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CAPÍTULO PRIMEIRO

— Bom... Mas você não disse que ia pescar tubarões?


— Disse.
— Nesse caso, que faz aqui?
— Não vou mais.
— Por quê?
— Porque tenho medo.
— Dos tubarões?
— Sim.
— E por que tem medo?.
— Porque são muito grandes.
— E por que são tão grandes?
— Porque comem muito.
— E por que comem tanto?
— Muito grandes.
— E lhe dão medo porque são muito grandes?
— Sim.
— E por que são tão grandes?
— Porque comem muito.
— E por que comem tanto?
— Porque são muito grandes.
Entre o público já começava a haver confusão com o
diálogo dos palhaços, no centro da arena. Os mais velhos
riam de má vontade, as crianças começavam a perder o fio
da conversa. Um dos palhaços usava uns sapatos enormes,
umas calças quadriculadas em que caberiam três homens;
tinha o rosto pintado de branco, vermelho e verde; na boca,
tremendamente aumentada pela pintura, havia um sorriso
pintado, um sorriso que se alargava de orelha a orelha, Com
a mão direita, como se fosse um fuzil, sustinha no ombro
um grosso e longuíssimo caniço de pesca, com o qual, ao
virar-se de um lado para outro, batia nas nucas dos outros
três palhaços, que lhe faziam caretas zombeteiras. Cada vez
que recebiam um golpe na nuca, os três palhaços caíam de
bruços, dando um salto grotesco que fazia a delícia das
crianças. Até que, por fim, aparentemente já cansado de
receber golpes, um dos palhaços fugiu da arena, dando
saltos descomunais, agitando no ar o enorme relógio que
pendia de um bolso de seu descomunal colete vermelho. O
dos sapatos gigantescos e a longa vara de pescar tinha nas
costas um cartel que lhe fora posto por um de seus
companheiros. Neste cartel, em letras muito grandes, lia-se
a palavra: BOBOCA,
— Assim sendo, já não vai pescar?
— Não.
— Porque os tubarões são muito grandes?
— Sim.
— E que importa que sejam tão grandes?
— É que me dão medo, quando são tão grandes.
— E por que são tão grandes?
— Porque comem muito,
— E por que comem tanto?
— Porque são muitos...
Da saída do picadeiro chegou então a voz do palhaço
que o abandonara segundos antes chamando docemente:
— Micheliiinooo...
O palhaço Michelino virou-se, fazendo sobrar fortes
varadas com o caniço de pesca, que atingiram as nucas dos
outros dois.
— Que quer você, Rufiiinooo...? — respondeu
alegremente.
— Trago-lhe uma coooisaaaa...
— Que coooisaaa...? — continuou cantarolando o
medroso Michelino,
Rufino apareceu novamente na arena e o público soltou
uma gargalhada ao ver em suas mãos outro caniço de pesca,
mas de um tamanho incrivelmente pequeno. Devia ter
apenas quinze ou vinte centímetros de comprimento, mas
estava equipado com um molinete, e da ponta da linha de
nylon pendia um enorme anzol, quase tão grande quanto o
caniço.
— Olhe! — exclamou Rufino, já no centro da arena. —
Trouxe-lhe este caniço de pescar peixes pequenos! Assim
você não terá medo!
Michelino pôs-se a dar saltos de alegria, gritando — “Ai,
ai, ai!” Depois declarou:
— Você é um bom amigo, Rufino! Com este caniço não
terei medo de ir pescar.
— Foi por isso que o trouxe. Você gosta de pescar?
— Gosto muito de pescar!
— Pois então comece.
— Aqui?
— Claro! E como o caniço é pequeno, você só pescará
peixes pequenos... Comece logo a pescar, Michelino!
— Sim, vou pescar aqui. Obrigado, Rufino: você é um
bom amigo. Quer que eu pesque?
— Naturalmente, Gostaria que você pescasse.
— Aqui?
— Claro! Vamos, lance o anzol!
— Vou lançar o anzoool...! — anunciou Michelino.
Moveu o diminuto caniço com perfeição e o anzol voou
até a entrada da arena, desaparecendo da vista dos
espectadores pela abertura de lona.
— Já estão mordendo, já estão mordendo a isca! —
gritou Michelino.
— Recolha a linha, recolha a linha...!
— Vou recolher a linha! Ouça, Rufino, você quer que eu
recolha a linha?
— Sim, homem, recolha a linha...
— Será um peixe pequeno. Como o caniço é pequeno...
Começou a enrolar rapidamente a linha no molinete... e
o público rebentou em imenso riso quando apareceu uma
enorme baleia de plástico na entrada do picadeiro. O grande
anzol tinha-se enganchado na boca da baleia, que se ia
aproximando cada vez mais de Michelino, o qual
continuava gritando que tinha mordido o anzol e que devia
ser um peixe muito pequeno... As crianças faziam imensa
algazarra, advertindo o “desprevenido” palhaço do perigo
que lhe vinha em cima, porém ele continuou recolhendo sua
linha, até que em meio aos risos e gritos de espanto da
meninada a baleia ficou diante dele, Neste momento ele
ergueu a cabeça e viu o gigantesco cetáceo, dando tal pulo
que seus vastos sapatos ficaram no chão, enquanto ele
gritava “Mamãaaae!” e fugia em disparada, entre as chufas
dos palhaços seus colegas e a gritaria do público...
Uma salva de palmas acolheu Michelino em sua volta ao
picadeiro, quando, já terminado o número, ele praticamente
tornou a meter-se dentro dos sapatos.
Já fora do picadeiro, na passagem que levava ao fundo
da grande carpa de lona, Michelino caminhava o mais
rapidamente que lhe permitiam os absurdos sapatos.
Alcançou a área onde estava instalado o acampamento:
Carros, reboques, caminhões, jaulas de feras... Por ali não
havia ninguém mas, ainda assim, pareceu que ele olhava
com desconfiança para todos os lados.
Não, Não havia ninguém
Somente as feras, os animais do circo e as “moradas” de
todos os que o compunham, Da carpa chegavam os rumores
do público, risos, aplausos...
Michelino aproximou-se da zona onde estavam os
animais, dirigindo-se à gaiola onde se via um grupo de
branquíssimas pombas. Tornou a olhar para todos os lados,
certificando-se de que continuava sozinho ali, e, novamente
convencido disto, abriu a gaiola e meteu-se dentro.
Escolheu cuidadosamente uma das pombas, apertou-a de
leve contra o peito, com a mão esquerda, e meteu a direita
num bolso, tirando um fecho metálico dentro do qual havia
um papel bem dobrado, que extraiu para examinar à luz que
chegava até ali. Sem dúvida, queria ter certeza de que se
tratava do papel devido, E assim devia ser, já que assentiu
com a cabeça ao lê-lo:
NEM SINAL DE “SHADOW” POR ENQUANTO, MAS
SEI QUE LOGO VIRÁ, JULGO QUE ESTOU EM
DIFICULDADES.

Nem assinatura, nem nada parecido. Adaptou o fecho à


patinha direita da pomba, deixou-a em seu poleiro e, após
olhar outra vez para todos os lados, saiu da gaiola. Passou
pela jaula dos leões, que o olharam impávidos, com sua
clássica indiferença, senhorial. Atravessou a esplanada e,
por fim, chegou a um dos reboques, que tinha a porta de
acesso na parte de trás, à qual se chegava por meio de
quatro degraus de madeira, que subiu depois de tirar os
sapatos. Entrou no reboque-residência, acendeu a luz e foi
sentar-se numa banqueta, diante do espelho que utilizava
para maquilar-se. Havia gotas de suor em sua testa, e
quando, ele apagou do rosto a metade daquele grande
sorriso que lhe ia de orelha a orelha o lado visível de sua
boca verdadeira revelava uma expressão dura, tensa.
Justamente quando, os dedos untados de creme para
desmaquilar, levantava a mão para fazer desaparecer o outro
meio sorriso de orelha a orelha, ouviu um leve ruído à sua
esquerda, e virou rapidamente a cabeça. Ao mesmo tempo,
a porta se abria e um homem entrava, olhos fixos nele. Um
olhar duro e frio... porém muito menos perigoso e
ameaçador que a pistola que ele empunhava.
— Jeb — murmurou Michelino —, que significa...?
Plop, plop, plop...
Michelino recebeu as três balas no peito. A Primeira
arrancou-o da banqueta e, quando ainda estava no ar,
recebeu a segunda, que o deixou sentado no chão do
reboque, apoiado de costas no sofá-cama; a terceira chegou-
lhe quando já não fazia falta.
O palhaço pescador de baleias ficou sentado com a
cabeça para trás, como descansando no assento do sofá.
Tinha os olhos abertos. No lado visível de sua boca
verdadeira havia um neto de angústia, uma crispação feroz.
No outro lado, continuava o grande sorriso de orelha a
orelha,
O assassino do palhaço apagou a luz, guardou a pistola
com silenciador e saiu do reboque, fechando-o com chave
pelo lado de fora. Até ali, muito atenuados, chegavam os
rumores do circo, as exclamações, os risos... Mas tudo isto
já não devia importar a Michelino, cujos olhos, que
começavam a vidrar-se, brilhavam na escuridão de sua
morada móvel,
Ao que parecia, o simpático palhaço tivera razão ao
dizer que estava em dificuldades.
***
A grande carpa tinha sido desmontada e tudo estava
sendo carregado nos caminhões, com exceção das jaulas das
feras, que seriam transportadas por estradas de ferro. Havia
uma grande agitação entre os componentes do “Great
Clown Circus”. Sempre era assim quando chegavam ou
partiam de algum lugar. Agora tinham que ir à procura de
outra localidade onde fazer as delícias de grandes e
pequenos.
De uma das janelas de sua magnífica morada-reboque,
Jebediah Richardson, diretor do circo, contemplava a
atividade reinante na grande esplanada. Parecia pensativo.
Por fim, voltou para os quatro pigmeus, que o
contemplavam em silêncio, Eram três homens e uma
mulher, nenhum dos quais chegava a medir um metro,
— Bem... — disse Richardson, — Suponho que vocês
tenham tomado os cuidados que o caso requeria. Oscar,
Um dos nanicos assentiu com a cabeça. Devia ter
quarenta anos e, evidentemente, era o maior dos quatro,
embora por muito pouca margem. Muito sérios, aqueles
miúdos personagens pareciam ao mesmo tempo grotescos e
inquietantes.
— Nós o enterramos bem, Jeb — respondeu Oscar. —
Nunca o encontrarão,
— Assim o espero.
— Devemos pensar no reboque de Michelino — disse
outro dos anões,
Richardson olhou-o com indiferença. Já estava
acostumado com a presença daqueles minúsculos seres:
Oscar, Pete, Mike e Lulu. Bom, assim se faziam chamar,
pelo menos. Mas quem saberia seus verdadeiros nomes?
Enfim, isso não importava.
— O caso está resolvido, Mike, Rufino compartilhava o
reboque com Michelino e nele continuará. Não vamos fazer
nada. Mas se alguém perguntar por Michelino, seja onde
for, diremos apenas que desapareceu.
— Coisas da área... — sorriu Lulu. — Ele viu alguém
depois da função?
— Não. Creio que esperava ver, entretanto, Esteve por
trás das jaulas dos animais, porém sé uns segundos. Não
havia pessoa alguma lá. Suponho que por isso se viu
perdido e foi remover a maquilagem... Certamente pretendia
escapar.
— Talvez nos tenhamos enganado com ele sugeriu Pete,
— Talvez. Mas não creio, Agora está bem morto,
— Pena — sorriu Lulu: — era um palhaço bem
engraçado.
— Logo descobriremos outros, Sempre há palhaços à
procura de trabalho e não duvido que encontremos um para
ocupar o posto de Michelino. Isso não me preocupa. E a
propósito de novos elementos, recebi um telegrama há
poucos minutos.
— De alguém que quer trabalhar conosco?
— Justamente. Trata-se nem mais nem menos que de
Madame Raquel.
— À pitonisa? Onde está?
— Em Nova Iorque. Virá ao nosso encontro em
Paterson,
— Ah... Então, definitivamente, não iremos à Nova
Iorque ainda?
— Recebi instruções para trabalhar uns dias em
Paterson, portanto é onde esperaremos por “Shadow”, Já
enviei um telegrama a Madame Raquel dizendo-lhe que a
esperamos lá,
— Tenho vontade de conhecê-la — disse Lulu. —
Veremos se merece a fama que tem.
— Na Europa não há nada melhor — Jebediah
Richardson encolheu os ombros —, mas ninguém sabe se
agradará nos Estados Unidos. De qualquer modo, quando
recebi sua oferta, pensei que não perderíamos nada por
experimentar. Uma cigana francesa que, além de pitonisa,
certamente despertará curiosidade entre os americanos, Por
via das dúvidas, o contrato é de apenas quatro semanas, por
enquanto. Se ela encaixar no circo, nós o prorrogaremos. Se
não, ela voltará para a Europa.
— Todo o mundo gosta que lhe adivinhem o passado e,
sobretudo, o futuro — riu Mike,
— Creio que serei o primeiro consulente de Madame
Raquel.
— Pois se ela descobrir o seu passado, você está frito —
disse Lulu,
Todos riram, Richardson olhou o relógio e carregou o
cenho,
— Estamos nos atrasando... Paterson é perto daqui, mas
se não nos apressarmos a carpa não estará montada esta
noite, Será melhor que todos ajudemos.
— Não sabe do que “Shadow” nos encarregará, esta
vez? — perguntou Oscar,
— Não. E não pense nisso. Quando chegar o momento,
você saberá.
Saíram todos do reboque e os quatro pigmeus se
afastaram, dispostos a colaborar nos trabalhos de desmonte.
Jebediah Richardson olhou a seu redor, até fixar os olhos
num negro de proporções colossais, que estava ajudando a
carregar um caminhão. Media um metro e noventa e sua
musculatura estava além de toda descrição, Era um super-
homem de ébano, real. mente. Tinha a cabeça raspada e
dava a impressão de que inclusive nela havia músculos
incríveis.
— Absalon! — chamou Richardson.
O negro virou a cabeça, sorriu, acabou de colocar um
enorme volume no caminhão e veio até o diretor do circo,
sacudindo as mãos, que pareciam raquetas de tênis,
— Que é, Jeb? — perguntou.
— Ajudou Omar “O Magnífico” a carregar tudo?
— Ajudei. Omar já seguiu. Certamente chegará antes de
nós.
— Está bem. Vá com os “ratinhos” e ajude-os. Os dois
caminhões que se arranjem sozinhos.
— Estava carregando meus pesos e as correntes,
— Pois acabe de carregar seu equipamento e vá ajudá-
los. Eu irei ver Clotilde.
— Bem.
Separaram-se, Richardson pata um reboque que parecia
pronto para partir. Subiu a escadinha e entrou, Havia uma
mulher de costas para a porta, acabando de dobrar o beliche
e fixá-lo à parede do reboque. Ela virou-se ao ouvido e
sorriu... por entre sua densa barba negra.
— Olá, Jeb — saudou,
— Olá, Como está hoje?
— Bem. O médico que você me mandou ontem era bom.
Estou curada. Devo ter comido demais no jantar.
— Já aprontou tudo?
— Já.
— Alegro-me por não ter que prescindir esta noite da
Mulher Barbada. É coisa indispensável num circo,
Um véu de tristeza pareceu nublar momentaneamente os
escuros olhos de Clotilde González, a barbuda venezuelana,
— Eu sei — murmurou.
Richardson olhou-a, Era uma lástima, pois Clotilde não
deixava de agradar... até que se lhe via a barba, Alta,
esbelta, bonitos olhos, bonita boca. Passou-lhe um braço
pelos ombros, amistosamente.
— Já deveria estar resignada, Clo, depois das vezes que
tentou depilar-se. Sua barba sempre torna a aparecer, de
modo que o melhor lugar para você é este: um circo. Aqui
ninguém se impressiona e todos são seus amigos.
— Eu sei, Jeb.
Ele bateu-lhe nas costas,
— Partiremos dentro de quinze minutos, Até logo.
Saiu do reboque e, mal pusera os pés em terra, ouviu
uma voz feminina que o chamava. Sorriu ao ver a bela
jovem aproximando-se. Sua cabeleira loura brilhava ao sol,
Já de longe, viam-se seus maravilhosos olhos azuis. Tinha
nos róseos lábios uma expressão de aborrecimento.
— Que há, Carol? — interessou-se amavelmente
Richardson.
— Continuou sem poder encontrar Michelino, Jeb.
— Bem... Já lhe disse que talvez tenha ido embora. Você
sabe como é gente de circo. Todos temos um parafuso de
menos, Possivelmente ele cansou-se de pescar baleias e
partiu. Rufino deu uma busca no reboque que
compartilhavam e disse que suas coisas estão faltando,
Esqueça.o. Se lhe der na telha, voltará por aqui.
Carol, a linda amestradora de cavalos brancos, cães e
pombas, mordeu os lábios, antes de murmurar:
— Sou uma tola... Pareceu-me que Michelino e eu...
— Você caiu por ele depressa demais — sorriu
Richardson, compreensivo. — Compreendo que lhe
agradasse, pois é um tipo formidável, mas já viu o que
aconteceu. De qualquer modo, talvez tenha sido melhor
para você,
— Por que motivo?
— Olhe: Michelino chegou ao circo duas semanas antes
de você e aqui já tinha três namoradas, Até Clotilde
suspirava por ele. Tendo em vista a boa harmonia entre nós,
quase me alegro que ele tenha ido embora. Acredite, garota:
o melhor que você faz é esquecê-lo. E, mudando de assunto,
sua pomba já voltou?
— Não. Penso que não a devia ter aceitado de
Michelino, mas comecei a gostar dele justamente quando
me deu aquela pomba... embora não lhe consiga ensinar
nada,
— Esqueça-a também, Uma pomba é simplesmente uma
pomba. Ela também devia estar farta de tudo isto. For isso,
ontem, quando você as soltou todas na arena, deve ter
olhado para cima, visto a saída e resolvido voar por sua
própria conta, E, se você quer saber de uma coisa, acho que
deve fazer o mesmo. Bem: pronta para partir?
— Iremos sem Michelino então?
Richardson soltou uru grunhido.
— Se você quiser vir conosco, sabe muito bem onde
encontrar-nos. Já estamos atrasados; portanto... em marcha.
Quero a carpa montada esta noite em Paterson. Ande, vá
reunir-se com suas pombas, Você deveria deixar que as
levassem de irem, Carol.
— Prefiro que viajem comigo. Ocupam pouco lugar...
Até logo, jeb.
— Até logo. Veja se pode ajudar alguém. Se não nos
apressarmos, perderemos a função desta noite em Paterson.
Apresse todo o mundo...

