Os aconte- dade do Estado na compreensão moderna do
cimentos que marcam época não são identificáveis político remonta, com efeito, à formação dos Es-
de maneira relativamente precisa senão com o tados-nação, quer dizer, a um processo histórico
distanciamento de várias décadas, talvez de vári- esboçado desde o século XVI, confirmado e
os séculos. O saque de Roma pelas hordas de refletido teoricamente no século XVII, bem antes
Alarico decerto serviu a Agostinho de pretexto de os partidos políticos adquirirem o papel institu-
para redigir a Cidade de Deus, mas, como se sabe, cional que se conhece. Mais importante, em con-
quando terminou sua obra, havia muito os habi- trapartida, parece-me o sentimento de uma cres-
tantes do Império Romano já estavam tranqüilos cente impotência do Estado em assegurar tarefas
quanto ao destino desse Império que acreditaram que não lhe competem senão a partir de um passado
definitivamente selado, por um momento, com a recente, mas que durante uma grande parte do
queda da capital. século XX (as datas variam segundo os países)
têm sido uma das principais fontes de sua legiti-
Escala do diagnóstico, portanto. De onde pro-
midade. Em outros termos, o mal-estar que afeta
vém o sentimento, bastante compartilhado hoje
a política hoje em dia, de onde tiramos a impressão
em dia, de que a política não é mais o que era, de
de que é urgente repensá-la, traduz a crise de uma
que provavelmente não pode mais sê-lo, ou ainda,
figura historicamente determinada do Estado
em termos certamente datados, de que uma época
moderno: aquela do Estado-Providência ou, se-
do espírito foi vivida? Em um primeiro nível, pro-
gundo a fórmula sugerida por Robert Castel com
vém da perda dos parâmetros em função dos quais
argumentos convincentes, do Estado social3. Es-
se determinavam os engajamentos e tomadas de
cala do diagnóstico: o conceito de política que hoje
posição política durante as três décadas que se
em dia comprovamos problemático é aquele de
seguiram ao fim da II Guerra Mundial: uma certa
uma época limitada da história do Estado e,
interpretação da oposição direita/esquerda, por
portanto, da política dos modernos. A questão,
exemplo, que estruturava profundamente o campo
entretanto, continua aberta: será que nos tornamos
da política, conflitante em sua essência (quer dizer,
simplesmente uma página da história da política
constituído por oposições e lutas), e à qual nos é
moderna, ou antes a crescente incapacidade do
cada vez mais difícil dar um conteúdo preciso. A
Estado de manter a condução de sua política social
essa perda de parâmetro está ligada a aparência
indica uma transformação mais fundamental, um
derrisória dos jogos políticos tradicionais. Na falta
deslocamento das instâncias de decisão que com-
de algo verdadeiramente em jogo nas oposições
promete o futuro dos povos e coloca em xeque
entre os partidos que disputam entre si as
não mais uma figura da política moderna, mas o
responsabilidades governamentais, a imagem dos
conceito da política dos modernos em geral, na
políticos em seu conjunto tende a se confundir
medida em que este se articulava em torno da
com aquilo que Max Weber ironicamente denomi-
soberania dos Estados?
nava Berufspolitiker ohne Beruf [políticos
profissionais sem vocação]2. Parece-me que esse Ao formular nesses termos a questão dos
descompasso entre a cena política, entendida em efeitos da mundialização sobre o conceito de polí-
um sentido estrito, e as preocupações e expectati- tica, tenho consciência de me antecipar a algumas
vas dos cidadãos eleitores é um fenômeno recor- objeções maiores.
rente na história dos sistemas parlamentares mo-
dernos, e que é preciso alguma prudência antes
de inferir a partir daí a obsolência irreversível des-
3 A capacidade do Estado cumprir as tarefas de uma política
sas formas clássicas de expressão política. É ain-
social se tornou o teste de sua capacidade de decidir em
geral. Cf. CASTEL, 1995, p. 457: “A aposta do debate é
ocultada [...] quando se pretende que uma política social
diferente é incompatível com a busca de uma política
2 V. no mesmo sentido von WEIZSÄCKER, 1992, p. 155: econômica realista e responsável. É tomar por decidido que
“Entre nós, um político profissional não é, via de regra, nem a aceitação das leis do mercado não deixa nenhuma margem
um especialista, nem um diletante, mas um generalista com de manobra, o que redunda, aliás, em negar a própria
um saber específico: o de combater o político adversário”. possibilidade da ação política”.

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Objeções factuais, antes de tudo: será discuti- obri-gatórios, intervenções repressivas nas peri-
do o fato de que a mundialização (quer dizer, os ferias) ou de sua ausência (impotência face ao
fenômenos que reunimos sob esse termo e cuja crescimento do desemprego, à insegurança etc.).
análise é também discutida) permite anunciar o
Objeções teóricas, de outra parte. Antes de
fim da soberania dos Estados. Não pretendo en-
tudo: colocando a soberania do Estado no cora-
trar aqui em um debate que implica um elenco
ção do conceito moderno de política, será que de
minucioso das competências econômicas, jurídi-
fato não escolhi uma tradição dos modernos em
cas, militares etc. que os grandes Estados europeus
detrimento de outras, que sublinharão, de prefe-
conservam ou porventura transferem a instâncias
rência, as múltiplas expressões da participação das
diversas — instâncias não-políticas no interior de
massas sob as formas institucionalizadas ou selva-
seus territórios, tais como bancos centrais inde-
gens que vão do voto à greve e à manifestação de
pendentes —, instâncias econômicas supranacio-
rua, passando pela discussão das decisões gover-
nais — Banco Mundial ou FMI —, instâncias
namentais nos jornais e pelos diferentes foros onde
políticas ou quase políticas — ONU, instituições
a opinião pública se forma, e mediante os quais
européias etc. Seja qual for o resultado que se ve-
exerce uma influência incontestável nas decisões
nha a extrair desse elenco, pode-se tomar por con-
dos políticos e, portanto, nos destinos da cole-
clusivo, parece-me, que no presente não vivemos
tividade? Será que não sacrifiquei, em suma, a
um processo de despojamento do Estado em pro-
dimensão da cidadania em favor de uma concepção
veito de novos poderes políticos, supranacionais,
implicitamente decisionista da política, que se
regionais ou transnacionais, convocados a substi-
valerá de preferência de Hobbes, Hegel, talvez Max
tuí-lo em um futuro próximo. Nenhuma instância
Weber ou mesmo Carl Schmitt, em vez do
política, seja em um nível regional seja mundial,
Maquiavel dos Discursos, do Kant teórico da esfera
está apta a reivindicar, a curto ou médio prazos, a
pública, de Marx ou da tradição concilista? Toda-
totalidade das competências do Estado nacional.
via, parece-me que a clivagem que alguns tentam
Não estou certa, entretanto, se esse gênero de com-
aqui instituir repousa sobre um mal-entendido.
patibilidade, que visa mostrar que, bem ou mal, o
Fazer do poder o atributo essencial do político,
Estado nacional termina por manter algumas prer-
para nos atermos à definição weberiana4, não
rogativas, não nos faz passar ao largo do essencial
implica necessariamente negar a realidade e a
da noção de soberania, a qual não se pode esgotar
complexidade do espaço público, nem contestar
por uma enumeração das funções do Estado. Bob
que todas as formas que assumem a sustentação
Jessop, por exemplo, em um artigo intitulado Die
ou resistência das massas às decisões dos detento-
Zukunft des Nationalstaats: Erosion oder Reor-
res do poder do Estado (aí compreendido inclusive
ganisation? [O futuro do Estado nacional: erosão
o abandono das seções eleitorais) participam da
ou reorganização?] (cf. JESSOP, 1997), convida
efetividade da política no sentido dos modernos.
a distinguir entre as funções particulares do Estado,
E entre outras coisas é esse caráter proteiforme
de certo modo contingentes, e suas funções gerais,
da política, resultado de uma história em que de-
antes de todas a que consiste em assegurar a inte-
sempenharam um papel decisivo as lutas políticas
gração e coesão sociais. Mas salvo reduzir essa
e sociais da segunda metade do século XIX e da
função reconhecida essencial a medidas simples-
primeira do XX, que torna hoje em dia dificilmente
mente de polícia, é claro que ela se desempenha
sustentável a distinção que o século XIX estabe-
em grande parte no plano do simbólico, e que essa
leceu entre Estado e sociedade civil. O paradigma
dimensão simbólica do poder do Estado não é
no qual Hegel — e depois dele Lorenz von Stein
dissociável do conjunto de seus serviços: pode-se
ou Robert Mohl — refletiu sobre a diferença das
duvidar se um Estado que se revelasse abertamente
sociedades modernas em relação à sociedade das
como simples correia de transmissão dos impera-
ordens e corporações, justificado em sua época,
tivos de um mercado internacional indiferente ao
não mais funciona quando se trata de dar conta
bem-estar das populações pudesse de fato nutrir
do funcionamento de Estados cuja ação reguladora
de forma duradoura o sentimento da identidade
cidadã em seus integrantes. E a introdução ou
reintrodução da educação cívica na escola não bas-
4 Para recordar: “Política, portanto, significaria para nós:
tará certamente para corrigir uma imagem do
aspirar à participação no poder ou à influência na divisão do
Estado forjada no cotidiano vivido das modalida- poder seja entre Estados, seja no interior de um Estado
des concretas de sua presença (peso dos serviços entre os grupos humanos que ele envolve” (WEBER, 1921)

