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Posição de lídia perante os acontecimentos políticos e sociais

da época
Nunca é demais recordar que No Ano da Morte de Ricardo Reis são
oferecidas múltiplas possibilidades de estudo, não só devido ao facto de ser
um livro extremamente rico a nível literário mas também no que toca à
intertextualidade e realidade social e política. São apresentadas ao longo do
romance duas personagens femininas que se movem em mundos opostos,
Marcenda e Lídia. Estas assumem um papel fulcral no quotidiano de Ricardo
Reis e têm, claramente, um forte valor simbólico.
A Lídia com quem Ricardo Reis se encontra não se assemelha nada à descrita
na sua poesia. Representa a colisão entre a musa das odes e a mulher do
povo que se afasta por completo ao arquétipo que ele próprio
inventara. Lídia é uma mulher que vive a vida como pode e como sente. A
criada do hotel está viva, mesmo que pareça em momentos banal, o que a
torna ainda mais autêntica, real e verdadeira, diferenciando-se assim das
restantes personagens do romance. Lídia afasta-se, então, da poesia, do
etéreo, do irreal, e vai em direção ao quotidiano, ao palpável, ao real, à vida.
Lídia “frustra todas as suas expectativas”, não sendo aquilo que ele esperava.
Não é passiva, não guarda o silêncio sábio, antes pergunta e quer conversar
sobre diferentes temas, sobretudo os da atualidade; é conhecedora daquilo
que se está a passar.
O ano de 1936 foi um ano chave de regimes autoritários, censura,
espionagem, aventuras coloniais, guerras civis, exílios de variada índole, em
suma, um ano sombrio. A narrativa vê-se recheada de artigos jornalísticos
que servem para apontar vários aspetos: por um lado, o contexto histórico-
político em que transita o romance e daí o protagonista, e por outro lado,
mostrar a atitude passiva de Ricardo Reis perante os acontecimentos
políticos. É de notar que Reis foge nos momentos de instabilidade política,
em Portugal no ano de 1919 e no Brasil em 1935.
Ao contrário de Reis Lídia apresenta-se como uma personagem muito mais
lúcida e reflexiva. Podemos constatar estas qualidades da personagem
quando discute sobre a guerra civil espanhola com o protagonista.
Peço que abram o livro na pagina 462 e que leiam comigo esta passagem:
“Estás tu aí a chorar por Badajoz, e não sabes que os
comunistas cortaram uma orelha a cento e dez proprietários,
e depois sujeitaram a violências as mulheres deles, quer dizer,
abusaram das pobres senhoras, Como é que soube, Li no
jornal, e também li, escrito por um senhor jornalista chamado
Tomé Vieira, autor de livros, que os bolchevistas arrancaram
os olhos a um padre já velho e depois regaram-no com
gasolina e deitaram-lhe o fogo, Não acredito, Está no jornal,
eu li, Não é do senhor doutor que eu duvido, o que o meu
irmão diz é que não se deve fazer sempre fé no que os jornais
escrevem, Eu não posso ir a Espanha ver o que se passa,
tenho de acreditar que é verdade o que eles me dizem, um
jornal não pode mentir, seria o maior pecado do mundo, O
senhor doutor é uma pessoa instruída, eu sou quase uma
analfabeta, mas uma coisa eu aprendi, é que as verdades são
muitas e estão umas contra as outras, enquanto não lutarem
não se saberá onde está a mentira”
Neste excerto podemos concluir que os artigos jornalísticos como salientei
anteriormente, aparecem como prova do controlo ideológico pelo aparato
estatal do regime. Reis é descrito como ingénuo acreditando que o que está
escrito nos jornais não esta deturpado e Lídia como consciente por não
acreditar que o que é noticiado corresponde obrigatoriamente à verdade.
Está claro, então, que Lídia embora sendo uma mulher do povo desenvolve
várias opiniões e críticas ao poder estabelecido.
