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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Disciplina: História da Idade Média Ocidental (HUM 03036)
2018/2
Turma B
Avaliação Dissertativa: Análise de documentação e produção de texto
Aluno: Afonso Corrêa Cavagnoli Soares – 00302623

Questão 1:
Escritas nos anos seguintes ao estabelecimento da dinastia de Avis, importante
rompimento na história portuguesa, as Crônicas de Fernão Lopes consistem em histórias
narradas sobre cada um dos reis de Portugal, desde sua fundação. Cada crônica é como
um relato biográfico, narrada em uma linguagem que se aproximaria do português
falado na época, que traz as visões pretendidas pelo autor sobre os monarcas lusos. Se
trata de um trabalho que visa celebrar e exaltar feitos régios, como um monumento em
forma de texto.

O trabalho é notório por aspectos que o diferenciam de grande parte das crônicas
medievais. Há uma clara pretensão de se desenvolver um trabalho histórico, que leve
em conta a veracidade do que é narrado, diferentemente dos contos mais fantasiosos, os
quais predominaram durante a idade média. Historiadores como Paul Ricouer e Paul
Veyne argumentam que não há, necessariamente diferenças estruturais entre a narrativa
ficcional e a histórica, além de que a última pretende ser verdadeira. Era esse o dilema
enfrentado pelo próprio Fernão Lopes, crítico dos excessos nas narrativas de reis e do
passado, produzidas na época, que, por sua grande preocupação em “embelezar” a
história, acabavam por se distanciar da verdade. Havia, por parte do autor, assim como
outros cronistas do período, a crença em uma objetividade e veracidade plena dos fatos,
a partir dos quais seria possível a construção de uma narrativa baseada somente na
realidade.

As Crônicas, entretanto, apresentam uma estrutura de narrativa que se distancia,


em parte, daquela ideia de conto defendida pelo próprio autor, como sendo honesta e
verdadeira. Há uma clara dimensão narrativa no trabalho de Lopes, que pode ser
observado mesmo nas pesquisas historiográficas sobre suas crônicas, que, longe de
analisar somente a dimensão dos fatos, vê também a qualidade literária da história
contada. Como citado pelo historiador Alexandre Herculano, “Nas crônicas de Fernão
Lopes não há só história: há poesia e drama; há a Idade Média com sua fé, seu
entusiasmo, seu amor de glória”. O uso de recursos literários, que seriam possivelmente
uma herança da literatura de cavalaria, aliado à linguagem, coloquial, popular e
cativante, seriam alguns dos elementos centrais da dimensão narrativa da obra de
Fernão Lopes. A sua importância em retratar os chamados “miúdos”, a nobreza
secundária, junto com o povo português, alinhada ao mestre de Avis, em contrapartida
da alta nobreza, que estaria o lado dos castelhanos, também é uma marca de sua obra,
ponto que a difere da de outros cronistas da época. Essa divisão social, presente na obra,
pode ser um produto da própria vivência de Lopes, oriundo das classes “miúdas”, que
apoiaram D. João.

“A crônica como documento escrito está diretamente relacionada à afirmação


dos governantes e poderosos desde a Antiguidade, constituindo--se num verdadeiro
“monumento”. A frase de Jacques Le Goff, contida no texto de Adriana Zierer, revela
um ponto central da importância das Crônicas de Fernão Lopes para a própria
monarquia portuguesa. É o caso da construção de uma memória que eleva a figura do
rei e o estabelecimento de sua dinastia. A partir das crônicas, especialmente a Crônica
de D. João I, é defendida a ideia de uma “refundação” de Portugal, um rompimento com
a antiga ordem, da dinastia anterior, e a construção de um novo futuro.

São feitas diversas analogias com temáticas religiosas durante a narrativa. É uma
forma de simbolismo cristão que se constrói, Lopes procura retratar D. João I como um
salvador, uma figura do bom cristão, o rei pio que luta pela salvação de Portugal.
Trechos do texto, como um em que o rei D. Pedro sonha com um incêndio em Lisboa, o
qual consumiria a cidade toda pelo fogo até o momento em que seu filho, D. João, com
uma vara, apagaria esse fogo e salvaria o país das chamas. Em outros momentos, os
inimigos do rei, invasores de Castela, são retratados como heréticos, inimigos da luz e
salvação do rei D. João. Esses recursos narrativos pretendem construir uma figura
messiânica em torno do rei, a ser adorada e louvada, e, por isso, é um monumento em
forma de texto.

Em momentos são apresentadas falhas e ilegalidades por parte dos reis da antiga
dinastia, e inclusive críticas, como a acusação de má administração dos recursos do
reino por D. Fernando, com gastos exorbitantes na guerra com Castela, que deveriam
ser direcionados ao bem-estar do reino. Muitas das analogias feitas revelam a intenção
de deslegitimar os rivais da casa de Avis, assim como por vezes tentam criar a ideia de
origens divinas da dinastia, reforçando o messianismo que se tenta criar em torno de D.
João I. Fica clara, a partir de todas as analogias realizadas, a intenção da construção de
uma figura legítima, a ser exaltada, pela população portuguesa, como líder e rei.

Um ponto importante sobre a produção das obras, que explica muitas das
analogias realizadas por Fernão Lopes, é o contexto social e religioso no qual vivia a
população da época. Eram fortes e correntes no período as ideias milenaristas, da
aproximação com o dia do juízo final e a vinda do anticristo à terra. A partir desse
momento vivido é que se tornam ainda mais pertinentes as analogias à religiosidade,
realizadas por Lopes, uma vez que o imaginário da população era tomado pela crença e
a ideia da salvação. Como citado por Zierer, sobre o trabalho de Luís de Sousa Rebelo,
“ele associa este período como os “novos tempos” a serem iniciados pela Dinastia de
Avis, afirmando que o Juízo Final ocorreria em data incerta”. É esse o paralelo traçado
por Fernão Lopes entre a ideia construída da “refundação” de Portugal, com o
estabelecimento da dinastia de Avis, e o messianismo de D. João.

