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Capítulos XXIX e XXX do livro XI das Confissões, de Santo Agostinho

A processualidade do tempo impediu encontrar uma maneira verdadeira de


medi-lo objetivamente, de modo a Santo Agostinho ser obrigado a concluir, no
parágrafo 26, que a linguagem comum nunca conseguiria expressar propriamente esses
tempos sendo seres. Assim: “deveria se dizer propriamente: os tempos são três, o
presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro”. Com uma
linguagem ajustada, podemos nos referir ao tempo sem dizê-los de modo falso.
Agostinho, aqui, ainda considerava a existência somente do presente. Contudo, essa
teoria da tríplice presente será realizada com a noção de distentio animi, da qual já
veremos.

Mas é certo que o tempo pode ser medido. Todavia, como o é possível, se sequer
sabemos sua essência? Objeções são levantas no interior do texto para refinar a resposta
obtida. Não se trata de investigar a essência do tempo no movimento do Sol, da Lua e
dos astros, pois, segundo a bíblia, Josué viu o Sol ficar imóvel e consequentemente a lua
ficaria parada durante um tempo: “e o sol ficou parado no meio dos céus e não teve
pressa em pôr-se por cerca de um dia inteiro” (JOSUÉ 10:14). O sol pode ter parado,
mas nunca o tempo. Portanto, Agostinho conclui que o tempo não é o movimento do
corpo: “uma coisa é o movimento do corpo, outra, aquilo que nos serve para medir sua
duração, quem não percebe qual das duas deverias ser chamada de tempo?” (§31).
Então, nenhuma medida, por assim dizer, objetiva consegue apreender o ponto fixo para
a medição do tempo enquanto passa. Nosso autor insiste num outro exemplo para a
questão do intervalo temporal. Em sua explicação da medida dos intervalos de tempo,
os lapsos de tempo mais breves são colocados em relação com os mais longos. Assim,
uma sílaba longa, por exemplo, dura o dobro de uma breve. Isso, no entanto, não produz
uma medida fixa para o tempo da sílaba longa, mas apenas uma medida relativa, pois a
mais breve pode, por sua vez, ser pronunciada rápido ou devagar.

Para resolver esse enigma, Agostinho deve seguir por um viés subjetivo,
afirmando que o tempo deve ser concebido como distensão (distentio) e sua instância
medidora é a mente. Trata-se de uma resolução subjetiva porque não considera mais o
tempo do movimento dos corpos enquanto fundamento para suficientemente ser, não
considera na sua espacialidade, a partir de partes compostas de um todo ou ainda o
tempo histórico, mas apenas considerando-o como possível para a mente. Ou seja, a
formação do tempo do indivíduo se faz concreta somente quando levado em conta a
processualidade da experiência sensível da mente. Nesse sentido, o resultado refinado
de Santo Agostinho da definição da medida do tempo não poderia realizar-se em outro
âmbito senão na experiência da interioridade, isto é, na alma enquanto distensão, pois,
agora, torna-se possível a coexistência do futuro e do passado no presente, permitindo
também perceber a duração e medi-la. Assim, o objeto medido não é mais o tempo em
si mesmo, mas a impressão dele gerada na memória. Como diz Gilson: “O que deixou
de ser em si, continua a existir na lembrança que guardamos disso; a impressão que as
coisas transitórias deixam em nós sobrevive a essas coisas mesmas e, ao nos permitir
compará-las, torna possível nós uma certa medida dos intervalos delas” (GILSON,
Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p.367-368). A impressão, de um lado, surge
pelo transcorrer dos eventos, que sempre se dá no presente; mas, de outro, permanece
presente como impressão, que o próprio evento seja pretérito.

O mesmo pensamento deve ser empregado para se entender o futuro: não está
mais em questão a possibilidade de medição do futuro em si mesmo enquanto tempo
independente e objetivo, mas a espera e a expectativa do mesmo pelo indivíduo.

O tempo presente, por sua vez, que não tem extensão, também só existe graças à
alma. Para concebê-la, é necessário representar o presente da alma como uma intenção,
direcionada simultaneamente em direção ao que não é, pela espera, e na direção do que
não é mais, pela lembrança. Tal intenção dura e é, nas palavras de Gilson, “o lugar de
passagem daquilo que ela espera para aquilo de que ela se lembra” (Idem, p.368). A
intenção aparece como a aptidão de uma atividade da alma indivisível que se distende
do presente, em que ela subsiste, para a direção dupla do futuro, que ela espera, e do
passado, do qual ela se rememora.

Não faltam exemplos para fundamentar essa tese de Santo Agostinho, mas nosso
autor se utiliza da duração da voz durante uma recitação de um poema. A ilustração se
segue assim: quando alguém quer emitir uma voz de certa duração e estabelece
antecipadamente quanto ele durará, produz um intervalo de tempo em silêncio e então,
baseando-se na memória, começa a emitir aquela voz, que soará até ser conduzida a seu
limite preestabelecido. O que ainda resta, soará, e assim procede, enquanto a intenção
presente traz o futuro para o passado, diminuindo o futuro e acrescendo o passado, até
que, pelo esgotamento do futuro, tudo seja passado. Assim, a aporia se resolve quando
se fala, não das sílabas que não são mais ou ainda não são, mas de suas impressões na
memória e de seus sinais na espera.