No capítulo 8, Ricardo Reis recebe uma contrafé da Policia de Vigilância e
Defesa do Estado, pelas mãos de Salvador, sendo intimado para se
apresentar para prestar declarações. Lídia ao saber a notícia fica alarmada e
no contexto de um longo diálogo que surpreende ambos, esta refere que o
seu irmão, Daniel Martins, é opositor ao regime ditatorial de Salazar e que
sabe que certos interrogatórios da PIDE podem incluir torturas e castigos.
Desta forma é nos dado a conhecer a perceção que Lídia tinha relativamente
ao contexto político vigente.
Viremos agora para as páginas 445 e 446, onde podemos ler a altura em que
se dá o golpe militar em Espanha. Ricardo Reis conta a Lídia o que se passa
no país vizinho. O médico tenta-lhe explicar as motivações para o golpe e
Lídia responde que Reis “diz as coisas de uma maneira tão bonita” chegando
a referir que “aquilo em Espanha estava uma balburdia, uma desordem” e
que era necessário que viesse alguém para pôr ordem, neste caso o exército.
Acrescenta que o seu irmão acredita que os militares não ganharão porque
terão o povo todo contra eles. Ricardo Reis interpela-a perguntando quem é
o povo para Lídia e ela responde que “o povo é isto que eu sou, uma criada
de servir que tem um irmão revolucionário e se deita com um senhor doutor
contrário às revoluções”. O médico completamente fascinado pergunta a
Lídia onde e que ela aprendera a dizer estas coisas e ela responde que
quando abre a boca é para falar e que não pensa no que diz.
Quase no final do livro, na página 463, Ricardo Reis compra uma telefonia e
Lídia alegra-se pois poderá ouvir música e conta ao médico que os espanhóis
deixaram o hotel. Na telefonia, ouve as notícias do bombardeamento de
Badajoz e chora. Lídia diz que Daniel avisara que “não se deve fazer sempre
fé no que os jornais escrevem”. Tal como referimos anteriormente,
conversam sobre a verdade das informações veiculadas nos jornais e o
médico afirma “sempre me responde com as palavras do teu irmão” ao qual
Lídia responde “e o senhor doutor fala-me sempre com as palavras dos
jornais”. Na continuidade do capítulo, ficamos a saber que Badajoz se rende.
Ricardo Reis sabe através dos jornais e confirma com Lídia, através do seu
irmão, o fuzilamento de milicianos presos, na praça de touros de Badajoz.
Morrem 2 mil e Lídia chora-os na cozinha.
Ao longo do romance, perante as contrariedades da vida, do sistema politico
e social e mais concretamente no final do romance, Lídia mantém a
persistência e não desiste daquilo em que acredita. Este caráter de Lídia está,
claramente presente no episódio da revolta dos marinheiros, do qual
falaremos em maior pormenor mais à frente. Mesmo considerando que o
seu irmão, um dos marinheiros revoltosos, tem muito poucas probabilidades
de sucesso, Lídia, corajosa, compreende os motivos dele e sentindo-se parte
do povo e por conseguinte parte integrante da rebelião, mantém a sua
posição, assume os seus deveres e uma esperança constante no futuro e nos
ideais em que acredita.

Influência da família na relação amorosa


Passando agora à influência da família na relação amorosa, podemo-nos
focar na relação entre Ricardo Reis e Marcenda e nas características de cada
um destes.
Marcenda não tem forças para agir, para fazer o que quer, é incapaz de
resistir às imposições externas, como podemos verificar na seguinte citação:
“Meu pai continua a dizer que devo ir a Fátima e eu vou, só para lhe dar
gosto”. Esta viaja até Lisboa para agradar ao pai, mesmo sabendo que este
vai ver a amante sob o pretexto de levar a filha ao médico. “Obedece, não
luta, cede, agrada, mente até, se necessário, não assume”. Marcenda é a
mão inerte, a asa quebrada, a pessoa que não consegue viver, a mulher a
murchar.
Na verdade, à medida que convivem, verifica-se que Ricardo Reis e Marcenda
se assemelham um com o outro em formas de reagir, como a inação e a
tentativa de fuga da realidade; Reis num alheamento constante e Marcenda
recusando enfrentar a vida.
