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Al Berto e a desidentidade lusa

KENEDI SANTOS AZEVEDO*

Resumo
A obra do poeta português Al Berto, configura-se como um canto à
desidentidade lusa, isso ocorre desde seu livro de estréia na literatura À procura
do vento num jardim d’Agosto, até o último publicado Horto de Incêndio, todos
inseridos na antologia O Medo, de 2009. Tenciona-se mostrar, por meio de uma
leitura analítica, as imagens que instituem a identidade portuguesa e que é
subvertida por Al Berto. Para tanto, tomar-se-á como embasamento teórico os
livros do ensaísta Eduardo Lourenço A Nau de Ícaro e Portugal como Destino
seguido de Mitologia da Saudade, de 2001.
Palavras-chave: Desidentidade; Al Berto; Literatura Contemporânea.

Al Berto and the lusa disidentity


Abstract
The work of the Portuguese poet Al Berto, appears as a corner to the lusa
disidentity, this happens since his debut book in the literature À procura do
vento num jardim d’Agosto, until the last published Horto de Incêndio, all
included in the anthology O Medo, 2009. It is intended to show, by means of an
analytical reading the images establishing the Portuguese identity and which is
subverted by Al Berto. To this end, it will take as the theoretical basis the
books of essayist Eduardo Lourenço A Nau de Ícaro and Portugal como
Destino seguido de Mitologia da Saudade, 2001.
Key words: disidentity; Al Berto, Contemporary Literature.

*
KENEDI SANTOS AZEVEDO é Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras:
Literatura Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Professor de Literatura Brasileira e
Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas.

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Introdução Lourenço que explora
esses aspectos da
As três últimas décadas
cultura lusa.
do século XX, em
Portugal, destacam-se Deste modo,
pelas mudanças que discorreremos
ocorreram nos cenários primeiramente sobre as
políticos, social e imagens e miragens da
cultural. Na Literatura lusofonia que se
ouvem-se as vozes de estabeleceram no
uma nova geração que decorrer dos séculos e
emerge com um novo têm em Camões o
tempo. Intelectuais patriarca da literatura
envolvidos com a responsável pela
revolução ocorrida no Alberto Raposo Pidwell Tavares mitificação das figuras
país, nesse período, (1948-1997) da lusofonia. Em
buscam um novo rumo seguida, abrimos um
para as letras portuguesas. tópico mostrando que Al Berto,
diferentemente do poeta de Os
Na poesia, por exemplo, muda-se a Lusíadas, subverte toda essa
dicção e a estrutura dos poemas; problemática criada em torno das
permeiam-se temas que vão da morte, navegações e dos heróis dessa época.
desassossego, nostalgia, até a Sendo assim, fechamos nossa análise
reabilitação de uma subjetividade quase demonstrando que ocorre nos livros do
perdida pelo grupo de 61. Surge o poeta do medo, desde seu livro de
fenômeno de desconstrução que estreia até o último, a construção da
configurará muitos romances, atingindo desidentidade lusa.
do mesmo modo alguns poetas que
ajudam a encerrar, já na viragem do 1. Imagens da lusofonia
milênio, os mitos ocorridos até então e
reiterados na literatura. Há um estilhaçamento da cultura e dos
mitos portugueses na obra do poeta Al
Dentre os nomes de poetas que surgem Berto que vai desde seu primeiro livro
na contemporaneidade, deve-se destacar de poemas À procura do vento num
Al Berto, pseudônimo de Alberto jardim d’Agosto, publicado
Pidwell Tavares. Nome de maior primeiramente em 1974, reiterando-se
relevância quando falamos na assim posteriormente nas outras obras,
desintegração dos mitos portugueses na como no último, Horto de Incêndio.
atualidade. Em sua antologia, O Medo,
esse aspecto ocorre constantemente, As imagens, miragens e paisagens da
chegando até o livro que remata sua lusofonia são subvertidas
produção poética. constantemente na literatura portuguesa
contemporânea, poetas e prosadores
Destarte, tencionamos mostrar que há revisitam preteritamente os eventos que
em seus poemas a dessacralização dos ajudaram na construção da identidade
mitos e consequentemente a instituição portuguesa: imagem do mar como mito
da desidentidade por meio da do progresso e das descobertas; o
desconstrução do ideário português. Portugal-Império dominando as grandes
Para tanto, tomaremos como base navegações e as grandes colônias; o cais
teórica os livros do ensaísta Eduardo ou as praias lusitanas, ponto de partida e