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e administrativa se estende aos aspectos mais ínti- II. SOCIALIDADE ESTATAL versus SOCIA-
mos da vida privada, instituindo deveres e garan- LIDADE DE REDES
tindo direitos em domínios que até há pouco de-
A análise do Estado moderno oscilou desde
pendiam do livre arbítrio ou da sorte de cada um:
sempre entre dois registros. O primeiro é o da
por exemplo, o dever de assegurar a subsistência
ética: sua questão central é a das identidades
de seus ascendentes ou descendentes, o direito à
coletivas, de sua ordem e subordinação. Em outros
renda mínima ou à aposentadoria. Que esse para-
termos, a Filosofia Política moderna retomou por
digma (a diferença e oposição entre sociedade e
conta própria a idéia aristotélica de uma
Estado) esteja há muito obsoleto não impede,
organização teleológica das comunidades naturais
entretanto, que o Estado continue a organizar de
(“A cidade é o fim de todas as comunidades
maneira privilegiada o espaço da política. Disse-
naturais”, Pol. I, 2), substituindo — o que não foi
mos acima que a “crise” que o Estado conhece
uma modificação anódina — o Estado nacional
hoje em dia nas sociedades européias, o déficit de
pela cidade5. O segundo registro é aquele da
legitimidade que o desinteresse eleitoral eventual-
relação entre poderes, em que o Estado não mais
mente testemunha e, com mais freqüência, a versa-
se configura como um pólo de identificação, mas
tilidade dos eleitores até então, não diz respeito ao
um aparelho, um corpo exercendo as funções da
Estado moderno em geral (este é uma abstração,
administração de bens e homens. Neste sentido
e os fundamentos de sua legitimidade, uma questão
ele se acha em relação com outros poderes6, quer
de teóricos), mas à forma particular com a qual
dizer, em concorrência, o que inclui a possibilidade
ele progressivamente se revestiu na segunda meta-
de conflitos assim como de compromissos e cum-
de do século XX, cujos traços se delinearam após
plicidades. Esquematicamente, pode-se dizer que
a II Guerra Mundial e da qual se pode fazer
a Filosofia privilegiou o primeiro registro: as proble-
remontar a gênese, ao menos ideológica, até o co-
máticas contratualistas podem ser interpretadas
meço do século. Mas se as funções características
nessa perspectiva, e disso decorrem também as
do Estado social tornam fluida a distinção entre
indagações clássicas sobre a cidadania ou a demo-
sociedade e Estado, este permanece uma instância
cracia, ao passo que as outras disciplinas, notada-
de decisão. É nesta qualidade que o Estado é inter-
mente a Sociologia ou a Economia Política (antes
pelado por indivíduos, grupos e coletivos, perma-
de se restringir ao estatuto de uma Economics),
nentes ou provisórios, que o fazem o destinatário
assim como os discursos críticos (crítica da eco-
de seus protestos e reivindicações. Aqui pouco
nomia política ou ainda a crítica da política cujo
importam as clivagens políticas: o liberalismo, en-
projeto Marx havia proposto e da qual se pode
tendido politicamente, e as doutrinas “estatistas”
encontrar os elementos nele e em outros), esco-
em suas diferentes variantes, detêm em comum o
lheriam o segundo: nessa ótica a atenção se dirige
fato de atribuir implicitamente ao Estado uma
prioritariamente às formas e meios de dominação
capacidade eminente de intervir nas redes de so-
que se exercem sobre os integrantes do Estado,
cialidade para regulá-las, hierarquizá-las, corrigi-
que aparecem mais na qualidade de súditos (de
las etc. A autolimitação reclamada pelos liberais
dominados, por exemplo, em Max Weber) que de
ainda é um ato de vontade. O poder do Estado
cidadãos. Esquematicamente, dizia; pois é claro
não se comprova unicamente em suas manifes-
que as duas perspectivas não podem ser inteira-
tações violentas (intervenções policiais, guerras)
mente dissociadas. Hegel dispensou um esforço
ou nas pesadas coações impostas por sua adminis-
considerável para conciliar ambas as problemá-
tração, mas também na faculdade que dispõe de
ticas, sem que a coisa tenha sido universalmente
responder às pressões que se exercem sobre ele,
uma resposta que toma a forma de escolhas —
novas legislações, escolha orçamentária etc. Ne-
5 Assim: Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, § 258: “A
nhuma teoria do Estado, em verdade, pode se pri-
var de um componente decisionista entendido nesse destinação do homem é levar uma vida universal e seu dever
sentido, e somente a confusão entre a forma da supremo é ser membro do Estado”.
decisão e o arbitrário eventual de suas motivações 6 Entendo “poder” [puissance] na acepção extensiva, mas
explica as espantosas resistências para reconhe- não menos operatória, a meu ver, em que Weber utiliza esse
cer esta verdade tão evidente. termo no título da segunda parte de Economia e Sociedade: “A
economia e as organizações e poderes sociais” (Die Wirtschaft
und die gesellschaftlichen Ordnungen und Mächte).

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compreendida por seus leitores: aqueles que to- ção do direito (legislativo), a proteção da seguran-
mam sua Filosofia do Direito por uma apologia ça pessoal e da ordem pública (polícia), a proteção
do Estado e o inscrevem na linhagem dos teóri- dos direitos adquiridos (justiça), o encargo da
cos do Machtstaat [poder do Estado] e da saúde, dos interesses educacionais, políticas so-
Realpolitik (como Meinecke) negligenciam aqui- ciais e outros interesses culturais (as diferentes
lo que nessa obra depende da questão ética das áreas da administração), enfim — e notadamente
identidades e sua hierarquia. Mas mesmo em um — a proteção violenta organizada e voltada ao
autor tão resolutamente prosaico como Max exterior (administração militar), não existem nos
Weber, em que as dimensões do poder e da domi- primeiros momentos ou não existem sob a forma
nação adquirem papel de destaque, pode-se con- de organizações racionais, mas simplesmente
siderar que a temática ética se perfila nos bastido- como comunidade ocasional amorfa ou mesmo
res da teoria das diferentes formas de legitimida- se acham distribuídas entre comunidades muito
de: a “crença” que se requer da parte dos súditos diversas: comunidade doméstica, linhagem, grupos
para sustentar a estabilidade de uma dominação vizinhos, comunidade de mercado ou ainda grupos
não é estranha à maneira pela qual eles resolvem intencionalmente constituídos por objetivos
os conflitos identitários. precisos” (WEBER, 1922, p. 516). Se a norma
enunciada por Hegel não é um postulado vão, é
Uma série de discursos contemporâneos so-
porque traduz em termos éticos, quer dizer, simbó-
bre a democracia, a política ou a cidadania esque-
licos, a preeminência factual do Estado sobre
cem ou subestimam a dimensão do poder do Es-
outras formas de fidelidade coletiva: uma relação
tado, e as exortações à reinvenção da democra-
de forças, portanto — a hegemonia historicamente
cia, do político, da cidadania — como quiserem
conquistada de um poder produtor de vínculo
— desconhecem por isso mesmo aquilo que hoje
social sobre todos os outros, antigos e recentes.
em dia coloca em perigo essas maneiras de viver
É claro que essa hegemonia foi por muito tempo
o coletivo. A menos que perca toda significação
um objetivo visado pelo Estado em relação ao
institucional precisa, a democracia é um modo de
território que reivindicava como seu, mais que
organização e funcionamento do Estado (como
uma realidade para o conjunto de seus habitantes.
antigamente foi um modo de organização e
As solidariedades próximas — de vizinhança, de
funcionamento da cidade), quer dizer, da relação
parentesco —, ou tradicionais, notadamente reli-
entre governantes e governados; e a cidadania é,
giosas — com freqüência permaneceram mais
do mesmo modo, um tipo de pertencimento
concretas e mais fortes que o pertencimento ao
comunitário que tem como suporte o Estado. Mas
Estado, coletivo abstrato e longínquo, para uma
se pretendemos apreciar os efeitos da mundiali-
grande parte das populações. Perderíamo-nos
zação sobre a compreensão do político, é preciso,
fazendo aqui o elenco dos múltiplos fatores que
em contrapartida, tomar em conjunto os dois
contribuíram para a homogeneização progressiva,
registros de interpretação do Estado, quer dizer, é
jamais completamente concluída, das culturas
preciso apreendê-lo em sua dupla dimensão de
identitárias: redução das distâncias em virtude dos
pólo de identificação coletiva e de poder. Pois é
progressos dos transportes, expansão da civiliza-
em sua qualidade de poder que o Estado está apto
ção urbana, difusão da imprensa, serviço nacional
a dotar o indivíduo de uma identidade particular, a
e educação pública (especialmente na França),
de súdito ou cidadão, que vem se acrescentar a
extensão do direito ao voto etc. Resta que a
outras, modificando-lhes o equilíbrio. Idealmente,
capacidade do Estado de estruturar uma identidade
o Estado aspira à preeminência: ele é a realidade
coletiva e subordinar, nessa propensão, todas as
da Idéia ética — como diz Hegel —, e os direitos
outras identidades coletivas, progrediu em
e deveres vinculados a outras formas de sociali-
compasso com a afirmação de seu poder. Um
dade, família ou diferentes círculos da sociedade
poder que o cidadão não comprovava apenas como
civil, são subordinados a ele. Essa subordinação
poder coercitivo, mas também como um poder
apresentada como uma norma pela filosofia do
protetor, tanto mais na medida em que se amplia-
Estado é o resultado de um processo histórico
vam os direitos ligados à cidadania (além da justiça
bastante real, aquele da transferência ao Estado
e da segurança, igualmente a educação, a saúde,
territorial de certas funções e prerrogativas antes
eventualmente a renda mínima, a aposentadoria
assumidas pelas comunidades não-estatais. “O que
assegurada).
hoje consideramos as funções fundamentais do
Estado” — observa Weber — “a saber: a institui- Ora, chegamos ao ponto que me parece es-