O desígnio do futuro se esgota enquanto o passado aumenta incessantemente. Se


abordássemos a questão como antes, ou seja, enquanto tempos que não são, então não
teria a menor coerência medir entes que não são. Porém a alma aguarda, atenta e
lembra, de maneira que o que aguarda passe pelo que atenta e se torne o que lembra.
Embora os tempos futuros em si mesmos não sejam, já está na mente a expectativas
potencialmente sensíveis dos futuros. Embora os tempos passados já não sejam, já estão
impressos na alma as imagens dos passados como memória. Por fim, apesar do tempo
presente não ser, por não ter extensão temporal, porque passa por um instante,
permanece a intenção, pela qual o que está presente se encaminha para a ausência. No
parágrafo 37, Santo Agostinho conclui: “não é longo o tempo futuro, que não é, mas um
tempo longo é a longa espera de um futuro, e não é longo o tempo passado, mas um
longo passado é a longa memória de um passado”. Assim, quanto mais o espírito se faz
intenção, mais ele sofre distenção. Com essa concepção, da mesma maneira, não é a
essência do tempo que está sendo conceituada pela mente, mas (segundo
Brashthendorf), é a concepção de tempo, porque ele não nega a sucessão no movimento
dos corpos.

Daí porque podemos entrar na retomada da questão do tempo e eternidade


diretamente tratada no parágrafo 39. Uma retomada porque desde começo do livro,
Santo Agostinho procura saber como surgiu o tempo e o mutável se no princípio só
havia o divino e o eterno. Agora, esta contraposição é novamente emergida, mas com
elementos teóricos não dispostos anteriormente, bem como afirma Ricouer: “É, com
efeito, toda a dialética, interna ao próprio tempo, da intentio-distentio que se acha
retomada sob o signo do contraste entre a eternidade e o tempo.” (Paul Ricouer, Tempo
e narrativa, p. 50).

Nesse sentido, numa lamentação de Santo Agostinho de que sua vida enquanto é
distensão, pois se vive no fluxo contínuo do tempo, que se começa o parágrafo 39,
reafirmando a negatividade ontológica de Deus e o homem, enquanto eternidade e
temporalidade. Mas tal posição é tomada para revelar seu caminho escolhido de atingir
a eternidade, através de Jesus, mediador dos homens e Deus, nas palavras do nosso
autor: “mediador entre ti, uno, e nós múltiplos”. É, pois, “vivendo na multiplicidade e
pela multiplicidade” e seguindo o uno que Agostinho não permanece em dúvidas a
respeito da possibilidade de se alcançar o tempo eterno, “onde possa ouvir a voz de
aclamação e contemplar tuas delícias, que não vêm nem vão”.

Todavia, somente através da noção de distensão e intenção que tal percurso se


tornou mais próximo, por assim dizer. Porque enquanto a distensão torna-se sinônimo
da dispersão na multiplicidade e da errança do velho homem, a intenção tende a se
identificar com a unificação com o homem interior. Nesse sentido, a intenção não é
mais então a premeditação do poema inteiro antes da recitação, que o faz transitar do
futuro ao passado, mas a expectativa das coisas últimas, ou seja, da estabilidade da alma
e do coração tranquilo de alegria; por outro lado, na própria medida em que o passado a
esquecer não é mais a coletânea da memória, tornou-se o emblema do velho homem.
Por isso Agostinho lembra, à sua maneira, São Paulo em Filipenses: “esquecendo o que
passou, não naquilo que é futuro e transitório, mas no que está adiante; não distenso,
mas extenso, não segundo distensão, mas segundo intenção, prossigo para o prêmio da
vocação do alto”.

Porém, agora, tal estabilidade permanece não mais como presente na intenção,
mas permanece no futuro, no tempo da esperança: apesar da experiência vivida de
distensão consumir em tristeza Santo Agostinho, de modo que estado de depravação
moral em que se encontrava antes da conversão seja “desconhecido” a ordem dos
tempos necessários durante as variedades de sua trajetória, é pronunciado no meio disso
a promessa de permanência, livre de toda distensão: “até que eu conflua em ti,
purificado e liquefeito pelo fogo de teu amor”.

