Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O LABIRINTO DO FAUNO
UM RESGATE DO SAGRADO FEMINO
PSICOLOGIA ANALÍTICA
CURITIBA
2014
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo analisar o filme O Labirinto do Fauno (no
original, El laberinto del fauno) mexicano e espanhol de 2006, do gênero suspense,
dirigido por Guillermo del Toro, sob a ótica da Psicologia Analítica. Pretende-se analisar
como a estória nos leva a um resgate do sagrado feminino para a personagem
Mercedes, através de sua função infantil Ofélia. Esta ultima, considerada por todos
como a heroína do filme, será analisada neste trabalho como uma ponte entre o ego
(Mercedes) e os demais elementos de seu inconsciente.
Sinopse
No site www.adorocinema.com temos:
“Espanha,1944. Oficialmente a Guerra Civil já terminou, mas um grupo de
rebeldes ainda luta nas montanhas ao norte de Navarra. Ofélia, de 10 anos,
muda-se para a região com sua mãe, Carmen. Lá as espera seu novo padrasto,
Vidal, um oficial fascista que luta para exterminar os guerrilheiros da localidade.
Solitária, a menina logo descobre a amizade de Mercedes, jovem cozinheira da
casa, que serve de contato secreto dos rebeldes.”
E em http://pt.wikipedia.org:
“No decorrer da trama Ofélia encontra vários seres fabulosos. Um deles é o
fauno, que lhe revela que sua missão é ajudá-la a retornar para seu verdadeiro
lar, o submundo, e que seu verdadeiro nome é Princesa Moana. Para isso a
garotinha terá que realizar três tarefas secretamente, contando com alguns
objetos mágicos e fadas dadas pelo fauno. Após várias desventuras e aparições
de criaturas monstruosas, Ofélia realiza as duas primeiras tarefas.
Paralelamente o conflito entre os militares e os rebeldes republicanos torna-se
cada vez mais intenso. Com a morte da mãe, Ofélia resgata o seu irmão de Vidal,
mas ele inicia uma caçada para recuperar o filho. A fantástica magia do labirinto
ajuda-a a escapar, e a leva de encontro ao fauno. Este lhe mostra a terceira e
ultima tarefa, sendo esta o sacrifício de um inocente, onde ela deveria escolher
entre a vida de seu irmão ou sua única oportunidade de regressar a seu legítimo
lar. Nos acontecimentos finais, ela escolhe salvar a vida do bebê, e é
assassinada pelo seu próprio padrasto Vidal. Este é cercado e morto pela milícia
revelando seu segredo de família e deixando seu filho com Mercedes. Ofélia já
morta revive no plano fabuloso, onde sua verdadeira família e reino existem, e
de acordo com a narração ela vive feliz eternamente.”
Contexto
Na primeira cena do filme nos deparamos com o tema central do processo
psíquico a ser analisado no presente trabalho. Ofélia, a menina, encontra-se caída no
centro de um labirinto, sangrando, tendo ao fundo a figura de Mercedes que chora
impotente sua morte. A cena se desenrola de trás para frente, sugerindo uma regressão
ou um retorno, que é confirmado ao se iniciar a narrativa do mito da Princesa Moana.
Esta princesa do mundo subterrâneo, tomada de curiosidade, teria fugido, burlando toda
a vigilância de seu mundo, e uma vez na superfície, a luz a teria cegado. Perdida e sem
poder encontrar o caminho de casa, a princesa morreu de solidão e frio enquanto seu
pai, o Rei, a procurava e sempre acreditou no seu retorno, não importando quando isso
aconteceria.
Esta breve descrição do passado sobrenatural da personagem Ofélia, nos leva
a questão central da trama, onde a menina representa na verdade o estágio de
desenvolvimento feminino a que ficou fixada a heroína Mercedes. Embora tenha caráter
de personagem coadjuvante no filme, na análise do presente trabalho, a personagem
Mercedes, será nossa heroína principal, representando o Ego, que auxiliado pela
personagem infantil, empreende uma regressão ao inconsciente, afim de, através do
contato com o feminino sagrado, avançar em seu processo de desenvolvimento
paralisado na fase patriarcal, indicado pelo mito da Princesa Moana.