CAPÍTULO SEGUNDO

Omar “O Magnífico” entrou no reboque de Jebediah


Richardson com um grande ar teatral.
— Está tudo pronto, Jeb — anunciou.
Richardson olhou.o e assentiu com a cabeça. Omar era
um homem alto, forte, de longos cabelos e bigodes em
ponta, que cofiava continuamente. Muito cônscio do seu
papel de domador de feras, quando falava com pessoas
usava um tom seco, cortante, autoritário, como se ninguém
tivesse nenhuma importância.
— Muito bem, Omar. Então, o circo está montado em
Paterson. Alguma dificuldade?
— Nenhuma. Tudo como sempre. Ah... Chegou a bruxa.
Indicamos onde devia estacionar seu reboque: em frente à
entrada da carpa. E já se instalou lá. Você deveria ver o tal
reboque...
— Está se referindo a Madame Raquel? —sorriu
Richardson. — É uma pitonisa, Omar.
— Dá no mesmo. Parece que ela fez vir o seu reboque
de navio, desde o Havre. E creio que seja capaz de
adivinhar o pensamento, Jeb.
— Mas por que você a chama de bruxa, homem?
— Porque parece bruxa, Não a viu ainda?
— Não, Mas tenho fotos que ela me enviou quando se
ofereceu para trabalhar conosco — Richardson tirou do
fichário embutido na parede algumas fotografias, que foi
passando lentamente, com Omar a seu lado. — Bom, não é
exatamente uma beldade, mas daí a chamá-la de bruxa...
Omar “O Magnífico” olhava as fotos com as
sobrancelhas contraídas. Via-se nelas, em diversas poses,
uma mulher que devia ter sessenta anos. Um rosto tenso,
seco, com numerosas rugas; uma boca apertada, quase
desprovida de lábios; um nariz reto, forte, grande, que tinha
o agravante de ostentar duas feias e enormes verrugas. Em
algumas das fotos, aquela mulher usava na cabeça um lenço
de pintas, cobrindo os ásperos cabelos cinzentos, que se
viam cm outras. Testa ampla, orelhas que pareciam ceder ao
peso de grandes argolas de ouro pendentes dos lóbulos. Para
cúmulo, o olho direito apresentava-se branco, com um
ponto cinza-azulado no centro. O outro olho era normal, até
certo ponto: grande, fixo, obsessivo, reluzente, sinistro,
— Uma bruxa caolha... — definiu Omar. — E asseguro-
lhe que estas fotos estão algo retocadas. É mais asquerosa
ao natural,
— Realmente — hesitou Richardson — não recordava
bem. Mas não importa: quanto mais misteriosa e sinistra
parecer, mais público terá. E, pelo menos eu, não penso
casar-me com ela. Quanto a você, não sei — pilheriou.
Omar “O Magnífico” estremeceu.
— Antes meteria a cabeça dentro da beca de “Fúria”
num de seus maus momentos... — afirmou. — Digo à bruxa
que venha vê-lo?
— Não, irei apresentar-lhe as boas-vindas. Quero vê-la
em seu próprio ambiente... Faltam duas horas para a função
da noite, portanto teremos muito tempo para tudo. Quer
ocupar-se dos mínimos detalhes?
— Bom. Tome cuidado com ela, Jeb.
— Tomarei, homem — riu o diretor do circo. — Não
creio que vá me devorar,
Saiu do reboque, ainda rindo, e dirigiu-se para onde
Omar lhe havia dito que Madame Raquel se instalara com
seu reboque.
Jebediah Richardson subiu até a porta, bateu e, como
não obtivesse resposta, após hesitar um instante, entrou.
Ficou como cravado no limiar. Pareceu-lhe estar pouco
menos que numa gruta que se podia encher de morcegos a
qualquer momento. Olhou para o fundo, calculando que lá
Madame Raquel devia ter seu gabinete particular. Mas, o
que importava e impressionava era aquela parte do reboque,
onde, sem dúvida a pitonisa recebia seus clientes,
Arrepiante.
As paredes davam a impressão de ser de pedra. Num
lugar do teto, pendiam quatro ou cinco morcegos, cabeça
para baixo, claro que dissecados. Em outro, havia uma
gigantesca coruja empalhada, com os olhos redondos e
hipnóticos olhando em todas as direções. E, o mais
importante, uma bola de cristal. A clássica e inevitável bola
de cristal onde Madame Raquel devia ver o passado e o
futuro de seus consulentes,
Por fim, Jebediah Richardson sorriu, sem muita vontade,
e olhou para o fundo da bem decorada gruta, onde se via
pequena porta que devia comunicar a morada propriamente
dita da “bruxa”,
— Madame Raquel? — chamou,
A porta se abriu poucos segundos depois e apareceu a
mulher. A primeira coisa que nela se notava, de um modo
quase agressivo, eram as verrugas de seu nariz e o olho
branco, cego, com aquele ponto azulado que olhava por
dentro, rum grotesco estrabismo. O outro olho, grande e
fixo, destacava-se fortemente no rosto seco, como couro.
Madame Raquel não usava naquele momento seu lenço de
cabeça, pelo que ele podia ver sua cabeleira áspera e
cinzenta, como estopa. Vestia-se de negro, até os pés, e seu
corpo parecia uma vara seca, como queimada.
— Madame Raquel, sou...
Ela fez um gesto imperioso com as longas mãos ossudas
e Richardson emudeceu. A pitonisa foi sentar-se em sua
cadeira, diante da mesa, indicando-lhe a outra. Após
pestanejar, o diretor do circo sorriu e sentou-se diante dela,
que o fixou com seu único olho são, terrível, inquisitivo.
Começou a passar as mãos por cima da bola de cristal e,
para assombro de Richardson, dentro de poucos segundos,
foi como se a bola se iluminasse, nela começando a
aparecer uma imagem. Embora estivesse ao contrário com
relação a imagem, ele pôde reconhecê-la perfeitamente: era
toda a esplanada onde estava instalado o circo, imagem que,
ocupando quase toda a bola de cristal, ia-se deslocando,
passando de uma instalação a outra, da carpa às jaulas das
feras aos reboques.
— Madame Raquel dá-lhe as boas-vindas, mister
Richardson — disse de súbito a pitonisa, com uma voz
rangente. — E felicita-o pelo acerto com que está dirigindo
o circo.
— Eu ainda não disse quem sou — sorriu Jebediah.
— Não é necessário, Madame Raquel sabe tudo. Tudo: o
passado, o presente, o futuro... Tudo,
— O fato de saber meu nome não constitui uma grande
demonstração — tomou a sorrir Richardson. Apareci
demasiadas vezes em revistas e jornais, Madame Raquel.
Por outro lado, não vim aqui para que tente convencer-me...
— Psit! Há aqui alguma coisa que os jornais não dizem,
mister Richardson — a imagem do circo desapareceu da
bola e, em seu lugar, surgiram outras, confusas, como
sombras, que Richardson não pôde distinguir. — O senhor
nasceu há quarenta e quatro anos, em Clarendon, Arkansas.
Seu pai também se chamava Jebediah. Sua mãe Agatha.
Teve dois irmãos. Um deles, o mais velho, chamava-se
Jonah, como seu avô paterno e foi morto durante a guerra
em... Guadalcanal, sim. O segundo irmão, que se chamava
Harry, como seu avô materno, também perdeu a vida
lutando em... na Coréia. O senhor também esteve lá, mas
conseguiu voltar. Esteve casado... duas vezes. Seu primeiro
casamento foi aos vinte e dois anos, com... Marietta Stoll,
de origem alemã. Depois de divorciar-se, o que aconteceu
muito cedo, casou-se aos vinte e cinco com Guadalupe
Sanesteban, uma formosa mexicana que faleceu ao dar à luz
seu primeiro filho, o qual faleceu também, Desde então, não
houve mulheres de um modo oficial em sua vida. Durante
alguns anos, foi um aventureiro que viajou por todo o
mundo, adquirindo cultura e uma grande habilidade para
lidar com pessoas. Há seis anos, ingressou no “Great Clown
Circus” como trapezista... Como “base” de um trio
denominado “Os Pássaros Brancos”. Esse trio dissolveu-
se... Um falecimento. Sim, uma morte...
— Acho que já chega — arquejou Richardson.
Madame Raquel olhou-o. Ele estava lívido, boca
crispada e suas mãos apoiavam-se com força na mesa,
A pitonisa tornou a perscrutar aquelas indecifráveis
imagens em sua bola de cristal, inclinou a cabeça e
continuou falando:
— Morreu a principal figura do trio de trapezistas. Um
excelente rapaz, que ia casar com a jovem que completava o
trio. Ela se chamava Ninette Folvet. Era francesa. Esteve a
ponto de suicidar-se quando o noivo perdeu a vida por
causa de um... defeito do trapézio. O senhor foi um grande
consolo para ela, mas não conseguiu que ficasse a seu lado.
Ninette um belo dia desapareceu e o senhor, sem partner
para suas atuações no trapézio, dedicou todos seus esforços
para conseguir a direção do “Great Clown Circus”.
— Está bem, Madame — murmurou Richardson, um
pouco mais sereno agora. — Isso é fácil averiguar
rebuscando coisas passadas. Alegra-me constatar que é uma
profissional competente. Sua “clarividência” assombrará
nossos clientes,
— Posso ler o presente e o futuro, mister Richardson.
— Ora, vamos... Comigo não precisa perder seu...
— Madame Raquel nunca perde seu tempo. Diga-me:
acaso voltou ao trapézio?
— Claro que não,
— Pois não compreendo... Vejo em minha bola uma
situação perigosa em sua vida, Vejo outra morte.... Um
globo colorido... Não: uma barraca de praia... Tampouco é
algo cheio de cores, em quadros... Poderiam ser umas
calças, mas são demasiado grandes... Uma morte, um
grande sorriso... É uma situação perigosa. O senhor está
fazendo algo perigoso. Mas não vejo o que possa ser, não
consigo clarear as imagens. Vejo uma cidade enorme. Nova
Iorque ou Chicago. Há uma morte, em enterro estranho...
— Não continue — disse Richardson, voz crispada.
Madame Raquel tornou a olhá-lo, testa franzida,
— Teme seu presente, mister Richardson?
— Eu não temo nada, Madame, Mas tenho muitas coisas
que fazer antes da função, portanto, já que vim
cumprimentá-la e nos ficamos conhecendo...
— Sim, eu fiquei conhecendo-o, mas não o senhor a
mim, Não quer conhecer seu futuro?
— Creio que já chega de tolices, Madame,
— Tolices? Então... devo entender que realmente não
acredita em meus poderes?
— Sua atitude é absurda. Olhe, temos um contrato e se
for convincente com o publico, terei muito prazer em
prorrogá-lo indefinidamente. Mas basta de truques comigo.
— Truques? Vejamos seu futuro...
— Não preciso que me diga meu futuro — cortou
secamente Jebediah.
— Mas eu quero conhecê-lo, mister Richardson. Oh...
Isto é incrível, espantoso... Sim, sim, está bem claro... Sinto
muito, mister Richardson! Mas... Sim! Parece que ainda
está em tempo de salvar-se.
— Salvar-me... de quê?
— O perigo aumenta em seu futuro. É muito mais grave
que no passado e no presente... Um futuro aterrador. Vejo a
morte em seus olhos. Mas há uma possibilidade de evitá-la,
Uma possibilidade muito remota e que exigiria do senhor
uma mudança total de... atividades, sinceridade para com
um grupo de pessoas... Não sei quem são, mas poderiam
ajudá-lo. Deve aceitar essa ajuda, caso contrário uma morte
horrível o espera. Perto... Muito perto...
Jebediah Richardson levantou-se quase violentamente,
mais pálido que antes.
— Basta! — exclamou.
Madame Raquel ergueu a cabeça, olhou.o e seu único
olho tinha uma expressão entre amável e irônica. A bola se
apagou, mas, simultaneamente, a coruja empalhada emitiu
um grasnido que o fez saltar, rosto desfigurado. Quando
olhou novamente para Madame Raquel, esta segurava uma
piteira entre os dedos e sorria de um modo que lhe pareceu
cordial,
— Tem um cigarro, mister Richardson?
— Hã?
— Um cigarro. Que está sentindo? Impressionou-se com
meus pequenos truques? Vamos, vamos... — riu, — Sente-
se e convide-me para fumar. Meus cigarros se acabaram
durante o trajeto de Nova Iorque até aqui. A propósito, não
foi muito amável: nem sequer pergunto-me se fiz boa
viagem.
Richardson sentou-se e ofereceu-lhe um cigarro, que ela
colocou na piteira. Fez então estalar dois dedos e de um
deles brotou uma pequena chama, com a qual acendeu o
cigarro. Tornou a rir ao ver a estupefação do diretor do
circo.
— Um pequeno truque de magia, que sem dúvida já viu
antes, mister Richardson. Ou não?
— Sim... Sim, claro. Bem, Madame — acabou sorrindo
Richardson —, devo admitir que me impressionou
profundamente. Felicito-a: não é muito fácil impressionar-
me.
— Eu sabia. Por isso, preparei-lhe esta digna recepção.
Mas não se assuste: como compreenderá, todas as minhas
predições são...
— Falsas? — riu Jeb.
— Bom... Eu creio que é falsa uma coisa que nunca
pode ocorrer ou que nunca ocorreu. Mas sobre o futuro
pode-se fazer um milhão de predições que não há por que
definir como falsas, Tudo pode acontecer na vida, não é
certo?
— Sem dúvida, Mas não foi amável comigo, Madame
Raquel. Podia ter-me augurado um futuro mais risonho, não
acha?
— Oh, nesse caso não o teria impressionado. Para mim,
tudo é pura rotina e um tanto de psicologia, mister
Richardson. Cada pessoa tem umas... tendências mentais
determinadas. Eu olho as pessoas nos olhos, depois o fundo
de sua mente e vaticino o que sei que pode impressioná-las
mais. É simples. Espero que não esteja esquecendo que
Madame Raquel é considerada a mais infalível pitonisa da
Europa. Minhas atuações tiveram lugar nos melhores locais
de Paris, Londres, Berlim, Madri, Viena... E não
mencionarei os personagens ilustres que me consulta...
ram... particularmente. O senhor ficaria assombrado.
— Já estou assombrado — admitiu Richardson. —
Francamente, Madame, esperava uma velha cigana de
pouca inteligência, um tanto grossa e convencida de que
realmente era uma pitonisa.
— Que tolice! — riu Madame Raquel. — Sou uma
pessoa culta. Nem sequer sou cigana, compreende? Mas
deve reconhecer que se me vestisse de um modo normal,
recorresse aos serviços de um cirurgião plástico e colocasse
um olho de vidro, meus lucros não seriam os mesmos. E por
falar nisso, mister Richardson, devo dizer-lhe que o salário
que me ofereceu não me, parece muito generoso.
— Creio que lhe pago bem — protestou ele,
— Não muito, Estipulei meu salário semanal baseando-
me no custo de vida francês e receio que o dos Estados
Unidos seja bastante mais elevado. Cinqüenta dólares a
mais por semana nivelaria um pouco esta diferença.
— Pensarei a respeito — sorriu Richardson. — Além do
que, se suas atuações forem tão boas como a de hoje, não
verei inconveniente em aumentar-lhe o salário. Diga-me,
Madame Raquel: tomo funciona tudo isto?
Fez um gesto circular e a pitonisa, sorrindo de um modo
desagradável, encolheu os ombros.
— Um sistema de microfones, fitas magnéticas,
pequenos truques eletrônicos etc... Quanto à minha
prodigiosa bola de cristal, não é mais que uma tela de
televisão que mostra algumas imagens já preparadas, ou
tudo o que rodeia meu reboque. Tenho apenas que acionar
uns controles dispostos a meus pés. Naturalmente terá
compreendido que disponho em minha roulotte1 de um