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sencial e que pode deixar supor que, apesar do soberano, quer resida em um único homem, como
caráter histórico particular da forma de Estado em uma monarquia, quer em uma assembléia,
abalada pelo fenômeno da mundialização, talvez como nas Repúblicas populares ou monárquicas,
não seja falso pensar que a compreensão moder- é tal que não se pode imaginar os homens
na da política é por isso mesmo posta em ques- edificando um maior” (Leviatã, capítulo 20). O
tão. Foi em virtude de sua função simbólica de desenvolvimento de lógicas de socialização
pólo de identificação que o Estado pôde estruturar provenientes da interação de múltiplos centros de
o campo da política. Ou melhor: que deu existência decisão, entre os quais nenhum está apto a afirmar
a esse campo. A definição weberiana de política sua preeminência sobre os outros, produz um novo
pode parecer altamente orientada para a esfera “poder” que a imaginação dos homens dos século
estreita e exclusiva do político, quer dizer, para a XVII não podia antecipar. Um poder, é verdade,
atividade dos homens que fazem da política sua cuja natureza é muito diferente daquilo que Hobbes
profissão, mas permanece pertinente, parece-me, denominava poder: um poder que, diferentemente
no sentido de que a política se torna uma forma do Estado, não é portador de nenhuma identidade
específica da atividade social na medida em que coletiva.
se reporta ao poder de Estado. Ela não visa neces-
A propósito dessa diferença de natureza,
sariamente dele se apoderar, no todo ou em parte,
algumas especificações são necessárias. O Estado
mas o pressupõe, quer dizer, pressupõe existir uma
possui de peculiar, em relação a qualquer outra
instância de poder identificável que decide em
instância de identificação, o fato de ser a
última instância os conflitos externos e internos.
encarnação institucional de uma abstração,
Em termos mais concisos: à existência do Estado
precisamente aquela que denominamos sua sobe-
está vinculada a existência de um espaço de soci-
rania. É essa abstração que Weber notadamente
alização original (como era o caso na polis antiga,
tinha em mente quando falava da impessoalidade
se seguimos Aristóteles), em relação ao qual to-
da dominação legal, por meio da qual esta se
das as outras formas de fidelidade ou dependência
diferencia, segundo ele, tanto da dominação
coletivas (familiares, étnicas, culturais, econômi-
tradicional quanto da carismática, uma e outra
cas, religiosas) são subordinadas ou mesmo
vinculadas à autoridade pessoal dos dirigentes.
instrumentalizadas.
Hegel, por sua vez, falava da idealidade da
A capacidade do Estado de assegurar a per- soberania, expressão que me parece preferível,
petuação desse espaço, de sustentar portanto uma apesar de seu caráter um pouco desconcertante
forma de identidade coletiva particular, é indisso- para um leitor contemporâneo. É certo que a
ciável da efetividade material de seu poder. Dir- identidade da soberania estatal é independente dos
se-á e repetirá: é certo que o Estado nacional per- indivíduos concretos que a exercem, e que não
deu, ou está em vias de perder, certos atributos está vinculada a uma figura histórica concreta da
da autoridade soberana, porém não está compro- comunidade (tal como a nação, embora a história
metido, em virtude desse fato, em um processo da idéia nacional e a da forma estatal sejam
que permita anunciar sua desaparição a curto ou estreitamente imbricadas), porém a soberania nem
médio prazos. Ele é desde sempre e continuará a por isso deixa de ser — e este é o ponto que im-
ser, nas próximas décadas, um dos poderes cujas porta para apreciar os efeitos simbólicos da
decisões contribuem para modelar a evolução das mundialização — uma forma de poder à qual
redes de interdependência que hoje em dia retornam essencialmente os atributos da
constituem o mundo. Um dos poderes, ao lado de personalidade7. Por esta razão, o Estado é um
outros, parceiros ou concorrentes, ou ambos ao poder em um sentido muito diferente daquele, por
mesmo tempo: instâncias de decisão regionais ou exemplo (exemplo que não é absolutamente men-
locais, consórcios econômicos transnacionais, cionado ao acaso, será retomado adiante), em que
instituições supranacionais políticas ou econômi-
cas de maior ou menor envergadura, organizações
não-governamentais etc. É nesse “ao lado”, porém, 7 Se ficarmos em Hegel, na Filosofia do Direito: de um lado a
que reside o problema. Ele implica, com efeito, soberania do Estado implica que seus diferentes poderes não
para o súdito/cidadão do Estado, que este não mais podem se tornar autônomos, nem se confundir com a vontade
possui o caráter de poder supremo. “É pois bas- particular dos indivíduos que os exercem. Eis o pensamento
abstrato da idealidade (§ 278); de outro lado a soberania só
tante claro aos meus olhos” — escrevia Hobbes
existe “como subjetividade dispondo da certeza de si, como
no limiar da época moderna — “[...] que o poder

