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SOBRE A ESTÉTICA TEATRAL DE NELSON RODRIGUES – UM ENSAIO

Ramon Maia

O teatro é uma das instituições mais frágeis da cultura. Seus grandes momentos são
esporádicos, não são uma constante. Podemos resumi-los à Tragédia Grega, ao Teatro
Elisabetano, ao Século de Ouro espanhol, ao Classicismo francês e aos trabalhos do Teatro de
Arte de Moscou. Obviamente, não se pode deixar de destacar algumas figuras importantes dos
séculos XIX e XX, como Gógol, Ibsen, Beckett, Artaud, Ionesco, entre outros, que não
constituem o florescer de uma época, senão a fulguração de individualidades. Além disso,
grandes espetáculos e montagens de boa qualidade são uma exceção na história, não são a
regra. O teatro vive de buscas, experimentações, tentativas. De tal modo que, podemos dizer,
ainda que uma peça seja montada, ela não é definitiva. Não há palavra final, não há obra
cabalmente pronta no teatro. O que há de permanente é uma trajetória interminável adiante. O
olhar para trás tem como objetivo realizações futuras.

O amante do teatro, por isso, é um louco ou lhe falta o bom senso. Seu objeto de amor
é efêmero e precário, não somente enquanto acontecimento ou realização em um intervalo de
tempo e espaço, mas, também, como história, como tradição, como sequência de eventos no
passado, no presente e como promessa. A existência do teatro é um risco, nada garantiu e nada
garante sua existência futura, a não ser a paixão dos seus amantes, dramaturgos, atores,
encenadores, críticos, público e historiadores. O amor louco pelo teatro é um ato de fé, ele só
sabe que ainda resta algo por fazer, tomado por um presente pleno de incertezas. A situação se
agrava quando o risco de desaparecimento não se dá por fatores exógenos, ou seja, não é por
obra de inimigos que o teatro pode sucumbir nos dias de hoje.

De um modo geral, as artes da cena vêm se tornando obra de uma especialização cada
mais crescente e, assim, se observa, paulatinamente, um fechamento do teatro em si mesmo,
ao qual somente iniciados têm acesso. Tal fechamento é obra da elitização universitária que
tende, como de resto, toda a universidade, a atribuir validade e legitimidade exclusivamente a
si mesma. O problema mais grave é a destinação da mensagem comunicada, reservada

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unicamente para os pares, sendo requeridos uma formação e um saber específicos para sua
compreensão.

A despeito disto, o fenômeno teatral é múltiplo e heterogêneo. Ele é mais amplo do


que costumeiramente podemos imaginar. Onde quer que o ser humano desempenhe um papel
é possível identificar um fenômeno teatral. E a novidade, assim como a loucura e a doença,
sempre pode advir, quando e onde menos se espera que ela apareça. No limite, o processo de
socialização, da criança ao adulto, é uma dinâmica de aprendizagem, que começa pela
etiqueta em direção à ética, envolvendo imitação e transfiguração de comportamentos,
portanto, teatralidade. Além disso, viver em sociedade implica desempenhar vários papéis.
Curiosamente, parece haver um prazer, para além da necessidade social, na própria
representação, na imaginação, na apresentação de si enquanto algo ou alguém. De algum
modo, a vida imita a arte. Assim, é imprudente limitar o teatro a algumas de suas formas,
expressões ou escolas.

O Brasil, periférico e dependente, possui a mesma característica de muitas outras


nações, qual seja, não é dotado de uma tradição de literatura dramática ou de artes da cena
estabelecida. O que há, por aqui, é um brilho ocasional de um dramaturgo, de um ator e de
uma atriz, de um encenador e de uma encenadora, de uma peça. Com efeito, vivemos sempre
em meio a uma tensão entre a afirmação nacionalista e a necessidade de atualização pelos
padrões europeus. Os dramaturgos brasileiros, rejeitando a importação de ideias, se
colocaram, ao longo do tempo, contra a preferência do público e de empresários pela tradução
de obras estrangeiras. Além disso, lamentam a falta de estímulo para a criação local.

A dialética do mesmo e do outro, do nacional e do estrangeiro não é, exatamente, a


rejeição dos polos opostos, senão, sua mútua determinação e interação, culminando uma
síntese nova, contendo elementos dos anteriores envolvidos na tensão. Assim, a partir da
década de 1940, no Brasil, encontramos um modo próprio de nos colocar a par das mais
avançadas produções, sem eliminar nossas especifidades. A modernidade europeia chegou ao
teatro brasileiro pelas mãos do encenador polonês Zbigniew Marian Ziembinski. A partir de
então, o diretor passava a comandar a visão total do espetáculo. Novos recursos como
iluminação, cenários atualizados e a liberdade expressiva eram utilizados. O principal
acontecimento do moderno teatro brasileiro foi a encenação da peça Vestido de noiva, de
Nelson Rodrigues, com a direção de Ziembinski e iluminação de Tomás Santa Rosa. Houve

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um ganho de vigor e de vitalidade nacionais, pois estava presente a preocupação com a
realização de algo que não fosse alheio às grandes produções do exterior.

