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RESUMO
Elabora-se uma hermenêutica do poema “Outras Coplas ao Divino” de São João da cruz. Embasa-se
numa leitura existencialista cristã e da espiritualidade carmelitana conectada ao exemplo sanfranciscano.
Apresenta a fundamentação histórica de São João da Cruz. Apresenta-se o texto do poema em questão.
Embasa-se nos pensamentos filosóficos existencialista-cristão, hermenêutico e teológico. Discorre sobre a
teologia da graça e da divinização embasando-se no influxo do pensamento teológico ortodoxo, sob a
perspectiva do teólogo suíço Hans Urs Von Balthasar. Conclui com a contemplação da esperança cristã
que se concretiza como caridade na existência.
São João da Cruz, Juan de Yepes y Álvarez, (1542-1591) viveu onde hoje está a
Espanha, aderiu à reforma descalça do Carmelo, cooperando com Santa Teresa de Jesus
(1515-1582). Vivenciou a ascese mística, passando por várias tribulações, inclusive por
perseguições, cárcere e disciplinas por seus irmãos de hábito do Carmelo calçado.
Percorreu a via da mística esponsal, refletida em suas poesias e obras sempre com
grande densidade espiritual: entre outras, obras como: “Subida ao Monte Carmelo”,
“Chama Viva de Amor”, “Noite Escura” e “Cântico Espiritual”. Foi canonizado em
1726, e declarado doutor da Igreja (“Doutor Místico”) em 1926 pelo papa Pio XI.
Dentre os seus poemas, tomamos de suas “Coplas ao Divino”, aquele que a edição
lusitana (Aveiro, 1977) dos seus escritos intitula “Outras coplas ao divino”,
apresentando-o como o décimo dos poemas.
Fazemos neste trabalho, um comentário hermenêutico-teológico, ao texto deste
poema místico.
Desse modo, enfatizaremos os tópicos:
*O poema;
*Homo Viator;
*Luz e Verdade
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Frei Jonas Silva é membro da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, atuando na Província N. Sra.
do Carmo (Maranhão, Pará, Amapá e delegação em Cuba). É presbítero. Cursou Licenciatura plena em
Filosofia no Instituto de Estudos Superiores do Maranhão e, Teologia pela Arquidiocese de Belém-PA. É
mestrando em Filosofia no PPGFIL da UFPA. Publicou seis livros com gêneros poético, filosófico e
catequético, dispondo suas obras na editora virtual Clube de Autores.
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*Kénosis e graça; e
*A esperança se torna Amor.
1 O POEMA
O texto reflete sua busca ascética de Deus, anelando pela união com o Senhor,
numa subida de ser humano que finda por se alçado pelo próprio Deus à divina união
com Ele.
Assim, temos o poema:
I
Para que eu alcance desse
Àquele lance divino,
voar tanto foi preciso
que de vista me perdesse;
e, contudo, neste transe
a meio do voo quedei falto;
mas o amor foi tão alto,
que lhe dei, à caça, alcance.
II
Quando mais alto subia
Deslumbrou-se-me a visão,
E a mais forte conquista
Se fazia em escuridão;
Mas por ser de amor o lance,
dei um cego e escuro salto,
E fui tão alto, tão alto,
Que lhe dei, à caça, alcance.
III
Quanto mais alto chegava
Deste lance tão subido,
Tanto mais baixo e rendido
E abatido me encontrava;
Disse: Não haverá quem alcance;
E abati-me tanto, tanto,
Que fui tão alto, tão alto,
Que lhe dei, à caça, alcance.
IV
Por uma estranha maneira
Mil voos passei de um só voo,
Porque a esperança do céu
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2 HOMO VIATOR
Homo viator, é termo filosófico que expressa o ser humano como um viandante de
desejo e busca.
O ser humano, criado à imagem e semelhança (Cf. Gn 1,26) daquele que é a
própria imagem de Deus invisível (Cf. Col 1,15); portanto, “filho no Filho” (Cf.
Gaudium et Spes 22); tem no seu ser como que a inscrição do Logos ou “DNA”
fundamental que constitui sua humanidade de modo genuíno, no próprio Filho eterno do
Pai que, na plenitude dos tempos, realiza a Sua encarnação, no seio da Virgem Maria.
Mediante a ação do Espírito Santo, realizou o divino esponsal entre Deus e humanidade,
consumado no tálamo da cruz e elevado à glória na ressurreição.
Assim, o ser humano, capaz de Deus (Cf. Catecismo 27-43) é um ser sempre em
busca da plena realização, que só acontece de fato, mediante a ação do Filho de Deus e
do Seu Espírito que leva a pessoa humana a participar da vida de Deus (grego: Theósis;
Theopoiesis), à amizade com Deus (Cf. II Pd 1,4).
Nesse sentido, os versos finais das estrofes, insistindo na mesma ideia de busca de
Deus e de ser alcançado por Ele, estão em conexão com os Salmos: 42-43 (41-42); 63
(62); o mesmo tema refletido por Santo Agostinho (354-430) na obra “Confissões” (Liv.