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podem ser ditos “poderes” o mercado ou a eco- existir sob a forma de Estado-nação) e que, a des-
nomia mundial. Ser soberano envolve a capacida- peito das guerras e crimes que marcaram a histó-
de de decidir, o que é próprio da pessoa: a sobera- ria dos Estados-nacionais no curso dos dois últi-
nia do Estado se põe à prova e se dá a conhecer e mos séculos, essa história também pode ser lida
reconhecer como decisão sob a forma do gover- como a de uma depuração progressiva do concei-
no ou da elaboração e execução da lei. Diferente- to da política, quer dizer, da incorporação — nas
mente do termo “impessoalidade”, portanto, o ter- disposições, expectativas, representações dos ci-
mo “idealidade” nos permite de uma só vez subli- dadãos de si próprios, ao menos daqueles dos
nhar a abstração do poder do Estado, indepen- Estados da Europa ocidental — de uma identida-
dentemente das pessoas que o exercem, e o fato de à qual tão-somente a existência do Estado dá
de esse poder permanecer, não obstante, da or- substância. A consciência cidadã é o resultado de
dem da decisão e do comando. Assim entendida, uma educação histórica para a qual em grande
a idealidade do poder do Estado comporta esta parte contribuiu, notadamente no curso da segun-
conseqüência importante: se viesse a desaparecer da metade do século XX, a instituição das garan-
a capacidade do Estado como poder de governar tias particulares concedidas pelo Estado social: por
efetivamente, quer dizer, de “dar forma” a um certo meio delas o Estado tornou-se uma espécie de
coletivo, esse próprio coletivo desmoronaria, pois comunidade, no sentido de que estabelecia entre
jamais teve outra substância que essa própria ca- seus integrantes vínculos de solidariedade cuja
pacidade. Que o Estado seja também nação, cer- realidade se comprovava no cotidiano. Em suma,
tamente lhe permitiu mobilizar em seu proveito, o Estado social nos liberou, até certo ponto, da
ao longo de toda a sua história, vetores de identi- representação afetiva e imaginária da nação.
ficação heterogêneos — comunidade de língua,
A capacidade do Estado de impor sua hege-
de história política, de cultura, de religião etc. É
monia sobre todas as outras formas de fidelidade
certo que a abstração da identidade estatal consti-
coletiva diz respeito unicamente à efetividade de
tuía uma fraqueza em comparação às solidarieda-
sua onipotência. Quando esta falha, os outros
des mais próximas, historicamente enraizadas e
modos de identificação, que até há pouco haviam
sobretudo cotidianamente perceptíveis, dos vín-
sido instrumentalizados, reencontram uma
culos comunitários tradicionais. Uma fraqueza que
dinâmica independente (aliás, jamais totalmente
manifesta, notadamente na Alemanha, a nostalgia
perdida) e eventualmente se voltam contra ele.
duradoura da Gemeinschaft [comunidade] e a
Alguns se regozijam com a relativização do poder
correlativa desconfiança face ao fundamento
do Estado e acreditam desvendar na multiplicação
contratualista da Vergesellschaftung [socialização]
dos centros de poder as condições de uma prática
estatal. A nação, comunidade imaginária utilizan-
política enfim emancipada do monopólio do Estado.
do todos os recursos de que dispõe (língua, cul-
Que um poder dividido entre múltiplas instâncias,
tura, origem étnica etc.), compensaria as carên-
escapando a toda hierarquização, permita anunciar
cias do Estado no plano das solidariedades vivi-
um enfraquecimento da compreensão clássica da
das. Com efeito, espero não formular um ponto
política, é algo indiscutível. O que é menos claro é
de vista excessivamente francês afirmando que,
o tipo de política que virá depois desse enfra-
apesar disso, a identidade estatal é dissociável de
quecimento. O desenvolvimento de lógicas de
sua interpretação nacionalista (o que não impede,
socialização transcendendo os limites dos Estados
bem entendido, que o Estado exista e só possa
despoja o Estado do atributo do poder supremo.
Contudo, não se apresenta nenhum novo coletivo
capaz de reclamar sua herança, quer dizer, capaz
autodeterminação abstrata — portanto sem fundamento — de organizar o campo de uma nova cidadania. Os
da vontade, pois é nessa autodeterminação abstrata da
poderes em relação aos quais a suposta onipotência
vontade que reside o elemento último da decisão” (§ 279).
Com este argumento Hegel procura justificar a forma do Estado se torna estéril não são, com efeito, de
monárquica do regime, o que dará ensejo às observações uma natureza tal que possam cristalizar processos
irônicas de Marx. Todavia, pouco nos importam aqui os de identificação. Não é a humanidade européia,
prováveis sofismas do argumento. O essencial é que o conceito ou a humanidade em geral, que se perfila para além
de soberania inclui a idéia de vontade e que o soberano — do Estado, apesar da retórica pouco convincente
indivíduo ou coletivo — seja pensado com os atributos da
com a qual certos organismos internacionais
pessoa. Este já era o caso em Hobbes, Locke, Spinoza,
Rousseau etc. habilitam suas intervenções. As formas mais

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O CONCEITO DE POLÍTICA POSTO À PROVA PELA MUNDIALIZAÇÃO

eficazes de socialidade transnacional não são as jornais ou escuta dos discursos e declarações de
supranacionais: por estas entendo as formas liga- seus dirigentes — não designam um deslocamen-
das a entidades jurídico-políticas determináveis, to das instâncias de decisão comprometendo os
pois constituídas deliberadamente pelos acordos destinos coletivos. Antes significam: ninguém
entre Estados. Os dias que sucedem ao Estado governa, as instâncias de decisão são múltiplas,
soberano não são preparados — como se sabe — dispersas, com freqüência invisíveis9, sua imbri-
por um despojamento consentido (ou forçado) dos cação constitui uma rede cujo comando ninguém
Estados-nação em proveito de coletividades mais detém10. O que torna o futuro da política proble-
amplas. As aproximações dessas coletividades mático reside precisamente aí: a prevalência cres-
existiram, ou ainda existem: SDN ontem, ONU cente de uma socialidade de redes em detrimento
hoje. Todavia, apesar de suas pretensões de de socialidades identitárias ou, mais exatamente,
fachada, elas não foram e nada mais são que um em detrimento de um certo tipo de socialidade
lugar entre outros da luta (policiada) entre as identitária, aquela que suporta o Estado. Por mais
nações. É duvidoso que uma cidadania “onuense” abstrata que seja a cidadania em comparação às
possa algum dia vir à luz. A mundialização traz formas tradicionais de fidelidades coletivas, ela
consigo uma relativização da forma Estado nos permanece um vetor de identificação na medida
processos de identificações coletivas, todavia ela em que o Estado soberano dispõe dos atributos
mesma não resulta de uma federação de Estados. da pessoa. As redes de interdependência criadas
Um desmentido do sonho kantiano? Desde o final pelo fato da mundialização enfraquecem o poder
do século XVIII, entretanto, era claro para os efetivo de regulação do Estado e, com este poder,
espíritos mais avisados que não seriam os Estados o fundamento da cidadania, sendo absoluta e
que tratariam de realizar a unificação do mundo. constitutivamente incapazes de produzir uma
O próprio Kant, embora concebesse as relações solução alternativa. Mas nos guardemos, uma vez
de socialidade em uma perspectiva antes de tudo mais, de diagnósticos precipitados. O Estado se
jurídico-política, descartava a idéia de um Estado mantém ainda hoje um elemento central das
universal — que só poderia ser despótico, aos seus identificações coletivas (ao menos isto é verdadeiro
olhos — e era do “espírito de comércio” que espe- para o conjunto importante de países em que a
rava a preparação de uma cidadania universal. A forma Estado veio à luz; o juízo deve ser mais
unificação do mundo se realizou, de certo modo, prudente em relação aos países em que essa for-
no revés dos Estados, graças ao comércio — ma aparece como importada, artificialmente im-
como pressentia Kant —, entretanto sem cidadania. posta pelos poderes coloniais ou elites locais
educadas no Ocidente, e às populações em que
Insisto neste ponto, sob o risco de me repetir:
perduram os sistemas mais antigos de identifica-
diferentemente do Estado, os poderes que hoje
ção). A cidadania, portanto, ainda mantém uma
em dia o limitam são, propriamente falando, im-
certa consistência. Mas essa consistência está
pessoais. Trata-se das necessidades, das coações
ameaçada nos Estados europeus e na América do
em relação às quais se tem prazer em sublinhar o
caráter inelutável. Ou ainda: são os fluxos8, os
processos sem sujeitos que podem gerar inter-
9 Um ponto em que notadamente Monique Chemillier-
dependências, mas não laços de fidelidade comu-
nitárias. Os termos “globalização” ou “mundia- Gendreau insiste, segundo uma perspectiva essencialmen-
te jurídica. Assim: “Na sociedade internacional contem-
lização”, na boca dos dirigentes políticos, sob a
porânea os protagonistas são inidentificáveis. Os sujeitos
pluma dos jornalistas — ou para o cidadão comum, de direito reconhecidos possuem apenas uma parte fraca
cujas representações se forjam pela leitura dos na decisão. O sistema de reconhecimento identitário, tal
como funcionou durante séculos, deixa na sombra os atores
reais do papel cada vez maior do conjunto das trocas soci-
8 Cf., por exemplo, Alain Arnaud: “A nova economia ais” (CHEMILLIER-GENDREAU, 1995, p. 305).
mundializada recoloca [...] em questão os símbolos do poder 10 Assim, Leo Sommer: “Globalização significa frontei-
público: a soberania nacional e territorial, o controle e o ras abertas, concorrência mais acirrada, luta por
monopólio da violência legítima e os meios de direcionar a suplantação. Ela subtrai à ação do Estado nacional o últi-
organização econômica e social. Os fluxos transnacionais mo espaço de manobra. A autoridade administra, mas quase
desprezam atualmente as fronteiras e recompõem os espaços não dá forma. Regulamenta-se, não se governa; o poder se
segundo suas próprias modalidades” (ARNAUD, 1996, p. fixa em uma gesticulação impotente, que pouco transfor-
89). ma as realidades”. Die Zeit, 3 de janeiro de 1997.

