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O que é de todo mundo não é de ninguém! Quem nunca ouviu esta expressão, que
costuma acompanhar constatações de problemas percebidos nas ruas, praças, parques e
demais áreas públicas?
No esforço de escapar das polaridades desta, que me parece menos uma resposta que
uma queixa trivial, convido-os a passear mentalmente por alguns quarteirões da sua
cidade, identificando aqueles que você considera serem espaços públicos.
A rua da sua casa ou as ruas ocupadas pelas pessoas que se unem para manifestar seus
anseios e necessidades como moradores da cidade? A avenida larga tomada de carros?
As ruas do condomínio fechado? A escola? A universidade? O museu? A praça? O
parque municipal ou a área verde que moradores da cidade lutam para preservar? O lote
vago? O significado do que vem a ser espaço público é único? Acompanhada as
mudanças sociais? Muda de acordo com a experiência de vida daquele que sobre ele
pensa?
Identifico pelo menos dois significados diferentes para o termo ‘espaço público’.
Quando se discute, por exemplo, a crise do espaço público, diz-se da redução das
esferas de debate político no processo de tomada de decisões sobre as cidades. Por
espaços públicos entendemos também os espaços geográficos destinados, no momento
do parcelamento do solo, aos chamados espaços livres de uso público - como praças e
parques -, equipamentos comunitários - como escolas e hospitais -, ruas e avenidasi. São
espaços formalmente constituídos, de propriedade e responsabilidade do poder público.
Os espaços públicos assim concebidos não se confundem com os espaços privados, que
podem também ser de uso público, como museus, bancos e shoppings.
Ao ocupar os espaços da cidade com nossas práticas sociais, valores e formas de estar
no mundo, investimos ali nossos sentimentos que, compartilhados com os grupos dos
quais fazemos parte, passam a constituir o ambiente social destes espaços,
transformados em pedaços da cidade cheios de sentido para nós: localidades. Penso
aqui a partir da ideia de produção de localidade do antropólogo indiano Arjan
Appadurai. Com este termo, o autor traz à tona a continuidade entre as estruturas de
sentimentos e as práticas de manejo e delimitação dos espaços. Ao agir socialmente
nestes espaços contribuímos, às vezes sem notar, para a transformação daquele
contextoii. Nos tornamos protagonistas na produção de um espaço público sensível aos
moradores da cidade.
Falo aqui da política como propõe Jacques Rancièreiii, para quem o consenso “é na
verdade o esquecimento do modo de racionalidade próprio à política”(p.368). Para o
filósofo francês, o que primeiro caracteriza a racionalidade política não são os arranjos
pelos quais grupos e indivíduos fazem coexistir no mesmo plano seus interesses e
sentimentos. A essência da política é a oposição entre os diferentes “modos de ser” de
cada grupo social, a oposição entre “recortes do mundo sensível”. A razão política não é
a razão dos estados, nem a dos indivíduos ou grupos sociais com seus próprios
interesses. É a razão do dissenso, do “conflito sobre a constituição mesma do mundo
comum” (p.374). A fissura na ordem estabelecida e naturalizada de dominação, que
organiza os poderes, que gere as populações distribuindo lugares e funções como se
colocasse em prática o único processo de decisão possível e legítimo.
O espaço público habitado por diferentes grupos sociais, palco das relações e da
expressão de valores e anseios, através da arte, da festa, da manifestação, me parece ser
também o lugar do conflito, das discussões, argumentações e ações que anunciam outras
lógicas de ocupação do espaço da cidade, que clamam por reconhecimento ao mesmo
tempo em que se fazem reais.
Para estes lugares, espaços dos quais se apropriam afetivamente os moradores, talvez
faça mais sentido inverter a pergunta que serviu de título a este texto. Quem é do espaço
público? O que acontece quando os ocupamos com nossos corpos, ideias, atitudes e
sentimentos, nos fazendo parte deles? O que muda quando nos propomos a conhecer os
outros que também se sentem parte deste espaço público?
Ficam os questionamentos e o estímulo para que busquemos nos apropriar dos espaços
públicos que nos foram formalmente concedidos. Mais do que isso, que nos atrevamos a
construir lugares públicos que respondam às nossas expectativas de cidade.
Links que ajudam a pensar e agir:
http://www.conexaocultural.org/wp-content/uploads/2016/04/GuiaEspacoPublicoONLINE.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=JYL92YERklE
i
BELO HORIZONTE. LEI Nº 7.166, DE 27 DE AGOSTO DE 1996. Estabelece normas e
condições para parcelamento, ocupação e uso do solo urbano no município.
ii
APPADURAI, A. A Produção de Localidade. In. Dimensões Culturais da Globalização: a
modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 2004, p. 237-263.
iii
RANCIÈRE, Jacques. O Dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.) A crise da razão. 2 ed. São
Paulo: Companhia das Letras; Brasília/DF: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação
Nacional de Arte, 2006.
iv
VINTI, Mayana Silva. “À Mata do Planalto que se destine um único fim, ser, eternamente, a Mata
do Planalto” [manuscrito]: formas de produção da localidade em torno de uma área verde na cidade de
Belo Horizonte – MG. 204f. 2016. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.