PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte: a religião Vodum na antiga
Costa dos Escravos na África Ocidental. São Paulo: Companhia das /HWUDVS
P ara os interessados nos estudos cristianismo. Em outras palavras,
das culturas negras nas Américas, ele pretende trazer subsídios histo- vale a pena conhecer o novo livro riográficos para uma reflexão mais de Luis Nicolau Parés, que vai além aprofundada sobre as práticas as- do clássico debate afrocentrismo x sociadas aos voduns, tanto do lado crioulização, e aponta para a ideia africano quanto do brasileiro. O tí- de intercâmbio e criações atlânticos. tulo do livro decorre do argumento Parés, que é professor da UFBA, pu- central da obra: a relação entre os blicou há cerca de dez anos A forma- vivos e os mortos. Em outras pala- ção do candomblé: história e ritual vras, estuda-se aqui o pai e o rei, que da nação jeje na Bahia, pela Editora exerciam, respectivamente, a pater- da Unicamp, livro cujo reconheci- nidade biológica e social sobre os mento se evidencia no fato de ter filhos (vivos), relações de parentes- sido traduzido em inglês e francês. co e política mediadas pelo ances- Com O rei, o pai e a morte, Parés tral mítico, o tohuiyo. Assim como conduz a um elevado patamar os em outras sociedade africanas, os estudos dos cultos de possessão no mortos devem ser agradados, pois Brasil e suas origens na região afri- o mundo invisível que eles habitam cana onde predominam as línguas tem mais poder que o mundo visível do grupo gbe, que equivale, na sua dos vivos. maior extensão, à atual República Para escrever esse livro original, do Benim e o vizinho Togo. Parés lançou mão de rica historio- Neste livro Parés considera a grafia sobre a região africana dos importância da micropolítica reli- voduns, bem como utilizou fon- giosa na dinâmica interna da Costa tes escritas por viajantes europeus da Mina e também as influências e relatórios comerciais, além de externas da bacia Atlântica para a tradições orais, iconografia de di- reconstrução do universo religioso versos períodos, objetos da cultura dessa região e seus embates com o material e resultados de pesquisas
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arqueológicas. Para entender o pen- do contato com os europeus desde o samento dos “autores-viajantes” e o século XV, processo que se intensi- problema do eurocentrismo, o autor ficou com o crescimento do tráfico usa o método do cruzamento de dife- de escravos. No Brasil, maior con- rentes fontes e explora as biografias sumidor de escravos nas Américas, desses autores. Além disso, arrola é cada vez maior o interesse historio- conceitos e categorias religiosas uti- gráfico pela perspectiva que se con- lizados pelos viajantes que implica- vencionou chamar “história atlânti- ram diretamente no conhecimento ca”, nesse caso em torno da religião e produzido sobre o continente afri- da cultura de um modo mais amplo, cano desde o século XVI até a atu- um campo praticamente fundado alidade. Nesse sentido, termos como pela obra de Pierre Verger.1 diabo, idolatria, superstição e fetiche O livro tem sete capítulos, seis são analisados levando em conta os dos quais dedicados, em grande par- filtros culturais desses autores. Para te, ao entendimento das formas de o pesquisador, fetiche representou organização política e religiosa nos um conceito-chave da história inte- reinos de Aladá, Uidá e Daomé, lo- lectual europeia para compreender calizados na Costa da Mina, litoral a religiosidade africana. A noção de do golfo do Benim, na atual Repú- fetichismo seria fundamental para a blica do Benim. O sétimo capítulo formação de uma ideia equivocada traz os voduns até o Brasil. de África primitiva, selvagem e ahis- tórica, e esse discurso serviu de base 1 Pierre Verger, Notas sobre o culto aos orixás às teses do evolucionismo racial do e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na século XIX que justificaram a domi- África, São Paulo: Edusp, 1999; idem, Fluxo nação colonial, em última instância. e reÀuxo do trá¿co de escravos entre o golfo 2SHUtRGRDQDOLVDGRYDLGH do Benin e a Bahia de todos os Santos: sécu- a 1850. Contudo, em razão do uso lo XVII ao XIX6mR3DXOR&RUUXSLR Ver também, apenas a título de exemplo, de tradições orais e da etnografia ri- James H. Sweet, Domingos Álvares, African tual como fontes, o estudo na verda- Healing, and the Intellectual History of the de se estende ao século XX. Assim, Atlantic World, Chapel Hill: The University o trabalho compreende uma análise of North Carolina Press, 2011; João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus na perspectiva da longa duração, o J. M. de Carvalho, O alufá 5u¿no: trá¿co, que permite perceber rupturas e con- escravidão e liberdade no Atlântico negro tinuidades no culto aos voduns nos (c. 1833 - c. 1853), São Paulo: Companhia dois lados do Atlântico. das Letras, 2010; João José Reis, Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, Nicolau Parés faz parte do grupo liberdade e candomblé na Bahia do século de estudiosos que se dedicam à in- XIX, São Paulo: Companhia das Letras, vestigação das sociedades africanas 2008; e Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural como espaços atlânticos, as quais Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil During the Era of the Slave Trade, tiveram suas tradições culturais e Cambridge: Cambridge University Press, economia política alteradas a partir 2012.