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Norte; e lá onde a cidadania jamais existiu ou ape- homens podem interagir. [...] O livre mercado,
nas se estendeu a uma franja estreita da popula- isto é, o mercado não cingido por regras éticas,
ção, nos Estados ditos da “periferia”, seu desen- com sua utilização de constelações de interesses,
volvimento é extremamente improvável sob os monopólios e oferta, subestima qualquer ética
auspícios da mundialização. O problema não é que entre irmãos. O mercado está em completa opo-
a preeminência da identidade política (estatal) seja sição a todas as outras relações comunitárias que
discutida ou deva se compor junto a outras — o desde sempre pressupõem a fraternidade pessoal
que, à sua maneira, traduz o sucesso das corren- e, na maioria das vezes, laços consangüíneos, sen-
tes comunitaristas. Não há nada de novo no fato do toda fraternidade radicalmente estranha”
de as fidelidades de grupo de um indivíduo serem (WEBER, 1922, p. 383). Weber opunha aqui o
diversas, e sua hierarquização, incerta e estável: a mercado às formas antigas, talvez primitivas, de
soberania do Estado teve desde sempre de se con- vínculo social, a propósito das quais unicamente
firmar mediante a unificação lingüística, mediante se pode falar em “fraternidade” e “laços consan-
a disputa do controle do ensino escolar com as güíneos”. Em todo caso, também a cidadania fun-
Igrejas etc. Mas aquilo contra o qual o Estado se ciona segundo uma lógica diferente da socialidade
choca, principalmente hoje em dia, não são iden- de redes, e assim como as comunidades de ou-
tidades coletivas alternativas, antigas ou novas, trora, com algumas décadas ou séculos de atraso
porém formas de socialização que não podem ser ela pode ser destruída pela expansão sem limites
pensadas mediante as categorias de solidariedade do tipo particular de socialização que o mercado
e comunidade, poderes em relação aos quais não exemplifica, aquele de uma relação comunitária
faria nenhum sentido questionar o fundamento sem comunidade.
normativo ou a legitimidade. Não há cidadania
A relação comunitária do mercado nada tem
“onuense”, dizíamos acima. A fortiori não pode
de fenômeno recente. Um dos paradoxos da “mu-
haver cidadania do mundo enquanto a unidade deste
dança” que vivemos no presente é que ela nada
for assegurada essencialmente pelos mercados11.
mais é, afinal de contas, que a consumação há
III. SOCIALIZAÇÃO COMUNITÁRIA SEM muito preparada de um processo tão antigo quanto
COMUNIDADE: FIM DA HISTÓRIA? o próprio Estado moderno. Alguém que escreva a
história da formação das sociedades modernas
Mercados ou redes. A diferença não é muito
deve evidentemente dar tanta atenção à expansão
grande. Talvez seja útil resumir o processo que
da economia mercantil, ao alargamento e integra-
estamos vivendo, afirmando que assistimos à vitó-
ção progressivos dos mercados locais, à criação
ria definitiva da economia sobre a política, simples-
dos bancos e instituições monetárias etc., quanto
mente porque economia e política jamais estiveram
às diferentes etapas da afirmação do poder monár-
separadas uma da outra tanto quanto uma certa
quico contra os poderes feudais, à uniformização
Economia Política gostaria de supor. Mas seja qual
do direito em cada Estado nacional, à evolução
for a relação entre economia e política, o merca-
das formas constitucionais e à extensão do direito
do é provavelmente o núcleo e certamente o
ao voto. Não somente os dois processos caminham
paradigma de uma socialidade de redes. Recorde-
em sintonia, mas são a tal ponto indissociáveis
mos os termos com os quais Max Weber caracte-
que é vão pretender discernir se remete à iniciativa
rizava a “comunidade” de mercado, termos que
do Estado o fato de ter permitido o desenvolvi-
os socialistas de sua época por certo não recusa-
mento da economia capitalista, ou então se essa
riam: “A comunidade de mercado é como tal a
economia desenhou com o Estado moderno uma
relação prática de vida mais impessoal em que os
forma de poder político à sua conveniência. Pelo
fato de a virtualidade de uma socialização de re-
des estar inscrita nas formas elementares do mer-
11 Isto por uma razão que Carl Schmitt resumiu de ma- cado e as trocas mercantis não ficarem de modo
neira brutal, mas ao meu ver pertinente: “Em uma socie- nenhum restritas às fronteiras dos Estados, tam-
dade cuja razão de ser é de ordem econômica e cuja or- bém se percebeu há muito tempo a possibilidade
ganização, quer dizer, o funcionamento previsível, situa-
de uma unificação do mundo que se realizaria sob
se nas categorias econômicas, não é concebível — embora
se possa imaginar — exigir de um membro qualquer que a forma de uma necessidade cega: ao menos des-
sacrifique sua vida no interesse do bom funcionamento de a metade do século XIX, por todos os autores
dessa sociedade” (SCHMITT, 1963, p. 91). que recusaram de uma maneira ou de outra o tema

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O CONCEITO DE POLÍTICA POSTO À PROVA PELA MUNDIALIZAÇÃO

da naturalização da sociedade. Entre outros, por logia12: não que os Estados governassem o curso
Marx — é claro —, que tentou penetrar até a raiz da História (o papel conferido por Kant à “inso-
desse processo analisando o fetichismo da mer- ciável sociabilidade dos homens” ou o estatuto do
cadoria, e por Max Weber, cujo voluntarismo po- Espírito do Mundo, tribunal supremo da História
lítico era uma resposta desesperada à expansão, em Hegel, excluem essa interpretação), mas por-
segundo ele inexorável, de uma racionalização que que foi definitivamente nas transformações das
tinha todos os ares de um fatum. Mas pode-se constituições políticas que o processo “natural”
ver nessa temática, que adquire uma ressonância de transformação dos costumes adquiriu a quali-
dramática na virada do século XIX para o XX e a dade de uma identidade refletida. Em outros ter-
partir desse momento alimenta todas as varieda- mos, se a política não constituía a História, era o
des da Kulturkritik, o avatar (e ao mesmo tempo que lhe dava sentido. Somente a possibilidade de
o avesso) de uma idéia mais antiga que tomou uma reflexão das transformações dos costumes
forma com os filósofos escoceses do século em uma identidade conscientemente assumida per-
XVIII e recebeu de Fergusson o nome “civiliza- mitia pensar a universalização do mundo em ter-
ção”. A comparação entre essas duas épocas in- mos teleológicos.
dica toda a ambivalência inerente ao esquema de
“Globalização” é o nome que utilizamos recen-
uma socialização cega, essencialmente sustenta-
temente para designar essa socialização às cegas,
da pelas trocas mercantis. Os autores do século
visto ter conseguido de fato englobar o mundo.
XVIII desvendavam aí a promessa de uma trans-
Mas nos enganaríamos ao entender esse “englo-
formação progressiva dos costumes e condutas,
bar” em um sentido exclusivamente espacial, em-
cujos efeitos transcendiam amplamente a esfera
bora a extensão espacial seja um aspecto de sua
da atividade econômica no sentido estrito do ter-
existência: não há mais territórios no planeta que
mo: o fundamento de um progresso moral dos
não sejam incluídos no raio de influência e ação
indivíduos, que tornava supérfluas as formas au-
das potências econômicas, ou ainda, não há mais
toritárias de poder e autorizava a perspectiva de
nichos, por assim dizer, onde as populações
um progresso das liberdades políticas, sem que
possam perpetuar modos de vida que datam de
houvesse a necessidade de uma revolução. Ao fi-
outra época13. Mas a hegemonia da socialidade
nal do século XIX, os efeitos civilizadores da eco-
de redes implica também uma forma original de
nomia capitalista se acham amplamente ocultados
existência, cuja característica mais notável, do pon-
pela ameaça desde então percebida nos processos
to de vista das expectativas dos séculos passados,
de socialização anônimos, a propósito dos quais
é a de não se desenvolver na dimensão da História.
se teve o tempo de descobrir que, abandonados à
A continuidade do processo histórico, levando da
sua dinâmica natural, produzem de uma só vez a
civilização à mundialização, não deve pois ocultar
opulência e a miséria, a cultura e a barbárie. O
a maneira muito diferente pela qual é pensada, em
sucesso da metáfora do mecanismo é o sintoma
cada uma dessas noções, respectivamente, a uni-
dessa avaliação totalmente inversa da socialização
dade da humanidade. É certo que as transfor-
cega, assim como a crise da idéia de progresso.
mações das lógicas de socialização, nas quais os
Essa inversão se deve em grande parte à perda filósofos escoceses do século XVIII viam as pre-
de credibilidade das filosofias da História do final missas de uma humanidade nova, “civilizada”,
do século XVIII e início do XIX, que pensavam a levaram à formação das redes de interdependência
possibilidade de uma universalização do mundo
mediante categorias incompatíveis com o reino
das socialidades anônimas. Seria preciso uma aná- 12 O que é verdadeiro em relação à história universal dos
lise cerrada para mostrar como a idéia de um pro- filósofos, Kant, Fichte e, bem entendido, Hegel, mas também
cesso de civilização, originalmente emprestada dos em relação à história dos historiadores, como Schlözer no
filósofos escoceses, fundiu-se com a idéia final do século XVIII, mas também Ranke algumas décadas
germânica de Bildung [formação], cujas pre- mais tarde, apesar de sua declarada hostilidade contra a
filosofia da História.
missas históricas eram sensivelmente diferentes.
Foi essa fusão que autorizou a transfiguração 13 Sabe-se que é um dos problemas do etnólogo hoje em dia
teleológica da socialidade cega e é significativo o fato de as formas de vida que ele procura descrever, e cuja
que a política tenha sido o princípio dessa teleo- lógica tenta modelar, não se apresentarem mais, em lugar
nenhum, sob uma forma pura.