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de chegada das riquezas da coroa; além É, contudo na viragem do século e
do mito-Camões, responsável pela consequentemente do milênio que os
mitificação e sacralização da cultura pressupostos históricos, tidos como
portuguesa por meio de seu épico verdades absolutas, desintegram-se,
poema Os Lusíadas. formando uma nova ótica sobre o
passado, sobretudo na pós-revolução
Os livros de Eduardo Lourenço, dos cravos. Esse “eterno presente” dito
Portugal como Destino seguido de por Lourenço constitui-se no pretérito
Miologia da Saudade e A Nau de Ícaro, retorno do imaginário português aos
ambos de 2001, versam sobre a eventos que fizeram do país uma
mitologia criada em torno das imagens potência marítima, tornando-os esse
da lusofonia apontando para um povo-saudade de um tempo que
presente vivido entre a realidade e o “obscurece a nossa atualidade”, isto é, a
sonho no qual o país está passando. tentativa de desvencilhamento dessa
Além de tecer considerações acerca de “saudade de pedra” para viver um novo
Portugal no fim do milênio passado, momento, agora com a adaptação ao
vislumbrando algum futuro para o povo pensamento europeu. Desta maneira, a
peninsular que constantemente busca ficcionalização histórica por parte dos
meios de alimentar o melancólico escritores contemporâneos singra outros
imaginário daquele período áureo. mares, no qual ocorre o naufrágio das
Como diz o estudioso. naus conduzidas pelos navegadores,
consagradas por Luís de camões dada o
Mas, uma vez terminada a aventura, cariz de mistério por Fernando Pessoa.
desfeito o império da história,
transformado numa mera carga de Como já fora dito e redito em inúmeros
sonhos o precioso comércio do
trabalhos acerca dos mitos da cultura
Oriente, restava-nos como herança
um Portugal pequeno e um imenso
portuguesa, Camões é o responsável
cais, onde durante séculos pela criação e calcificação da mitologia
relembramos a nossa aventura, instituída a partir das imagens da
numa mistura inextricável de lusofonia, cantada n’Os Lusíadas, assim
autoglorificação e de profundo “Portugal existe porque existiu e existiu
sentimento de decadência e de porque Camões o salvaguardou na sua
saudade. Não é por acaso que memória, como a dos Hebreus se
Pessoa lembra na “Ode marítima” – perpetua na Bíblia (LOURENÇO,
epopéia melancólica do nosso 2001b, p. 32). Após essas considerações
tempo de império perdido – que chegamos a um ponto importante para
“[...] todo cais é uma saudade de
se apreender a new generation que se
pedra.
propõem a destituir de qualquer
Este tempo profundo da nossa mitificação as imagens do Portugal
história de povo-saudade não é antigo.
apenas, nem essencialmente, um
tempo passado, constituindo antes A queda das metanarrativas que se
uma espécie de eterno presente, por estabelece neste período, que muitos
vezes tão excessivo que obscurece a intelectuais das letras o chamarão de
nossa atualidade de povo do século pós-moderno, desfaz as verdades
XX, retornado desde a revolução cristalizadas pela história, preenche os
dos cravos às suas fronteiras vazios e argumenta questões tidas como
européias exíguas (LOURENÇO, inquestionáveis. A Bíblia é um dos
2001a, p. 58).
exemplos de metanarrativa para o