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O autor notou que, na Costa da sacrifícios humanos. Chamadas de Mina, as relações dos filhos com o Costumes, o rei ostentava nestas pai se reproduzia por meio da auto- festas seu poder por meio dos tribu- ridade do rei e dos chefes de grupos tos e presentes coletados dos chefes familiares. Em Aladá e no Daomé o do reino e dos estrangeiros, e retri- culto aos ancestrais legitimava o po- buía os presentes recebidos. Essas der do rei, que se tornava uma espé- cerimônias aconteciam depois das cie de deus-rei. Ou seja, a ideologia guerras para capturar pessoas para da descendência era mediada pela o tráfico transatlântico de escravos, relação entre identidades coletivas cujo destino era principalmente o e práticas religiosas. Nas cerimônias Brasil. Para o autor, estas celebra- públicas ou cultos extradomésticos, ções representavam uma “economia o rei reproduzia em vida os rituais da ostentação”, pois a “dramaturgia funerários e o culto aos antepassa- do ritual do Estado cultivava o es- dos, os quais, obviamente, ganha- plendor do luxo e o excesso da fes- vam legitimidade política com a en- WD´S tronização ou confirmação do novo Este “teatro da dominação” é chefe. E isso envolvia mais do que a analisado a partir do campo religio- função sacerdotal, incluía, especial- so e ideológico, mais precisamente mente, a sacralização e deificação do ritual sin-kon, que consistia em do soberano ainda em vida. Prova regar com sangue as tumbas dos disso foram os suntuosos cultos da reis ou ancestrais reais. Os sacrifí- serpente e do leopardo, símbolos da cios humanos encerravam a festa. monarquia. As vítimas eram concebidas como O culto à píton Dangbe, em “mensageiras encarregadas de levar Uidá, introduzida no final da década ao mundo espiritual os recados e pe- GH WRUQRXVH LQVWLWXLomR TXH didos dos viventes” (p. 212), e tam- contribuiu para a formação de uma bém fortaleciam o poder do rei. Em- identidade nacional, de cunho supra- bora parecessem voluntárias, muitas familiar. Da mesma maneira, o culto pessoas não gostariam de ser sacri- ao leopardo Agassu, que se tornou o ficadas. O autor analisa o sacrifício maior vodum de todo o Daomé em a partir da economia do religioso; e razão da sua estreita relação com o desconstrói ideias simplistas em tor- rei, que era o próprio leopardo, tam- no do tema, visto pelos observadores bém foi elevado ao nível “nacional”. estrangeiros como exemplo de bar- Ou seja, ambos os cultos mostram bárie, ou, ao contrário, uma forma que o processo de centralização po- benigna de piedade religiosa. Para o lítica encontrou expressão nas práti- historiador havia uma relação direta cas religiosas. entre tráfico e sacrifícios; e o declí- Parés fez notável análise das nio do tráfico fez aumentar tanto as celebrações públicas em memória celebrações dos Costumes anuais, aos ancestrais reais, que recebiam quanto os sacrifícios às divindades,
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para que retornasse a prosperidade (p. 250) por pessoas próximas da decorrente do negócio negreiro. corte daomeana, hipótese do autor. O último capítulo do livro tra- Ele também apresenta documentos ta das criações e diálogos entre as históricos, tradições orais e entrevis- duas costas atlânticas em torno da tas que esclarecem sobre a data da religião dos voduns. O culto tohusu viagem transatlântica da famosa Ná Nesuhue é ponto emblemático desse Agotimé, a “mãe” do rei Guezo, que diálogo. Este culto envolve várias IRLYHQGLGDSDUDR%UDVLOHQWUH entidades espirituais associadas aos H H WHULD IXQGDGR D &DVD GD familiares dos reis do Daomé. Elas Mina do Maranhão (tese de Pierre eram divididas em três categorias: Verger). Nicolau ainda ressalta que a crianças mortas no período da ama- historicização desse culto no Brasil mentação; todos os demais defuntos; pode ajudar a compreender melhor e os tohosu — espíritos de príncipes as práticas rituais dos Costumes e nascidos com alguma anomalia. dos Nesuhue no Daomé (p. 255). Partindo de observações feitas Esse intercâmbio atlântico se ma- até o século XVIII, o autor analisa a terializou pelo fluxo e refluxo de pes- progressiva centralidade do comple- soas entre as duas costas do Atlânti- xo cosmológico e ritual dos tohosu co, a troca de ideias daí decorrente e, no culto Nesuhue, que no passado com epicentro na Bahia, evoluiu de era aristocrático e foi sendo paula- uma hegemonia jeje (dos gbe-falan- tinamente apropriado pelas famílias tes) para uma hegemonia nagô (dos “plebeias”. É difícil precisar o sur- iorubá-falantes), além de constituir gimento dos tohosu, bem como sua uma comunidade culturalmente "bra- procedência geográfica, mas é evi- sileira" na Costa da Mina. O autor su- dente a influência da região mahi gere os seguintes "momentos" desse e agonli no processo iniciático das processo: (1) grupos étnicos da Costa sacerdotisas do vodum, as vodunsi. da Mina pautaram suas instituições As iniciadas passavam por experi- religiosas a partir de um modelo con- ências como a morte ritual, chamada ventual trazido da região gbe para Yivodo, depois tornavam-se tobosi São Luiz do Maranhão e o Recôn- (mulher devota de Tobo) e finalmen- cavo da Bahia, cidade de Salvador te mahisi, e como tal faziam uso de incluída; (2) uma elite de sacerdotes língua ritual mahi por algum tempo. e comerciantes afro-atlânticos da Parés identificou sobrevivên- Bahia, que transitavam entre ambos cias do culto aos tohosu do Abomé os lados do Atlântico, desenvolveu no Brasil; e observou que, no Ma- a ideia de superioridade nagô; (3) ranhão, a atividade conventual das importantes sacerdotes afro-baianos vodunsi do culto Nesuhue tem sua também fizeram repetidas viagens a correspondência na Casa da Mina Lagos e levaram crianças para serem Querebetã de Zomadonu. Esta casa educadas segundo padrões da cultu- WHULDVLGRIXQGDGDSRUYROWDGH ra iorubá; e (4) o refluxo de pessoas,
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como os libertos retornados que saí- xo e dinâmico, que o autor sistemati- ram da Bahia para viver nas cidades zou sem empobrecê-lo; a relevância litorâneas da Costa da Mina, com dos cultos domésticos e públicos e mais intensidade após a Revolta dos suas interrelações; a importância Malês. dos ritos iniciáticos femininos como A comparação entre as duas cos- centrais para os cultos públicos; e as tas atlânticas não pretende servir de novas evidências de trocas atlânti- argumento à noção de que as tradi- cas que configuraram os cultos aos ções africanas no Brasil representa- voduns na Bahia e no Maranhão. vam simples réplicas. No contexto O livro tem alguns problemas do tráfico de escravos, foram neces- que não interferem na sua qualida- sárias reconfigurações e rupturas, ou de e contribuição para o estudo do recriações pautadas na dinâmica da Atlântico negro. O primeiro é sobre fragmentação (relação individual com o suposto “alto grau de tolerância as divindades) e agregação (recon- religiosa” (p. 39) do complexo cul- figuração dos panteões em famílias tural do vodum, conclusão discutí- rituais inclusivas e diversificadas) vel diante dos sacrifícios humanos (p. 354). Dois exemplos evidenciam involuntários, mesmo que se com- essas transformações: a iniciação de preenda a dimensão religiosa do devotos na África usava a lingua- ato; ou seja, através dos sacrifícios a gem da escravidão e no Brasil a da religião foi usada como instrumento busca pela liberdade. As coletivida- de opressão política, em geral sobre des na África constituídas em torno povos submetidos, e nesse sentido da família, do chefe e do rei foram entramos no campo da intolerância. no Brasil reconfiguradas para uma O mesmo pode ser dito sobre as se- genealogia familiar, num claro pa- veras punições a quem matasse uma ralelismo entre “dinastia do reino” e determinada espécie de serpente ou “dinastia espiritual do terreiro”, aqui um leopardo, considerados seres sa- em torno dos ancestrais da casa. No grados. campo das autoridades religiosas, O segundo problema é metodo- Parés mostra paralelismos e diferen- lógico, e diz respeito à longa perio- ças nas estruturas de poder presentes dização e o uso de dados contempo- em hábitos corporais e em gestuali- râneos para responder a questões do dades carregados de historicidade e passado remoto, o que abre margem memórias. a possíveis anacronismos, embora o As principais contribuições des- autor recomende cuidado metodoló- te livro são o trabalho minucioso gico com o uso da “etnografia ritual com as fontes produzidas por via- como subsídio histórico” (p. 42). jantes de diversas nacionalidades O terceiro problema, de menor para mostrar que, para além da ideia monta, tem a ver com o uso regu- homogênea de “fetiche” africano, lar do termo plebeia/plebeu para se havia um sistema religioso comple- referir à gente socialmente margina-
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OL]DGD±ahovi. Uma vez que existe página onde cada imagem se encon- uma palavra nas línguas dos povos tra, como se na hora de preparar a estudados, o vocábulo europeu po- última prova para a impressão do li- deria ser dispensado depois de uma vro ocorresse um deslizamento, em nota explicativa. geral de quatro páginas para a fren- O último problema é mais téc- te, o que passou desapercebido pela nico: a lista com os “créditos das editora. Felizmente, a lista de mapa, LPDJHQV´SSWUD]VLVWHPD- tabelas e figuras (p. 11) está com a ticamente, a referência incorreta da indicação correta das páginas. Vanicléia Silva Santos vanijacobina@gmail.com Universidade Federal de Minas Gerais