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planetárias que são hoje designadas pelo nome recepção da Economia Política inglesa na Alema-
“mundialização”. Mas a civilização era um pro- nha. Sob o termo “civilização” eram pensadas
cesso, o que, estritamente falando, a mundia- conjuntamente tanto as inovações manifestas no
lização não é. A civilização demandava tempo, o plano da organização econômica, quanto as
necessário para as lentas transformações dos relações que as atividades industrial e mercantil
modos de vida, dos modos de sentir e pensar bem mantinham com os poderes políticos, além das
como das formas de atividade. A mundialização, transformações mais discretas das expectativas,
ao contrário, já está realizada e consumada em disposições, maneiras de agir e viver que
cada momento presente. A estrita sincronização acompanhavam essas inovações e relações. E
do conjunto dos acontecimentos do mundo, que precisamente porque a civilização incluía essas
uma ampla literatura descreveu em todas as suas modificações íntimas — uma psicogênese, para
condicionantes, sobretudo tecnológicas, e em seus falar como Elias —, permitia articular o político e
efeitos, no tocante aos ritmos de trabalho e de o econômico: a civilitas [civilidade] preparava a
vida, é traduzida por uma presença de certo modo civitas [cidade], o indivíduo, liberado dos vínculos
imediata da rede mundial das coações em cada tradicionais de sujeição e formado para a liberdade
momento da vida do indivíduo14. por sua investidura nas novas formas de atividade
econômica, estava apto a reivindicar uma parti-
Um sintoma do deslocamento de acento de uma
cipação no jogo das instituições. Se a Gesinnung
para outra é verificável na história do conceito de
alemã absorveu o essencial das determinações da
habitus. Pierre Bourdieu inscreveu esse conceito
Zivilisation, autorizando a conjunção entre as
no centro da conceitualização sociológica para
idéias de um processo de civilização e do progresso
ultrapassar a oposição clássica entre coações
das Luzes, o uso que hoje em dia se faz da noção
objetivas e disposições subjetivas em que se perdia
de habitus parece-me sensivelmente diferente. O
a Sociologia francesa dos anos 60. Todavia, o
acento é dado à introjeção de coações próprias a
esforço para pensar o ajustamento íntimo das
um campo de atividade determinado, sem que o
disposições e condutas dos indivíduos às
mecanismo dessa introjeção seja analisado com
exigências das estruturas institucionais não data
mais precisão. Sem, sobretudo, que ela seja pen-
de ontem: a Gesinnung [disposição] hegeliana e
sada como solidária a uma transformação global
notadamente a Lebensführung [conduta] weberiana
das disposições do indivíduo, implicando novas
(Weber, de resto, igualmente utiliza tanto o termo
maneiras de compreender a articulação dos
Gesinnung quanto ethos) podem ser consideradas,
diferentes coletivos que intervêm na compreensão
nesse sentido, as precursoras do habitus. E seria
do que esse próprio indivíduo é. A adaptação a
preciso, se fosse nosso propósito uma Be-
um sistema de coações não civiliza, pois não engaja
griffsgeschichte [história do conceito] exata e
ou mobiliza senão uma faceta do indivíduo: cada
completa, remontar minimamente aos moralistas
campo faz valer suas exigências particulares e o
escoceses para mostrar que a noção germânica
sucesso, quer dizer, a adaptação bem-sucedida a
de Gesinnung, quaisquer que sejam as conotações
um dos sistemas não prevê uma capacidade maior
morais e políticas que Hegel — depois de Kant —
de se modelar às exigências de um outro. Nada
pôde lhe imputar, beneficiou-se no início do século
permite supor que um trabalhador, coagido a se
XIX de boa parte das significações de civilization,
dobrar à disciplina da empresa devido a ausência
precisamente no momento em que se efetuava a
de recursos próprios ou, em um registro mais
recente, a aceitar, por não poder agir de outra
maneira, os riscos da flexibilidade, modifique, por
isso mesmo, a totalidade de sua relação com o
14 Um fenômeno que Norbert Elias, a quem devemos análises
mundo.
notáveis dos mecanismos de uma socialidade de rede, foi um
dos primeiros a sublinhar. Assim: “Seja um burocrata ou um Se as interpretações teleológicas da História se
empresário na realização de seus compromissos ou negócios, tornaram caducas, isto não se deve ao fato de que
seja um operário na afinação exata de cada trabalho manual o mundo do final do século XX realizou as
em relação a uma determinação ou duração temporal, lá
promessas de ontem, quer dizer, ao fato de que
como cá o tempo é uma expressão da realização de ações que
se interdependem, uma expressão do alcance e da densidade teríamos chegado ao melhor dos regimes políticos
das redes em que convergem, como a parte no todo, as ações possíveis, suscetível apenas de modificações de
individuais” (ELIAS, 1976, p. 337). detalhe, mas se deve ao tipo de socialidade que