O narrador expõe que Ricardo Reis não é capaz de controlar nem dirigir os
seus próprios pensamentos, assim como Marcenda não consegue mexer a
sua mão paralisada. O destino deles é feito pelos outros, moldado pela
incapacidade de agirem devido à sua fragilidade emocional, presos no
labirinto da sua própria incapacidade.
Marcenda personifica a filha menina que não cresceu e que, desde a morte
da mãe, assume um papel de submissão ao pai, vivendo às custas dele e com
ele concordando em tudo. Em termos psicológicos a paralisia da mão
esquerda, carregada de simbolismo político, pode ainda remeter-nos para o
universo de uma mulher inexperiente e passiva que, no início da idade
adulta, perante a perda da figura materna, vive um grande desgosto.
Podemos depreender que este evento tenha sido gerador de insegurança,
ansiedade e que, no contexto da sua educação e da fragilidade da sua
personalidade gerou uma incapacidade de autonomização, que se traduziu
numa doença física visível; A sua paralisia, provocada pela dor da perda da
mãe, simboliza a possibilidade da doença física ser causada por distúrbios
emocionais. Tal como podemos ler na seguinte citação presente na página
146,”todos nós sofremos de uma doença (…) que é inseparável do que somos
(…) faz aquilo que somos (…) cada um de nos é a sua doença”. Esta
incapacidade, perante os outros e a sociedade torna patente, exprime e
talvez até justifica, a opção de Marcenda pela constante anulação de
projetos pessoais e futuros, nomeadamente no plano amoroso, recusando o
pedido de casamento de Reis.
Interação com os hóspedes e funcionários do hotel
Salvador Salvador é o gerente do Hotel
Bragança onde Ricardo Reis vai ficar
hospedado. É ele que informa Reis
acerca dos outros hóspedes do
hotel, mais propriamente, sobre
Marcenda e o seu pai. Salvador
desempenha um papel profissional
no exercício da sua função e pede a
Vítor, agente da PVDE, informações
sobre Ricardo Reis.
Pimenta Pimenta é empregado no Hotel
Bragança. É o moço dos recados e
transporta as bagagens dos
hóspedes, incluindo Ricardo Reis,
para os quartos. Conhece, também
a relação existente entre Reis e
Lídia.
Lídia Lídia é criada do Hotel Bragança,
uma mulher do povo. Tem o nome
das musas da poesia de RR, no
entanto, as suas características quer
físicas quer psicológicas em nada se
assemelham às musas literárias.
Ambos vivem uma relação amorosa
e Lídia acaba por engravidar
Marcenda Marcenda é uma jovem que RR
conhece durante a sua estadia no
Hotel Bragança. Esta tem uma mão
paralisada que desperta grande
curiosidade a Reis. O seu nome
significa murchar, ou seja,
Marcenda, ao contrário de Lídia,
está destinada a murchar. Desta
forma, a sua relação com Reis não
se desenvolve.
Dr. Sampaio Dr. Sampaio é pai de Marcenda e
está também hospedado no Hotel
Bragança. RR vê-o como um homem
de meia-idade, alto, formal, de rosto
comprido e vincado. Reis fica a
saber através de Salvador que Dr.
Sampaio é notário em Coimbra.
Durante um jantar Reis descobre
que o pai de Marcenda é apoiante
de Salazar.
Refugiados espanhóis Os Refugiados Espanhóis são todos
aqueles que saíram de suas casas
em Espanha para procurarem
refúgio em Portugal, tentando
escapar às atrocidades da Guerra
Civil Espanhola e que se alojaram no
mesmo hotel de RR.
Ramon e Felipe Ramon e Felipe são criados do Hotel
Bragança que servem Marcenda,
Reis e o Dr. Sampaio quando jantam
juntos.
Atitude perante a revolta dos marinheiros
Um dos acontecimentos históricos que este romance nos apresenta é a
revolta dos marinheiros, também conhecida como o motim dos barcos do
Tejo. Foi um levantamento militar organizado pela organização
revolucionária da armada, estrutura ligada ao PCP, ocorrido a 8 de setembro
de 1936 em três navios da armada portuguesa, que visava a libertação de
presos políticos opositores ao regime de Salazar. Foi o último desafio militar
ao Estado Novo até 1974.