1
Roulotte = francês = carro de ciganos
circuito fechado de televisão. São instalações muito caras,
mister Richardson.
— Acredito. Tudo admirável: a velha magia combinada
com os mais atualizados recursos da eletrônica. Perfeito,
Madame. Bem... Espero que esteja contente entre nós.
— Sempre estou bem em toda parte. Tomaria uma
xícara de café, monsieur? Asseguro-lhe que não colocarei
nela nenhuma de minhas poções mágicas.
Francês — carro es ciganos.
Richardson pôs-se a rir e a pitonisa foi buscar o café. Ao
abrir a pequena porta do fundo da gruta, ela deixou-o ver
algo completamente diverso do cenário onde recebia seus
consulentes.
— Suponho que toma bastante cuidado para que seus
clientes não vejam isto — sorriu Richardson.
— Sem dúvida. Somente eu posso abrir esta porta. Ao
menos que se utilizem métodos violentos, naturalmente.
Pouco depois, tendo ainda na boca o gosto do excelente
café que tomara, Jeb Richardson abandonava a roulotte de
Madame Raquel, satisfeitíssimo. Estava certo de que fizera
uma sensacional aquisição para o “Great Clown Circus”.
Entretanto, no fundo de sua mente, eram formuladas
perguntas a que não podia responder. E sentia uma certa
perplexidade, uma inquietude, que ignorava a que atribuir.
A verdade era que, no intimo, ele se perguntava se Madame
não era muito mais adivinha do que ela própria acreditava.
***
Outro palhaço tinha ocupado o lugar do infeliz
Michelino, de modo que o publico podia rir com as
aventuras do medroso pescados de tubarões que acabava
pescando uma baleia. Os “ratinhos” apareceram em seguida,
com suas sensacionais proezas acrobáticas. E veio o
hercúleo Absalon, que começou a dobrar barras de ferro,
levantar enormes pesos... Seguir-se-ia a atuação de Omar
“O Magnífico” com seus ferozes leões e tigres. Finalmente,
como o grande número do espetáculo, iriam apresentar-se
os fabulosos “The Jats”, autênticas águias do trapézio.
Por ser a noite da estréia, o circo apanhara tão boa
lotação que grande parte do público que afluiu ficou sem
lugar. Alguns voltaram à cidade, outros preferiram ficar na
feira externa, atirando ao alvo e aproveitando todos os
recursos que ofereciam as barraquinhas coloridas. Diante do
reboque de Madame Raquel já se aglomerava uma multidão
esperando atendimento por parte da famosa pitonisa.
Por sua parte, Richardson, que percorria constantemente
todas as instalações do circo, estava mais satisfeito por
haver contratado Madame Raquel. Calculava que pelo
menos quinze pessoas já tinham entrado para consultá-la, o
que, a uma média de cinco dólares per capita, perfazia um
total de setenta e cinco. Tendo-se em conta as que ainda iam
entrar e as que chegariam depois, a renda do reboque
vermelho prometia ser bastante satisfatória.
Estava olhando o simpático individuo trajado
esportivamente e com uma bolsa de ginásio na mão, que
encabeçava a fila para ser “adivinhado” por Madame,
quando se deu conta de que a pessoa colocada atrás dele
estava fazendo sinais com um braço... Olhou-a e ficou
estupefato ao reconhecê-la. Os sinais de saudação eram
dirigidos a ele, que por sua vez moveu um braço, num gesto
de chamada. Então, a lourinha de olhos azuis veio ao seu
encontro, sorrindo timidamente.
— Que faz na fila, Carol? — intrigou-se Richardson.
— Quero conhecer alguns detalhes de meu futuro.
— Está brincando? Não pode perder seu tempo assim,
querida.
— Já fiz meu número, Jeb. Por que não posso vir
consultar Madame Raquel?
— Bom... Claro que pode. Mas eu a apresentei a todos
vocês antes da função e imaginava que tivessem
compreendido que toda sua magia...
— Não perco nada, Jeb.
— Bem... Como queria. Naturalmente também nós
temos o direito de divertir-nos, mas surpreende-me que
pense fazê-lo com a pitonisa. Não seria melhor que se
entretivesse com seus cães e cavalos?
— Cuidarei deles mais tarde. Oh, o atleta vai entrar,
Jeb... Agora será a minha vez. Volto para a fila.
— Você poderia esperar que ela terminasse e, então,
pedir-lhe particularmente...
— Assim eu não me divertiria — riu Carol, a bela
domadora.
— Está bem... riu finalmente o diretor do circo. — Só
espero que Madame Raquel não pense que você quer
zombar dela, querida. Volte para a fila. O atleta não tardará
muito a sair...
***
— Sente-se — disse Madame Raquel.
O atlético visitante sorriu, sentou-se diante dela e
colocou a bolsa sobre a mesa;
— Peço-lhe que adivinhe tudo a meu respeito — disse
em russo.
— Não é possível adivinhar tudo — replicou pitonisa,
também em russo. — Mas farei o possível para satisfazê-lo
em parte. Há algo que lhe interesse de modo especial?
— Bem, eu gostaria de saber se...
— Eu sei — interrompeu-o Madame, — Quer saber se
alguém o está vigiando. Vejamos...
Passou as mãos por cima da bola e esta se iluminou ao
aparecer a imagem, que foi passando, abrangendo tudo em
trono do reboque. A imagem deteve-se um instante quando
captou Jebediah Richardson e Carol Sand.
— E então? — insistiu o atleta.
— Parece que ninguém o vigia. Entretanto, Richardson
está aí fora, com a amestradora de cavalos brancos. Uma
linda jovem... Não. Eu digo que ninguém o vigia. E isso é
muito conveniente, dada sua profissão, cavalheiro.
— Sabe qual é minha profissão?
— Naturalmente.
— Qual é?
— Agente secreto.
— Fantástico... — riu o atleta. — De fato, sou espião.
Espião profissional e dos bons, não desses improvisados.
Que mais vê?
— Vejo... uma pistola! E vejo... muitos mortos. Também
vejo uma sombra...
— “Shadow” em inglês? — perguntou o visitante.
— Sim: “Shadow”. Esse é o nome. Uma sombra... que
tem que ser de um homem. Um homem que também tem
que ser... um erro. Um espião inimigo. Inimigo seu e dos
seus. “Shadow” é desconhecido para todos, exceto para...
Richardson. Sim. O dono... Não, não é dono; é somente o
diretor do circo, que pertence a vários homens, Richardson
é a única pessoa que conhece “Shadow”, o espião. Tudo o
que você e os seus sabem é que “Shadow” esteve várias
vezes no circo... neste circo. E que sempre deu
determinadas ordens a Jebediah Richardson.
— Que espécie de ordens?
— Ordens de assassinatos. Assassinatos de pessoas
importantes na esfera política. Sim... “Shadow” visita o
circo, fala com Richardson e manda que ele mate alguém.
Mas não creio que seja Richardson a mão executora,
embora sempre que se cometa um desses assassinatos seja
perto do “Great Clown Circos”. Não... Ele, por sua vez,
manda que alguém execute o assassínio. Por isso, para
evitar mais assassinatos, você e os seus querem localizar
“Shadow” e matá-lo. Morto ele, tudo estará terminado
— Nem tudo — murmurou o atleta. — Pelo menos, não
creio.
— Vejamos... Sim: tem razão, já que “Shadow” por sua
vez, está trabalhando para alguém... Para um país, não sei
qual.
— Pois deveria sabê-lo, já que é pitonisa.
— Saberei... Asseguro-lhe que saberei, meu jovem
amigo. Mais tarde ou mais cedo, encontrarei o modo de
sabê-lo. Saberei que país paga a “Shadow”, quem é
“Shadow” e o que se propõem ele e o país que lhe paga para
assassinar políticos de diversas nacionalidades... inclusive
alguns russos.
— Bem, confio em seus poderes, Madame. E gostaria de
saber se também posso confiar em que me dirá, em outra
ocasião, quem é “Shadow”, onde está e quem lhe paga.
— Minha bola mágica decidirá isso. Sua consulta é
muito importante. Espero que tenha ficado satisfeito.
— Não de todo, ainda.
— Pois não lhe posso dizer nada mais. São dez dólares.
— Dez dólares? Parece-me um pouco caro!
— O preço de Madame Raquel nunca é excessivo,
jovem espião. E para demonstrar isto, vou prestar-lhe ainda
outro serviço: não volte por aqui nunca mais. São dez
dólares.
— Receio que não tenha tanto dinheiro comigo,
Madame. Mas podemos fazer uma aposta: se adivinhar o
que contém esta bolsa, eu lhe pagarei vinte dólares amanhã
mesmo; se não adivinhar, a minha consulta será grátis.
Aceita?
— Sua bolsa esportiva... Bem. Vejo dentro umas caixas
de papelão que contêm... contem... duas câmaras
automáticas de televisão.
— Assombroso!
Ele abriu a bolsa, tirou duas caixas e, de uma delas, uma
pequena câmara de televisão, que deixou sobre a mesa. A
pitonisa tomou-a, examinando-a rapidamente, depois
examinou a segunda câmara... que escondeu juntamente
com a outra debaixo da mesa, onde ficaram cobertas pelo
longo e espesso pano negro.
— Bem, Madame, a entrevista terminou. Até outra.
— Não. Não haverá outra, meu jovem amigo. E melhor
que não volte mais aqui. Se vocês quiserem saber algo mais
a respeito de meus grandes poderes, será melhor que me
enviem outro espião...
— Tão mau será meu futuro se eu voltar aqui? — sorriu
ele,
— Nunca se sabe... Mais vale prevenir. Por outro lado,
há coisas como a morte, que não tem remédio. Desejo-lhe
uma feliz viagem de regresso. Dosvidana.
— Dosvidana — murmurou o atleta, despedindo-se.
Meteu uma pedra dentro de cada caixa, guardou-as na
bolsa, olhou hesitante para a pitonisa e, por fim, não muito
convencido, abandonou o reboque.
Quase em seguida, entrou a bonita lourinha de olhos
azuis.
— Aconteceu alguma coisa, querida? — perguntou com
voz normal, sem efeitos dramáticos nem asperezas, em
inglês.
— Não, Madame. Vim como cliente.
— Como cliente... Vejamos, menina: você é Carol Sand,
a garota dos cavalos e cãezinhos ensinados, não é assim?
Mister Richardson apresentou-nos antes da função e,
embora tendo somente um olho, pude vê-la muito bem.
— Realmente, Madame. Somos companheiras de
trabalho.
— É muito agradável ouvir isso — sorriu sinistramente a
pitonisa. — Muito agradável, querida menina. Sabe que tem
lindos olhos? Tão grandes, tão azuis...
— É muito amável comigo, Madame. Diga-me: e certo
que pode ver o passado e o futuro?
— E o presente. Qual dos três lhe interessa mais?
Carol Sand passou a língua pelos lábios, que sentia um
pouco secos. Realmente, estar ali encerrada com a pitonisa,
cujas feias verrugas se destacavam no grande nariz recurvo,
não era coisa agradável. Porém o mais pavoroso era aquele
olho escuro, brilhante, que parecia um punhal capaz de
atravessá-la completamente.
— Gostaria de saber onde está Michelino e por que se
foi... Michelino é...
— Espere. Você disse Michelino e é suficiente — a bola
iluminou-se uma vez mais e começaram a aparecer imagens
confusas. — Sim... já sei quem é Michelino: um palhaço.
Um engraçado e simpático palhaço... Mas isso na arena.
Fora dela, e um rapaz elegante, amável... Alguém ama
Michelino, o pescador... Sim, Michelino é pescador...
— Não, não. Esse era um número que ele fazia...
— Gostava de pescar, eu sei, querida menina.
— Eu gosto. Ele...
— Esperei Vejo uma pomba branca... Michelino tem
uma pomba branca na mão, depois ele se vai e a pomba
branca também...
— Mas Madame, tudo isso já sei. O que quero saber é sê
pode dizer-me onde ele está agora.
— Compreendo. Você veio aqui sem nenhuma fé em
meus poderes, dizendo a si mesma que não perdia nada...
Quem sabe? Talvez, no mínimo, tenha pensado que talvez
Madame Raquel tivesse um pequeno poder e pudesse dizer-
lhe onde está Michelino. Pois bem: você não perdeu nada.
Mas não vai gostar de saber onde está Michelino, querida
menina.
Carol parecia impressionada, mas, ao mesmo tempo,
olhava com certa desconfiança expectante para a pitonisa.
— Por que não vou gostar de saber onde ele está?
— Vejo terra. E o vejo... morto. Sim, vejo terra e
morte...
— Não... não compreendo, Madame.
— Pois não lhe posso dizer mais. E agora, retire-se. Há
clientes esperando e mister Richardson se zangará comigo
se me fizer perder demasiado tempo. Adeus. Carol.
A garota levantou-se.
— Quis dizer-me que Michelino está morto e enterrado?
— Quis dizer-lhe somente o que disse. E só posso
acrescentar que nunca mais tornará a vê-lo. Esqueça-o.
Ouça o que lhe digo: esqueça-o para sempre. E agora... que
entre o seguinte.