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O CONCEITO DE POLÍTICA POSTO À PROVA PELA MUNDIALIZAÇÃO

realizou a unidade do mundo. Essa unidade é efetiva usar sem precaução essas definições. Seria preci-
apesar da pluralidade e ausência de hierarquia das so uma digressão muito longa para mostrar que a
instâncias de decisão. Ou, melhor ainda: é graças consideração das motivações da obediência, dei-
a essa pluralidade que o mundo é mundo, é ela xadas à sombra aqui, permite reduzir a aparente
que empresta à unidade do mundo, portanto, suas incompatibilidade entre a inter-pretação weberiana
características distintivas. Ora, será que nos da natureza do poder de Estado (de sua domina-
equivocamos ao nos inquietarmos com isso, e não ção) e, por exemplo, o conceito de poder defendi-
deveríamos, antes, ver nessa situação a possibi- do por Hannah Arendt (1996)16. O que pretendo
lidade de uma política diferente, liberada da tutela simplesmente sublinhar é o fato de que o conceito
do Estado, liberada por isso mesmo de uma con- de poder, no sentido em que Weber o entende, é
cepção hierárquica do poder, cujo núcleo era pre- “sociologicamente amorfo” dada a ausência de
cisamente o dogma da soberania do Estado, determinação concernente às condições de sua
concepção que constituía um obstáculo à consu- efetividade (o que Weber denomina “as ocasiões
mação da democracia? Sublinha-se com justiça a sobre as quais ele repousa”)17. O risco é tanto
multiplicidade das iniciativas de cidadania e que não deveríamos dizer o mesmo a respeito da
movimentos sociais que se desenvolvem à margem política ao focalizarmos a atenção na diversidade
dos quadros institucionais clássicos para contestar das expressões da cidadania, esquecendo as con-
a idéia convencional de um recuo dos indivíduos dições de sua existência. O que permitiu a consti-
à esfera da vida privada, em que se manifestaria tuição da cidadania — repitamos — foi a organi-
um crescente desinteresse pela coisa pública. O zação hierarquizada dos espaços de socialização,
imobilismo ou a impotência da política tradicional cujo ponto supremo era a preeminência do Esta-
não impedem que a sociedade se transforme, e do. Só podíamos sonhar com outra cidadania —
essas transformações oferecem aos cidadãos
novos campos de ação e objetos para as interven-
ções coletivas, mediante as quais se elabora e 16 O que está em jogo na elaboração conceitual feita por
trabalha continuamente o vínculo social. Todavia, Hannah Arendt nesse ensaio é completamente diferente
parece-me um pouco apressado valer-se dessas daquilo que inspira as definições weberianas. Em uma pri-
metamorfoses das práticas coletivas para inferir meira leitura, as posições dos dois autores parecem
um deslocamento puro e simples do lugar da diametralmente opostas. Hannah Arendt estigmatiza a
política, de tal modo que sua compreensão devesse “redução fatal do político ao domínio da dominação” (p.
45), e observa que os cidadãos da polis ateniense, assim
ser inteiramente repensada. Concluindo de modo como os da res publica romana, possuíam um conceito de
precipitado o dossiê da história do Estado moderno poder e lei “cuja essência não repousa sobre a relação de
sem demorar-se em um inventário minucioso, comando e obediência, e que não identifica poder e domi-
corre-se o risco de dar ao conceito de política nação, ou lei e comando” (p. 41). Diferentemente da vio-
uma plasticidade tão grande que termine perdendo lência — este é o ponto que Hannah Arendt pretende
toda significação determinada. Max Weber destacar —, o poder pressupõe o consentimento do grupo
no qual reside e pela concordância do qual existe. “Quan-
distinguia poder [pouvoir] e dominação, o primei- do dizemos em relação a alguém que ‘detém o poder’, isto
ro termo designando “toda ocasião de impor sua significa em realidade que está autorizado por um número
própria vontade no interior de uma relação social, determinado de pessoas a agir em nome delas” (p. 45). Mas
eventualmente contra uma resistência, quaisquer esse “número determinado de pessoas” é precisamente o
que sejam as condições sobre as quais repouse que aparece na definição weberiana da dominação (“por
essa ocasião”, enquanto o segundo implica que se certas pessoas”), quer dizer, aquelas pessoas cuja obediên-
cia presumida dá consistência à dominação. A concordân-
efetue tal imposição nas formas do comando e da cia sobre a qual repousa a obediência nada mais é que a
obediência15. Mas caracterizar o Estado como legitimidade da dominação. Ora, tal legitimidade se deixa
uma forma de dominação e fazer da relação co- reconhecer na obediência com a qual o poder pode contar
mando/obediência o critério da dominação fere por “quando uma decisão deve ser tomada” (p. 50) e, em vista
demais profundamente as convicções democráti- disso, parece-me arbitrário afirmar que “a correlação co-
cas e liberais de nossa época para que possamos mando-obediência é totalmente impertinente” (ibid.).
17 “O conceito ‘poder’ é sociologicamente amorfo. Todas as
qualidades imagináveis de um ser humano e todas as
15 “Deve-se denominar dominação a ocasião em que certas constelações imagináveis podem colocar alguém na situação
pessoas se acham obedientes perante um comando de de impor sua vontade em uma dada circunstância” (WEBER,
conteúdo determinado” (WEBER, 1922, p. 28). 1922, p. 28).

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cosmopolita, universal — sob a condição de pres- busca de identidades coletivas que substituam uma
supor a subordinação dos Estados a uma instân- identidade cidadã impossível, o que consiste em
cia política supranacional, seja qual fosse a sua uma das fontes dos fundamentalismos político-
forma, quer dizer, sob a condição de pressupor a religiosos ou dos ressurgimentos do nacionalismo
subordinação dos Estados a um poder legítimo (o étnico. Não é o purismo teórico que nos faz hesitar
que igualmente implica que sua legitimidade pos- em abandonar sem prudência o conceito “estatal”
sa ser contestada). Ora, somente a autoridade é da política. A indeterminação de um conceito de
legitimável, e por esta razão é também uma forma política dissociado de sua referência tradicional
de poder em torno da qual se pode constituir uma ao Estado não seria um mal tão grande se não
identidade coletiva. Algo totalmente diferente se implicasse uma provável cegueira para a face
passa com as redes, que inegavelmente criam vín- obscura da socialidade de redes. Precisamente
culo social na medida em que as coações que exer- porque a mundialização já está consumada, ela
cem sobre os indivíduos são introjetadas em ex- inclui a certeza de um progresso indefinido (certeza
pectativas e disposições que levam em conta a dos progressos técnicos, da produtividade, do
existência dos outros (o dinheiro só dispõe da fun- crescimento etc.) sem a promessa do futuro, ou
ção que é a sua porque seu uso pressupõe a rela- ainda — para dizê-lo em termos hegelianos —,
ção à atividade potencial dos outros indivíduos; o porque ela é um mau infinito, aquele da repetição
mesmo vale para todas as formas de relações ne- do mesmo, não se pode considerar que os
gociadas entre os centros de decisão não- fenômenos que constituem essa face obscura
hierarquizados), mas escapam contudo à exigên- sejam um fenômeno transitório, nem apostar que
cia de legitimação: exigência que seria absurda se ela será a desfiliação (para retomar ainda um termo
formulada a seu respeito, pois a coação que im- de Robert Castel) de grupos de indivíduos ou de
põem é da ordem da necessidade, não da obriga- populações inteiras, como a pauperização do século
ção. precedente, quer dizer, que poderemos tomá-la em
algumas décadas por outro mal-estar de juventude,
Esquecemos facilmente as condições da cida-
um mal-estar adolescente da história das
dania porque esta de certo modo se tornou uma
sociedades modernas. Não foi o crescimento que
segunda natureza para nós, e o interesse coletivo
reduziu espontaneamente a pauperização, mas as
se tornou uma noção manifesta, mesmo que seu
lutas sociais e políticas que arrancaram ao Estado
conteúdo concreto seja sempre incerto e sua
as legislações que instituíram o direito trabalhista,
definição indefinidamente renegociada. Mas essas
as lincenças remuneradas, os sistemas de seguro
condições aparecem claramente quando considera-
e aposentadoria. Tais lutas, quaisquer que tenham
mos os efeitos da hegemonia de uma socialidade
sido as suas formas, desenvolviam-se no espaço
de redes em populações nas quais ela se traduz
da cidadania na medida em que pressupunham que
em miséria e ausência de futuro, sem que essas
o Estado estava apto a responder às suas
populações tenham a possibilidade de elaborar suas
reivindicações. Supondo que os Estados realmente
dificuldades de existência e sua revolta contra uma
não sejam outra coisa que um poder entre outros
cena política ausente: entre os jovens de bairros
e o destino dos povos uma função do resultado
considerados problemáticos, no centro ou subúr-
imprevisível de um entrecruzamento de decisões
bios das grandes metrópoles do núcleo antigo da
cuja responsabilidade, bem entendido, nenhum
Europa e na América do Norte, e em partes con-
sujeito institucional singular pode assumir, é vão
sideráveis, com freqüência majoritárias, dos povos
esperar que os lados negativos da mundialização
da África ou América Latina. Esses sabem que as
sejam algum dia corrigidos. E o mais grave, sem
possibilidades que dispõem de “inventar sua pró-
dúvida, para o futuro da política, é que as popu-
pria biografia” são excessivamente restritas, tal-
lações afetadas venham a se convencer da inexis-
vez inexistentes, e só podem reivindicar direitos,
tência da autoridade soberana.
sob formas pacíficas ou violentas, na medida em
que possuem um interlocutor. Não apenas uma A dimensão hierárquica necessariamente impli-
equipe dirigente, mas o próprio Estado aparece cada na compreensão estatal da política, dimen-
como impotente porque submetido às coações que são na qual eu insistia ao evocar a questão das
o relegam a ponto de interditar toda a autonomia identidades, é extremamente suspeita hoje em dia.
de sua ação; a miséria só pode engendrar a apatia, Supõe-se, no melhor dos casos, que é no fundo
a fuga na droga ou a criminalidade, ou ainda a contraditória com a própria idéia de democracia;