Evidentemente, porém, que essa busca ávida pela eternidade e distanciamento do


mundo temporal não é a esmo. Pois se trata de um tema do qual permeia toda
Confissões, a saber, a felicidade. Desde os primeiros parágrafos do livro X que
Agostinho dedica em depositar todo o gozo na esperança de conhecer e estar com Deus,
a fim de encontrar a felicidade imperecível. Sendo o restante da vida passada apenas um
tempo deplorável, isso não impede o pecador de praticar a verdade sobre sua vida
desviante de Deus. Nas palavras de Agostinho do livro X:

“Que te conheça, meu conhecedor, que te conheça como sou conhecido. Virtude
da minha alma, entra nela e capitura-a, para que a tenhas e possuas, sem mancha nem
ruga. Esta é minha esperança, por isso falo e daquela esperança gozo, quando gozo
saudavelmente. [...] Com efeito, eis que amas a verdade, porque quem a pratica vem à
luz. Quero praticá-la diante de ti em meu coração pela confissão”.

Confessar para Deus é uma maneira de se conhecer, gerando o estado de


felicidade coaduna à esperança de ser salvo. Assim, aqui, no parágrafo 39, é salientado
esse objetivo de Agostinho de alcançar a felicidade, através da negação ontológica de
tempo e eternidade. Sabe-se a inevitável distensão da alma no interior da realidade
material e múltipla, mas ela é, segundo Brashtendorf, “intensificada se o homem prende
seu coração a essas coisas e procura nelas a sua felicidade”. Quer dizer, se o homem
escolhe um objeto como bem no mundo temporal, implica a isso necessariamente a
impossibilidade da realização da felicidade plena através desse bem. Pois, por exemplo,
se lembrarmos dos três bens que todos os homens buscam, a saber, honra, riqueza e
prazeres, quando são adquiridos, não se estabelece a alegria da segurança na posse
deles, mas a tristeza do medo de perecerem e assim perdê-los. E assim acontece com
todos os bens mundanos. Daí porque a busca pelo objeto uno e imutável, pois a
felicidade tornar-se-á plena e seus anos não se consumirão mais em tristeza, porque, nas
palavras de Santo Agostinho: “tu és meu alívio, Senhor, meu Pai eterno”. Jesus, então,
entra em cena para explicitar que buscando esse mediador de Deus e os homens, se
atingirá a felicidade tão desejada, no qual Jesus é exemplo disso.

Portanto, Agostinho contrapõe a distensão no tempo à intenção, saindo do


temporal rumo ao eterno. Em vez de se dispersar na multiplicidade do tempo, o homem
“confluirá” na orientação por Deus.

No parágrafo 40, reafirmam-se os resultados obtidos na reflexão contra os


maniqueus que insistem nas objeções da criação de Deus. As objeções se expressam da
seguinte maneira: “que fazia Deus, antes de fazer o céu e a terra?”. Ora, Deus nada fazia
antes de criar o céu e a terra, pois ele realmente nada podia fazer, senão já havia criado.
Em verdade, ele nada fazia no tempo, porque ele é absolutamente anterior a todos os
tempos. Nosso autor articula a criação e o começo de tudo a partir do nada, uma vez
dada à impossibilidade das criaturas surgirem da substância de Deus. Deus é eterno; e as
criaturas mutáveis não poderiam surgir de um ser imutável. Por isso a criação deve ser
do nada. O ato criador de Deus é a produção do ser daquilo que é, sendo possível
unicamente para Deus, porque somente ele é o Ser propriamente dito. Assim, sem
qualquer matéria preexistente, Deus quis que as coisas fossem e assim elas foram: isso é
precisamente “criar do nada”. Por isso Deus não pode ser comparado a um artesão, pois
um artesão se dispõe de matérias preexistentes para criação de seu artífice. Deus apenas
cria. Deus não fazia nada porque sequer havia o tempo, tendo em vista que “não pode
haver tempo sem criação”. Ou seja, Agostinho de novo conclui que tempo é uma
criatura criada por Deus, e não existia tempo algum antes do tempo. Na verdade, “antes
de todos os tempos tu [Deus] és o criador eterno de todos os tempos”, em um começo.
Assim Agostinho explica o versículo 1 e capítulo 1 de gêneses de que no princípio Deus
criou o céu e a terra, de modo a excluir as teses de que o mundo e o universo sempre
existiram e distinguir a concepção de eternidade como tempo perpétuo.

Com esses elementos, não se torna difícil responder a outra objeção dos
maniqueus a respeito da criação, a saber, “como lhe veio à mente fazer algo, se nunca
fez algo antes?”. Assim, ele responde: “não se pode dizer ‘nunca’, onde não há tempo.
Dessa maneira, Agostinho responde e critica as indagações dos maniqueus mostrando
que não há nenhum fundamento verdadeiro na própria formulação da pergunta.

Essas verdades obedecem a verdade de Deus e torna Agostinho capaz de seguir a


felicidade num caminho tranquilo em direção à eternidade, porque, assim, ele guarda os
escritos da bíblia como fundamento último da verdade, sem recorrer a teorias exteriores
para explicar a criação do mundo. Daí porque ele diz no inicio do 40: “e permanecerei e
consolidarei em ti, em meu molde, a tua Verdade”, e ele não vai mais aguentar os
questionamentos desprezíveis de indivíduos que “desejam mais do que podem receber”.

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