CAPÍTULO TERCEIRO

Havia luzes na esplanada onde fora instalado o circo,


entretanto; poucas luzes. Suficientes para que ninguém
tivesse que caminhar às escuras em caso de necessidade.
Como, por exemplo, o daquela pessoa que deslizava entre
jaulas e veículos, com o sigilo e a agilidade de um dos
felinos que, imperturbáveis, a contemplavam.
Apenas uma sombra.
Uma sombra vestida de negro, de movimentos tão
rápidos, que chegou a excitar “Fúria”, o maior, o mais
poderoso e velho dos leões, que emitiu um surdo rugido e
levantou-se, aproximando-se das grades da jaula.
A sombra virou-se para a jaula, houve um instante a
visão fugaz de uns dentes perfeitos e uma delicada mão
enluvada de negro adiantou-se até aqueles dentes,
colocando um dedo diante deles.
A sombra feminina agachou-se, justamente perto da
gaiola das pombas, que estavam acordadas, muito inquietas
e arrulhavam nervosamente: quando o leão ruge, a selva
treme. Algum dos cavalos brancos da loura Carol nitriu,
também inquieto... E a mulher de negro, em sua fina malha
que punha em relevo uma plástica escultural, ficou imóvel
contendo inclusive a respiração. Pendente de um de seus
ombros, uma pequena bolsa, também de tecido negro. Na
mão direita, uma pistola de tamanho reduzido. Mas logo foi
esta novamente colocada no fecho especial do largo cinto
que lhe rodeava a cintura. Após leve hesitação, ela
reencetou a marcha, sempre em silêncio, sempre invisível...
como se fosse um felino em liberdade. Uma gata, talvez.
Mais provavelmente, uma pantera negra.
Então, a mulher-sombra trepou na árvore, como se na
verdade tivesse garras para cravar em seu tronco. Escalou
os galhos mais altos e, de lá, tomou a olhar para o reboque
mais próximo. Depois abriu a bolsa e sacou um objeto
metálico, brilhante, e um pedaço de fio de nylon, com o
qual atou o objeto brilhante a um dos galhos,
cuidadosamente.
Feito isto, desceu da árvore, rodeou o reboque e
aproximou-se da grande carpa de lona, agora vazia,
silenciosa. Esteve uns minutos agachada, olhando para o
alto da carpa, onde balançava suavemente a bandeira do
circo. Acabou movendo a cabeça negativamente e, ato
contínuo, deslizou até a base da enorme tenda de lona.
Levantou-a e entrou. Apareceu na passagem circular, atrás
das filas de assentos elevados que se destinavam ao público.
Passou por entre eles, inclinando-se, até chegar a um ponto
do picadeiro, justamente onde estava a corda pela qual
Ferenc Rasovic, a principal figura de “The Jets”, subia a
pulso até o primeiro escalão dos trapézios.
A mulher-sombra segurou com as mãos enluvadas a
grossa corda e começou a subir por ela, rapidamente, de um
modo capaz de fazer inveja ao próprio Ferenc. Seus braços
finos e flexíveis pareciam possuir a força de Absalon, o
negro que dobrava barras de ferro e partia correntes.
Chegou ao primeiro escalão do trapézio, de onde se
efetuavam as saídas para as acrobacias de menor
importância. Dali, pela escadinha de corda com travessas
metálicas, subiu ao último escalão, no qual estava
enganchado o grande trapézio de onde Ferenc efetuava o
triplo salto mortal.
Ela tirou o gancho, segurou com ambas as mãos o
trapézio e lançou-se no espaço, tomando impulso com
impetuosos movimentos do corpo. O trapézio começou a
balançar, cada vez com mais força, mais força, mais força...
A cada oscilação, aproximava-se mais do redondo orifício
central da grande carpa de lona. Até que, finalmente, a
audaciosa trapezista compreendeu que não o podia fazer
subir mais. Olhou o orifício, as cordas que ali havia, os
cabos tensores, o mastro encimado pela bandeira, já além da
lona. Enquanto balançava no silêncio, solidão e densa
penumbra do grande circo, efetuou uma relaxação dos
ombros. O trapézio subiu outra vez, outra, outra... Já não
subiria mais. A mulher respirou fundo, tomou o último
impulso e, quando o trapézio estava o mais próximo
possível do orifício central, soltou-se, impulsionando-se
para cima, numa acrobacia inverossímil, inaudita, que teria
feito desmaiar todo o público circense que a tivesse
presenciado.
Sua mão direita errou o cabo, a esquerda falhou em seu
intento de agarrar uma das cordas... Em seguida, as duas se
fecharam freneticamente na borda de lona do orifício... e a
mulher ficou pendente daquele frágil sustentáculo, a quase
trinta metros de altura, sem rede, sem público, sem luzes.
Uma flexão foi suficiente para que o belo e esbelto
corpo feminino passasse com folga pelo orifício, até ficar
precariamente sentada na borda. Dali, a seu redor, tudo era
um gigantesco e aberto tobogã até o solo.
Prendeu bem as pernas, tirou da bolsa outro objeto como
o anterior e começou a atá-lo, também com fio de nylon, ao
mastro central da carpa. Gastou nisso quase cinco minutos,
pois teve que se certificar de que o mecanismo de rotação ia
funcionar bem. Uma vez amarrado o objeto ao mastro,
olhou em torno de si e, após sorrir ironicamente, soltou-se,
deslizando com suave zunido pela lona, em posição sentada,
para o solo. Um pouco antes de chegar a este, flexionou as
pernas e, ao chegar, tomou forte impulso com elas. Foi
arremessada para longe da carpa, num salto de
extraordinária extensão, pouco menos que voando. Caiu de
pé, deu duas cambalhotas pelo chão e novamente ficou em
pé, testa molhada de suor, busto um tanto agitado.
Ouviu a exclamação às suas costas. Virou-se, levando a
mão direita à pistolinha presa ao cinto... e foi neste
momento que a grande massa negra caiu sobre ela,
arquejante, rugindo umas palavras quase inteligíveis:
— Está segura! Não se mova, senão lhe quebro as
coste...!
Com superior rapidez de reflexos, a mulher levantou um
joelho, golpeando o baixo-ventre do gigantesco negro, com
tal força que ele lançou um gemido em vez de acabar a
frase. E a pressão de seus formidáveis braços relaxou-se por
uma fração de segundo... que foi suficiente para que ela,
agachando-se, conseguisse libertar-se. Endireitou-se
rapidamente, defrontando-se com Absalon, que arregalou os
olhos ao ver aquele rosto pintado de preto, no qual se
destacavam uns olhos brilhantes, muito belos.
A mão direita da mulher moveu-se com a velocidade de
um raio, golpeando-o em pleno plexo solar, com um
impacto que teria partido meia dúzia de tijolos colocados
em pilha. Mas o negro acusou o golpe, enquanto
recuperava-se velozmente do golpe baixo que recebera.
Ergueu uma das manoplas e descarregou um golpe à cabeça
da mulher... Ela desapareceu de tão mortal trajetória,
agarrou-lhe o pulso com ambas as mãos e passou rápida
para trás dele, imprimindo a seu braço uma rotação que
devia obrigá-lo a dar uma volta no ar para cair de costas.
Mas Absalon contraiu os músculos do braço e resistiu à
chave de judô, que teria fraturado o de qualquer homem
normal. Depois, sacudiu o braço para cima e para frente,
fazendo a inimiga voar autenticamente para um montão de
caixas a vários metros de distância. Bateu com a cabeça
numa delas, rolou e ficou sentada no chão. Sacudiu a
cabeça, viu o negro iniciando um movimento de ataque e
sua mão voltou à pistolinha. Mas ao mesmo tempo em que
compreendia a dificuldade de deter aquele colosso com as
pequenas balas de sua pistola, sua outra mão caiu sobre um
objeto duro e frio. Os dedos enluvados crisparam-se naquele
objeto e levantaram-no: uma barra de ferro. Uma alavanca
para abrir caixotes...
Absalon chegou, como um tufão, quando ela já estava de
pé, como disposta a enfrentá-lo. Mas ó que fez foi afastar-se
quando ele quase a tocava, fazendo-o ir de encontro ao
montão de caixas e derrubá-lo com grande estrondo.
Num dos reboques acendeu-se uma luz. De mais longe,
chegou uma voz, que foi abafada por novo rugido de
“Fúria” agora em surdina.
O gigante negro revolveu-se entre os caixotes, pôs-se de
joelhos, levantou a cabeça... e viu baixar sobre ele a barra
de ferro, manejada por aquelas pequenas mãos enluvadas.
Soltando um grito, esquivou-se o quanto pôde, de modo que
a barra o golpeou num ombro. Ouviu-se um estalido
arrepiante e o berro do negro, que pareceu ainda mais forte
que o rugido do leão. Sob o tremendo golpe, seus joelhos
afundaram na terra... A barra desceu novamente e, com
outro berro terrível, que fez vibrar as vidraças do reboque,
Absalon ainda conseguiu pôr-se de pé. E certamente isso foi
o pior para ele.
Esta vez, a barra de ferro, atingiu-o no ventre,
afundando-o como se fosse a superfície de um globo. Ele
emitiu agora um gemido entrecortado e tomou a cair de
joelhos, lançando um golpe para frente. Só que a mulher
escultural já não estava diante dele, mas a seu lado, quase às
suas costas, levantando outra vez a barra, que desceu em
cheio sobre seus rins, derrubando-o de bruços. Ainda quis
erguer-se, mas a barra de ferro entrou novamente em
função, abatendo-o, ao que parece, definitivamente.
Ouviam-se já numerosas vozes, tinham-se acendido mais
luzes e nas portas. de alguns reboques apareciam pessoas
em roupa de dormir, perguntando aos gritos o que ocorria.
A mulher atirou a barra de ferro à cabeça de Absalon,
falhando por duas polegadas, fez meia volta e pôs-se a
correr para as jaulas. Lá, “Fúria” e os outros leões,
secundados pelos tigres, pareciam ter enlouquecido e
metiam as afiadas garras por entre as grades, rugindo com
tal força que tudo parecia estremecer a ponto de derrubar-
se.
— Eu os ensinarei... — ameaçou a voz de Omar “O
Magnífico”, que saiu do seu reboque em pijama,
empunhando um chicote.
A mulher esteve uns segundos ajoelhada bem junto às
garras de “Fúria”.
— Foi para as jaulas! — ouviu-se gritar crispadamente
Absalon. — Para as jaulas!
A mulher de negro, a gata que escalava árvores, a
acrobata que executava proezas malditas fora da rotina dos
ases do trapézio, a audaz vencedora do hérculeo Absalon,
meteu-se sob a jaula dos leões, de gatinhas, para reaparecer
perto do circulo dos reboques, deslizando para um deles.
Tinham-se acendido ainda mais luzes e até brilhavam
algumas lanternas...
— Há alguém ali! — gritou uma voz. — Perto do
reboque da pitonisa!
Tal uma matilha, praticamente todos os elementos do
“Great Clown Circus” correram para lá, precedidos pelas
luzes de suas lanternas e brandindo armas improvisadas, até
mesmo alguns revólveres, Os “Ratinhos”, na última fila,
davam toda a velocidade que podiam a suas curtas pernas,
fazendo gestos cômicos, absurdos. Por um instante, vários
dos improvisados caçadores viram aquela sombra negra
mergulhar sob o reboque de Madame Raquel. Depois, já
não viram nada, mas o objetivo tinha sido localizado.
— Que não escape pelo outro lado! — gritou alguém. —
Está debaixo do reboque de Madame Raquel!
A roulotte foi rapidamente cercada, mas quando as luzes
das lanternas a iluminaram por baixo, não havia ninguém
ali.
— Escapou! Procurem bem, pois não pode estar longe!
— Que é isso? — perguntou outro, metendo-se debaixo
do reboque.
— É um sapato... Um mocassim.
Em cima, na janela da parte dianteira da roulotte, ouviu-
se a áspera voz da pitonisa:
— Que está acontecendo aqui? — protestava ela,
irritadamente. — Não vamos poder dormir? Afaste essa luz,
que vai me deixar cega...!
A luz de uma lanterna a tinha alcançado em cheio,
porém ela se afastou da janela, imprecando em francês,
raivosamente, com as mais feias palavras do vocabulário de
Marselha.
Jebediah Richardson chegou, em pijama, revolver na
mão, rosto alarmado.
— Que foi? — gritou. — Que aconteceu?
Começaram a falar todos ao mesmo tempo, embora
ninguém soubesse nada de nada.
Absalon chegou ao grupo, apoiando-se nos ombros de
Ferenc Rasovic e de seu companheiro aerealista Bruno
Nazzari, o base. Atrás deles chegava, agitada, Valeria
Santis, como reforçando a marcha de seus companheiros de
trapézio. Mas atrás, os animais pareciam ter-se tomado
loucos em suas jaulas e ouvia-se a possante voz de Omar “O
Magnífico” gritando com eles, enquanto suas chicotadas
ressoavam contra as grades das jaulas.
— Omar! — gritou Richardson. — Chega! Essa não é a
maneira de acalmar os animais! Você é seu domador, não
seu carrasco!
Deixaram de ouvir-se as chicotadas, os animais
acalmaram-se um pouco e Richardson pôde prestar atenção
ao que tinham posto em suas mãos.
— Um mocassim... — murmurou. — E muito pequeno
para pertencer a um homem.
— Era uma mulher... — arquejou Absalon. — Eu a vi,
Jeb.
— Você a viu? Por que não a deteve?
— Porque não era uma mulher...!
Todos começaram a protestar, pois não entendiam o
negro. Richardson ergueu ambas as mãos, pedindo silêncio.
A Mulher Barbada chegava naquele momento, dando
tropeções, pelo braço de Carol Sand, a bonita amestradora
de cavalos brancos.
— Que... que foi? — tartamudeou a barbuda Clotilde.
— Está bêbada — murmurou Carol. — Ela saiu de seu
reboque quase caindo de cabeça, Jeb.
— É um modo como outro qualquer de afogar suas
mágoas — replicou algo violentamente Richardson. —
Leve-a de volta e cuide dela, Carol.
— Não posso, Jeb. Eu... eu tomei uns comprimidos para
dormir e mal consigo ficar em pé. Estava pensando coisas
de Michelino, o sono não vinha e tomei os -comprimidos...
Não sei como pude acordar. Embora com tanto barulho...
— Está bem, chega — resmungou Richardson. — Vá
dormir. E o melhor que todos podem fazer. Valeria, você
pode cuidar de Clotilde esta noite?
— Claro que sim, Jeb.
— Pois o faça. Os outros, que voltem aos seus reboques.
Não vamos conseguir nada aqui... Você.... Absalon, venha
comigo. E você, Oscar, vá dizer ao Omar que quero vê-lo
em meu reboque. Vamos, vamos... — dirigiu-se aos outros.
— Fosse quem fosse, já escapou.
Todos obedeceram a Richardson. Pouco depois, no
reboque deste, reuniam-se Absalon, Omar “O Magnífico” e
os quatro anões. Omar, que fora o último a vir, indagou:
— Então, era uma mulher?
— Absalon diz que sim... mas que não era uma mulher
— replicou Richardson.
— Como diabo vamos entender isso? — grunhiu Omar.