I,1)
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Trata-se de viver a busca na fé, na espera e no amor. Bem como o tema bíblico da
noiva que busca o seu esposo no Cântico dos Cânticos. Quanto a isso, Orígenes (185-
253), comentou:
“Oh! Amor forte de Deus! E como lhe parece que não há de haver coisa
impossível a quem ama! Oh! Ditosa alma que chegou a alcançar essa paz de
seu Deus, que se assenhoreou de todos os trabalhos e perigos do mundo! A
nenhum teme a troco de servir a tão bom Esposo e Senhor, e com mais razão,
que a que tem este parente e amigo que temos dito!” (1978, p.605)
3 LUZ E VERDADE
Com a ênfase nas palavras: “lance”, “à caça” e “alcance”, percebe-se o jogo livre
da relação do homo viator e Deus que lhe pode fazer realizado pela participação na Sua
vida, chamada, em linguagem bíblico-teológica, por “visão beatífica”.
Essa feliz contemplação de Deus é plena relação de amizade com o Ele,
possibilitada pelas ações do Filho e do Espírito na História da Salvação, em virtude da
morte e ressurreição do Verbo encarnado, através da fé e do Batismo conferido pela
Igreja. Pela participação no corpo eclesial do Senhor, através da comunhão com o seu
corpo eucarístico, sacramento da Sua morte e ressurreição, a pessoa é configurada
cotidianamente ao Seu mistério Pascal até passar totalmente do mundo para o Pai, no
Amor (Cf. Jo 13,1).
Aparece, nisso, a angústia do discípulo de Cristo, chamado a cada dia, na história
pessoal, a correr para o divino mediante a Páscoa da cruz e da Glória do Amor absoluto
que é Deus. Conforme o teólogo suíço Hans Urs Von Balthasar (1905 -1988), no escrito
“O cristão e a angústia”:
Para o filosofo alemão Martin Heidegger (1889 - 1976), a verdade (do grego:
aletheia) é desvelamento do ser, perante o qual a atitude mais justa é a da admiração,
acolhida e escuta, deixar-se interpelar como seu interlocutor. Pois,
Aqui se dá “a mais forte conquista” de Deus, que acolhe o ser humano em busca,
mais titubeante no lusco-fusco de sua angústia diante do chamado de também passar
com Cristo pelo mistério pascal, crucificando a própria carne-ego (Cf. Gl 2,20).
Quanto a isso, São João da Cruz, na obra “Subida do Monte Carmelo”, especifica
a necessidade ascética e conduzida pela graça de Deus, do duplo acrisolamento
perpassado na “noite dos sentidos” e na “noite do espírito”, para ser envolvido, ao cimo
do monte, pela união divina.
4 KENOSIS E GRAÇA
O mesmo pensador, na sua reflexão sobre tal salto da beleza e da bondade para a
verdade da fé, na decisão de Abraão de oferecer o seu único filho Isaac, em holocausto a
Deus, sobre o monte Moriá (Cf. Gn 22,1-18; Hb 11,17-19), mas confiando em Deus,
autor da vida, ressalta que: “se vê que Abraão pode ser compreendido, mas somente
como se compreende o paradoxo. [...] Mas não houve quem compreendesse Abraão. No
entanto, o que conseguiu ele? Permanecer fiel ao seu amor”(KIERKEGAARD, 1979, p.
129).
Trata-se, sempre, de uma kénose (esvaziamento; sair de si para encontrar o outro),
a exemplo do Filho de Deus encarnado e crucificado (Cf. Fl 2), morrer com Cristo, a
fim de ressuscitar com Ele e ser participante da Sua Glória em Deus. Desde já, uma
morte do ego, para que o Filho ressuscitado viva, pelo Seu Espírito, em nós (Cf. Gl
2,20).
Também São Francisco de Assis (1182-1226), nos últimos anos de sua história, ao
ser rejeitado pelos novos membros da ordem que iniciara, ao subir para a quaresma de
São Miguel, ao Monte Alverne, buscando a união total com Cristo, foi alcançado pelo
mistério do Filho encarnado e glorificado e se tornou, também no seu corpo, outro
Cristo, um só com Cristo, homem espiritual transpassado em sua carne pelas chagas do
crucificado-ressuscitado, cooperando para completar a Paixão do Senhor para o bem de
Seu corpo místico, a Igreja (Cf. Cl 1,24). Sobre isso, escreveu Tomás de Celano (2008,
p. 259):
“Na verdade, a vida gloriosa dele ilumina com luz mais clara a perfeição dos
primeiros santos; a paixão de Jesus Cristo o prova, e a cruz de Cristo o
manifesta de maneira mais plena. Na realidade, o venerável pai foi marcado
em cinco partes do corpo com o sinal da paixão e da cruz, como se tivesse
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pendido na cruz com o Filho de Deus. Este mistério é grande (cf. Ef 5,32) e
indica a grandeza da prerrogativa do amor”.
São Francisco de Assis, assim como São João da Cruz e vários homens e
mulheres que buscaram encarnar o Evangelho nas suas existências, obtendo bom êxito
no seguimento de Cristo, pôde passar pelo esvaziamento do próprio ego, da ilusão de
onipotência, e “lavando e alvejando suas vestes no sangue do Cordeiro” (cf. Ap 7,13s),
tornou-se, pela abertura pessoal à ação da graça divina, transparente e vazio de si, apto
para receber em si a própria presença de Deus, que lhe engrandecia na esperança e no
Amor, não obstante as provas existenciais que lhe desafiara a integridade da própria fé.
REFERÊNCIAS