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mundo cristão, assim como o poema dos mitos criados em torno desses
épico de Camões é a metanarrativa do acontecimentos.
povo português. Deste modo, nas
Al Berto não faz diferente, usando-se de
palavras de Maria Lúcia Wiltshire de
sua produção poética, constrói para o
Oliveira.
povo que vive a olhar para o horizonte
No diálogo implícito do texto embaçado do futuro, um percurso anti-
(Mensagem) com o arquitexto (Os épico onde o mar cristalizou-se
Lusíadas) e com o contexto tornando apenas sal, onde a cidade vive
(patriotismo pequeno-burguês de um caos e as areias do cais são
seu tempo), Fernando Pessoa opera habitadas por figuras que nada lembram
uma múltipla subversão. Em os homens que aportaram essas
primeiro lugar despreza a moldura paragens com as riquezas coloniais.
narrativa para a sua épica particular.
Recusa a continuidade histórica A viagem que antes fora pelo mar
enquanto sucessão de fatos e efeitos subjaz, iniciando uma nova trajetória,
heróicos em favor de uma eleição agora por terra, assim já dizia José
subjetiva de figuras e valores Saramago ao iniciar o romance O ano
tornados símbolos e, portanto, da morte de Ricardo Reis, “Aqui o mar
destituídos de sua substância acaba e a terra principia”
puramente factual. Ao mestre
(SARAMAGO, 1988, p. 7). Se os
quinhentista, Pessoa subtrai a
norma da fidedignidade, pois aos modernistas propunham-se a uma
olhos das vanguardas modernistas, renúncia do passado, Al Berto quer uma
ela não importa mais. Ao escrever a revisitação, uma reconstrução assim
sua história de Portugal, Pessoa como a instituição de uma
abjura a História para entronizar desidentidade lusa.
seu desejo seletivo (OLIVEIRA,
2004, p. 49, 50). 2. Subvertendo os mitos
O mar de Al Berto não é mais dos
Como se percebe Fernando Pessoa já “barões assinalados”, nem de viagens
começa a subverter a história dos heróis para descobrir terras novas, muito
portugueses subtraindo “a norma de menos da ilha dos amores; o mar de Al
fidedignidade”, mas apesar de renunciar Berto é um mar de regressos no qual o
os eventos tidos como verdadeiros e sal impera e os mitos, substituídos,
exaltados por Camões, Pessoa toma como O mito da sereia em plástico
essas “figuras e valores tornados português, em que o eterno mar
[tornando-os] símbolos” desse mesmo português carrega apenas os detritos do
período, isto é, concretiza-os por outro próprio povo que o consagrou.
viés.
eu vi/ a sereia de plástico construir
Entretanto, com o fim da ditadura, da um país/ e um veleiro para se evadir
colonização em África e com a pós- na direção doutras ilhas/ levando
revolução dos cravos que se inicia a por bagagem os detritos dados-à-
plena subversão desses fatos históricos. costa: garrafas barncas de gin
nocturno sapatos inchados panos
O romancista António Lobo Antunes
preservativos usados cacos de
escreve em As Naus o retorno dos louça embalagens carcomidas
heróis do período das navegações cartões de caixas ao vento velas da
desconstruindo toda a história, as imensa jangada vestígios de comida
personalidades e o caráter desses rápida pentes vidros filmes
homens que ajudaram na concretização madeiras fotografias que o tempo