— Era um demônio, Omar. Ela me teria liquidado, com
a barra de ferro, se o pessoal não tivesse vindo de seus
reboques.
— Este mocassim é dela — mostrou o diretor do circo.
Omar tomou-o e esteve uns segundos examinando-o
com curiosidade.
— Bem... Não sei. Parece de mulher, claro...
— Era uma mulher! — gritou Absalon. — Eu a vi muito
bem!
— Nesse caso, descreva-a... Nós a conhecemos?
— É que... afinal, eu não a vi tão bem assim...
— Quer explicar-se de uma vez, maldito? —irritou-Se
Omar.
— Eu estava dormindo, mas vocês sabem que tenho o
sono muito leve... Ouvi “Fúria” e acordei. Sentia calor e
resolvi sair para dar uma volta. Estava perto da carpa
quando, de repente, ela caiu do céu, perto de mim... Era
uma mulher e avancei nela... A diaba teria me matado com
a barra de ferro se...!
— Já sabemos isso. Você está nos dizendo que uma
mulher o venceu, Absalon? — deslizou ironicamente a
diminuta Lulu.
— É que... não era uma mulher... como as mulheres
são...
— Tinha vinte braços? —. riu o não menos diminuto
Pete.
— Não... Tinha dois, mas...
Os pigmeus e Omar puseram-se a rir, mas Richardson
interrompeu a hilaridade com um gesto.
— Não gosto disso... — murmurou. — Uma mulher
capaz de vencer Absalon, tenha dois braços ou vinte, não é
coisa comum. Quero dizer que não pode ser uma ladra
vulgar, que- vem cometer possíveis furtos num circo.
— Que quer dizer com isso? — empalideceu Omar.
— Não sei... Nem eu mesmo tenho certeza. Mas vocês
sabem muito bem que nós sete estamos metidos em
assuntos perigosos...
— Acha você que essa mulher tenha alguma coisa a ver
com “Shadow”?
— Não sei... Mas seria razoável que andássemos com
muito cuidado. Ontem tive que matar Michelino quando
terminou seu número, pois o surpreendi escutando no
reboque dos “ratinhos” quando eles estavam lá dentro...
Tinha que eliminá-lo o quanto antes e assim fiz, mas... Se
essa mulher é amiga de Michelino, terá vindo procurá-lo,
saber notícias dele.
— Se Michelino era um espião, ela também deve ser.
— Claro.
Guardaram todos um silêncio sombrio, até que Omar
murmurou:
— Isso não vai agradar a “Shadow”, Jeb. Nem um
pouco... Se estão de olho em nós, já não lhe podemos servir
de grande coisa.
— Penso que foi apenas uma ladra — alvitrou Lulu.
— Não... — negou Richardson. — Não creio. Seria
demasiado coincidência. Essa mulher veio à procura de
Michelino. Tem que ser uma espiã... E de categoria, para ser
capaz de livrar-se de Absalon. Não nos enganemos: estamos
numa enrascada.
— E como sairemos dela? — a voz de Oscar soou tensa.
— Não tenho a menor idéia. Vamos esperar “Shadow”...
Ele virá amanhã ou depois. Naturalmente encontrará uma
solução para nosso problema. Enquanto isso não devemos
perder a calma. Voltem para a cama.
Eram quase dez horas da manhã quando Madame
Raquel, que estava preparando sua primeira refeição, ficou
imóvel na parte traseira de seu reboque. Dois ou três
segundos depois, aproximava-se de uma das janelas e,
justamente quando levantava seu olho maligno para o céu,
chegou-lhe a primeira voz de aviso:
— O helicóptero! — gritou alguém. — Avisem o Jeb
que o helicóptero está chegando! Já o consertaram...
Jebediah Richardson apareceu em seguida. Também
apareceram Omar “O Magnífico”, os “ratinhos” e Absalon,
que tinha o braço esquerdo pendente do pescoço por um
lenço de ramagens. Por fim, o helicóptero pousou e dele
desceu uru homem vestido com um macacão branco. Esteve
uns segundos falando com o diretor do circo, vez por outra
indicando o aparelho, Por fim, Richardson assinou um papel
e o homem do macacão branco se foi, a pé, enquanto aquele
subia ao helicóptero, aparentemente disposto a examiná-lo.
Pouco depois saltava ao solo e dava ordens a vários dos
presentes que se puseram a empurrar o aparelho para um
lado da esplanada., fazendo-o deslizar pela relva.
Madame Raquel esteve ainda um instante à sua janela,
olho fixo no helicóptero. Finalmente, virou-se e reiniciou o
preparo de seu tardio desjejum.
Pelo meio-dia, estava sentada fora do reboque,
apanhando sol e deitando cartas sobre uma mesinha por ela
mesma ali instalada, indiferente às brincadeiras de alguns de
seus companheiros, que lhe pediam augúrios sobre o futuro.
As gargalhadas foram colossais quando Mike, um dos
anões, perguntou-lhe quanto tempo levaria para crescer
alguns centímetros.
— Estão rindo demais — replicou asperamente a
pitonisa. — E rir nem sempre é bom. Não lhes queria dizer,
mas fiquem sabendo: a vários de vocês logo ocorrerá uma
desgraça.
Houve uns segundos de silêncio, até que Mike, tentando
disfarçar sua impressão, perguntou:
— A quem, por exemplo?
— A vários.
— Sim, sim, mas... quem?
Madame Raquel tornou a olhar a seu redor, o terrível
olho são, o branco e cego arrepiante.
— A quem tiver algo de que se arrepender —
murmurou. — Esses e não outros serão os receptores da
negra desgraça que está se aproximando.
Novamente houve um silêncio. Esta vez rompeu-o
Clotilde Gonzáles, a Mulher Barbada, em cujo rosto
notavam-se claramente vestígios da bebedeira da véspera.
— Não lhe façam caso. Nós sabemos que tudo isso são
truques para o público.
A pitonisa olhou-a fixamente.
— Não acredita em Madame Raquel? — perguntou.
— Nem eu nem ninguém aqui! — riu Clotilde.
— Ora, vamos, Madame, deixe de tolices... Estamos
apenas brincando com a senhora.
— Eu não brinco nunca e o que disse está dito.
— Se tem realmente poderes — riu Valeria de Santis,
enxugando o suor com uma toalha —, por que não dá um
remédio a Clotilde para que sua barba desapareça?
A pergunta aliviou um pouco a tensão e até provocou
alguns novos risos. Madame Raquel olhou outra vez para a
barbuda e fez-lhe sinal para que se aproximasse mais.
Clotilde obedeceu e inclinou-se para ela, mas recuou de
salto quando uma das mãos aduncas agarrou-lhe a barba,
iniciando um puxão que não chegou a completar-se.
— Que está fazendo? — gritou Clotilde. — Quer
machucar-me?
— Só queria tocar sua barba, para saber como nasce.
Talvez eu possa ajudá-la.
— Não diga tolices! Esta barba é para sempre!
— Que perde você experimentando? — riu Ferenc
Rasovic. — Eu deixaria que ela me tocasse a barba,
Clotilde.
— Pois eu não ! Já estou farta de que todos queiram
puxá-la!
Soltou um palavrão, fez meia volta e afastou-se do
grupo. Naquele momento .chegava Richardson, que após
olhar indagador para a Mulher Barbada, interessou-se pelo
que ocorria ali.
— Nossa pitonisa particular aborreceu Clotilde — riu
Lulu. — Embora mais pareça que ela se tenha aborrecido
sozinha. Não gosta de ser barbada.
— Deixem de atormentá-la. Todos sabemos que não há
má intenção nessas brincadeiras, mas Clotilde atravessa um
período difícil. Por isso embriagou-se a noite passada.
— Ninguém quis atormentá-la — protestou Valeria.
— Eu sei — sorriu amavelmente Richardson.
— E ela também sabe. Mas seu estado de ânimo não é
bom. De acordo?
— Está bem — murmurou Valeria, consternada. —
Vamos procurá-la, Lulu? Podemos fazer-lhe um pouco de
companhia.
— Muito boa sua arrecadação de ontem, Madame.
— Claro. Conheço bem meu oficio. A respeito daqueles
cinqüenta dólares a mais por semana...
— Conte com eles, se seu público não diminuir.
Mmmm... Estiveram a aborrecê-la, Madame? Refiro-me ao
pessoal do circo...
— A pitonisa olhou-o assombrada. Súbito pôs-se a rir
agudamente.
— Tranqüilize-se, mister Richardson: ninguém pode
aborrecer-me. Conheço a atitude dos incrédulos. E minha
velha pele já está muito dura e coriácea para que me afetem
as brincadeiras. Além disso, acho meus companheiros
bastante simpáticos, em sua maioria.
— Estimo que pense assim.
— Vi chegar o helicóptero... Temos algum número com
esse aparelho?
— Não, não... Na verdade, é um veículo particular,
embora tenha as cores e o nome do circo.
— Veículo particular? — pareceu não entender a
pitonisa.
— De minha propriedade. Costumo utilizá-lo na procura
de cidades onde atuar. De início, saía um pouco caro,
certamente, mas a economia de tempo que representa
acabou por compensar.
— Compreendo. Vejo que é um homem inteligente. Que
aconteceu esta noite? Tenho bom sono, mas com tanta
agitação...
— Parece que tivemos a visita de uma ladra. Nada de
importante. Afinal, não há muito o que roubar num circo.
— Talvez uma das feras — sugeriu Madame Raquel.
Richardson olhou-a estupefato; depois, assombrado. Por
fim, pôs-se a rir, divertidíssimo.
— Ótima resposta, Madame! — exclamou. — E muito
própria do fino humor francês...
— Jeb! — ouviu-se a voz de Valeria. — Venha cá!
Os dois olharam e viram Valeria à entrada do reboque de
Carol Sand, a bonita amestradora de cavalos brancos,
fazendo gestos.
— É agradável sua conversa, madame. Depois nos
veremos, Com licença...
— Até logo, monsieur.
Esteve a olhá-lo de soslaio, enquanto ele se afastava.
Viu-o entrar no reboque de Carol Sand e sair poucos
minutos depois. Ele parecia hesitante e dirigiu-se em
seguida ao seu próprio reboque, fazendo sinais a Omar “O
Magnífico”, que, ajudado por Absalon, consertava alguma
coisa na jaula dos deles. Finalmente, viu os três entrando no
reboque de Richardson. Continuou lançando suas cartas.
***
— Que há — perguntou Omar.
O diretor do circo sentou-se e os dois o imitaram.
— Carol tomou a tomar comprimidos para dormir,
depois da vinda de nossa visitante, e não está bem.
Felizmente, parece que não será nada... Mostra-se apenas
muito deprimida.
— Por quê?
— Parece que fez uma visita à pitonisa... Eu a vi.
Quando saiu, estava normal. Mas depois começou a pensar
no que Madame Raquel lhe havia dito e, como não podia
dormir, pôs-se a tomar comprimidos.
— Que lhe disse a bruxa? — perguntou Omar.
— Carol está amodorrada, mas creio ter compreendido
bem suas palavras. Segundo entendo, Madame Raquel
disse-lhe para esquecer completamente Michelino e parece
ter-lhe sugerido que ele estava morto e enterrado.
Omar e Absalon trocaram um rápido olhar, o primeiro
um tanto perturbado.
— Como pode ela saber isso? — crispou-se a voz do
domador de feras.
— Não sei, Omar. Também entendi que Madame Raquel
fez alusão à pomba de Carol, que tinha fugido. Uma
desgraça, já que tal pomba fora um presente que Michelino
lhe fizera.
Os outros tornaram a olhar-se, desconcertados.
— Não compreendo... — murmurou por fim Absalon.
— Que tem a ver uma coisa com outra? Que há com você,
Jeb?
Jebediah Richardson estava bastante pálido. Passou a
língua pelos lábios, antes de murmurar:
— Estou pensando nessa pomba que fugiu, Absalon.
Suponhamos que fosse uma mensageira. Aonde acha que
você que poderá ter ido?
— Não... não pode ser.. — balbuciou o negro, enquanto
Omar empalidecia mais ainda.
— Poderia ser — disse Richardson. — Ouçam bem isto:
Michelino, o palhaço, uniu-se a nós não faz muito tempo.
Era um bom rapaz, revelou-se espirituoso no picadeiro e
amável fora dele. Isso foi há várias semanas. Agora,
sabemos que Michelino só podia ser um agente do FBI ou,
mais provavelmente ainda, um agente da CIA. Para que não
desconfiássemos dele, não trouxe nenhum meio de
comunicação com seus amigos. Mas, pouco depois, deu
uma pomba a Carol, esperando o momento em que
precisasse utilizá-la. O momento chegou duas noites, atrás,
quando deve ter compreendido que o vigiávamos, que o
tínhamos descoberto escutando a conversa dos anões. Quem
sabe quantas coisas não terá escutado, Omar...? De qualquer
modo, colocou alguma mensagem na pata dessa pomba.
— Mas, se tal pássaro era na realidade um pombo-
correio, devia ter escapado em qualquer das outras vezes
que se viu solto na arena, junto com os demais...
— Não. Possivelmente era uma pomba especial, muito
bem treinada, que só voaria para longe quando lhe tivessem
colocado qualquer coisa na pata. Enquanto esperava por
isso, permanecia com as outras simplesmente. Aquela noite
Michelino esteve perto das pombas... Julgo que tenha
podido colocar-lhe a mensagem numa pata, mas, como
devia ser muito esperto, não a soltou então foi ao seu
reboque, disposto a escapar. Sabia que, quando a pomba
saísse de sua gaiola, já que lhe colocara a mensagem na
pata, empreenderia o vôo para seu destino. Assim, pelo
menos, estaria salva a informação que ele enviava a seus
amigos.
— E onde acha que foi essa pomba?
— Os pombos-correios podem voar a uma velocidade de
mais de cem quilômetros por hora, durante várias horas.
Washington não estava a muito mais de cento e cinqüenta.
Até mesmo Absalon parecia mais claro. Omar levantou-
se, olhou pela janela para a roulette da pitonisa e
resmungou:
— Maldita bruxa... Que vamos fazer agora, Jeb?
— A pitonisa tem qualquer coisa a ver com isto —
afirmou Absalon. — Senão, como poderia saber a respeito
de Michelino e da pomba? Podemos ir lá, metê-la em seu
reboque e obrigá-la a dizer tudo o que sabe, Jeb.
— Não. Por ora, devemos vigiá-la apenas. Digam isso
aos anões. E muito cuidado: ela tem uma câmara de
televisão no alto de seu reboque e, de dentro, pode ver tudo
o que se passa ao redor.
— Uma bruxa esperta, bem? — comentou Omar.
— Se é do FBI ou da CIA, como Michelino devia ser,
não lhe pode faltar esperteza, claro. Mas há qualquer coisa
que não encaixa em tudo isto: Madame Raquel é européia,
bem conhecida no mundo do circo, porque haveria de
trabalhar agora para os americanos?
— Talvez sempre tenha trabalhado para eles —
murmurou Absalon, com o que naturalmente, seu cérebro
atingiu o clímax da capacidade imaginativa.
— Estamos em má situação — resmungou Omar. —
Ainda que matássemos esta bruxa, não há dúvida de que
estamos vigiados. E tanto faz se pela CIA ou pelo FBI, pois
não poderíamos fazer nada!
— E se a matarmos, cairão em cima de nós — disse
Absalon, evidentemente num de seus dias de inspiração.
— Por isso mesmo — decidiu Richardson —, nos
limitaremos a vigiá-la. “Shadow” virá esta noite. Ele tem
que encontrar uma saída.
Omar “O Magnífico”, que novamente olhava pela janela,
tornou a imprecar.
— Maldita bruxa!