19
O CONCEITO DE POLÍTICA POSTO À PROVA PELA MUNDIALIZAÇÃO

no pior, que comanda diretamente os projetos de existe um poder capaz de reconhecer, conceder e
uma constituição exclusivamente política da soci- garantir os direitos, não teria simplesmente existi-
edade, projetos que vão desde os sonhos aparen- do o espaço onde se travam essas lutas. Os pro-
temente inocentes dos utópicos do século XIX cessos de democratização jamais colocaram seri-
até os totalitarismos do século XX. Tentei mos- amente em questão o poder do Estado, apenas as
trar que talvez a coisa não seja assim tão simples e formas de seu exercício: é o que a globalização
que a preeminência reivindicada pelo Estado, que nos permite compreender na medida em que real-
define o indivíduo como súdito, foi também o que mente ameaça, em contrapartida, esse poder, e
permitiu a instituição e a conquista da cidadania. com isto as bases da cidadania. Pois vale em geral
O Estado certamente não consentiu de maneira para a socialidade de redes aquilo que vale para a
resoluta essa metamorfose do súdito em cidadão, burocracia (uma de suas manifestações), a res-
que não foi nem está definitivamente concluída. A peito da qual Hannah Arendt observava que, quan-
própria definição de cidadania, quer dizer, nota- do se procura os responsáveis ou se exige refor-
damente sua extensão e a natureza dos direitos mas, não se acha ninguém: “não se pode contar,
que lhe são associados, é objeto de uma redefinição influenciar ou persuadir ninguém, sobre ninguém
contínua, e o que chamamos política inclui todas se pode exercer a pressão de um poder” (WEBER,
as lutas que giram em torno dessa definição. Mas 1922, p. 80).
sem Estado, quer dizer, sem a convicção de que Recebido para publicação em janeiro de 1999.

Catherine Colliot-Thélène (catherine.colliot-thélène@univ-rennes1.fr) é Profesora da Universidade de


Rennes e Diretora da equipe de pesquisa "Filosofia Política Contemporânea" da Ecole Normale Supérieure
de Fontenay/Saint-Cloud/CNRS. Publicou no Brasil Max Weber e a História (São Paulo, Brasiliense).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Piper. Nationalstaat zwischen Globalisierung und
Regionalisierung. Berlin-Hamburg : Argument
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Verlag.
Agone, Paris, n. 16.
SCHMITT, C. 1963. La notion du politique. Pa-
CASTEL, R. 1995. Les métamorphoses de la
ris : Calmann-Lévy.
question sociale. Paris : Fayard.
von WEIZSÄCKER, R. 1992. Gespräch mit
CHEMILLIER-GENDREAU, M. 1995.
Gunther Hofman und Werner A. Perger.
Humanité e souverainetés. Paris : La
Frankfurt/M. : Eichborn.
Découverte.
WEBER, M. 1921. Politik als Beruf. In:
ELIAS, N. 1976. Über den Prozeß der
Gesammelte Politische Schriften. München:
Zivilisation. Frankfurt/N. : Suhrkamp, Tome
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2.
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JESSOP, B. 1997. Die Zukunft des Nationalstaats:
Grundriss der Verstehenden Soziologie.
Erosion oder Reorganisation? Grundsätzliche
Tubingen : J. C. B. Mohr (Paul Siebeck).
Überlegungen zu Westeuropa. In: Jenseits der

20
ABSTRACTS RsocP vol. 12 1999
THE CONCEPT OF POLITICS UNDER THE SCRUTINY OF MONDIALIZATION
Catherine Colliot-Thélène (Ecole Normale Supérieure de Fontenay/Saint-Cloud)
This article characterizes the modern concept of politics in the light of the phenomena that have
been designated by the term "globalization". It will be analized how the modern State has
consolidated its capacity for domination as it has been able to formulate in structural and symbolic
terms a colective identity, expressed through the idea of cityzenship. It is argued that the
diversification of decision arenas and the transfer of economic, juridical and military competences to
supranational, regional or transnational instances, question State sovereignty and at the same time
begin to redefine a new the political sphere, given that power relations, in this new context, cease to
be paralleled by processes of colective identification, that have, until now, been assured by the
decision capacity of the State.
KEY WORDS: politics; State; sovereignty; collective identification; mondialization; globalization.

FORMS OF NGOs INFLUENCE IN CONTEMPORARY INTERNATIONAL


POLITICS
Rafael A. Duarte Villa (Universidade Federal do Paraná)
This article analyses the growing importance that transnational, non-state actors are aquiring for
international relations theory. More specifically, the author explores three facets of this
phenomenon: firstly, the proposition of the category of influence as a political means of
transnational NGOs performance; secondly, the insertion of these NGOs in global social processes
- such as ecological instabilities, human rights, consumption; and finally, the methods of building
consensus around social problems of planetary order. The author concludes that NGOs
performance affects interstate, supranational and transnational orders.
KEY WORDS: transnacional actor; NGOs; influence; inter-State actor; supranational actor;
consensus; decentralization.
BRAZILIANS IN SPANISH CIVIL WAR: COMBATANTS IN THE FIGHT AGAINST
FASCISM
Paulo Roberto de Almeida (Ministério das Relações Exteriores - Brazil)
This article analyses the participation of Brazilians in Spanish Civil War, most of whom belonged to
the Communist Party. The article also analyses the political and diplomatic context of the Spanish
conflict. It is based in an original research on primary sources, specially questionnaires and
interviews with ex-combatants and their relatives as well as on available secondary sources. This
research constitutes one of the first surveys of voluntary involvement of Brazilian combatants in the
military episodes of the Spanish Civil War, with emphasis given to their participation in the
International Brigades.
KEY WORDS: Spanish Civil War, (1936-1939); International Brigades; voluntary participation of
Brazilians.
THE UNITED STATES, THE CUBAN REVOLUTION AND THE CONTRA-
INSURRECTION
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA N0 12: 195-197 JUN. 1999

RESUMES
Versão dos resumos para o francês: Maria Esther Reis
LE CONCEPT DE POLITIQUE À L’ÉPREUVE DE LA MONDIALISATION
Catherine Colliot-Thélène (Université de Rennes/Ecole Normale Supérieure de Fontenay-Saint-
Cloud/CNRS)
Cet article vise à caracterizar le concept moderne de politique en face des phénomènes designés
para le terme “mondialisation”. On discute la consolidation de l’Etat en ce Qui concerne as capacité
de domination dans la mesure où il se révèle apte à structurer symboliquement une identité
collective particulière, traduite par l’idée de citoyenneté. On soutient que la diversification des
champs de décision et le transfert des compétences économiques, juridiques et militaires aux
instances supranationales, régionales ou bien transnationales, met en question la souveraineté d’Etat
et commence à redéfir en même temps le champ de la politique de façon inouïe, puisque les
relations de pouvoir dans ce nouveau contexte ne sont plus accompagnées des processus
d’identification collective, jusqu’à présent assurés par la capacité de décision de l’Etat.
MOTS-CLES: politique; état; souveraineté; identification collective; mondialisation; globalisation.
* * *
INFLUENCE DE L’ONGS SUR LA POLITIQUE INTERNATIONAL CONTEMPORAINE
Rafael A. Duarte Villa (Universidade Federal do Paraná)
Cet article analyse l’importance croissante des acteurs non-étatiques transnationaux dans la théorie
des relations internationales. L’auteur traite plus particulièrement trois aspects: d’abord la
proposition de la catégorie de influence comme moyen d’action politique de l’ONGs transnationale;
puis l’implication de cette même ONGs dans le processus sociaux et globaux comme tels que le
déséquilibre écologique, le droit de l’homme, la consommation; et enfin les méthodes de création
d’un consensus au sujet des problèmes sociaux d’ordre planétaire. L’auteur conclu que l’action des
ONGs atteint des niveaux internationaux, supranationaux et transnationaux.
MOTS-CLES: acteur transnational; ONGs; influence; acteur inter-étatique; acteur supranational;
consensus; décentralisation.
* * *
LES BRÉSILIENS DANS LA GUERRE CIVILE ESPAGNOLE: IMPLIQUÉS DANS LA LUTTE
CONTRE LE FASCISME
Paulo Roberto de Almeida (Ministério das Relações Exteriores – Brasil)
Cet article analyse la participation des brésiliens, membres, pour la plupart, du Parti Communiste
dans la guerre civile espagnole et le contexte politico-diplomatique du conflit espagnol. Fondé sur
des recherches originales faites à partir des sources primaires constituées essentiellement
d’interviews et de questionnaires réalisés auprès des anciens combattants et de leurs parents ainsi
que sur la consultation des sources secondaires disponibles sur le sujet, ce travail représente une des
premières études sur l’engagement de combattants brésiliens volontaires dans les épisodes militaires
de cette guerre civile. Il accorde une place particulière à la participation de ces brésiliens dans les
Brigades Internationales.
MOTS-CLES: guerre civile espagnole, 1936-1939; brigades internationales; participation de
brésiliens volontaires.
* * *

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