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Antropológica do Espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede

Muniz Sodré, Petrópolis: Vozes, 2002

Gerson Dudus

Introdução
O livro é uma pedrada. Denso, pesado. Tijolo de concreto. Mas um tijolo com estilo, nada tosco. Talvez uma pedra fundamental, os alicerces
de uma construção orgânica em torno do que se convencionou chamar COMUNICAÇÃO. Alicerces feitos de uma mistura concreta de Filosofia,
Sociologia, Antropologia, Psicanálise, Poesia. Orgânica porque lida com raízes, as raízes da língua, trazendo de volta sentidos perdidos no
olvido, ouvidos com novos olhos.

Começa com bios, mais que zoe, vida maior que a vida. Passa pela hexis, educação como axis mundi. Entra em virtus, potência do novo no
pólo positivo, o mesmo diferente no pólo negativo. Passa pela communitas, um comum que se partilha em eqüidade – um ‘vendo’ que nem é
vendar nem vender, mas ver o mundo no presente em diversa perspectiva – ethike. E termina com communicatio, um saber que se coloca em
comum para ‘agir a vida’, como se diz por aqui.

E tem mais, o primeiro capítulo descreve, o segundo discute, o terceiro especula, o quarto apresenta e o quinto sugere.

Um belo livro. A louvação do ensaio como forma é um incentivo para tentar. Haroldo de Campos é quem dizia que o ensaio é teoria em forma
poética. Então, aqui vão algumas pontuações.

TVida ou bios mediático

Mediasc(o/a)pe
truth
lies
full of beauty
in every mirror

life is its
brakeable form
called
reality
(G. Dudus/nectar)

Na década de 70 foi lançado em São Paulo um jogo que era um espelho preparado, modificado. O tamanho era de mais ou menos 30x30cm.
Duas pessoas por vez jogavam. Colocava-se o espelho num anteparo sobre uma mesa. Era necessário que ficasse na altura do queixo dos
participantes. Então, apagavam-se as luzes e duas velas eram acendidas. Uma ficava coma a pessoa na frente do espelho, outra com a pessoa
atrás do espelho. Movimentando as velas, os jogadores tinham que encontrar o ponto onde os rostos se fundiam.

O espelho misturava características de um e outro e o que se via era um novo rosto, o mestiço. Havia jogadores que não suportavam o que
viam. Achavam grotesco, e crispavam. A sensação provocada tinha uma grande intensidade, como uma perda momentânea de identidade,
uma alucinação lúcida. O jogo, chamado ‘Persona’, tornava-se, para outros, um exercício de aceitação do outro em si mesmo, uma
aproximação solidarizante, uma reflexão sobre o ‘eu’. Nosso envolvimento – teórico ou existencial - com a mídia e as novas tecnologias da
comunicação é mais ou menos assim.

Nicolau Sevcenko afirma, enquanto conta a história do século vinte e discute o século vinte e um, afirma que

“Após a segunda guerra, a TV se torna o centro da vida cultural(...)operando como grandes máquinas de engenharia do
imaginário coletivo, por meio dos quais se massificam simultaneamente os valores da Guerra Fria e do consumo”

Muniz Sodré acompanha este raciocínio, incluindo as neotecnologias da comunicação neste quadro, mesmo entendendo que o virtual e as
redes podem apontar caminhos ainda não claramente definidos. Quando afirma que “o medium televisivo(...)permanece ainda hoje como
fulcro da mídia tradicional” , onde medium significa “canalização e ambiência estruturados com códigos próprios”, “fluxo comunicacional,
acoplado a um dispositivo técnico(...)e socialmente produzido pelo mercado capitalista, em tal extensão que o código produtivo pode tornar-se
‘ambiência’ existencial” , ele agrega as novas tecnologias ao mesmo funcionamento das mídias já tradicionais – impressa, rádio, tv.

Para Sodré, a mídia cria um novo bios, uma nova forma de vida, que vêm se juntar (talvez sobrepôr-se, eu diria) aos três outros apontados
por Aristóteles: bios theoretikos (vida contemplativa), bios politikos (vida política) e bios apolaustikos (vida prazerosa, do corpo).

“O ‘espelho’ midiático não é simples cópia, reprodução ou reflexo, porque implica uma forma nova de vida, com um novo
espaço e modo de interpelação coletiva dos indivíduos, portanto, outros parâmetros para a constituição de identidades
pessoais.”

Sodré descreve o encolhimento do espaço público e sua substituição pela tela, a estetização da política e sua midiatização emocionalista, a
eclosão de um moralismo mercadológico, de discurso profético-religioso.