CAPÍTULO QUARTO

Pouco depois de sair, impressionadíssima, a mulher que


tinha sido posta ao corrente de seu futuro, subiu ao reboque
um homem baixinho, rechonchudo, corado e um pouco
calvo, que olhou com certa apreensão para todos os lados da
caverna, até que a coruja empalhada emitiu um grasnido e,
sobressaltado, pálido, ele a olhou vivamente, com os olhos
muito abertos. De fora chegava o rumor do circo.
— “Anastácia” lhe disse para fechar a porta — dignou-
se “traduzir” a pitonisa. — Não nos agradam os ruídos
quando trabalhamos, monsieur.
O homenzinho fechou afinal a porta e aproximou-se da
mesa, quase gaguejando: — Desculpe... O ambiente aqui...
— Sente-se. Passado, presente ou futuro?
O simpático cliente sentou-se, engoliu em seco,
conseguiu sorrir e disse:
— Gostaria de saber algo do presente... e que
possibilidades temos para o futuro imediato, madame.
— Bem. Por que não fala em russo? Não sabe?
— Se.... Foi devido à surpresa — disse ele, agora em
russo. — Desculpe.
— Desculpado. Mas não devia impressionar-se tanto
com uma decoração como esta. Vejamos: o passado não
interessa, pois todos o conhecemos bem... Passemos ao
presente — a bola de cristal iluminou-se e ela indicou um
ponto da esplanada. — Aí está um dos anões, olhando para
o reboque. Durante o dia de hoje, a partir do momento em
que Richardson falou com Carol Sand, estão me vigiando,
revezando-se, todos os nanicos, Omar “O Magnífico”,
Absalon o Hércules Negro e, por vezes, ate o próprio
Jebediah Richardson..
— Se descobriram que trabalha para a...
— Não se preocupe — sorriu desdenhosamente a
pitonisa. — Enquanto vigiam, não tentarão nada e,
sobretudo, sabemos que ele ainda não veio. De onde se
depreende que bem pouco lhe posso dizer sobre o futuro.
— Bem... Avisarei que está sendo vigiada...
— Desista disso. Acaso quer estragar tudo? Estão de
sobreaviso, tal como eu desejava — tornou a sorrir
horrivelmente —, portanto logo terão que fazer algo.
— Mas vai precisar de ajuda...
— Se precisar, pedirei. Enquanto isso, tudo vai
prosseguir sem alteração. Você se retirará e, tal como seu
elegante companheiro de ontem, não voltará mais aqui. Eu
continuarei esperando por “Shadow”.
— Mas se ele chegar quando você estiver neste reboque,
não poderá saber.
— A noite passada quase não dormi, vigiando. Mas,
além disso, tenho outros meios. Veja.
A imagem mudou na bola e o rechonchudo indivíduo
pôs-se ao lado da pitonisa, que lhe indicou o grande reboque
surgido nela.
— Há uma câmara de televisão apontando para esse
reboque. Cada quatro ou cinco minutos, vigio se alguém
entra ou sai dele. Se “Shadow” chegar, eu o verei.
— Isto é absurdo... O mais provável é que “Shadow”
fale com Richardson dentro do circo, entre o público. E.
então será impossível vê-lo...
— Não se precipite, meu obeso amigo. Veja isto agora...
Novamente mudou a imagem. Apareceu todo o interior
da carpa, visto de um ponto elevado. No centro da arena
evolucionavam lindos cavalos brancos, levando em cima,
como insólitos cavaleiros, graciosos cãezinhos. E mais alto,
descrevendo círculos, brancas pombas adornadas com
colares de flores. Ao redor, todo o público, visto de cima.
— Ela é Carol Sand, uma jovem emotiva, impulsiva e
namoradeira. Embora se deva admitir que era fácil
apaixonar-se por Michelino... Veja: a entrada para o
picadeiro. E aí está o nosso amigo Richardson, muito atento
ao seu trabalho. Se “Shadow” entrar, ou já estiver instalado
entre o público, Richardson falará com ele. E então, eu o
verei. Richardson, com seu traje, é inconfundível, mesmo
do alto.
— Mas não poderá ver o rosto de “Shadow”.
— Um rosto não é nada... — tomou a sorrir a horrenda
mulher. — Absolutamente nada. Não está de acordo?
— Bom... Sim, estou de acordo. Podemos saber algo
mais sobre o futuro?
— Pode dizer a seus amigos que “Shadow” já não viverá
muito. Palavra desta velha e asquerosa pitonisa. São dez
dólares.
— Devo ir já? — sorriu indeciso o homenzinho.
— Depois de me pagar. A vida está muito cara nos
Estados Unidos e, afinal de contas vocês me tiraram de
Paris para vir cá. Dez dólares não é um preço exagerado.
— Certamente “Shadow” virá durante a segunda função,
seja hoje, amanhã ou depois...
— Deixe “Shadow” por minha conta.
O visitante tomou a sorrir daquele seu modo indeciso,
deixou uma nota sobre a mesa e saiu do reboque. Entrou um
jovem e simpático casal de namorados, ambos parecendo
cheios de Susto...
Mas quando saíram do reboque iam contentíssimos.
Evidentemente, a pitonisa tinha-lhes vaticinado o mais feliz
e alegre dos futuros.
***
Já tarde, enquanto estava em curso a segunda função do
“Great Clown Circus”, Madame Raquel continuava
trabalhando, a com uma roliça senhora já entrada em anos,
que contemplava com unção seus passes mágicos por sobre
a bola de cristal. A pitonisa já parecia francamente fatigada.
As últimas palavras de seu vaticínio brotaram lentamente,
quase num sussurro:
— ... e não duvide de que esse rapaz poderá vir a amá-la,
se compreender que uma mulher com experiência significa
muito mais que uma simples garota.
— Mas minha rival é tão jovem, tão bonita...
— Não importa, senhora. Persista. Seja... sugestiva. Seu
amado Jack tem olhos, não é verdade? Mostre-me como
pode ser bela e, sobretudo, uma doce e tranqüila
companheira. É só... São quinze dólares.
— Quín... quinze dólares...
— Senhora, uma das coisas que mais agradarão ao Jack
será sua generosidade. Mostre-se generosa, sempre e
sempre.
— Sim, compreendo. Quinze dólares...
Deixou o dinheiro sobre a mesa e saiu do reboque,
seguida por um olhar malévolo e zombeteiro na pitonisa,
que acabou suspirando. Fez mudar a imagem confusa de
suas cabalas na bola de cristal e olhou com indiferença a
imagem nova, em torno do reboque. Agora tocava a
Absalon vigiá-la. A imagem mudou outra vez, mostrando o
reboque de Jebediah Richardson, que estava completamente
às escuras. Nova mudança de imagem: agora o interior do
circo e, no centro, as grandes jaulas onde Omar “O
Magnífico” demonstrava o domínio do homem sobre a
besta... Richardson não estava em seu lugar, junto à saída
do picadeiro. Outra mudança de imagem, tomando a
mostrar seu reboque com as luzes apagadas. Novamente a
esplanada e Absalon de vigia, olhando fixamente para a
roulotte de Madame Raquel. Mais uma mudança: o circo...
Não, Jebediah Richardson não estava não estava em seu
lugar...
A pitonisa começou a olhar a imagem deformada na
grande bola luminosa que não era outra coisa que uma tela
de televisão. Identificar alguém ali requeria não só
paciência, mas uma vista excelente... Súbito, ela lançou uma
exclamação e seu rosto aproximou-se mais do cristal.
— Sinto muito, monsieur — disse com voz quebrada: —
esta noite meu trabalho foi arrasador. Minhas reservas
espirituais estão esgotadas e não consigo comunicar-me
com os seres etéreos que vagam pelo universo... Amanhã
terei muito prazer em atendê-lo.
O homem parecia cravado no chão, como atordoado e
amedrontado. Ela fez um gesto de despedida.
O homem saiu dali quase tropeçando e Madame Raquel
tomou a iluminar a bola. Imediatamente dedicou sua
atenção ao mesmo ponto. Realmente, ali estava Richardson,
perto de uma das filas de assentos, junto à saída. Tinha a
cabeça virada para o homem que ocupava o assento
extremo. Um homem do qual só podia ver as mãos, os
joelhos e a cabeça calva, com uma coroa de cabelo curto ao
redor... E os óculos. Ele virou duas vezes a cabeça para
Richardson, embora aparentemente ambos estivessem
atentos ao que ocorria na arena, entre os leões e tigres e o
intimorato Omar “O Magnífico”, que logo em seguida
terminou seu número.
Houve um movimento geral no público. Passavam os
vendedores de refrescos, balas, amendoim... Jebediah
Richardson afastou-se dali, saindo da carpa e, portanto, do
campo visual da pitonisa, que cravou o olhar de seu olho
são no homem calvo e de óculos. Um sorriso inquietante
apareceu em seus lábios quando aquele homem abandonou
seu assento e foi atrás do diretor do circo.
Mudou a imagem para a que era captada pela câmara
que ficava no alto de sua roulotte, mas não concedeu sequer
um olhar a Absalon, que continuava em seu posto. Muito
pequeno, viu Richard caminhando para seu reboque e, atrás,
o homem de óculos. Uma vez mais mudou a imagem,
aparecendo agora bem perto o reboque de Richardson, que
chegou poucos segundos depois. Em seguida, chegou o dos
óculos, que agora se podia ver bem. Parecia um desses
pacíficos e um tanto comovedores guarda-livros, que
consomem sua vida entre números e faturas. Ele e Jebediah
Richardson estavam falando...
— Quem o imaginaria assim... — murmurou Madame
Raquel. — O perigosíssimo, inteligente, astuto, implacável
e escorregadio espião “Shadow” não chamaria a atenção
dando saltos mortais em plena rua... Parabéns, “Shadow”.
Viu Richardson assentir com a cabeça e afastar-se do
reboque, enquanto “Shadow”, se era mesmo ele, subia a
este. A porta do reboque fechou-se e dentro se acendeu a
luz... A imagem tomou a mudar, mostrando mais uma vez a
esplanada. Agora, sim, Madame Raquel fixou seu olho em
Absalon, junto ao qual logo apareceu Richardson. Disse-lhe
algo e o negro afastou-se apressadamente. O diretor do
circo ocupou seu lugar, acendeu um cigarro e olhou para a
roulotte da pitonisa, diante da qual já não havia fila, pois os
clientes tinham sido advertidos pelo último de que ela não
receberia mais ninguém.
Absalon regressou em poucos segundos, indicando com
uma das mãos enormes qualquer coisa a seu redor, mas
Richardson moveu negativamente a cabeça e em seus lábios
surgiu um sorriso duro. O negro fez gestos de chamada.
Apareceram, correndo, os quatro anões. Então, todos juntos,
começaram a caminhar diretamente para o reboque de
Madame Raquel.
Esta se pôs de pé, depois de apagar mais uma vez a bola
de cristal, e precipitou-se para a porta que comunicava com
a parte traseira da roulotte. Entrou lá, baixou o beliche e
dele tirou sua maleta, da qual retirou uma pistola. Deixando
tudo como estava antes, levantou um alçapão
magnificamente camuflado pelo espesso tapete e deixou-se
cair fora do reboque, justamente quando na porta deste
soavam as batidas e ouvia-se a voz do diretor do circo.
De gatinhas, ela afastou-se rapidamente dali. Quando
virou a cabeça, a roulotte estava se movendo com violência
e um sorriso irônico apareceu em seus lábios ao imaginar o
negro querendo pôr abaixo a porta de separação entre a
“gruta” e sua vivenda particular. Ele o conseguiria, mas ia
custar-me um bocado.
Por baixo de reboques e depois de jaulas, a pitonisa foi
deslizando, com uma agilidade surpreendente, até chegar
perto do reboque de Richardson.
Pôs-se de pé, e justamente naquele momento Omar
aparecia por uma esquina da jaula, cenho carregado,
resmungando alguma coisa. Deteve-se em seco, tal como
ela, e ambos ficaram olhando-se fixamente. Súbito, Omar
olhou para a roulotte de Madame Raquel, viu a porta, as
luzes totalmente acesas... e decerto compreendeu tudo. Seu
rosto transformou-se numa crispada máscara de ódio.
— Maldita bruxa, vou lhe...
Plop.
“O Magnífico” ficou ereto, braço levantado, olhos
arregalados e piscando ligeiramente, boca aberta... Caiu de
chofre, como arrastado pelo peso da pequena bala que se
havia incrustado em sua testa. Ato contínuo, a pitonisa
dirigiu-se a ele, agarrou-lhe uma das mãos, meteu-se
embaixo da jaula e puxou o cadáver, enquanto “Fúria”, cujo
fino olfato percebia a morte, começava a rugir com força,
ao mesmo tempo em que, da carpa, chegava o grito de
emoção provocado por “The Jets” em uma de suas
perigosas acrobacias. Ela saiu de sob a jaula, onde deixara o
defunto domador, com o chicote deste na mão e colocou-se
diante de “Fúria” que rugia com a bocarra bem junto à
grade.
— Cale-se! — ordenou. — Já deveríamos ser velhos
amigos...
O leão rugiu novamente e Madame Raquel, aborrecida,
golpeou-o no nariz com o cabo do chicote, obrigando-o a
encolher-se para o fundo da jaula, agora baixando o tom de
seus rugidos.
— Assim está melhor... — sorriu ela. — Fique
quietinho.
Atirou o chicote para um lado, esgueirou-se até o
reboque de Richardson, meteu-se embaixo e reapareceu
ante a escadinha. Subiu-a, empurrou a porta e entrou, sem
mais preâmbulos.
O homem dos óculos estava sentado numa poltrona,
copo numa das mãos e cigarro na outra. Olhou-a vivamente,
com lógico sobressalto, como disposto a erguer-se rápido da
poltrona, mas conteve-se admiravelmente e permaneceu
imóvel. Delgado, miúdo, com aqueles óculos, ombros
caídos, parecia o mais inofensivo dos mortais.
— Bom domínio dos nervos, “Sombra” — disse a
pitonisa, em russo. — Espero que eles não falhem quando
eu lhe fizer algumas perguntas.
O homem olhou a pistola que ela empunhava, hesitou e
optou por adotar uma atitude fria, quase desdenhosa.
— Quem é você? — perguntou.
— Poderia responder-lhe que sou Madame Raquel, que
seus cúmplices foram buscar, camarada. Mas isso seria
complicar as coisas... E já o estão bastante, por culpa sua.
Não se mova.
Aproximou-se dele e revistou-o com uma rapidez e
cautela que pareceram impressioná-lo um pouco.
— Nunca uso armas... — disse o homenzinho. — De
que está falando? A que culpa minha se refere?
— As explicações lhe serão dadas no Diretório,
“Sombra”. Agora, você e eu nos iremos daqui, antes que
regressem Richardson e os outros. Em marcha.
— Um momento... É realmente russa?
— Que acha você? — retorquiu ela, secamente.
— Bem... Eu diria que sim.
— Bom ouvido, camarada. Vamos...
— Espere. Aqui há um mal-entendido, camarada. Disse
que pensa levar-me para o Diretório, isto é, para Moscou?
— Sim, ao Diretório do nosso MVD. Será uma tarefa
pouco agradável, camarada. Mas já fiz coisas mais difíceis.
— Pôr que pretende levar-me para lá?
— Estive vigiando-o ultimamente, pois me chegou o
rumor de que você se aliara a Richardson, que é americano,
e...
Madame Raquel calou-se, aparentemente assombrada,
quando o russo começou a rir.
— Querida camarada...! — exclamou ele. — Está
sugerindo que sou um traidor?
— Que outra coisa você pode ser? Ignoro se em Moscou
têm conhecimento de suas atividades nos Estados Unidos,
suas relações com Richardson e os outros, sua... política de
assassinatos que não posso compreender...
— Sente-se, camarada — sorriu “Shadow”. Creio que
merece uma boa explicação, ainda que somente devida ao
zelo com que está trabalhando... Sente-se, peço-lhe eu, o
camarada Sombra. Como se chama? Porque, evidentemente,
não é a verdadeira Madame Raquel...
— Que truque está você preparando? — perguntou a
pitonisa, pondo-se em guarda.
— Não seja teimosa. Eu não estou traindo o MVD,
camarada. No Diretório conhecem meu atual trabalho, mas
compreendo que não tenham comunicado aos demais
agentes...
— Conhecem seu trabalho? — replicou ela, com
aspereza. — Sei muito bem que mandou matar um
diplomata russo, embora isso tenha parecido um acidente.
— Esse diplomata russo era um traidor — disse
“Shadow”, em tom glacial. — E sua sentença de morte já
tinha sido assinada fazia tempo. Só que resolvemos adiá-la
para incluí-lo em nossos planos.
— Que planos?
— Você está me fatigando, camarada — murmurou
geladamente “Shadow”. — Quero que se sente e me diga
seu nome. Em troca de tão pouca coisa, eu lhe darei todas as
explicações que desejar. Sente-se!
O insignificante homenzinho tinha mudado de maneira
tão notável, mostrava-se agora tão forte e seguro de sua
força, que a pitonisa obedeceu, após breve hesitação.
Estiveram olhando-se uns segundos e, súbito, ela informou:
