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Mayana Vinti

Adepta do caminhar a pé. Flâneur. Turismóloga. Deixou o cargo de Gerente dos


Parques da Regional Pampulha de Belo Horizonte para se tornar mestre em
Antropologia pela UFMG. Intrigada com as questões da cidade e do que se
convencionou chamar de meio ambiente. Desbravadora dos prazeres da escrita.
Educadora socioambiental. Construindo possibilidades de trabalho compatíveis com
tudo isso.

DE QUEM É O ESPAÇO PÚBLICO?

O que é de todo mundo não é de ninguém! Quem nunca ouviu esta expressão, que
costuma acompanhar constatações de problemas percebidos nas ruas, praças, parques e
demais áreas públicas?

No esforço de escapar das polaridades desta, que me parece menos uma resposta que
uma queixa trivial, convido-os a passear mentalmente por alguns quarteirões da sua
cidade, identificando aqueles que você considera serem espaços públicos.
A rua da sua casa ou as ruas ocupadas pelas pessoas que se unem para manifestar seus
anseios e necessidades como moradores da cidade? A avenida larga tomada de carros?
As ruas do condomínio fechado? A escola? A universidade? O museu? A praça? O
parque municipal ou a área verde que moradores da cidade lutam para preservar? O lote
vago? O significado do que vem a ser espaço público é único? Acompanhada as
mudanças sociais? Muda de acordo com a experiência de vida daquele que sobre ele
pensa?

Identifico pelo menos dois significados diferentes para o termo ‘espaço público’.
Quando se discute, por exemplo, a crise do espaço público, diz-se da redução das
esferas de debate político no processo de tomada de decisões sobre as cidades. Por
espaços públicos entendemos também os espaços geográficos destinados, no momento
do parcelamento do solo, aos chamados espaços livres de uso público - como praças e
parques -, equipamentos comunitários - como escolas e hospitais -, ruas e avenidasi. São
espaços formalmente constituídos, de propriedade e responsabilidade do poder público.
Os espaços públicos assim concebidos não se confundem com os espaços privados, que
podem também ser de uso público, como museus, bancos e shoppings.

Fiquemos por enquanto com o segundo conceito de espaço público. No planejamento da


cidade, distante dos olhares, dos valores e sentimentos de seus moradores cujas
intervenções e demandas costumam ser minadas pelo argumento da falta de
conhecimento específico sobre o assunto, problemas como o abandono, a depredação, a
violência e a segregação social não são raros. O argumento de que os problemas são
fruto do mal uso do espaço é utilizado para justificar a falta de investimentos público
em manutenção e melhorias, num círculo vicioso difícil de interromper.

E se modelo internacional de planejamento estratégico - como estratégica é a gestão da


empresa para a maximização de lucros, neoliberal –, a racionalidade técnica do
planejamento urbano, a funcionalidade dos espaços, a instrumentalidade dos
equipamentos urbanos, e a noção de qualidade de vida que se quer única e consensual
não forem os únicos parâmetros para definir o que vem a ser o espaço público?

A presença das pessoas nos espaços públicos, sozinhas ou em grupos, driblam a


arbitrariedade do planejado e os problemas que dela decorrem. Nas ruas asfaltadas para
os carros, as crianças ainda jogam bola. Nas praças sem bancos ou árvores, guarda-sóis
e panos esticados no chão dão o conforto mínimo para passar ali algumas horas. Noutro
lugar, o banco e o corrimão da escada incrementam a prática do skate. Os gramados
com placas de proibido pisar são tomados por pequenos grupos de pessoas que se
divertem ao som de um violão. A rua vira mercado, palco de dança, lugar de
manifestação. A praça é também cinema, teatro e circo. O lote vago, horta. A área verde
particular, cercada, um parque público de preservação. Os exemplos de atribuição de
sentidos que extrapolam as funções propostas para os espaços não param por aí.

É no âmbito da interação social e no reconhecimento do seu valor para a constituição do


que vem a ser a cidade que podemos alargar a compreensão do que vem a ser o espaço
público, extrapolar os limites das áreas que nos foram formalmente delimitadas pelo
poder público como espaços de lazer e convivência.

Ao ocupar os espaços da cidade com nossas práticas sociais, valores e formas de estar
no mundo, investimos ali nossos sentimentos que, compartilhados com os grupos dos
quais fazemos parte, passam a constituir o ambiente social destes espaços,
transformados em pedaços da cidade cheios de sentido para nós: localidades. Penso
aqui a partir da ideia de produção de localidade do antropólogo indiano Arjan
Appadurai. Com este termo, o autor traz à tona a continuidade entre as estruturas de
sentimentos e as práticas de manejo e delimitação dos espaços. Ao agir socialmente
nestes espaços contribuímos, às vezes sem notar, para a transformação daquele
contextoii. Nos tornamos protagonistas na produção de um espaço público sensível aos
moradores da cidade.