Ao analisar o ‘capitalismo cristão’ dos Estados Unidos, mostrando as relações entre tele-evangelismo eletrônico, terrorismo moral e o ‘caso
Clinton’, é impossível não referir o modo como Bush Jr. fala hoje em nome de Deus, sobre o eixo do Mal e a nova ‘guerra’ – na verdade, uma
invasão, contra todas as diretrizes do direito internacional e da opinião mundial que se mostrou contra o conflito armado. Bush acredita ser a
boca de Deus, ‘the burning Bush’, onde Deus se revela através do fogo.

É impossível desvincular esse discurso religioso (da direita americana) da Teologia do ‘Destino Manifesto’ - que implica na eleição por Deus do
povo americano para espalhar a palavra de Deus por todo o mundo. O deus mudou – de “in God we trust” para “in gold we trust”, mas é uma
diferença sutil. O próprio Cristo já avisara que era impossível servir a Deus e às riquezas, mas quando você transforma o Mercado livre no
Deus que com seus movimentos controla o bem da humanidade, você livra a cara:
“o capital mercantil pode configurar-se como o ‘deus’ cuja teodicéia (a justificativa da ação divina) é a mídia. Pela sua
ubiqüidade e pela multiplicidade de ‘línguas’ que falam(...)a televisão e seus sucedâneos tecnológicos impõem-se como um
Pentecostes laico”

Também não há como não ver nas igrejas neo-pentecostais, em seu domínio do estilo midiático e em sua ‘teologia da prosperidade’, os
reflexos de todo esse movimento de religiosidade secularizada neoliberal.

Daí a decorrência de raciocínio de Sodré ao considerar o medium o aggelos (mensageiro em grego, de onde se origina ‘anjo’). Outro pensador,
Michel Serres, já havia referido essa percepção, ampliando-a:

“Olhe o céu aqui mesmo acima de nós, atravessado por aviões, satélites artificiais, ondas eletromagnéticas, televisão, rádio,
fax, correio eletrônico. O mundo no qual nos banhamos é um espaço-tempo da comunicação. Por que não falaria de espaço
dos anjos, já que esta expressão significa os mensageiros, os conjuntos de fatores, de transmissões prestes a passar, ou os
espaços dos passes?”

Para Serres, a comunicação é o espaço-tempo do entre, das preposições. E as preposições ligam lugares diferentes do saber. Serres chega a
dizer que ciência não tem a ver com conteúdo, mas com um modo de circulação.

“É preciso conceber ou imaginar como(...)viajam os anjos. E, para tanto, descrever os objetos que se situam entre as coisas já
observadas, espaços de interferência (...)esses anjos passam no tempo dobrado, daí surgindo milhões de conexões.”
“Os anjos são as mensagens, seu corpo é uma mensagem(...)Imagino que a cada anjo corresponda uma preposição. Mas uma
preposição não transporta mensagens, ela indica um conjunto de caminhos possíveis, no espaço ou no tempo.”

Em Serres, no livro ‘A Lenda dos Anjos’, há toda uma angelologia da comunicação. Ela comporta Anjos como mensagens; Querubins como
centrais distribuidoras/máquinas sociais e técnicas; Potências, Tronos e Dominações como os poderes; Serafins como os afetos; Arcanjos
como os excluídos.

Ambos, Sodré e Serres, de modos diferentes, mostram que a utopia da comunicação como um espaço democrático, horizontal, de troca,
compartilhamento, comunhão, está comprometida pelo problema do mal, pelos valores que a globalização escolheu para representá-la. Mas
ambos sugerem a possibilidade de uma diferença, de mudança.

Coolture Creatures
Sodré sugere que para educar é preciso ir além do ethos, da socialização, da etiqueta, da ‘repetição contingente de um costume’, e chegar à
aceitação dos impulsos de liberdade humana. “Hexis é a possibilidade de instalação da diferença na imposição estaticamente identitária do
ethos” , afirma. E continua discutindo as mudanças sócio-culturais contemporâneas, mostrando a necessária redefinição de escola, que seja
capaz de abarcar a revolução informacional – utilizando todo o aparato hipermídia - e comportar outros atores sociais para a tarefa da
educação. E da configuração de uma ética.

Muniz afirma o potencial das neotecnologias - amparadas por uma pedagogia da autonomia - para uma aprendizagem ativa de conhecimento,
unindo o jogo ao aprendizado, propiciando singularização humana. Cita, inclusive, as três transmutações do Zaratustra de Nietzsche, para
exemplificar as passagens da aceitação do ethos, para o desejo do novo e a criação do novo: Camelo, Leão, Criança.