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recusa morder (AL BERTO, 2009, (MARTINS, 1986, p. 15, 16) [grifo
p. 86) [itálico do autor]. do autor].
A sereia de plástico constrói um país, E esse espírito de liberdade não era
um país no qual o mar carrega os apenas de cunho político, como também
resquícios da belle époque onde esse cultural. No mito-Camões ocorrem
espaço aludia o sucesso das conquistas e várias tentativas de parodização, não no
do renovo. Contudo, a imagem do sentido zombeteiro como praticavam os
veleiro remete a ideia de libertação das irreverentes modernistas, mas,
amarras daquele período naufragado, desconstrutivo, sobretudo com Os
mas que teima em voltar por meio da Lusíadas. O poema Salsugem é um dos
memória nostálgica, e mesmo exemplos de subversão do poema épico
melancólica dos portugueses. Portugal na obra de Al Berto que, dividido em
vive uma nova situação, um novo nove partes inicia assim “aqui te faço os
momento. Depois de desprender-se das relatos simples/ dessas embarcações
garras da ditadura, tenta reconstruir-se, perdidas no eco do tempo/ cujos nomes
já que o caos predomina e a sensação de e proveito de mercadorias/ ainda hoje
paragem da história ressoa por todo o transitam de solidão e solidão” (AL
consciente nacional. BERTO, 2009, p. 299).
Essas mudanças que ocorreram nas O relato, em forma de poema, faz
últimas décadas do século XX, alusivas citações d’Os Lusíadas, como
influenciaram não apenas a sociedade elementos, ambientes e episódios.
portuguesa, mas também a verve Somos colocados diante de
literária, que já se via diante de uma embarcações arruinadas que singram
nova proposta na produção prosaica e um novo mar, mas que ainda carrega
poética. São esses intelectuais os resquícios do passado,
responsáveis por essa mutação a que o metamorfoseando o ideal nacional em
país está passando. De acordo com o uma solidão extrema, predominante na
estudioso Manuel Frias Martins. contemporaneidade, vejamos o excerto
que confirma isso “a pouco e pouco
O dia 25 de Abril de 1974 não habituei-me à solidão deste quadrante/
inaugurou unicamente um
sem destino/ o fogo devorou as
complexo processo de
transformações econômicas, sociais esperanças duma possível felicidade/
e políticas; ele inaugurou também espero com as aves uma mudança
uma nova situação cultural de cuja brusca de tempo/ ou o regresso às
evolução o escritor se sentia simples profecias (idem., p. 304).
protagonista activo. Mais do que
Diferentemente dos homens da época
em qualquer outro período da
História portuguesa contemporânea, das descobertas, que almejavam a
é com o 25 de Abril que o escritor felicidade por intermédio do destino de
se sente solicitado imperiosamente um país que crescia seu poderio por
solicitado pelas circunstâncias vários continentes, no poema tem-se a
históricas que o envolvem e lhe esperança devorada pelo fogo e uma
penetram a pele até ao mais fundo expectativa de mudança; há a
de si. Ser português em Portugal era substituição da instituição do destino
estar no epicentro de um fascinante pelo “regresso às simples profecias”,
turbilhão de emoções, desejos, contidas no livro de Camões.
ideais e ideias, num quadro nublado
pela embriaguez da liberdade e A sensação de medo imbui-se na
marcado pela unidade antifascista consciência do sujeito poético cujos

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“passos alucinados pelas lajes do porto/ Está-se ante a fragmentação do sujeito
ressoavam no medo... medo que o mar o em meio ao mar que arrasta e constrói
acorde/ e descubra que não existe mar no novo espaço a imagem subvertida da
nenhum (idem., p. 305), porque aquele identidade portuguesa, são apenas
mar já não existe, apenas o mar da restos, estilhaços de corpos envoltos no
sereia em plástico português. O poema coral, e o constante desassossego, a
5 faz maior referência ao poema épico, ponto de se propor a busca de sossego
contudo é por meio da desconstrução noutras ilhas, no entanto, são ilhas
que se configuram as imagens noturnas, não de amores em claridade
sobressalentes dos mitos portugueses. do sol, dando-nos a entender o excesso
da vida do ser que está por um fio e ao
o mar arrasta
mesmo tempo grita “Ó Fogo de
depois atira o corpo para fora do
sonho que me roubou Santelmo! Ajuda! Ajuda!”, preferindo,
e a noite assim, o fogo, a uma morte,
a violenta noite das marés dissolutamente imerso, em um mar
arremessa contra a cama irrealizado atualmente, onde se vive a
velhas madeiras restos de vestuário eterna ilusão, ou mesmo desilusão, “das
pedaços de corpos suaves índias que não conheço”, deste
envoltos no coral... rostos modo, “alinhando palavras como
órgãos corroídos pela ferocidade suprema razão existencial” (MOISÉS,
dos peixes 2008, p. 494).