Em 1943, Nelson Rodrigues conheceu o sucesso com Vestido de noiva. Aos olhos da
crítica, era o brasileiro mais bem-sucedido no teatro, comparado a Carlos Drummond de
Andrade, na poesia, e a Villa-Lobos, na música. Seis anos depois, no entanto, após as peças
mais recentes, Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos Afogados, fora lançado no
opróbrio, já era um autor maldito. A crítica se voltou contra Nelson por ter, supostamente,
abandonado a trilha que o levou ao sucesso com Vestido de noiva. Sua reação veio em um
texto publicado no primeiro número da revista Dionysos, editada pela Serviço Nacional de
Teatro em outubro de 1949. O Teatro desagradável é um dos textos de Nelson em que
podemos encontrar uma genuína estética teatral.

Nelson Rodrigues iniciou sua carreira jornalística como repórter policial aos 13 anos
de idade. Ele sempre fora um leitor de ficção. Quando decidira escrever sua primeira peça,
trabalhava em O Globo e resolveu fazer uma chanchada para ganhar dinheiro. Nelson
começou a escrever o que seria algo divertido e cômico, mas o texto foi ficando cada vez mais
sério, sem nenhuma concessão ao humor. Trata-se de algo cuja matriz é a experiência vivida,
suas dores, seus descaminhos, seus impasses, seus paradoxos. Nelson atribui ao evento do
assassinato do irmão um papel fundamental, qual seja, o de fornecer as características do seu
teatro e de sua própria personalidade. Roberto Rodrigues fora assassinado, na redação do
jornal do seu pai, por uma mulher em busca de vingança, desejosa de dar fim à vida de
qualquer um da família Rodrigues. Nelson foi testemunha do ato hediondo. A gravidade do
fato aumentou em razão da absolvição em júri da perpetradora do crime. A opinião pública, à
época, se colocou ao dela.

Desde então, Nelson Rodrigues se colocou contra toda unanimidade. É bem provável
que o evento trágico com o irmão e outros acontecimentos brutais o tenham levado a construir
peças, por assim dizer, desagradáveis. E por que desagradáveis? As peças de Nelson giram em
torno dos temas do amor e da morte, por isso, são contagiosas quando representadas. Não há
como ficar indiferente ao ciúme, à inveja, ao incesto, o adultério, ao assassinato. A vida e o
destino de cada indivíduo parecem ser jogados no palco. Contudo, ao ver encenados os seus
porões mais obscuros a tendência do espectador é a repulsa, o asco, o nojo. Nelson Rodrigues
acredita que há uma legitimidade estética ao tratar destes assuntos em seu teatro. Afinal, o

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caráter artístico de determinadas obras não está dado pela existência de condicionamentos ou
pela exclusividade, relativos a determinados temas.

Nelson Rodrigues faz uma petição de princípio. Não significa que seu teatro trate de
todo e qualquer assunto, senão que, a liberdade própria da arte para tratar de todo e qualquer
assunto faz com que seja possível que ele fale do amor e da morte. Mais ainda, para Nelson, o
amor e a morte são as realidades fundamentais do ser humano. O trágico, que atravessa suas
peças, se mostra pelo fato de que a vida vivida no palco ser mais humana do que na realidade.
Há mais realidade, mais densidade, mais humanidade no personagem no palco do que em
cada um dos espectadores. Afinal, o espectador de carne e osso imita a vida, não a vive
efetivamente. Ele, em todos os momentos de sua trajetória no mundo, se dá ao trabalho de
apenas fingir. O espectador, em geral, desconhece os desesperos, as agonias, as paixões que
poderiam lançá-lo na plenitude de sua condição humana. Por outro lado, o personagem vive a
vida de todos nós, vive a vida que nós, no fundo, rejeitamos. Não cabe, aqui, a menção ao
realismo. Trata-se de uma inversão dos polos arte e vida. A vida autêntica está contida na arte
trágica. A vida comezinha, a que todos nós vivemos, não passa de uma imitação da
verdadeira, sendo, portanto, uma arte pobre. A arte trágica cria vida enquanto que a nossa, do
dia a dia, imita-a. E por vida autêntica Nelson entende aquela vivida em meio ao excesso, ao
desespero, à agonia, à paixão e, não, aquela presa aos comedimentos, à sobriedade e aos
papéis sócias pré-definidos. Tudo isso possui um objetivo no teatro de Nelson.