Esta interpretação é reforçada pelo fato de Mercedes e Ofélia compartilharem,
cada uma a seu modo, tarefas, objetos e situações similares durante todo o
desenvolvimento da trama. Em sua primeira tarefa, por exemplo, Ofélia deve levar a
cura para a figueira, usando três pedras de âmbar como remédio a fim de matar o sapo
que habita em suas raízes. Similarmente Mercedes empreende uma jornada para levar
remédio ao acampamento do irmão, nas montanhas, a fim de tentar curar um dos
rebeldes escondidos. Como consequência de sua primeira tarefa Ofélia encontra uma
chave que será usada na tarefa subsequente. No mundo real, Mercedes esconde do
capitão Vidal uma cópia da chave do depósito onde se encontra todo o estoque de
suprimentos da vila, e que será mais tarde utilizada pelos rebeldes para assaltar o
depósito. Mais tarde para empreender a segunda tarefa, Ofélia utiliza um giz para
desenhar um buraco em forma de retângulo na parede, chegando ao mundo escondido,
onde acaba encontrando uma pequena adaga. De forma análoga, Mercedes abre um
buraco também retangular no assoalho da casa através de uma lajota solta e encontra
ali os objetos que pretende levar aos rebeldes. Na sequencia Mercedes também revela
ter uma pequena faca que esconde em seu avental e a utiliza no momento mais
importante da personagem no filme.
Por todos esses fatores em comum, e pela partilha de seus mundos secretos,
podemos afirmar a interpretação de que a chegada da menina na vida de Mercedes
marca o momento em que esta está sofrendo uma profunda transformação em sua
psique, representada mitologicamente pelas aventuras sobrenaturais da menina Ofélia,
que seria sua parte infantil.
O motivo da criança não apresenta apenas algo que existiu no passado longínquo, mas
também algo presente; não é somente um vestígio, mas um sistema que funciona ainda,
destinado a compensar ou corrigir as unilateralidades ou extravagâncias inevitáveis da
consciência. (JUNG 2011, p.124)
Desenvolvimento
Após a apresentação do mito da Princesa Moana, o filme nos leva a uma
sequencia de cenas onde são apresentadas a personagem Ofélia e sua mãe, Carmen,
que viajam em direção à Vila onde lhes espera Capitão Vidal. A cena é marcada por sol
intenso, denotando bem a fase de desenvolvimento infantil em que a heroína Mercedes
permaneceu fixada: o patriarcado. Segundo Neumann (), este seria o terceiro estágio
de desenvolvimento da mulher, que após ter passado pelo estágio de uruboro materno,
onde está ligada indiferenciadamente à mãe, e pelo estágio de uroboro paterno, onde é
penetrada por um poder inconsciente e numinoso, porém impessoal e anônimo, a
mulher chega agora ao patriarcado. É neste estágio que o masculino surge em uma
forma pessoal, projetado na figura de um homem real, geralmente o pai. Porém é aqui
que a mulher corre o risco de perder sua visão, e sua casa, como sugerido no final do
mito da Princesa Moana:
O perigo para a mulher nesta fase é a perda do Self, da essência feminina. A transição
para o patriarcado leva a uma identificação parcial da menina com o lado masculino,
propiciando o desenvolvimento de uma pseudo masculinidade. Ela se ‘perde’ no
masculino, por assim dizer. É um desenvolvimento necessário, mas que como diz Lima
Filho, representa a ‘perda da casa própria’ (...) Para Neumann este estágio é
exteriormente vivenciado no casamento patriarcal tradicional, no qual a consciência da
mulher é puramente feminina e a do homem é puramente masculina, criando uma
simbiose considerada por esse autor a coluna vertebral da cultura patriarcal. (PARISI
2009, p. 21)
Ísis era representada como a mais elevada espiritualidade divina, mas era também
venerada como a deusa do mundo subterrâneo, a soberana dos mortos, dos espíritos e
da noite – dos fantasmas e do mal. Era uma deusa negra, não somente no sentido do
noturno, do terreno. (...) Ela era uma deusa-mãe que compreendia, ou continha em sua
imagem, a espiritualidade mais elevada – ela é a Mãe de Deus, o novo deus-Sol Horo, e
esposa do renascido Osíris – e também os aspectos ctônicos mais negros da Grande
Mãe. (VON FRANZ 2000, p. 49)
Já aqui percebemos a missão a ser realizada pelo Ego, sua reaproximação com
o feminino, ou a mãe, para assim prosseguir nas próximas fases mais elevadas de
desenvolvimento. Como pontua Parisi:
A Chegada
Ofélia e a mãe chegam a vila e encontram os demais personagens, como
Capitão Vidal, o médico e Mercedes. Após as apresentações ao Capitão, Ofélia segue
o inseto que saíra da boca do totem e entrando na floresta, chega à entrada do labirinto.