qualquer porto era bom para O sujeito poético presencia o


embarcar “movimento luminoso dos corpos
fugir às tribos e ao sol impiedoso atravessando/ os dias lentos sem
ir em busca de sossego noutras ilhas regresso”. Há realmente uma suspensão
nocturnas na história fazendo com que o tempo
outros desertos onde o amor se torne os dias lentos. No seu Um
revela e os olhos ficam atentos Romance de Impoder, Luís Mourão
ao movimento luminoso dos corpos (1997) considera “que os anos de 1978-
atravessando 79 são os anos em que a nossa ficção se
os dias lentos sem regresso dá conta de que a história parou” (p. 21)
e isso faz com que o leitor português
queimava as horas de viagem a seja colocado “perante a evidência de
esmagar saliva um tempo suspenso, indeciso dos seus
aprendia a sonâmbula fala dos itinerários de futuro, talvez
golfinhos definitivamente esgotado naquilo que
os dedos enlouquecidos pelas até aí tinham sido os seus princípios
amarras estruturantes” (p. 21).
gritava... <<Ó Fogo de Santelmo!
Ajuda! Ajuda!>> Quanto ao regresso mencionado no
poema al bertiano, podemos partir de
e da insuspeita travessia para sul uma bifurcação nas ideias em torno
vinha a poeira da noite com dessa temática: em primeiro lugar o
embriagante perfume a orquídeas regresso do passado a este presente na
e a ilusão das suaves índias que não tentativa de construir algures, um futuro
conheço
diferenciado, mesmo que isso não seja
(AL BERTO, 2009, p. 303).
fácil; e o regresso ao passado,
questionando as verdades cristalizadas

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no decorrer do tempo. Contudo, o e perfura o sono e a gestação
regresso às praias lusitanas, em especial fantástica dos lírios
ao cais metaforizado, indica a refacção
dos movimentos dos heróis portugueses, magoadas águas
traz apenas a fractal memória do sujeito reflectindo cicatrizes lancinantes de
néons
poético à contemporaneidade, como se
o cais por fim o cais onde
pode ver no poema Regresso ao cais, desembarcamos e
transcrito abaixo. de nossos corpos não nos
no marítimo lodo da fala fazem lembramos mais
ninho (AL BERTO, 2009, p. 246).
pássaros de sal com suas asas
afiadas A menção feita ao Imperador D.
sulcam
Sebastião, confirma aquilo que
o susto de ficar sozinho
pretendemos até aqui, isto é, a
e a cabeça sibilante duma libélula
esvoaça construção de uma desidentidade lusa,
na visão dourada do sonho o tempo com a subversão de seus mitos e a
circular dos dedos desconstrução do seu passado, porque o
no copo as mãos em movimento de “adolescente marinheiro que partiu para
esquecidos barcos morrer” deixou apenas a sensação de
sobre vagas de poalha estelar onde “regresso ao cais”, um retorno que traz
naufragam consigo “este lamento ao leme os pulsos
as palavras sem nexo e repetidos cansados/ pelo brilho cortante do sal
gestos aceso ao vento”. A eterna e melancólica
espera pelo messiânico regente, “vindo
devasso percursos de entorpecidas de magoadas águas” para a instituição
praias do Quinto Império, ocorre no cais “onde
algures no estilhaço rubro dos desembarcamos e/ de nossos corpos não
mapas abandono
nos lembramos mais”, lugar em que os
o que amei já não tem importância
e regresso
olhos são voltados na esperança de uma
ao isolamento onde a treva se enche fuga para um dia melhor.
de segredos e Portanto, todo o ideário luso desfaz-se
a voz do mar acorda o dormente lentamente nos livros de Al Berto,
coração dentre os quais o Portugal-Império,
do adolescente marinheiro que como se verá nos poemas inserido no
partiu para morrer
seu último livro, Horto de Incêndio,
notadamente nos quatro dedicados a
o sonho agarra-se ao sarro das velas
e Lisboa, dos quais destacamos o número
a alba fustiga os vidros da janela 2.
onde desejaste um país de silêncio
encostei a cara para chorar como as de chuvas salgadas – sem caminhos
glicínias nem sonhos
regresso ao cais regresso
com este lamento ao leme os pulsos tiveste um país sombrio
cansados onde a realidade devorou o delírio e
pelo brilho cortante do sal aceso ao ficou desabitado – este país
vento que transporta nocturno que geme
e agita as silentes sombras de feras contra a solidão do corpo –
longínquas perguntas-te