Nessa idéia de nova escola, está implícita a necessidade daquilo que está se chamando de educomunicação, em seus vários momentos – a
utilização dos mídia e neotecnologias da comunicação no ensino, a educação para a crítica dos mídia e a produção de veículos de comunicação
democrática – em jornais experimentais, programas de rádio na escola, blogs, sites, etc..

Virtus ou a potência das forças

“Era briluz. As lesmolisas touvas


roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
e os momirratos davam grilvos”

Foi esse poema que Alice encontrou do outro lado do espelho. Ela não entendeu nada. Mas Humpty Dumpty a ajudou a descobrir o sentido.
Depois de traduzi-lo, Humpty demonstra como pode fazer o que quiser com as palavras, mesmo sendo Alice alguém que acredita que as
palavras significam aquilo que nos disseram:

“- Quando uso uma palavra ela significa aquilo que eu quero que signifique...nem mais nem menos.
- A questão é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes, ponderou Alice.
A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso.”

Pierre Levy diz que o texto é, desde suas origens mesopotâmicas, um objeto virtual. O texto que Alice encontra é assim, até que Humpty o
atualize para ela – interpretação, trabalho hermenêutico. Humpty também mostra para Alice, que acreditava na ilusão representacional da
linguagem, que existe uma política por trás da sua utilização: alguém impõe significado e outros acatam.

Do outro lado do espelho, interpretar, criticar e criar são atitudes fundamentais. Ainda mais quando se leva em consideração o número de
dimensões do mundo, que a física contemporânea discute – entre oito e onze. Baudrillard, em seu livro ‘Crime Perfeito’, evoca a mentira
confortante de dizer-nos materialistas, com uma ciência calcada na afirmação disso, quando os cientistas já descobriram a existência da anti-
matéria. A matéria, nosso mundo é, portanto, apenas e no máximo, metade da realidade. Vivemos como se a outra metade não existisse, ou
não fizesse diferença.

Assim sendo, penso que a realidade virtual não signifique apenas uma clonagem proprioceptiva, que simula outro mundo. Ela pertence a esse
novo paradigma do real, que inventa um espaço novo, onde nada existia – o ciberespaço, um não-lugar. Ela simula outro mundo porque ainda
não sabemos como habitar no não-lugar, e então, o enchemos com aquilo que se parece com este mundo: perspectiva tridimensional, cores,
volumes, objetos, paisagens. A realidade virtual responde à nossa limitação. Assim sendo, faz muito sentido que a realidade virtual se
configure como “um novo dispositivo de consciência” .

A noosfera, de Chardin e Morin se adaptam perfeitamente ao ciberespaço e à realidade virtual. Percebo também uma grande semelhança da
noosfera com a idéia de consciência em Peirce. Lúcia Santaella, numa palestra na PUC, na década de 80, falava sobre o poço sem fundo, onde
as idéias tomavam forma enquanto iam subindo, até chegar à tona, quando se tornavam ‘pensáveis’, e podíamos então utilizá-las. Esse lugar,
onde uma multidão de potencialidades circulam do fundo para a superfície, e vice-versa, eu chamei, num poema, de poço cartesiano – para
brincar com a questão da racionalidade cartesiana, transformando-a nesse espaço fundo, escuro, desconhecido, surpreendente.

Quando Sodré começa a nos falar de matéria ‘inteligente’, biochip, do esgarçar da fronteira entre orgânico e inorgânico, não há como não
lembrar de Deleuze, em seu posfácio ao livro dedicado à Foucault. Deleuze nos conta das três idades do humano: 1)quando lidávamos com as
forças do infinito e inventamos Deus – referência de tudo no máximo; 2)quando lidamos com as forças do finito e inventamos o homem e a
ciência (física,biologia...); 3)quando lidamos com as forças do finito ilimitado (as quatro bases do DNA que dão conta da multiplicidade do vivo
em seus rearranjos; o zero e um que digitalizam e transformam o mundo) e começamos a inventar o übbermensch, o ‘além-do-homem’.
Talvez, como nos diz Deleuze, o tempo das bodas do carbono com o silício.

Num tempo como este da terceira idade, se seguirmos a intuição deleuziana, não há que se estranhar a multiplicidade do eu, seus devires,
suas linhas-de-fuga, suas desterritorializações e reterritorializações. E por vezes, acontece, na nossa convivência com o virtual, o que Sodré
considera uma ‘individualidade sem singularidade’ , um empobrecimento, como o uso de identidades novas nos chats – apresentar-se como
diferente do que se é fisicamente ou socialmente. Mas também acontecem processos de singularização, e processos de comunhão, formação
de comunidades virtuais que atuam no socius, para mudar o real usando o virtual como travessia e possibilitação.