Não é a toa que neste ponto é alcançada por Mercedes. A floresta aqui pode representar
justamente o estado de solidão necessário que estas duas personagens vêm
enfrentando até chegarem ao estado atual que precede a transformação. Como pontua
Von Franz:
É neste clima que Ofélia é visitada pela fada que a levou a entrada do labirinto
anteriormente, e mais uma vez é guiada por dentro deste, chegando até uma escadaria
em espiral e a um centro onde encontramos um totem e a figura que dá nome ao filme:
O Fauno. Esta figura mais uma vez nos mostra que estamos tratando de um feminino
tectônico. Ao se apresentar a criatura avisa: “já tive muitos nomes: floresta, natureza,
terra...”. O labirinto nos indica que estamos diante de uma iniciação cujo guia é o próprio
feminino (Fauno).
Neste momento Ofélia tem conhecimento de que terá que passar por algumas
provas para demonstrar que sua essência do mundo sobrenatural não foi perdida. Ela
deve executar as três tarefas antes da lua cheia, o que enfatiza a alusão ao ciclo lunar,
um fator também muito feminino.
Subir ou escalar uma montanha significa tornar-se mais consciente. A montanha é uma
pilha de terra ou de pedras expelidas por explosão vulcânica, ou seja, expelidas das
entranhas da terra. O processo de individuação, de tornar-se consciente de quem você
deve ser, requer a escalada das piores e mais resistentes áreas de seu ser, aquela massa
de terra. Quando o indivíduo escala a montanha, ele se torna a própria montanha. O ego
escala essa massa de material que encontramos dentro de nós. É por isso que a
montanha também pode representar a mãe. (VON FRANZ 2010b, p.18)
O Sapo
A primeira tarefa apresentada pelo Livro das Encruzilhadas, a ser cumprida por
Ofélia é a de enfrentar um sapo que está matando uma figueira. Esta árvore tem formato
de útero e Ofélia deve empreender uma descida voluntária até suas raízes para, com
três pedras de âmbar, matar o sapo e curar a árvore.
Aqui tanto a árvore quanto o sapo são símbolos do feminino, mas de um feminino
que precisa ser curado, pois como representado por Carmen, mãe de Ofélia, está
enfermo e já não permite o livre fluir da vida. É preciso enfrentar esse lado obscuro e
mortal do feminino. Honra-lo para só então realizar a cura e encontrar a chave que a
auxiliará na próxima tarefa. Como nos diz Von Franz:
Rãs e sapos são muito usados em bruxarias ou magia, como amuletos ou em poções
afrodisíacas. No folclore a natureza do sapo é também muito enfatizada (...) o sapo é visto
como um animal feiticeiro, e sua pele e pernas pulverizadas são usadas como um dos
ingredientes básicos de praticamente todas as poções mágicas. Resumindo, vemos que
a rã (ou sapo) é uma deusa da terra, que tem poderes sobre a vida e a morte; ela pode
tanto envenenar como dar vida a alguém, e isso tem muito a ver com o princípio do amor.
(VON FRANZ 1990, p. 87)
A criatura devoradora
A segunda tarefa de Ofélia é adentrar um salão onde se encontra posto um
banquete. Aqui ela deve dirigir-se a uma das 3 portas disponíveis e através da chave
recuperar o objeto procurado e sair antes que o tempo da ampulheta acabe. A
recomendação do Fauno é expressa: ela não deve comer nada lá dentro. Ofélia segue
todas as instruções sem problemas, resgata uma adaga, mas enquanto está prestes a
sair, decide provar duas uvas disponíveis na mesa. Isso acaba despertando a criatura,
representada nas paredes como devoradora de crianças, que se encontrava imóvel até
então. Esta criatura coloca seus olhos nas mãos e novamente pode enxergar. Entretanto
percebemos que o olhar aqui não é o mesmo que tratamos no início da jornada. Este
agora é o olhar de morte a que se refere o mito de Inana (deusa suméria que desce aos
infernos), uma das características do feminino sombrio e mortal.
Portanto Ofélia faz aqui uma nova incursão ao mundo da Mãe Terrível. A
ingestão de alimento em um mundo proibido nos leva ao mito de Perséfone (Coré), que
ao ingerir seis bagos de romã no Hades, é condenada a passar seis meses do ano no
mundo subterrâneo, e tornar-se a Rainha do Mundo dos Mortos. O simbolismo para
Ofélia pode ser interpretado de modo parecido, a se considerar que ao ingerir as uvas,
Ofélia está prenunciando seu futuro sacrifício e sua volta ao mundo subterrâneo ou
inconsciente, como veremos na última cena do filme.
A morte da mãe
Após a segunda tarefa o irmão de Ofélia nasce, e a mãe morre durante o parto,
simbolizando que o complexo materno deve ser transformado, morrendo os aspectos
negativos para que a vida possa ser renovada. Mais uma vez podemos retornar ao mito
Coré-Demeter onde a menina necessita separar-se da mãe e de seus aspectos mais
sombrios para ser trazida a consciência.
