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Mas é certo que o tempo pode ser medido. Todavia, como o é possível, se sequer
sabemos sua essência? Objeções são levantas no interior do texto para refinar a resposta
obtida. Não se trata de investigar a essência do tempo no movimento do Sol, da Lua e
dos astros, pois, segundo a bíblia, Josué viu o Sol ficar imóvel e consequentemente a lua
ficaria parada durante um tempo: “e o sol ficou parado no meio dos céus e não teve
pressa em pôr-se por cerca de um dia inteiro” (JOSUÉ 10:14). O sol pode ter parado,
mas nunca o tempo. Portanto, Agostinho conclui que o tempo não é o movimento do
corpo: “uma coisa é o movimento do corpo, outra, aquilo que nos serve para medir sua
duração, quem não percebe qual das duas deverias ser chamada de tempo?” (§31).
Então, nenhuma medida, por assim dizer, objetiva consegue apreender o ponto fixo para
a medição do tempo enquanto passa. Nosso autor insiste num outro exemplo para a
questão do intervalo temporal. Em sua explicação da medida dos intervalos de tempo,
os lapsos de tempo mais breves são colocados em relação com os mais longos. Assim,
uma sílaba longa, por exemplo, dura o dobro de uma breve. Isso, no entanto, não produz
uma medida fixa para o tempo da sílaba longa, mas apenas uma medida relativa, pois a
mais breve pode, por sua vez, ser pronunciada rápido ou devagar.
Para resolver esse enigma, Agostinho deve seguir por um viés subjetivo,
afirmando que o tempo deve ser concebido como distensão (distentio) e sua instância
medidora é a mente. Trata-se de uma resolução subjetiva porque não considera mais o
tempo do movimento dos corpos enquanto fundamento para suficientemente ser, não
considera na sua espacialidade, a partir de partes compostas de um todo ou ainda o
tempo histórico, mas apenas considerando-o como possível para a mente. Ou seja, a
formação do tempo do indivíduo se faz concreta somente quando levado em conta a
processualidade da experiência sensível da mente. Nesse sentido, o resultado refinado
de Santo Agostinho da definição da medida do tempo não poderia realizar-se em outro
âmbito senão na experiência da interioridade, isto é, na alma enquanto distensão, pois,
agora, torna-se possível a coexistência do futuro e do passado no presente, permitindo
também perceber a duração e medi-la. Assim, o objeto medido não é mais o tempo em
si mesmo, mas a impressão dele gerada na memória. Como diz Gilson: “O que deixou
de ser em si, continua a existir na lembrança que guardamos disso; a impressão que as
coisas transitórias deixam em nós sobrevive a essas coisas mesmas e, ao nos permitir
compará-las, torna possível nós uma certa medida dos intervalos delas” (GILSON,
Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p.367-368). A impressão, de um lado, surge
pelo transcorrer dos eventos, que sempre se dá no presente; mas, de outro, permanece
presente como impressão, que o próprio evento seja pretérito.
O mesmo pensamento deve ser empregado para se entender o futuro: não está
mais em questão a possibilidade de medição do futuro em si mesmo enquanto tempo
independente e objetivo, mas a espera e a expectativa do mesmo pelo indivíduo.
O tempo presente, por sua vez, que não tem extensão, também só existe graças à
alma. Para concebê-la, é necessário representar o presente da alma como uma intenção,
direcionada simultaneamente em direção ao que não é, pela espera, e na direção do que
não é mais, pela lembrança. Tal intenção dura e é, nas palavras de Gilson, “o lugar de
passagem daquilo que ela espera para aquilo de que ela se lembra” (Idem, p.368). A
intenção aparece como a aptidão de uma atividade da alma indivisível que se distende
do presente, em que ela subsiste, para a direção dupla do futuro, que ela espera, e do
passado, do qual ela se rememora.
Não faltam exemplos para fundamentar essa tese de Santo Agostinho, mas nosso
autor se utiliza da duração da voz durante uma recitação de um poema. A ilustração se
segue assim: quando alguém quer emitir uma voz de certa duração e estabelece
antecipadamente quanto ele durará, produz um intervalo de tempo em silêncio e então,
baseando-se na memória, começa a emitir aquela voz, que soará até ser conduzida a seu
limite preestabelecido. O que ainda resta, soará, e assim procede, enquanto a intenção
presente traz o futuro para o passado, diminuindo o futuro e acrescendo o passado, até
que, pelo esgotamento do futuro, tudo seja passado. Assim, a aporia se resolve quando
se fala, não das sílabas que não são mais ou ainda não são, mas de suas impressões na
memória e de seus sinais na espera.
Nesse sentido, numa lamentação de Santo Agostinho de que sua vida enquanto é
distensão, pois se vive no fluxo contínuo do tempo, que se começa o parágrafo 39,
reafirmando a negatividade ontológica de Deus e o homem, enquanto eternidade e
temporalidade. Mas tal posição é tomada para revelar seu caminho escolhido de atingir
a eternidade, através de Jesus, mediador dos homens e Deus, nas palavras do nosso
autor: “mediador entre ti, uno, e nós múltiplos”. É, pois, “vivendo na multiplicidade e
pela multiplicidade” e seguindo o uno que Agostinho não permanece em dúvidas a
respeito da possibilidade de se alcançar o tempo eterno, “onde possa ouvir a voz de
aclamação e contemplar tuas delícias, que não vêm nem vão”.
Porém, agora, tal estabilidade permanece não mais como presente na intenção,
mas permanece no futuro, no tempo da esperança: apesar da experiência vivida de
distensão consumir em tristeza Santo Agostinho, de modo que estado de depravação
moral em que se encontrava antes da conversão seja “desconhecido” a ordem dos
tempos necessários durante as variedades de sua trajetória, é pronunciado no meio disso
a promessa de permanência, livre de toda distensão: “até que eu conflua em ti,
purificado e liquefeito pelo fogo de teu amor”.
“Que te conheça, meu conhecedor, que te conheça como sou conhecido. Virtude
da minha alma, entra nela e capitura-a, para que a tenhas e possuas, sem mancha nem
ruga. Esta é minha esperança, por isso falo e daquela esperança gozo, quando gozo
saudavelmente. [...] Com efeito, eis que amas a verdade, porque quem a pratica vem à
luz. Quero praticá-la diante de ti em meu coração pela confissão”.
Com esses elementos, não se torna difícil responder a outra objeção dos
maniqueus a respeito da criação, a saber, “como lhe veio à mente fazer algo, se nunca
fez algo antes?”. Assim, ele responde: “não se pode dizer ‘nunca’, onde não há tempo.
Dessa maneira, Agostinho responde e critica as indagações dos maniqueus mostrando
que não há nenhum fundamento verdadeiro na própria formulação da pergunta.