O teatro, assim, deve possuir uma função catártica. A plateia, vendo a si mesma,
assistindo ao que realmente ela é, deixa de o ser na vida do dia a dia. O aparecimento de
assassinos, adúlteros e insanos no palco não é gratuito. Cumpre a função de libertação das
cadeias em que estão presos os indivíduos. Na vida comezinha, não temos a chance de nos
vermos em ação, com nossas obsessões, com nossas taras, nossos vícios. O teatro cumpre essa
tarefa reveladora, à medida que promove esse mergulho em nosso inconsciente. Obviamente,
as peças de Nelson não são do tipo daquelas que provocam gargalhadas, elas não são solares.
Nelson conta que, certa vez, fora a um espetáculo, a um vaudeville e todos na plateia riam
muito, menos ele. Ele descobriu, naquele momento, o descabimento do riso no teatro. Só
caberia no teatro o dilaceramento. A peça de teatro possui a gravidade de uma missa. Não faz
sentido uma missa cômica.

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J. Guinsburg afirma que as características fundamentais do texto de Nelson são sua
filiação às ideias de folhetim e melodrama. Com efeito, no entendimento estético de Nelson, o
folhetim e melodrama estão associados ao mau gosto que é, a seu ver, um valor fundamental.
Ele faz a defesa do mau gosto. Diz que ele que existe até mesmo em seu teatro. O fato é que,
para ele, isto não é um problema, nem digno de ser colocado em questão, uma vez que, em
qualquer escritor pode estar ausente o bom gosto. Além de inevitáveis, os defeitos são, aliás,
necessários. O mau gosto, por sua vez, é indispensável na obra do artista. Nelson vai além,
afirmando que bom gosto, o comedimento não tem função na obra de arte cujo gesto
fundamental é o da agressão. A plateia, que verá a si mesma com todos os seus pecados, no
palco, será esbofeteada, sujigada, maltratada. Nelson revela, então, o sentido mais específico
da sua compreensão de estética teatral, segundo a qual não há redenção possível por meio da
obra de arte.

O palco é um tribunal. Os réus são todos os seres humanos. Basta um mergulho em


nosso inconsciente, revelando nossas manias, taras, vícios, pecados, para mostrar que todos
somos culpados. De outra maneira, a sentença dada pela peça é a condenação. O mais
interessante é que não há possibilidade de absolvição, pelo menos, no interior de cada peça. A
plateia entra em contato com histórias em que os homens por si só, lançados em mundo hostil,
não são capazes de se redimir de suas mentiras, traições, assassinatos, incestos e adultérios.
Qualquer tentativa de redenção é malograda. O crítico e historiador do teatro Sábato Magaldi
aposta na religiosidade e em certo jansenismo de Nelson como saída deste mundo áporo.

Em se tratando da poética e da estética de Nelson Rodrigues, a afirmação de uma


religiosidade é muito problemática, pois se refere à sua biografia. Com efeito, o resgate pela
graça seria uma redenção possível para os condenados pelo teatro, se isto estiver relacionado à
concepção em Nelson segundo a qual não há degradação absoluta, além de haver, em nossas
entranhas, um apelo pela santidade. Trata-se de uma visceral nostalgia da pureza. A princípio,
é difícil dizer que certo jansenismo está presente no conjunto das ideias dele. Por outro lado, a
religiosidade na poética teatral de Nelson está associada a duas noções caras a seu imaginário:
o amor e a morte. O homem, para Nelson, é um impasse, pelo fato de ninguém ter o
consultado sobre seu nascimento, sobre sua vontade de estar no mundo. Em razão disto, há o
suicídios natos, há o suicida vocacional. Nenhum fato ou motivo explica ou causa o suicídio,
a não ser aquela visceral nostalgia de pureza. Esta nostalgia consiste em uma vontade de
retorno às origens, ao estado paradisíaco. Por isso, Deus prefere o suicida, segundo Nelson.

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A ideia de hostilidade do mundo nos remete à noção de amor e a de imortalidade da
alma, à noção de morte. Podemos inferir que os assuntos ligados ao suicídio, ao assassinato
encontram resolução no imaginário de Nelson, uma vez que, para ele, o problema da morte
encontra solução na eternidade. Todos nós levamos nas entranhas um instante de São
Francisco de Assis. No universo de Nelson, o grande problema é o amor que, ao contrário da
morte, não possui nenhuma solução. Efetivamente, é preciso fazer uma ressalva. A presença
da morte no teatro de Nelson Rodrigues só existe enquanto relacionado ao problema do amor.
Não é a morte em si uma efetiva aporia, por isso, seu teatro não precisou lidar com ela
propriamente. A morte é um resultado dos descaminhos e das desventuras do amor, ou seja,
está sempre conectado a ele, ela é seu problema. No teatro de Nelson, ligados ao amor estão o
ressentimento, o ódio, o desprezo, o abandono, o ciúme, a desmedida, a paixão, o excesso.
Tudo isso nos faz perceber que o mundo é o lugar hostil para o homem, justamente pelos
problemas que o amor pode colocar.

