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Produzir uma literatura não é o único critério para afirmar um dialeto como “língua

oficial”; fatores políticos e sócio-culturais também atuam nesse processo, conforme enfatizou
Ilari (1992). Porém, isso não a torna menos importante que os demais, posto que eles não
gozam da íntima relação existente entre ela e a língua. Sendo assim, cumpre observar o papel
exercido pela literatura ao longo da estandardização da língua portuguesa, destacando, num
primeiro momento, o início de sua documentação, escrita em português “arcaico”; e também,
posteriormente, sua importância na fixação do português como língua nacional, no período
“clássico”.
Durante o séc. XII, floresceu, na região de Provença, o trovadorismo, uma literatura
rica e original que logo foi imitada por grande parte da Europa. Não obstante, esse gênero
chegou ao extremo ocidente do continente, encontrando fértil terreno nos limites que
circunscrevem o território português. Ali, suas formas adaptaram-se perfeitamente ao idioma
local, o galego-português, de tal modo que até autores estrangeiros serviam-se dele para dar
vazão às suas efusões. Era consenso na época, como ressaltou Ilari (Ibid.), que essa língua se
adequava melhor às composições líricas, enquanto o castelhano, por exemplo, convinha mais
ao gênero épico. Uma explicação interessante para esse fato nos é fornecida por D. Carolina
Michaëlis (1953 pp. 48-49), baseada na estrutura fonética das línguas mencionadas. Para ela

(...) o português é o mais curioso e delicado dos idiomas românicos. A riqueza de


vogais (e ditongos), tônicos e átonos, sutilmente diferenciados que o caracterizam,
formam contraste com a enérgica sobriedade do á é í ó ú do castelhano. Se este é
tratado às vezes de duro, rude, seco, a fala portuguesa, pelo contrário, doce, meiga e
branda, é censurada amiúde de molemente efeminada, requintada, e demasiadamente
lírica, juízo que se estende aos costumes, à alma nacional, e sua expressão em obras
literárias.

Enquanto a produção poética abundava em criatividade, a prosa, por sua vez, se


limitava a traduções de textos (latinos, franceses e espanhóis) feitas nos mosteiros, os quais,
juntamente com a Corte, constituíam os dois principais “centros irradiadores de cultura” do
período. Traduziam-se hagiografias, tratados teológicos e histórias bíblicas, as quais ajudaram
na construção da ortografia do português. Ilari & Basso (2006 p.25) apontam dois problemas
enfrentados pelos escribas medievais na transcrição desta língua que, até então, só existia na
oralidade. O primeiro foi a dificuldade de segmentar a fala em palavras, ou seja, separar em
partes o seu contínuo fluxo sonoro; o outro problema foi “representar na escrita, através do
alfabeto latino, alguns sons que haviam sido criados em português e que o latim desconhecia,
entre eles as vogais, os ditongos nasais [...] e as consoantes palatais.”
Os mosteiros também contribuíram para a preservação das influências latinas sobre a
língua, sendo ela preponderante mesmo em vista da dominação árabe a que Portugal se
sujeitava. Convém notar que, literariamente, a presença árabe foi assaz superficial se
comparada à latina, apesar dos 800 anos de ocupação. Poucos desses textos nos restaram,
alguns deles traduções encomendadas por D. Diniz nos idos de 1300. Esse rei, a propósito,
merece destaque no estudo histórico de língua e literatura portuguesa. Protetor das artes e das
letras, além de ter escrito, ele próprio, centenas de cantigas de amor e amigo, também foi o
fundador da Universidade de Coimbra, instituição que ajudou na conservação do patrimônio
cultural e lingüístico do País.
No decorrer do tempo, em parte devido à Guerra da Reconquista, a Corte foi se
deslocando paulatinamente do norte, das fronteiras da Galiza, para o sul, em direção a
Coimbra e Lisboa. Nesse interstício, as marcas do galego sob o idioma foram se perdendo, ao
passo que, quando Coimbra se tornou capital, Portugal já mantinha contato com a cultura
renascentista. Começa então, no séc. XV, o período “clássico”, que significou, grosso modo,
uma volta às origens greco-latinas. Isso culminou, na literatura, numa supervalorização dos
latinismos, acrescentando-se, agora, termos próprios do latim “culto”, que eram usados pelos
escritores como demonstração de erudição. Para Ilari & Basso (2006 p.30) “a necessidade de
expressar a cultura de seu tempo obrigou-os a criar uma série de termos novos, e esses termos
novos, acabaram sendo buscados, mais ou menos conscientemente no latim e no grego
clássicos.” A proximidade com a cultura latina e sua língua era de tamanha importância para
os autores da época que o próprio Camões a fez apregoar, nOs Lusíadas (I, 33), pela boca de
Vênus:

Sustentava contra ele Vênus bela,


Afeiçoada à gente lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga tão amada sua romana,
Nos fortes corações, na grande estrela,
Que mostraram na terra tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a latina.

Como percebemos, para o poeta, não só a semelhança entre as virtudes portuguesas e


romanas angariaram a simpatia da deusa, mas também a “pouca corrupção” da língua, que
reflete a supervalorização dos latinismos, mencionada acima.
Porém, nem os deuses do Olimpo puderam livrar os portugueses da influência do
castelhano. Em 1580, 8 anos após a publicação da epopéia de Camões, Portugal é subjugado
pelos espanhóis, causando uma reviravolta no campo das letras. Em busca de maior prestígio
e penetração internacional para suas obras, uma quantidade enorme de autores lusitanos
abandona o idioma pátrio em detrimento da língua do dominador, inverso do que acontecera
no período “arcaico”, no qual era a nossa língua que encantava todos os outros. D. Carolina
Michaëlis (1953) chega a mencionar um Catálogo razoado dos portugueses que escreveram
em castelhano, documento da época que registra um número espantoso de 500 autores que
“traíram” seu vernáculo. Apesar de tudo, a grandiosidade das obras quinhentistas e
seiscentistas foi suficiente para permitir a permanência do português mesmo em face da
dominação espanhola, contribuindo fortemente para sua posterior fixação como língua
“nacional”.
Por fim, concluímos que, durante o período “arcaico”, a literatura foi de fundamental
importância para o início da escrita em romance, graças ao trabalho dos frades tradutores,
assim como dos poetas trovadores; esses últimos, além de tudo, pela riqueza de seu legado,
contribuíram para dignificá-la, acabando com seu caráter de língua “vulgar”. Já no período
“clássico”, foi determinante seu papel para afirmação do português como língua “oficial”, e
também para a manutenção de suas feições latinas, as quais subsistiram a despeito das
inúmeras outras línguas com que travaram contato.

REFERÊNCIAS

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Escala, s/d.

ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 1992.

ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. Um pouco de história: origens e expansão do português.


In: ______. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo:
Contexto, 2006.

MICHAËLIS, Carolina. Literatura portuguesa antiga. In: CLÁSSICOS Jackson: Estudos


Literários. São Paulo: W.M Jackson, 1953. v. XL, p. 47-75.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
FACULDADE DE LETRAS
CURSO DE FILOLOGIA ROMÂNICA

Rafael Artuzo (200713038) & Raphael Moraes (200713039)

LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESA ANTIGA

Juiz de Fora/ MG
2010

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