No último capitulo, a partir da página 481, Lídia anuncia que Daniel
participará numa revolta em que os navios de guerra Afonso de
Albuquerque, Dão e Bartolomeu Dias partirão para o mar sendo o objetivo
principal se “dirigirem a Angra do Heroísmo, libertar os presos políticos,
tomar posse da ilha” e esperar levantamentos no continente, caso tal não
fosse possível, juntar-se-iam ao Governo Espanhol. Lídia mostra-se
completamente devastada, pois não acredita que os três barcos conseguirão
sair da barra. Quando vê Lídia a chorar, RR não reconhece em si qualquer
sentimento, encarando a situação como obra do destino e assim, mesmo que
algo venha a acontecer a postura será de inanição, como puro observador do
espetáculo do mundo. Isto demonstra o caráter passivo de RR como pessoa
que prefere deixar que as coisas aconteçam e que a vida siga o seu curso.
Não demonstra qualquer emoção apenas um tom de esperança na sua voz
quando tenta acalmar Lídia e fazê-la deixar de chorar. Neste contexto, no dia
seguinte, verificamos que Reis vai observar os navios de guerra devido à sua
curiosidade, contemplando, alheado, desprendendo-se do motivo que o
levou ali (observar a revolta), ficou a olhar nada mais. No dia seguinte, de
manhã, mais uma vez como puro observador, avista o forte de Almada a
disparar contra os navios de guerra, sobressaindo após o evento a emoção e
desalento perante a revolta falhada e a preocupação por Lídia dado o facto
de Daniel se encontrar no barco atingido. No entanto, de seguida, centra-se
no que considera ser um absurdo, isto é, estar triste e emocionado,
relembrando-se a si próprio que sábio é aquele que se contenta com o
espetáculo do mundo.

Conclusão
O Ano da Morte de Ricardo Reis é uma obra extremamente completa, na
medida em que não só nos oferece momentos de romance, drama, intriga e
talvez até comédia devido às intervenções irónicas do autor, mas também
cultura geral devido aos relatos de muitos acontecimentos reais passados em
Portugal e na Europa.
É no limite entre o mar e a terra, o passado e o presente, a irrealidade (mito,
sonho, utopia) e a História, que o romance termina. Assistimos ao último
encontro com Pessoa e ao fim da vida de Reis “anoitecera por completo (…)
ouviram-se as pancadas do relógio (...) o meu tempo chegou ao fim (…) vou
consigo (…) não lhe posso valer (…) olhavam as luzes pálidas do rio (…) onde
o mar se acabou e a terra espera”. Fica patente que Ricardo Reis mais uma
vez fugiu à realidade, nomeadamente ao dever de consolar Lídia, não
regressa ao Brasil, nem à vida. Perdeu a oportunidade de ser alguém no
presente. Lídia era a sua ligação com o mundo, com a vida real, mas Reis não
soube aproveitar, não teve força para ficar e ser uma pessoa independente,
esse sonho continuou uma utopia. A irrealidade e o ambiente
fantasmagórico são mais fortes e mais presentes nesta obra do que aquilo
que existe, do real, não somente as personagens mas também o resto da
natureza parece fantasmagórica como a cor violeta exsangue (capítulo 14)
das cartas de Marcenda, remetendo para a involução, a passagem da vida à
morte. Todos, à exceção de Lídia, são mais parecidos com os fantasmas do
que com pessoas de carne e osso. É precisamente Lídia que, ao parecer
sozinha no seu duro quotidiano, carrega as esperanças de vida melhor no
país, a sua gravidez simboliza a fecundidade e o futuro. Lídia personifica as
pessoas lutadoras e simples, porque são elas, não os fantasmas, que
constroem o país e a humanidade. Saramago aposta nos “vivos” que, como
Lídia, levam o futuro em si.

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