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AS VELHINHAS (A Victor Hugo)

velhas capitais, de ruas tortuosas


Onde tudo nos prende inclusive os horrores,
Espreito, obedecendo a caprichos fatais,
Seres estranhos, alquebrados, sedutores.

Foram mulheres, noutros tempos, esses monstros,


Eponina ou Laís! Coxos, desengonçados,
Uma flama inda têm, merecem nosso amor!
Sentindo frio em seus vestidos estragados,

Rastejam sob açoite inclemente dos ventos,


Se agitando ao rumor dos ônibus roufenhos,
Chegando ao peito como se fosse um relicário,
A bolsinha que tem complicados desenhos.

Trotando lá se vão, lembrando marionetes,


Se arrastam, parecendo uns animais feridos,
Ou dançam sem querer, esses pobres chocalhos
Onde um Demônio se escondeu. Mesmos abatidos.

A UMA PASSANTE

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;
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Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.


Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade


De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!


Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

EMBRIAGAI-VOS

É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para
não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é
preciso que vos embriagueis sem cessar.
Mas – de quê ? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto
que vos embriagueis.
E, se algumas vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a verde relva de um fosso,
na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou
desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o
que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala,
perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio,
hão de vos responder:
- É a hora de embriagar-se! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo,
embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como
achardes melhor.
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A ALMA DO VINHO

A alma do vinho assim cantava nas garrafas:

“Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,


Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!
Bem sei quanto custou, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,
Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À goela do homem que já trabalhou demais,
E seu peito abrasante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.
Não ouves retirar a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febris?
Cotovelos na mesa a manga arregaçada;
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:
Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e a cor
E serei para tão tenro atleta da vida
Como o óleo e os tendões enrija ao lutador.
Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno Semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!”
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A QUE ESTÁ SEMPRE ALEGRE

Teu ar, teu gesto, tua fronte


São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos


Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores


De tuas vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema


De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,


Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza


Da primavera ébria de cor,
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Ali castiguei numa flor


A insolência da Natureza.
Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,


Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,


Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!

SPLEEN
Quando o cinzento céu, como pesada tampa,
Carrega sobre nós, e nossa alma atormenta,
E a sua fria cor sobre a terra se estampa,
O dia transformado em noite pardacenta;

Quando se muda a terra em húmida enxovia


D'onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Foge, roçando ao muro a sua asa sombria,
Com a cabeça a dar no tecto apodrecido;
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Quando a chuva, caindo a cântaros, parece


D'uma prisão enorme os sinistros varões,
E em nossa mente em frebre a aranha fia e tece,
Com paciente labor, fantásticas visões,

- Ouve-se o bimbalhar dos sinos retumbantes,


Lançando para os céus um brado furibundo,
Como os doridos ais de espíritos errantes
Que a chorar e a carpir se arrastam pelo mundo.

O ALBATROZ
Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,


O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça


Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura


Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
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Exilado no chão, em meio à turba obscura,


As asas de gigante impedem-no de andar.

BAUDELAIRE POR ELE MESMO

Eu sou a faca e o talho atroz!


Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada;
Eu sou a vítima e o algoz!

Eu sou um vampiro a me esvair


– Um desses tais abandonados
Ao riso eterno condenados
E que não pode mais sorrir!
(O Heautontimoroumenos)

Jamais serão essas vinhetas decadentes,


Belezas pútridas de um século plebeu,
Nem borzeguins ou castanholas estridentes,
Que irão bastar a um coração igual ao meu.
(O Ideal)

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