— Sou Ludmila Versakoia.
— Versakoia? — pareceu refletir “Shadow” — Não
creio ter ouvido nunca o seu nome no Diretório.
— Acaso ouviu o de todos? Conhece a totalidade dos
agentes do MVD?
— Não... Claro que não. Bem, camarada Ludmila
Versakoia, penso que, em beneficio de ambos e sobretudo
do MVD, ao qual tão fielmente nós dois servimos, conviria
que procedêssemos a uma... troca de impressões. Diga-me:
que aconteceu com a autêntica Madame Raquel?
— Faz tempo que ela trabalha para nós. Ficou escondida
em Nova Iorque e eu ocupo seu lugar.
— Ela pediu trabalho ao “Great Clown Circus” porque
você lhe sugeriu que o fizesse?
— Não. Tudo foi casual. Mas quando soube de sua
vinda, achei que era o momento de introduzir-me junto a
Richardson, para esperar você e levá-lo a Moscou, ou
então...
— Ou então me eliminar? — sorriu “Shadow”.
— Sim.
O sorriso do homenzinho se ampliou e seus olhos
tornaram-se dois simples riscos por trás das grossas lentes.
— Tampouco sabia que Madame Raquel trabalhasse
para nós — murmurou —, mas alegro-me que assim seja.
Quanto à sua intenção de eliminar-me se necessário, parece-
me excelente. Você me agrada, Ludmila Versakoia. Mas,
por infelicidade, está cometendo um grande erro. Vejamos
se entre o que me contou o nosso assustado Richardson e o
que você acaba de dizer-me, consigo lobrigar a verdade em
todo este embroglio... O palhaço chamado Michelino era
um dos nossos?
— Era.
— Erro lamentável — disse secamente “Shadow”: —
Jebediah Richardson matou-o há duas noites porque supôs
que fosse da CIA ou, no mínimo, do FBI.
— Era um dos nossos — disse não manos secamente a
pitonisa. — Foi ele o primeiro a introduzir-se no circo, para
apoiar-me quando eu me aproximasse de você.
— Compreendo... Vigiava Richardson e os outros, e eles
julgaram que fosse da CIA... Realmente lamentável, mas já
não tem remédio, camarada. Tudo aquilo da pomba...?
— É coisa nossa. Tudo,
— Sabe quem... perturbou a noite passada a
tranqüilidade do circo? Refiro-me à mulher que golpeou o
negro...
— Fui eu. Precisei instalar duas câmaras de televisão.
Uma, diante deste reboque, numa árvore. Outra, no mastro
que encima a carpa.
— Duas câmaras que, junto com a que já existia na
roulotte de Madame Raquel, permitiram-lhe dominar todo o
cenário que lhe interessava... Magnífico, Ludmila
Versakoia. O negro teve muito azar ao descobri-la quando
já terminava seu trabalho, não?
— Parece. Eu estou bem, enquanto que ele...
O homenzinho riu.
— Exato. Vejamos: você se inteira de que “Shadow”
está fazendo coisas que julga não convenientes para o
MVD, consegue saber que parte da ação irradia deste circo,
manda um companheiro que lamentavelmente é eliminado
devido a uma confusão e depois chega você mesma,
disposta a derrotar nada menos que “Shadow”. Introduz-se
no circo usurpando a personalidade de Madame Raquel,
instala câmaras de televisão em toda parte, espera-me... E
aqui me tem. Foi um esplêndido trabalho o seu, Ludmila
Versakoia. Esplêndido, realmente.
— Obrigada — disse ela, em tom cortante. — Mas ainda
tenho minha pistola na mão e estou esperando suas
explicações, camarada.
— Minhas explicações... Oh, sim! Bem, suponho que ao
dizer que sou um traidor referiu-se à morte do nosso
diplomata, mas já lhe esclareci que era ele o traidor, não eu,
e que fazia tempo que o MVD o sentenciara à morte, pelo
que aproveitei o último plano para incluí-lo. Deste modo,
ninguém pensaria que o MVD tivesse nada a ver com os
últimos acidentes fatais que vitimaram diplomatas de várias
nacionalidades... Ou não se referia a isso?
— Precisamente a isso. Quando ocorreu a morte de um
dos nossos diplomatas, pensei que você nos estivesse
traindo.
— E já não pensa assim?
— Continuo sem receber uma explicação completa... e
satisfatória.
— Logo ficará satisfeita, camarada. E acho provável que
possa participar do plano, que, justamente amanhã à noite,
deverá ser concluído em definitivo com a execução do
último lance. Conhece um país chamado Monteguai?
— Claro.
— Não é grande coisa, bem sei, mas nunca devemos
menosprezar nossos aliados, ainda que pequenos...
— Aliados? Monteguai é absolutamente anticomunista...
— Calma, camarada, calma... Observe bem. Se
reconsiderar os fatos, é possível que chegue à conclusão de
que todos os diplomatas assassinados nestes últimos meses
eram mais ou menos hostis a Monteguai. Certo?
— Certo — pestanejou a pitonisa.
— Então, eu lhe direi que suas mortes foram... sugeridas
por um diplomata de Monteguai, que desejava
possibilidades máximas de amistosa convivência com os
países vizinhos ao seu, e que se mostravam um tanto hostis
para com Monteguai justamente devido às gestões desses
diplomatas. Portanto, o primeiro passo era ordenar a morte
desses homens hostis a Monteguai, a fim de que, em futuro
próximo, quando Monteguai estiver em franca
prosperidade, seja admitido como bom amigo dos países
vizinhos. Isso nos assegurará que nosso aliado não venha a
sofrer sanções quando, finalmente, todos compreenderem
que prosperou devido à ajuda russa e que, inevitavelmente,
está a caminho de transformar-se em outra Cuba. Disso
necessitamos com urgência no continente sul-americano.
Parece-lhe razoável?
— Bastante. Mas continuo afirmando que Monteguai é
anticomunista.
— Até agora, sim. Mas veja: como até agora morreram
diplomatas hostis a Monteguai, é possível que alguém esteja
começando a suspeitar algo contra esse país, pelo que
planejei para amanhã à noite assassinar nada menos que o
Presidente de Monteguai e seu Primeiro-Ministro, que estão
passando uns dias em Nova Iorque, para acompanhar de
perto certas conversações que não vêm ao caso e que estão
sendo realizadas na ONU. Naturalmente, uma vez
assassinados o Presidente e o Primeiro-Ministro de
Monteguai, ninguém já relacionará tal cadeia de extermínio
com esse país, nem tampouco com a Rússia, a qual terá
perdido também um de seus diplomatas. Certo?
— Sim... Certo.
— Bem. Então, temos que morreram vários diplomatas,
um russo traidor de sua pátria e diversos de outras
nacionalidades que perturbam a futura trajetória de
Monteguai. E tudo de modo que não fará suspeitar da
Rússia nem de Monteguai, que terá ficado inclusive sem
Primeiro-Ministro nem Presidente. Qual é o passo seguinte?
Para os cidadãos de Monteguai, quero dizer.
— Escolher outro Presidente e outro Primeiro-Ministro,
no momento.
— Exato. E acontece que os futuros dirigentes de
Monteguai são simpatizantes da Rússia e do comunismo.
Tanto o futuro Presidente como o futuro Primeiro-Ministro
nos darão toda espécie de facilidades para transformar
Monteguai em outra Cuba.
— Como pode estar seguro disso? — perguntou a
pitonisa.
— Estou seguríssimo, pois foram justamente eles os
idealizadores de todo o plano, para apoderar-se do poder.
Conseguiram combinar uma entrevista comigo, por
intermédio de seu serviço secreto. Pus-me em contato com
eles e nos entendemos muito bem.
— Então, toda essa série de assassinatos políticos
procede dos planos desses dois homens de Monteguai, que
desejam apoderar-se do poder em seu país?
— Exatamente. E tudo isso será conseguido graças à
minha colaboração. Amanhã, numa festa que se realizará no
Consulado de Monteguai, o Presidente e o Primeiro-
Ministro eliminados. Então, tudo estará concluído, no que
se refere ao meu trabalho. Fazia tempo que mantinha
contatos amistosos com Richardson, que algumas vezes me
escondera em seu circo, quando a CIA apertava demasiado
o cerco. Propus-lhe colaborar, pois não queria que nenhum
agente russo interviesse nisto, e ele aceitou. Apareço por
aqui quando é necessário, digo-lhe quem deve ser morto,
como convém fazê-lo e os anões se encarregam disso.
— Os anões? — sobressaltou-se Madame Raquel.
— Sim. São assassinos eficientíssimos. Amanhã talvez
você tenha oportunidade de constatar isso, quando
realizarem seu trabalho no Consulado de Monteguai. Bem...
Continuo parecendo-lhe um traidor da Rússia ou do MVD?
— Não, evidentemente... Suponho que não me tenha
mentido.
— Já chega de tolices, Ludmila Versakoia. Que
necessidade teria eu de falar tanto para mentir-lhe? Ouça,
quando Richardson me disse que Michelino era da CIA e
que você também poderia ser, vi tudo perdido, pois, ainda
que a matássemos, não poderíamos escapar deste último
cerco. Mas agora fica esclarecido que nem o pobre
camarada Michelino nem você são da CIA. Isso significa
que temos as mãos livres, que estamos em condições de
efetuar toda espécie de movimentos com a mesma
impunidade de que gozamos até agora. Compreende?
— Claro.
— Claro, amanhã concluímos o “Plano Monteguai”,já
preparado.
— Quem sucederá o Presidente e o Primeiro-Ministro?
— Juan Amado Soler e Ezequiel Pombo,
respectivamente embaixador de Monteguai nos Estados
Unidos e seu assistente, os quais serão amanhã os anfitriões
na festa em homenagem ao governante monteguaienses...
— Que será assassinado para que esses dois traidores...
— Que é isso? — sorriu “Shadow” — Não lhe agrada o
plano? Bom. E teremos uma base magnífica no centro do
continente sul-americano.
— É bom...
— Apenas alguns altos dirigentes do MVD conhecem
esse plano. Por que devia você conhecê-lo também?
— Agora compreendo... Poderei ajudá-lo em alguma
coisa, camarada?
— Sempre é conveniente uma ajuda. Mais alguma
dúvida? Algo ainda a preocupa?
— Não. Nada. Sinto apenas que Michelino tenha
morrido tão... estupidamente.
— É verdade — admitiu “Shadow”. — Qual era seu
nome? Sabe?
— Sei apenas que se chamava Andrei. Nada mais. Aqui
nos Estados Unidos usava o nome de Robert Corbert.
— Bem. Avisaremos o MVD oportunamente do...
desaparecimento do pobre Andrei. São ossos do ofício,
camarada. Quer tomar alguma coisa? É o melhor meio de
esperar que solução Richardson e os outros encontram para
seu sumiço. Como conseguiu escapar deles? Disseram-me
que você estava no reboque, vigiada...
— Há um alçapão que eles não conhecem... — sorriu a
pitonisa. — Não são muito espertos.
— Não. Não espertos — admitiu Shadow —, mas já lhe
disse que não quis agentes russos para este trabalho. A
respeito de você mesma, camarada, gostaria de saber como
é. E não me refiro à sua esperteza, pois já a constatei.
Refiro-me ao seu aspecto físico, o verdadeiro.
— Como supõe que eu seja? Menos monstruosa?
— Imagino que sim. Mas, evidentemente uma mulher
que consegue parecer tão horrível... Bem, desculpe-me, mas
creio que seu aspecto real não será muito diferente do de
Madame Raquel. Uísque?
— Oh, sim... Gosto de uísque. Supõe, então, que seja
mesmo uma autêntica bruxa, camarada?
— Nem tanto... — riu “Shadow”, estendendo-lhe o
copo. — Não, nem tanto!
A pitonisa tomou um pequeno gole de uísque, sorriu
com esgar sinistro e, súbito, depois de pousar o copo,
começou a despir-se, virada de costas para o espião
soviético, que pestanejou ao ver aquele corpo esbelto e
perfeito, coberto apenas pela malha negra, dos pés à cabeça.
Depois a viu tirar a peruca grisalha, áspera, esfregar
fortemente o rosto com a roupa recém-tirada, tirar a grande
lente de contato que até então tornava-lhe um olho branco,
cego e horrendo. Sua surpresa foi tão grande que o copo
quase lhe caiu da mão. Ficou uns segundos atônito,
contemplando a formosa jovem de longos cabelos louros e
esplêndidos olhos azuis.
— E então? — sorriu ela, por fim.
— É... inaudito! — exclamou “Shadow”. — Minhas
felicitações, camaradas Ludmila Versakoia!
— Agradeço-lhe, camarada... camarada... Devo
continuar chamando-o “Sombra”?
— É melhor — sorriu ele. — Ainda não pude sair de
meu espanto! E, já que deste modo se apresentam as coisas,
devo dizer-lhe que estou há muito tempo fora da Rússia e
que... Bem, pergunto-me se em sua roulotte há lugar para
dois... Ainda que só por uma noite.
— Há lugar para dois — sorriu a belíssima garota. —
Mas receio bastante que Fedor não concordaria em que eu
lhe oferecesse tão completa hospitalidade, camarada.
— Fedor?
— Vamos casar este verão, em Moscou, e passaremos a
lua-de-mel no Mar Negro.
— Parabéns aos dois — murmurou “Shadow”. —
Espero conhecer um dia o seu Fedor, querida Ludmila.
— Talvez já o conheça: Fedor Kosarin.
— O camarada Kosarin? — exclamou “Shadow”.
— Ele mesmo.
— Talvez não estejamos falando da mesma pessoa —
hesitou o homenzinho. — Como é o seu Fedor?
— Sua descrição física? Tem os cabelos avermelhados,
olhos verdes, é alto, esbelto mas muito forte. Um homem
inteligente, elegante e — a loura de olhos azuis sorriu
luminosamente — muito bonito, camarada. Estamos
falando do mesmo Fedor Kosarin?
— Estamos... — “Shadow” tornou a sentar-se — do
mesmo. Onde o conheceu?
— Onde o conheci? — surpreendeu-se Ludmila;
empunhou de novo a pistola, rapidamente, tomando a
apontá-la para “Shadow”. — Não se mova! Você não é
“Sombra”!
— Por que pensa isso? — riu entre os dentes o
homenzinho.
— Porque se fosse, saberia muito bem que tive que
conhecer Fedor no Diretório. É um dos mais importantes
subchefes do MVD, justamente a cargo de assuntos
europeus que derivem de assuntos americanos, e se você
não sabe...
— Está bem, está bem... — “Shadow” ergueu uma das
mãos, rindo. — Você me convenceu,
— Eu o... convenci?
— Querida camarada, estava pensando em matá-la, já
que não podia crer em todo este fabuloso trabalho seu e
ainda julgava que era uma agente da CIA. Estava
aparentando acreditar, à espera de um momento oportuno...
— Está louco? — cortou ela. — Já morreu Andrei, ou
Michelino...!
— Digo-lhe que já está tudo bem! Agora me convenci
plenamente de que você trabalha para o MVD. Se não fosse
assim, jamais teria sabido quem e como é Fedor Kosarin,
pois ele, na verdade, jamais saiu da Rússia sob seu
verdadeiro aspecto. Você o descreveu muito bem,
convenceu-me e... podemos ir adiante, com autêntica
amizade.
— Bem... Eu compreendo, claro. Mas, então, tudo o que
me contou é mentira?
— Nada disso... — riu “Shadow”. — É verdade. Que
perderia eu explicando-o a você, se depois tencionava matá-
la? Guarde essa pistolinha e conversemos como bons
amigos. Fez muito bem mencionando o camarada Kosarin.
De outro modo...
A ameaça ficou no ar, mas facilmente compreensível.
Ludmila tornou a pegar o copo e sentou-se . De repente,
sorriu.
— Receio ter uma péssima notícia para Richardson —
disse.
— Ah, sim?
— Antes de vir aqui tive que matar Omar “O
Magnífico”. Ainda não sabia que você...
— Bem... Esqueça isso. Um homem que se deixa
surpreender por uma mulher, bem merece a morte. Tal
como esse negro enorme... Como pôde vencê-lo ontem?
— Com uma barra de ferro — riu Ludmila.
— Ainda assim...
“Shadow” calou-se. Richardson entrou, rosto
desfigurado pela cólera.
— Essa pitonisa conseguiu...
Emudeceu ao ver Ludmila Versakoia, olhando-a
rapidamente de cima a baixo.
— Escapar? — terminou “Shadow”.
— Sim. Mas... Esta mulher tem que ser a que ontem à
noite...!
Sacou seu revólver e apontou-o para ela, que se limitou a
sorrir e tornar um gole de uísque. Apareceu Absalon,
seguido pelos quatro anões. Estes ficaram imóveis,
assombrados, e aquele lançou uma exclamação, indicando
Ludmila.
— É ela! — gritou. — É a tal mulher que...!
— Por que permitiu que entrassem aqui? — “Shadow”
indicou Absalon e os anões. — Eu lhe disso que só você
deveria conhecer-me, Jebediah.
— Lamento, não pensei nisso... Quem é esta mulher, que
quer, que faz aqui?
— Guarde essa arma — resmungou “Shadow”; e
terminou asperamente: — Vocês não passam de perfeitos
imbecis. Menos mal que amanhã terminaremos o trabalho
para o qual o procurei.
CAPÍTULO QUINTO