Deméter e Core, mãe e filha, totalizam uma consciência feminina para o alto e para baixo.
Elas juntam o mais velho e o mais novo, o mais forte e o mais fraco e ampliam assim a
consciência individual estreita, limitada e presa a tempo e espaço rumo a um
pressentimento de uma personalidade maior e mais abrangente e, além disso, participa
do acontecer eterno. (JUNG 2011, p. 188)
Foi necessário enfrentar os aspectos mais terríveis da mãe nas duas primeiras
provas para só então deixa-los para trás e galgar um novo estágio no desenvolvimento.
Como diz Neumann:
Para Nicolau de Cusa, por exemplo, o relógio era uma imagem do cosmos e até do próprio
Deus, porque era uma mandala, uma mandala do tempo. Havia a ideia de que ele marca
os tempos sagrados. (...) O tempo não era um tique-taqui mecânico, apenas marcando o
tempo para a eternidade. Assim, há um longo desenvolvimento do tempo do relógio
moderno que é um processo de dessacralização.” (VON FRANZ 2000, p. 108)
A partir deste medo - não infundado - de perder o controle, Crono decide ele mesmo
engolir seus próprios filhos. Agora não é mais a mãe que retém seus filhos no ventre, mas
eles estão mergulhados nas entranhas do pai. (A. GRAUPEN, L. CAMPELLO)
O sacrifício e o irmão
Nas ultimas cenas do filme nos deparamos com Ofélia e seu irmão bebê, no
centro do labirinto onde o Fauno lhe diz que sua ultima tarefa é sacrificar um inocente
para abrir o portal para o mundo subterrâneo. A fim de poupar seu irmão, Ofélia se
sujeita e enfrentar seu padrasto e é friamente assassinada por ele. Encontramos aqui a
representação do sacrifício do herói, que através da morte de conteúdos infantis,
garante o surgimento do novo, ou uma nova consciência para o ego - o bebê que
acabara de nascer.
O ritual faz o noviço retornar às camadas mais profundas da identidade original existente
entre a mãe e a criança ou entre o ego e o self forçando-o, assim, a conhecer a
experiência de uma morte simbólica. Em outras palavras, a sua identidade é
temporariamente destruída ou dissolvida no inconsciente coletivo. É então salvo
solenemente deste estado pelo rito de um novo nascimento. Este é o primeiro ato de
verdadeira assimilação do ego em um grupo maior, exprimindo- se sob a forma de totem,
clã ou tribo, ou uma combinação dos três. O ritual, seja de grupos tribais ou de sociedades
mais complexas, insiste sempre neste rito de morte e renascimento, isto é, um "rito de
passagem'' de uma fase da vida para outra, seja da infância para a meninice ou do início
para o final da adolescência e daí para a maturidade. (JUNG 2008, p.130)
Seguindo a linha das tarefas anteriores em que o ego deve entrar em contato
com o sagrado feminino, o motivo do sacrifício nos leva novamente ao mito da deusa
suméria Inana, que se oferece em sacrifício para ganhar nova vida e conhecimento. A
passagem abaixo demonstra também como a personagem Moana pode desta forma,
retornar ao seu mundo subterrâneo:
É por este meio que a deusa pode se abrir e receber as forças poderosas adormecidas
no subterrâneo. Como qualquer iniciada, ela se rende corajosamente ao próprio sacrifício,
para ganhar nova força e conhecimento. Como a semente que morre para renascer, a
deusa dos silos se submete. Como a pedra, o metal precioso e a madeira-de-lei do
poema, que são partidos pelos artesãos durante o processo criativo, Inana deixa-se
quebrar para uma nova criação. O sacrifício é a base dos ritos de fertilidade primitivos.
Inana oferece-se em sacrifício, testemunha a morte das forças férteis e trás a si mesma
como semente. Entrega a própria libido para replenificar a fonte perdida. E de sua
imolação voluntária depende a continuidade da criação. (PERERA 1985, p. 82)
Não admira, portanto, que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto
corresponde exatamente às expectativas da psicologia do indivíduo, as quais mostram
que a criança prepara uma futura transformação da personalidade. No processo de
individuação, antecipa uma figura proveniente da síntese dos elementos conscientes e
inconscientes da personalidade. É, portanto, um símbolo de unificação dos opostos, um
mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de completude. (JUNG, KERENYI
2011 pg. 127)
PERERA, S. B. Caminho para a iniciação feminina. São Paulo, Ed. Paulinas, 1985.