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Fala Maria José, quem me pode ajudar?

Maria José tecla rapidamente, quase sem olhar para o ecrã do computador. Os
headsets, em volta da cabeça, parecem colar-se aos ouvidos. Enquanto fala em tom baixo e
ritmado, para alguém que a ouve do outro lado da linha, vai fazendo outras coisas – abre a
mala e tira um lenço de papel para se assoar, aproveita para ver se tem mensagens no
telemóvel, bebe água, procura moedas no bolso para tomar café no intervalo que está quase a
chegar e, claro, vai digitando o necessário nas teclas, enquanto faz girar, com as mãos, o rato
do pc.

Olhamos as mãos de Maria José, trabalhadora num call center de uma empresa de
telecomunicações, e percebemos que as unhas estão muito roídas. Num dos grossos dedos a
rapariga exibe uma aliança de casamento. Tentamos descobrir a sua idade, mas não é tarefa
fácil. O corpo dela está meio disforme, por isso adivinhamos que terá sido mãe recentemente.
O cabelo, apanhado e desalinhado por causa do uso do apetrecho que lhe faz entrar o som nos
ouvidos, parece-nos ser um pouco crespo. Mas o rosto, embora denuncie cansaço, tem um
não-sei-quê de juventude quase adolescente. Deve ser bastante jovem, a Maria José.

Pouco depois, levanta-se e percorre alguns corredores até chegar a uma salinha cujo
conteúdo se resume a meia dúzia de mesas redondas e pequenas, uma máquina de snacks e
uma máquina com diferentes tipos de café. Depois de fazer uso das moedas miúdas que
reservou durante o trabalho, espera que o aparelho barulhento conclua o preparo da bebida.

Fala com uma colega. Crise, Troika, Contas. Desemprego da irmã, doença do pai.
Cansaço. O café fica pronto. Continuamos: a Maria José fala com a colega e nós persistimos
em observar.

Então, escutamos que a Maria José se levanta todos os dias às seis e meia da manhã,
depois de se ter deitado à uma e meia da noite. O marido ajuda, mas o tempo não lhe dá para
tudo. Depois da dura jornada de trabalho, tem de tratar da casa e do filho pequeno. O jantar,
quando chega a casa, está meio feito pelo marido. Mas, há todo o resto. Só de roupa, é todos
os dias pelo menos uma máquina, os rapazes da família sujam muita roupa, e há que estender.
Dar banho ao miúdo. Limpar a casa de banho. Arrumar a cozinha. Mesmo assim, ainda
consegue ver um bocadinho da novela, enquanto passa a roupa a ferro, em pé, descalça sobre
a alcatifa da sala. Mas, à Maria José, ficamos a saber, não lhe anda a agradar muito a novela
da noite, porque está sempre tudo na mesma!

Os dez minutos que dispõe de intervalo já passaram, tem de regressar ao atendimento,


e já vai chegar atrasada. Dez minutos passam a correr!

De regresso à posição de trabalho, Maria José apanha um cliente daqueles bem


chatos. Reclama do trabalho dela, que não deve compreender português, e não entendeu nada
do que disse. O homem vai-se repetindo, dando à voz tom de autoridade, e a funcionária do
call center vai respondendo sempre cordialmente perante o nosso olhar compassivo.  
Depois de vinte minutos de conversa atribulada, o som da chegada de uma nova
chamada não permite que Maria José descontraia. Mas, desta vez, teve sorte. A mulher que
fala de forma arrogante, do outro lado da linha, faz um pedido que é para ser resolvido por
outro departamento. Durante o tempo em que Maria José está à procura do número para poder
transferir a chamada, percebe que alguém chegou do outro lado e, mesmo sem querer, acaba
por ouvir a conversa:

Com quem estás a falar?

Com uma tal de Maria José, uma puta qualquer.

Maria José abrevia a transferência e, logo, ouve o som de um novo telefonema a


chegar. Absortos que estamos, parece que ouvimos: Boa tarde. Fala Maria José, quem me
pode ajudar? Ah, estávamos apenas distraídos. Afinal, a rapariga que guarda escondido no
rosto um não-sei-quê de juventude quase adolescente, disse simplesmente: Boa tarde. Fala
Maria José, em que posso ajudar?

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