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conservando incólume o sentimento de
que espécie de lume cospem os saudade dos heroicos tempos, sem a
cardos? fugacidade possível para nenhum
caberá o mar dentro da tua algures (LOURENÇO, 2001b).
ausência? e o caule
negro dos analgésicos por mim Instituindo na cultura e na literatura “o
acima... que cidade adocicado olor da morte”, porque a
de areia construída grão a grão Lisboa junto com o país de Al Berto
aparecerá? está cravada sob as mutações sofridas
quantas lisboas estão enterradas? ou no decorrer destes últimos anos do
submersas? século XX. A sensação de morbidade
paira sobre a consciência do povo que
o vento traz-te o aroma dos trópicos se vê cada vez mais distante da
dos tamarindos floridos das constituição do império sebastianista.
avenidas e dos fenos
primaveris das planícies – o vento Considerações finais
protege-te – leva-te no alado ácido
das geadas e das incertezas Os vinte anos de inserção de Al Berto
na verve literária portuguesa dão conta
dirás coisas alucinadas – as almas de uma considerável criação poética.
uma álea de roseiras e Esses vinte anos de produção estão
da bruma desprende-se reunidas na antologia denominada O
o adocicado olor da morte Medo, cuja temática desenvolve-se a
(AL BERTO, 2000, 43, 44). partir de devaneios e oníricos
sentimentos da realidade da pátria
portuguesa exaltada por Luís de
O Portugal dos sonhos almejado, o Camões em seu poema épico. Os
quinto império que se estabeleceria em aspectos que figuram as imagens e
um futuro próximo, aparece no poema miragens da lusofonia são subvertidos
al bertiano como “um país sombrio”, pelo poeta do medo em uma
noturno, imerso numa solidão dessacralização dos mitos instituídos em
melancólica, “onde a realidade devorou torno das personalidades dos heróis das
o delírio”, onde o espaço urbano “ficou navegações.
desabitado”, criando no poema um
discurso alucinatório cuja paisagem Deste modo, chegamos à conclusão que
cultural transformou-se apenas em o mar, o cais, os heróis portugueses do
estilhaços de saudade, sendo então século XVI e o país sebastianista
rememorada por fractais lembranças, desintegram-se na contemporaneidade,
como diz Eduardo Lourenço (2001b), “a em especial nos poemas do poeta Al
paisagem da cultura portuguesa é um Berto, criando com isso, a desidentidade
deserto de ruínas, um Alcácer Quibir de da lusitana pátria.
heroísmo virtual” (p. 57).
Para tanto, mostramos que no decorrer
Al Berto cria interrogações que vão dos séculos configuraram-se no ideário
além de uma resposta esperada, mas que português, imagens que simbolizam a
se sobressaem nestes tempos de belle époque do país em ascensão. Tudo
construção das ruínas e instituição da isso embasado nos ensaios do estudioso
desidentidade portuguesa, “quantas português Eduardo Lourenço. Além
lisboas estão enterradas? ou disso, demonstramos que desde o livro
submersas?”, configura-se deste modo, de estreia em 1974, até o último em
como um luto de toda realidade, 1997, Al Berto subverte a cultura

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portuguesa por meio da desconstrução LOURENÇO, Eduardo. Portugal como
dos pressupostos históricos, Destino seguido de Mitologia da Saudade. 3.
ed. Lisboa: Gradiva, 2001b.
confirmando com isso, o título deste
trabalho: Al Berto e a desidentidade MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa.
São Paulo: Cultrix, 2008.
lusa.
MOURÃO, Luís. Um romance de impoder.
Coimbra: Angelus Novus, 1997.
Referências OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire de. De
AL BERTO. Horto de Incêndio. Lisboa: Camões a Saramago: leituras da pátria
Assírio & Alvim, 2000. portuguesa. Rio de Janeiro: Booklink, 2004.
AL BERTO. O Medo. Lisboa: Assírio & PEREIRA, Edgard. Portugal. Poetas do fim do
Alvim, 2009. milênio. Rio de Janeiro: Sette Letras/ FALE –
UFMG, 1999.
LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro e
Imagens e miragens da lusofonia. São Paulo: SARAMAGO, José. O ano da morte de
Companhia das Letras, 2001a. Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.

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