Há incertezas quanto ao público almejado com a escrita das crônicas.


Certamente, por serem realizadas em linguagem escrita, a nobreza e as classes letradas,
uma vez que o povo era na sua grande maioria analfabeto. Entretanto, há hipóteses de
que pelo fato de a linguagem ser muito próxima ao coloquial, ao português utilizado
diariamente, haveria a intenção de que as crônicas se disseminassem mais facilmente
pela via oral. Dada a intenção do projeto, a construção de uma memória messiânica e
heroica, um monumento ao rei D. João I, é possível que houvesse esse intento também.

Dados todos os motivos, a construção de uma memória sobre o rei, a pretensão


de verdade objetiva na narrativa, a construção religiosa do personagem, visto o
contexto, a noção de refundação do país, as relações apresentadas entre a nobreza e o
público a ser atingido, pode-se crer que havia a clara intenção de se legitimar a figura do
rei D. João I por meio das crônicas. Tal visão é reforçada por trabalhos como o do
historiador Rui Ramos, que afirma: “O seu propósito, como cronista-mor, foi, sem
dúvida, o de contribuir para a legitimação da dinastia de Avis, fazendo a apologia do
seu rei fundador”. Adriana Maria de Souza Zierer também afirma, em seu texto, que há
a intenção, por parte do autor, de louvar e legitimar o monarca por meio dos elementos
bíblicos. Por essas razões que as Crônicas de Fernão Lopes, apesar de almejarem a
narrativa de uma verdade absoluta, e da qualidade literária na narração dos fatos, se
apresentam como um trabalho que visa à legitimação da casa de Avis.

Referências
FRANÇA, S. S. L. “A dimensão narrativa das crônicas de Fernão Lopes”. MÉTIS: história &
cultura. Caxias do Sul. 2003.
VASCONCELOS E SOUSA, B. “Idade Média (séculos XI-XV)”. In: RAMOS, R. (Coord).
História de Portugal. 3aed. Lisboa: Esfera dos Livros, 2010.
ZIERER, A. M. S. “FERNÃO LOPES E SEU PAPEL NA CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE
D. JOÃO I, O REI DA BOA MEMÓRIA”. OPSIS, Catalão. 2012.

Questão 2:

Texto: ESTEVES, Julieta Araújo. FONTES DE “SABER” NAS CRÓNICAS


MEDIEVAIS: FERNÃO LOPES. Hist. R., UFG. Goiânia. 2013.

A doutora Julieta Maria Aires de Almeida Araújo Esteves é professora auxiliar


da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. São escassas as informações acerca
de suas pesquisas, na internet. Essa é sua única publicação na revista da UFG.

Fontes : o próprio texto

“Com o advento do cristianismo, a fé e o conhecimento da Bíblia reflectem-se


nas
produções historiográficas. Com o cristianismo a concepção de história procura uma
transcendência na explicação da vida humana. Para os primeiros historiadores cristãos,
cujo paradigma é Santo Agostinho, a história deverá ser Universal e ela tem sentido, de
princípio a fim, porque acima da vontade humana está a Providência Divina, ou seja, o
desígnio de Deus para o mundo, que lhe dá significado. Assim a História é a
concretização no tempo, do desígnio de Deus para os Homens.” (Pg. 3-4)

“Mas isso significa que não se preocupa com as fontes? Não, muito pelo
contrário, Fernão Lopes tem uma grande preocupação com as fontes, muitas vezes por
ele criticadas de forma contundente, apenas há aquelas que usa, sem especificar e outras
que conscientemente procura salientar. Talvez por isso Teresa Amado refira que
nenhum outro cronista foi simultaneamente tão historiador e tão narrador.” (Pg. 6)

“Fernão Lopes cria nas suas obras, um espelho, que reflecte não apenas a sua época mas
também a si próprio, os seus conhecimentos, os seus pensamentos, afinal, aquilo que
quer que fique para a posteridade.” (Pg. 11)

O texto de Esteves procura elucidar aspectos sobre a abordagem historiográfica


utilizada pelas crônicas medievais, com ênfase no caso das de Fernão Lopes. Por essa
razão, são abordados os aspectos centrais da preocupação do autor com as fontes
históricas utilizadas, a fim da construção da narrativa histórica da crônica. É traçado
também, em um primeiro momento, uma breve trajetória da pesquisa histórica, que vai
de Heródoto até a historiografia medieval. Por essas razões, os pontos destacados acima
resumem os principais temas do texto.

Referências

ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. A figura do herói antigo nas crônicas
medievais da Península Ibérica (séculos XIII e XIV). 2011. 116 f. Dissertação
(mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais,
2011. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/93229>.

ESTEVES, Julieta Araújo. FONTES DE “SABER” NAS CRÓNICAS MEDIEVAIS:


FERNÃO LOPES. Hist. R., Goiânia. 2013.

GUIMARÃES, Marcella Lopes. Crônica de um gênero histórico. Revista Diálogos


Mediterrânicos, UFPR/NEMED. 2012.

MICHELAN, Kátia Brasilino. Cronistas medievais: ajuntadores de histórias.


História Social, UNESP. 2009.

VIANNA, Luciano José. AS CRÔNICAS DO SÉCULO XVI: ENTRE O PASSADO


MEDIEVAL E UMA NOVA REALIDADE. Revista Graphos, UFPB/PPGL. 2017.

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