Nós, os habitantes da cidade, temos valores, anseios, concepções de qualidade de vida


que nos esforçamos por ver refletidos na cidade e que são muito diferentes entre si.
Aqui está o conflito! Há quem diga que o conflito entre as formas diferentes de habitar
os lugares é um dos grandes problemas do espaço público. Será mesmo? Nossa
perspectiva cultural, nossa forma de sociabilidade, os significados que atribuímos às
coisas, aos espaços, não são os únicos ou os mais legítimos, certo? O que acontece se
pensarmos os espaços geográficos de uso comum inseridos na malha urbana como lugar
propício para a reivindicação do espaço público como lócus da política?

Falo aqui da política como propõe Jacques Rancièreiii, para quem o consenso “é na
verdade o esquecimento do modo de racionalidade próprio à política”(p.368). Para o
filósofo francês, o que primeiro caracteriza a racionalidade política não são os arranjos
pelos quais grupos e indivíduos fazem coexistir no mesmo plano seus interesses e
sentimentos. A essência da política é a oposição entre os diferentes “modos de ser” de
cada grupo social, a oposição entre “recortes do mundo sensível”. A razão política não é
a razão dos estados, nem a dos indivíduos ou grupos sociais com seus próprios
interesses. É a razão do dissenso, do “conflito sobre a constituição mesma do mundo
comum” (p.374). A fissura na ordem estabelecida e naturalizada de dominação, que
organiza os poderes, que gere as populações distribuindo lugares e funções como se
colocasse em prática o único processo de decisão possível e legítimo.

O espaço público habitado por diferentes grupos sociais, palco das relações e da
expressão de valores e anseios, através da arte, da festa, da manifestação, me parece ser
também o lugar do conflito, das discussões, argumentações e ações que anunciam outras
lógicas de ocupação do espaço da cidade, que clamam por reconhecimento ao mesmo
tempo em que se fazem reais.

Para estes lugares, espaços dos quais se apropriam afetivamente os moradores, talvez
faça mais sentido inverter a pergunta que serviu de título a este texto. Quem é do espaço
público? O que acontece quando os ocupamos com nossos corpos, ideias, atitudes e
sentimentos, nos fazendo parte deles? O que muda quando nos propomos a conhecer os
outros que também se sentem parte deste espaço público?

Os dias de funcionária da Fundação de Parques Municipais de Belo Horizonte, atuando


nos parques da regional Pampulha, e de pesquisadora-ativista com o movimento pela
preservação da Mata do Planaltoiv trouxeram-me para o lugar onde a definição do que
vem a ser o espaço público está intimamente relacionada à presença das pessoas, ao
quanto fazem das suas experiências no espaço reivindicações por uma cidade mais justa,
sensível às necessidades e desejos dos diversos grupos sociais que a habitam. Estas
minhas percepções estão limitadas aos espaços que conheci, às pessoas que observei, com as
quais conversei e convivi, ao período em que estive diariamente nessas áreas verdes.

Ficam os questionamentos e o estímulo para que busquemos nos apropriar dos espaços
públicos que nos foram formalmente concedidos. Mais do que isso, que nos atrevamos a
construir lugares públicos que respondam às nossas expectativas de cidade.
Links que ajudam a pensar e agir:

http://www.conexaocultural.org/wp-content/uploads/2016/04/GuiaEspacoPublicoONLINE.pdf

https://www.youtube.com/watch?v=JYL92YERklE

i
BELO HORIZONTE. LEI Nº 7.166, DE 27 DE AGOSTO DE 1996. Estabelece normas e
condições para parcelamento, ocupação e uso do solo urbano no município.

ii
APPADURAI, A. A Produção de Localidade. In. Dimensões Culturais da Globalização: a
modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 2004, p. 237-263.

iii
RANCIÈRE, Jacques. O Dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.) A crise da razão. 2 ed. São
Paulo: Companhia das Letras; Brasília/DF: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação
Nacional de Arte, 2006.
iv
VINTI, Mayana Silva. “À Mata do Planalto que se destine um único fim, ser, eternamente, a Mata
do Planalto” [manuscrito]: formas de produção da localidade em torno de uma área verde na cidade de
Belo Horizonte – MG. 204f. 2016. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

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