Comunidades de base ou a base das comunidades


Neste acontecimento, que é o que está se convencionando chamar de ‘movimento anti-globalização’, os grupos de protesto – anarquistas,
socialistas, sem-terra, sem-teto, partidos políticos de esquerda, agricultores contra os transgênicos – se associam e trocam informação e
organizam sua ação (como as manifestações recentes contra a invasão do Iraque – orquestradas por este movimento) via Internet.

Há uma ética, advinda dos movimentos sociais, das lutas pelos direitos dos negros, mulheres, advinda do movimento ecológico, que infunde
força e coesão ao movimento que está sendo considerado o primeiro grande acontecimento social global deste século. E ele está alinhado
visceralmente contra os valores neoliberais.

“O que o movimento antiglobalização está demonstrando é que as lutas sociais voltaram à cena internacional como fonte de
pressão por mudanças que levem a transformações do modelo civilizatório em curso. Ele foi gerado pelo próprio sistema a que
se contrapõe: a globalização capitalista.(...)A novidade no movimento antiglobalização é que ele está unindo, sem apagar as
diferenças, num campo de ação comum, grupos políticos e tribos culturais que até então nem sequer se sentavam juntos para
dialogar, ou seja, o movimento antiglobalização é, em si, um novo ator sociopolítico.”

Sloterdjik, em seu livro ‘No Mesmo Barco’, nos leva a pensar a política para aquém da polis grega. Para ele, o começo de tudo está na horda,
de lá parte a paleopolítica, que inclui na história aquilo que o Ocidente denega – as centenas de milhares de anos da história da espécie e não
apenas estes parcos cinco/seis mil anos da ‘história oficial contada para todos pelo Ocidente. Se resgatarmos a horda como princípio
socializador, que produz ‘o homem’, perceberemos o que ele chama de a arte do possível em pequeno “permanecer pequeno para alcançar o
grande bem, isto é, o da vida com ânimo”.

Este pensar pequeno, em minha intuição, estaria tomando como base da política não a polis, mas o ‘oikos’ , a casa, a morada. E certas
palavras encenam o novo movimento social anti-globalização:

 Oiko umene – a humanidade toda numa mesma casa;


 Oiko logos – uma fala/ação sobre a casa que é a terra e sua preservação(as três ecologias: social, ambiental, cultural);
 Oiko nomos – novas regras para a casa e seus bens, uma nova ´disposição do rebanho´ no espaço, lembrando que apascentar é
trazer a paz.

Este ativismo contemporâneo mostra a possibilidade de uma nova participação política, de uma cidadania global:

“uma atividade positiva, construtiva e inovadora(...)a resistência está imediatamente ligada a uma participação vital e
inevitável no conjunto das estruturas sociais e à formação de aparatos cooperativos de produção e comunidade. Essa militância
faz da resistência um contrapoder e da rebelião um projeto de amor.”

Ação Comum e Comunicação


Sodré coloca a Comunicação operando com uma banda larga (em ações e práticas) em três níveis: veiculação, vinculação e cognição.

A veiculação é a midiatização – em torno do que tem sido gerada a maior parte dos estudos ou análises da comunicação. A vinculação são
práticas de promoção/manutenção do vínculo social , ações comunitárias, animação cultural, atividade sindical (onde a reciprocidade dialógica
e afetiva da comunicação aparece) para além da mídia – ela aparece em obras de sociólogos, filósofos e pensadores. A cognição faz da
comunicação o campo do trans, maneira de colocar em perspectiva o saber tradicional sobre a sociedade através de um hipertexto mestiço,
híbrido. Aqui aparecem pensadores como Michel Serres que defendem a comunicação como o veículo para uma abordagem mais sistêmica
sobre o conhecimento (episteme), utilizando personagens conceituais como Hermes e os anjos:

“Metáfora significa, justamente: transporte. Esse é o método de Hermes: ele exporta e importa, portanto atravessa; ele
inventa e pode se enganar, devido à analogia; perigosa e mesmo, a rigor, proibida, não se conhece contudo outra via de
invenção”.

Com isso, ele assegura para o conhecimento a experiência do risco, da criação, da invenção. O que Muniz Sodré também enfoca, dizendo da
necessidade de “privilegiar (analogicamente, metaforicamente) as conexões – primeiro entre as teorias e depois entre estas e os fenômenos
observados” . E isso, para Sodré acontece através da forma ensaio.

Gerson Dudus - ECO/UFRJ.

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