Nelson Rodrigues apresenta em textos escritos como respostas aos críticos, em


programas de peças, em suas memórias sua estética teatral cujo eixo central é uma poética da
derrelição humana. O palco é o mundo onde vive plenamente o homem, dissecado pela arte
do teatro. Trata-se de um ser que só pode contar consigo mesmo, entregue aos seus vícios,
impulsos, desejos mais obscuros, sem meios, sem nenhum deus para o redimir de sua
condição miserável. Assim, podemos dizer que vivemos em um ambiente francamente hostil e
inóspito. Antes de se relacionar com os outros, o homem já é por si só um inadaptado.

A hostilidade fundamental do mundo, contudo, não é ambiental, pois Nelson pensa


que há formas de combatê-la, com a fidelidade ao lugar onde se vive, à sua paisagem. O exílio
que vivemos em relação a um estado paradisíaco, às nossas origens se manifesta nas relações
amorosas e elas são a substância da literatura dramática. Neste sentido, guerras e paixões
políticas não fazem parte do repertório de Nelson. A política é inútil e vazia de sentido, afinal,
nada há nada que possa transformar o homem. O teatro, em sua fragilidade demasiado
humana, é capaz, assim, de revelar um ser lançado no mundo com suas fraquezas que, no seu
mais íntimo, são suas mais profundas paixões, capazes de fazer deste ser o mais humano dos
seres.

A ausência de saída para o ser humano está colocada no palco, onde os descaminhos e
as desventuras do amor o conduzem ao malogro. O fato é que o teatro de Nelson possui um

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duplo efeito. Em um primeiro momento, ele a todos condena: plateia, atores, diretor,
encenador, iluminador, cenógrafos, dramaturgo. Não há redenção possível para ninguém. Por
outro lado, a representação, a atuação, o evento teatral é catártico e, por ser uma realidade
autenticamente humana, promove, com o ato e nele, uma purificação das paixões, dos vícios,
das taras, das obsessões e das manias. De outra maneira, as peças em si são aporéticas, mas o
teatro, como realização, acontecimento e existência, apresenta uma saída. A princípio, a arte
trágica seria capaz de devolver a pureza aos homens, aquela da qual todos sentem uma
violenta nostalgia, pelo fato de ter seus porões expostos e representados no palco. Isto porque
o teatro envolve a responsabilidade de todos em relação a todos, ou seja, plateia, elenco,
diretor, dramaturgo, iluminador, leitores, todos estão envolvidos no processo de condenação e
purificação. Desse maneira, podemos dizer que o grande milagre é o teatro, pois, primeiro, ele
expõe a hediondez do ser humano, para em seguida, devolvê-lo à pureza por meio do artifício
da encenação e da plasticidade dadas à inveja, ao ciúme, ao ódio, ao suicídio, ao assassinato,
ao incesto, ao ressentimento. O teatro, tão frágil instituição da cultura, é o grande aliado da
precariedade humana.

A purificação efetuada pelo teatro de Nelson só é possível pela hipérbole na


linguagem, pela lente de aumento em determinadas áreas da vida humana e pela concentração
nos temas do amor e da morte, que são considerados por ele os dois elementos permanentes e
fundamentais na vida. Se o homem é um ser lançado às baratas, somente o teatro poderá
devolvê-lo à plenitude, a qual fora perdida desde que, involuntariamente, penetrou neste
mundo e da qual sente uma visceral saudade. Não significa que a experiência humana,
seguida do caminho em busca da pureza, seja uma trajetória de delícias e prazeres. Sentimos
dentro de nós esta nostalgia incoercível do Paraíso. Se quisermos fazer a trilha de volta em
sua direção, encontraremos muitos obstáculos.

Podemos dizer que o trágico em Nelson possui fins sacrificiais, entretanto, a vítima
expiatória é a humanidade, ou seja, todos estamos envolvidos. Talvez, fosse mais preciso
dizer que, para além de uma poética da derrelição, a estética teatral de Nelson Rodrigues
contém uma poética sacrificial, uma vez que, o lançamento involuntário do homem um
mundo hostil é tão somente o primeiro passo da sua construção de ideias. O passo seguinte
vem a ser a exposição do significado do aparecimento plástico em cena deste lançamento que,
como vimos, consiste em uma busca de purgação, de catarse para as perdições do homem. O

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termo final desta trajetória é constituído pelo caminho em direção ao paraíso perdido, que não
pode ser trilhado sem os odores e os dissabores desagradáveis do teatro.

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