No dia seguinte, pouco depois de terminada a primeira


função do “Great Clown Circus”, os mesmos personagens
tomaram a reunir-se no reboque de Jebediah Richardson.
Ali os esperava “Shadow”, mas só o diretor do circo, que já
devia estar acostumado com seus disfarces, e a pitonisa o
reconheceram de imediato. Os anões e Absalon,
especialmente este, ficaram olhando perplexos o elegante
cavalheiro de longos e brancos cabelos, com uma barba
bem recortada. Não se parecia de modo algum ao que eles
tinham conhecido como “Shadow” mas o riso da pitonisa,
que novamente tinha o aspecto de Madame Raquel tirou-os
de dúvidas.
— Bom disfarce, camarada — elogiou ela.
— Não melhor que o seu — sorriu “Shadow”.
— Espero ir logo a Moscou e, com sua permissão, porei
em destaque no Diretório sua grande categoria profissional.
— Obrigada — sorriu pavorosamente a medonha
mulher.
— Bem — “Shadow” olhou os outros —, deixaram suas
coisas em ordem aqui?
— Sim — respondeu Richardson. — Já avisei que os
anões não atuarão esta noite. Além disso, adverti que
Madame Raquel está excessivamente fatigada e que, tendo
que atender a um convite para a festa do Consulado de
Monteguai, também não poderá trabalhar aqui no circo. Do
Consulado, onde sua atuação será muito pouco fatigante,
Madame Raquel se transportará para um hotel de Nova
Iorque, onde amanhã pretende consultar um médico...
— Imagino que foram seus amigos que me enviaram o
convite — disse a pitonisa, olhando para “Shadow”.
— Naturalmente. Ontem mesmo disse-lhes que convinha
sua presença na festa e pareceu-lhes original brindar seus
convidados com uma demonstração dos misteriosos poderes
de uma pitonisa. Temos justificadas, portanto, as ausências
de Madame Raquel e dos anões. E o negro?
— Ainda está ressentido dos golpes que recebeu
anteontem, pelo que deixará de atuar também hoje e talvez
mesmo durante os próximos dias. Absalon aproveitará a
folga para umas voltas por Nova Iorque esta noite, comigo,
depois que eu tiver resolvido assuntos pertinentes a nossa
próxima temporada naquela cidade.
— Muito bem — aceitou “Shadow”. — Agora, cada um
vai dizer-me o que tem que fazer, Comece você mesmo,
Jebediah.
— Partirei dentro de alguns minutos, no helicóptero,
com Absalon. Chegaremos a Nova Iorque, procuraremos
um hotel e eu direi que me sinto cansado, que não penso
sair durante o resto da noite. Absalon dirá que vai dar um
passeio pela Rua Quarenta e Dois, mas voltará ao
helicóptero e voará até um lugar solitário onde lhe colocará
as peças que disfarçam todo o seu aspecto externo, a fim de
que não seja reconhecido posteriormente. Depois ficará
aguardando a hora conveniente para voar até o Consulado
de Monteguai, para recolher os anões. Também à hora
combinada, eu telefonarei para o Consulado, por telefone
automático do hotel e, falando em espanhol. pedirei
ansiosamente que chamem o Presidente e o Primeiro-
Ministro de Monteguai, ressaltando que se trata de assunto
urgente e importantíssimo. Alguém do Consulado os levará
justamente à sala que convém, a fim de que falem de lá.
“Shadow” assentiu com a cabeça e olhou a pitonisa.
— E você? Um momento... Compreendeu tudo bem,
Absalon?
— Sim senhor. Não cometerei nenhum engano.
— De acordo. Adiante, Madame Raquel.
— Eu chegarei em meu carro, com o reboque atrás e, se
alguém argumentar contra a necessidade de levá-lo, direi
que não o quis desprender do carro, o que é muito
incômodo. Entrarei no Consulado e procederei à minha
atuação como pitonisa. Se vir no Consulado algo que não
me agrade, pedirei para falar pelo telefone e avisarei
imediatamente ao hotel. Além de vigiar e dar aviso para que
não telefonem se assim convier, devo manter a atenção de
todo o inundo concentrada em mim, de tal modo que
ninguém se aproxime da sala onde, à hora combinada, serão
chamados ao telefone o Presidente e o Primeiro-Ministro.
Assim, os anões poderão trabalhar com tranqüilidade.
— Perfeito — os olhos míopes de “Shadow” desviaram-
se para “The Little Mice”. — E vocês?
— Nós vamos no reboque de Madame Raquel —
explicou Oscar —, escondidos na parte traseira, com a porta
bem fechada. Ela estacionará o carro no lugar mais escuro
possível do jardim do Consulado. Então, sairemos pelo
alçapão e deslizaremos até a janela da sala do telefone;
encontraremos a janela aberta e, enquanto Lulu vigia metida
embaixo do reboque e Mike ao pé da janela, Pete e eu
entramos na sala e colocamos a bomba, que faremos
explodir quando os dois homens entrarem para telefonar.
Imediatamente, Lulu fechará o alçapão do reboque, se
reunirá conosco e iremos os quatro até o fundo do jardim.
Lá...
— Espere — cortou secamente “Shadow”. — Continue
você, Absalon.
— Eu estarei voando ali por perto com o helicóptero
disfarçado com as peças de alumínio e, quando ouvir a
explosão, irei até o Consulado, o mais baixo possível,
deixando cair a escada de corda na parte posterior do
jardim. Esperarei dois segundos, para que os anões se
agarrem a ela, depois irei voando, muito alto, com eles
pendurados, enquanto todos ainda estarão dentro do prédio
ou, quando muito, no jardim da frente, perguntando-se o
que aconteceu. Estarão assustados e não reagirão a tempo
de fazer nada. Depois deixarei os anões perto do circo e de
Paterson, para que eles digam que regressam da cidade, e
voltarei a um lugar onde possa remover as peças postiças do
helicóptero e escondê-las. Então, voltarei a Nova Iorque,
frei ao hotel e encontrarei Jeb no bar. Direi a ele o muito
que me diverti na Rua Quarenta e Dois e nos recolheremos
à nossa suíte.
— Jebediah? — “Shadow” olhou interrogativa-mente
para Richardson.
— Pela manhã, irei resolver os assuntos do circo e, ao
regressar a Paterson, Absalon me indicará onde escondeu as
peças postiças do helicóptero, que recolherei e levarei
novamente para o esconderijo em meu reboque. É só.
— Muito bem — aprovou o agente soviético.
— Enquanto isso, aparecerá nos jornais a notícia de que,
durante uma festa no Consulado de Monteguai, justamente
em honra do Presidente e do Primeiro-Ministro desse pais,
houve uru atentado político... Perfeito. Oscar, saberá fazer
funcionar bem o mecanismo de explosão?
— Sim, sim... — afirmou Oscar. — Colocaremos a
bomba sob o telefone e, quando virmos entrar os dois
homens, apertaremos o botão detonador e a bomba
explodirá. Não falharemos. De qualquer modo gostamos
mais dos trabalhos anteriores, mais diretos..
— Nem todos os trabalhos podem ser iguais — replicou
“Shadow”, sorrindo. — Bem, parece que todos entenderam
suas respectivas partes. Acertem agora seus relógios,
rigorosamente. São oito horas, três minutos e... trinta
segundos. De acordo?
Todos assentiram com a cabeça e “Shadow” levantou-se.
— Ninguém aqui fala russo, camarada — disse para
Ludmila-Raquel. — Lembra-se bem do que deve fazer
quando tudo estiver concluído no Consulado?
— É muito simples — sorriu ela, falando também em
russo. — Quando me deixarem partir, passarei para recolher
você no lugar combinado, iremos ambos onde está a
verdadeira Madame Raquel, a quem agradeceremos por sua
colaboração passiva, já que ela de forma alguma poderia
realizar o trabalho que estou fazendo, e trataremos de
escapar para Moscou, já que sua missão terminou e eu,
depois do erro de julgá-lo um traidor, não sei o que fazer e
prefiro receber instruções concretas no Diretório.
Entrementes, a verdadeira Madame Raquel voltará com sua
roulotte ao circo, ocupará meu lugar e tudo prosseguirá
como se o circo nada tivesse a ver com todo este assunto.
— Exatamente. Quanto ao seu dinheiro — voltou-se
para Richardson, falando em inglês — vou lhe fazer um
adiantamento de cem mil dólares; os outros quatrocentos
mil a verdadeira Madame Raquel lhe entregará.
Os anões e Absalon olharam-se um tanto torvamente ao
ouvir isto, mas Richardson ergueu a mão, sorrindo,
— Seremos integralmente pagos — garantiu a ele. —
Conheço bem “Shadow”, desde a Coréia. Ajudei-o em
outras ocasiões e sei que ele pagara.
— E por que não nos paga agora? — perguntou Lulu.
— Vou lhe dizer — retrucou “Shadow”. — Se fizerem
bem o trabalho, poderão posteriormente desfrutar seu
dinheiro. Mas se falharem... por que deverei perder
quatrocentos mil dólares?
Após fulminá-lo com tão sensata explicação, o agente
russo dirigiu-se para a porta do reboque, abriu-a e voltou-se.
— Boa sorte para todos — desejou. — E obrigado pela
ajuda. Até nunca mais, espero. Divirta-se na festa —
terminou em russo, para Ludmila, sorrindo.
— Sempre me divirto nas festas — sorriu por sua vez a
pitonisa.
***
Talvez fosse verdade que ela estava se divertindo, mas
não havia a menor dúvida de que es convidados se
divertiam muito mais. Em sua quase totalidade, rodeavam a
cigana Madame Raquel, que se instalara a um canto do
grande salão do Consulado, a uma mesa coberta de cristal,
que não estava emitindo imagens nesta ocasião, mais apenas
se apagava e acendia, como resposta aos passes de suas
mãos aduncas.
Com o lenço de pintas ocultando-lhe parcial-mente a
áspera cabeleira grisalha, as grandes argolas de ouro que lhe
estiravam as orelhas, as feias verrugas no nariz e o olho
solitário e sinistro, Madame Raquel estava-se constituindo,
sem lugar a dúvidas, na grande atração da festa em
homenagem ao Presidente de Monteguai, que sorria com
indulgência, apreciando seu trabalho. Na verdade, ela era
absolutamente sensacional, pois sabia tudo sobre as pessoas
que a consultavam.
— Mas, como é possível? — exclamou a consulente do
momento, uma bonita senhora ricamente vestida. — Como
pode saber?
— Acaso não é verdade, madame? — perguntou a
pitonisa.
— Oh, sim! É verdade. ‘Meu marido deu-me este colar
no segundo aniversário de nosso casamento, estivemos o
ano passado visitando a Europa, pensamos ir este ano a
Hong Kong, temos três filhos já adultos...
— O mais velho se diplomará este ano pela
Universidade de... Colúmbia, sim. Chama-se... Harold. Mas
tem algumas dificuldades em seus estudos, já que
ultimamente está perdendo muito tempo com uma jovem...
muito bela por certo, madame.
A senhora lançou outra exclamação e um murmúrio
percorreu o ambiente.
— Que mais quer saber? — indagou a pitonisa. —
Melhor dito: que mais quer que eu adivinhe?
— Meu nome... Diga-me quem sou!
— Deixe-me pensar... Tenho que concentrar-me...
A bola mágica começou a acender-se e apagar-se,
enquanto Madame Raquel mantinha os olhos fechados, O
Presidente de Monteguai, homem alto, robusto, de uns
cinqüenta anos carregados com galhardia, inclinou-se
sorridente para o cavalheiro a seu lado.
— Magnífica pantomima, Ezequiel — sussurrou.
— Pantomima, Excelência? — sussurrou também
Ezequiel Pombo.
— Não me diga que não informou essa pitonisa sobre as
pessoas que compareceriam è festa. Ou você, Juan Amado,
ou talvez qualquer outro de nossos funcionários...
— Asseguro-lhe que não, Excelência. Casualmente, ouvi
falar de uma pitonisa muito boa, que estava atuando num
circo bem próximo a Nova Iorque e pareceu-me boa idéia
contratá-la, pelo que lhe mandei um recado, um convite...
Ela aceitou, por quinhentos dólares. Foi tudo, Excelência.
— Está certo de que Juan Amado tampouco lhe disse...?
— Absolutamente, Excelência. Se há algum truque,
apenas ela deve sabê-lo...
— Silêncio — pediu com voz rouca Madame Raquel,
ainda com os olhos fechados. — Estão perturbando minhas
comunicações...
Fez-se o silêncio e, por fim, ela abriu os olhos, olhou a
consulente e disse:
— Alma Mary Sutters, casada com Joseph Delano
Sutters... É esse seu nome, madame?
— Por Deus! — assombrou-se a elegante senhora. —
Isto é incrível!
Novamente um murmúrio encheu o salão. O público em
torno da pitonisa ia-se tomando cada vez maior. A senhora
chamada Alma Mary Sutters caíra em tal deslumbramento,
que um cavalheiro aproveitou a ocasião para colocar-se
diante da pitonisa, estendendo-lhe a mão direita. Um
cavalheiro baixote, com pouco cabelo e pequenos olhos
astutos.
— Diga-me algo sobre minha vida, madame — pediu.
— Com prazer, monsieur. Por onde começamos?
— Por meu nome, se está de acordo.
— Pois não... Peço silêncio. — Restabelecido o silêncio,
houve mais jogo de luzes na bola de cristal e, por fim, a
pitonisa murmurou: — Seu nome é Charles Alan Pitzer,
monsieur. — Um novo murmúrio do público foi
interrompido por ela, que ergueu ambos os braços num
gesto exigente. — Silêncio! Sim... Charles Alan Pitzer.
Vejo-o entre muitas flores, com se fosse... uma floricultura.
Gosta tanto assim de flores, monsieur?
— Meu hobby preferido é uma floricultura, com efeito.
Mas não é essa minha profissão. Um hobby, simplesmente.
Qual é minha profissão, Madame Raquel? A autêntica.
Com os olhos fechados, a pitonisa murmurou, voz algo
velada~ no meio de um silêncio total:
— Sua profissão, monsieur, e... é muito delicada...
Muito delicada e importante... Quer que a diga em voz alta?
— Não, não... Diga-me ao ouvido.
Inclinou-se para ela, enquanto os outros convidados
protestavam. Madame Raquel falou ao seu ouvido durante
uns segundos e, quando Charles Alan Pitzer se ergueu,
estava assombradíssimo.
— Realmente... — balbuciou. — Dadas as
circunstâncias, madame, prefiro que não veja mais nada em
minha vida.
Afastou-se da mesa e houve um movimento geral de
aproximação à frente desta. Mas tal movimento foi detido
de chofre quando e Presidente de Monteguai se adiantou,
estendendo a mão direita com a palma para cima.
— Se não há inconveniente, madame — pediu.
— Nenhum, Excelência. Afinal de contas, segundo
entendo, a festa é em sua honra.
— Com efeito. E muito estimo que tenha vindo,
madame. Podemos começar? — perguntou ele, sentando-se
à mesa.
— Deseja que lhe fale de seu passado, presente ou
futuro, Excelência?
— Bem... Sou um político de passado limpo, mas todos
o conhecem, portanto lhes pouparemos o tédio de escutá-lo.
Meu presente é tão limpo e clara como o passado... Que me
promete o futuro, madame?
A pitonisa esteve uns segundos examinando a mão do
Presidente de Monteguai, ante a expectativa da totalidade
dos convidados, todos eles pessoas importantes da alta
sociedade nova-iorquina, políticos, diplomatas de outros
países, alguns jornalistas...
— Uma bonita mão, Excelência. Grande e forte. A mão
de um homem de bem. Todas as linhas estão nitidamente
traçadas: inteligência, coração, vida... Esta última é bastante
longa: viverá quase cem anos, Excelência...
— Não espero governar tanto tempo, madame — riu o
Presidente.
— Certo. Mas a vida não é só governar. Existe por si
mesma, para os governantes e os governados. Sua vida
pessoal será longa.
— E minha vida política?
— Também. Porém menos... Aproximadamente, a
metade. Creio que um bom momento para retirar-se será
dentro de dezoito ou vinte anos, quando estiver perto dos
setenta. Poderá fazê-lo com o orgulho e a satisfação de ter
cumprido seu dever para com a pátria.
— É muito formoso o que me diz — sorriu agora o
Presidente. — Pode dizer-me quem será meu substituto?
— Não está muito claro... Mas fique tranqüilo: será
alguém parecido com Vossa Excelência cm retidão política
e humana. Um homem não demasiado jovem então, mas...
Um momento!
Alguns dos convidados que estavam mais perto se
sobressaltaram com o grito abafado da Pitonisa. Houve
ainda mais expectação quando ela aproximou mais o rosto
da destra do Presidente de Monteguai, que insistia com
impaciência:
— E então, madame? Algo... mau?
— Não posso dizer...
O murmúrio foi agora de protesto e Sua Excelência
sorriu, um tanto inquieto.
— Já foi discreta quanto à profissão de mister Pitzer,
madame. Peço-lhe que revele seu mau augúrio sobre mim.
Não quero decepcionar meus convidados. Adiante, por
favor.
— Traição.
— Como?
— Traição, Excelência. Alguém está planejando traí-lo.
Agora o murmúrio foi excitado e todo o mundo
aproximou-se mais, movendo-se nervosamente. Na primeira
fila, dois cavalheiros ficaram pálidos... Quase tanto como o
próprio Presidente.
— Não é uma brincadeira de bom-gosto, madame —
sussurrou este.
— Nunca brinco durante o meu trabalho, Excelência. A
traição está muito perto do senhor. Muito perto.
Um homem adiantou-se precipitadamente, colocando-se
junto ao governante de Monteguai. Devia ter trinta e cinco
anos e também era alto, forte, bem constituído, de grandes
olhos escuros e sólido maxilar.
— Que espécie de traição? — perguntou com aspereza.
A pitonisa desviou o olho para ele.
— Não está muito clara, senhor Primeiro-Ministro...
Entretanto, existe essa traição, num futuro muito próximo...
Quase imediato. Está escrita nas linhas da mão do senhor
Presidente. Há... interesses políticos misturados com
interesses econômicos. Figuras importantes de seu país
estão preparando algo... Não... não... Já está preparado!
— Peço-lhe que conclua seu vaticínio, madame — disse
o Presidente. — Ninguém no meu país é capaz de traição...
— Alguém sim... Alguém importante... muito
importante.
— Não há ninguém mais importante que eu em
Monteguai, depois do Presidente — declarou o Primeiro-
Ministro. — Refere-se a mim, por acaso?
— Não. Pelo contrário, senhor Primeiro-Ministro: sua
lealdade para com o Presidente... Oh, eu a vejo... Vejo-a
com clareza!
— Minha lealdade?
— Não. A traição... Está aqui mesmo! Hoje mesmo!
Vejo uma explosão, vejo...
— Basta, madame — exclamou o Presidente, retirando a
mão.
— Faz mal em não me ouvir, Excelência. Já vi a traição,
nitidamente. Uma bomba, um telefone... Vejo dois homens
aproximando-se do telefone... Um deles tira do gancho o
aparelho... uma chamada urgente, importantíssima... Vejo o
telefone e a explosão... Não se aproxime hoje de nenhum
telefone, Excelência!
O Presidente abriu a boca, expressão francamente irada,
mas naquele momento um dos serviçais do Consulado
chegou até ele, depois de passar por trás de Madame
Raquel.
— Excelência...
— Que é?
— Uma chamada urgente para Vossa Excelência.
Declaram ser assunto da máxima importância... e pedem
que o senhor Primeiro-Ministro o acompanhe ao telefone.
Um silêncio gelado espalhou-se pelo salão, como um
espesso manto que abafasse qualquer rumor. O Presidente
tomou-se lívido.
— Uma chamada telefônica? — indagou.
— Sim, Excelência. E muito urgente...
— Está bem, Marcos. Obrigado...
Todos o olhavam, mas ao vê-lo voltar-se para a pitonisa,
os olhares fixaram-se nesta. Havia assombro no rosto dos
convidados. Gotas de suor umedeciam a testa dos
cavalheiros da primeira fila.
— Que sabe sobre essa chamada, madame?
— Nada, Excelência. Somente que não deve atendê-la.
Nem o senhor Primeiro-Ministro.
— Tudo isto é absurdo, madame. Uma... coincidência,
talvez preparada pela senhora mesma. A chamada telefônica
pode ser um golpe de efeito para...
— Se quer morrer, vá ao telefone, Excelência. Mas
posso fazer-lhe uma sugestão muito melhor: peça a todos os
seus compatriotas presentes que se dirijam ao telefone, à
sala mais discreta do Consulado. Mas de dois em dois. Tem
que ser de dois em dois.
— Tolices... Não penso deixar-me impressionar!
Gonzalo, vamos atender a essa chamada urgente... Que há?
— Não estamos esperando nenhuma chamada,
Excelência — alegou o Primeiro-Ministro.
— Claro que não! Por isso mesmo é uma chamada
urgente... E querem falar-nos, aos dois. Deve ser de
Monteguai...
— Creio que é melhor não irmos, Excelência. Temos
aqui altos funcionários do Consulado: que um deles a
atenda.
— O senhor Primeiro-Ministro é muito inteligente —
comentou a pitonisa.
Gonzalo tinha-se virado para os dois homens da primeira
fila cujas testas estavam mais molhadas de suor.
— Pode ser que amanhã a imprensa mundial se ria de
nós — declarou —, mas hoje, agora, a vida do Presidente é
a única coisa que importa. Ezequiel, Juan Amado: querem ir
responder a essa chamada?
— Ma-mas... é para o Presidente...
— Não importa. Vocês são os representantes de nosso
país nos Estados Unidos. Peço-lhes que se dirijam ao
telefone.
— Mas não podemos usurpar as... prerrogativas do
Presidente...
— Está bem, Gonzalo — cortou Sua Excelência. —
Iremos nós dois.
— Não — disse em tom firme o Primeiro Ministro. —
Teríamos ido se Juan Amado e Ezequiel não hesitassem.
Mas hesitaram. Agora, ordeno-lhes, como Primeiro-
Ministro de Monteguai, que respondam a essa chamada
telefônica.
— Não... — balbuciou Ezequiel. — Não!
— Negam-se me obedecer?
— É para o... Para o Presidente!
Este entrecerrou as pálpebras, por entre as quais viu-se
brilhar uma centelha. Aproximando-se dos dois homens,
disse-lhes em tom cortante:
— Obedeçam Gonzalo.
— Não... não...!
— Ezequiel, dá-se conta que está desobedecendo em
público o seu Presidente? Juan Amado, convença-o e
dirijam-se ambos ao...
— Não irei! — gritou Juan Amado Soler. — Não iremos
lá. Não vamos responder a chamada nenhuma...
Girou sobre si mesmo e pôs-se a empurrar rudemente os
convidados, logo secundado por Ezequiel Pombo. Houve
um pequeno tumulto, gritos de surpresa...
— Detenham-nos! — gritou Gonzalo.
Os dois homens tinham conseguido abrir caminho por
entre os presentes e já corriam para a grande porta-janela
que dava para o jardim, mas, como se brotassem do chão,
apareceram quatro jovens atléticos, impecáveis em seus
smokings, que, imperturbáveis, encarregaram-se deles, dois
para cada um, erguendo-os no ar como se •nada pesassem.
A agitação era indescritível na grande sala de recepções. O
Presidente e o Primeiro-Ministro estavam imóveis, como
que paralisados pelo espanto. Um cavalheiro que aparentava
quarenta anos, abriu passagem até eles, coxeando
ligeiramente, e encarou o governante de Monteguai.
— Excelência, sou Cavanagh, da CIA. Acho
conveniente que tenhamos uma conversa particular. E não
se preocupe por seus representantes: meus homens não os
deixarão escapar.
— Seus homens?
— Tivemos uma informação, Excelência, e concluímos
que não seria agradável um atentado contra o Presidente de
um país amigo nos Estados Unidos. Assim, resolvemos
manter-nos na expectativa. Espero que não se sinta
incomodado por nosso empenho em protegê-lo.
— Não... Não, claro — o Presidente estava ao mesmo
tempo perplexo e consternado. — Mas não compreendo...
Uma informação da parte de quem? Dela?
Indicou a pitonisa, que continuava impassível em sua
cadeira. Cavanagh sorriu evasivamente.
— Não... Essa mulher deve ser uma vidente de verdade,
Excelência. Nós sabíamos que algo ia ser tentado, mas não
o quê.
O Primeiro-Ministro passou a mão pela testa.
— Quer dizer que se ela não... não tivesse avisado a
respeito dessa chamada telefônica, nós a atenderíamos e...?
— Lamentavelmente, o atentado se consumaria —
murmurou Cavanagh —, pois não esperávamos um truque
dessa natureza. Se me permitem, sugiro-lhes que seja
cuidadosamente examinado o local onde está esse telefone
para conversas privadas.
Gonzalo virou-se e olhou duramente para os traidores,
que se debatiam em vão nos braços dos agentes da CIA.
— Que eles sejam mandados examinar a sala do telefone
privativo — disse.
— Não! — debateu-se mais Ezequiel Pombo.
— Não! Há uma bomba! Seríamos feitos em pedaços!
Há uma bomba! Nós sabemos que há uma bomba...!
Continuava gritando, mas as excitadas vozes dos
convidados, as exclamações, comentários, impediram ouvir
suas palavras. Alguns fotógrafos da imprensa começaram a
estourar flashes. A confusão aumentou de tal modo que já
ninguém podia ouvir as palavras de ninguém. Momento que
Cavanagh aproveitou para aproximar-se da pitonisa, ainda
placidamente sentada em sua cadeira, mãos sobre a bola de
cristal.
— Vamos caçar os nanicos? — perguntou ele.
— Não. Eles estão esperando ver duas pessoas na sala
onde colocaram a bomba. Entretanto, podemos poupar-lhes
o trabalho de fazer explodir a bomba. Eu apertarei o botão
por ele.
Na adunca mão de Madame Raquel apareceu uma
pequena caixa metálica, com dois botões vermelhos.
Apertou o da direita e, imediatamente, uma explosão abalou
a sede do Consulado de Monteguai, com o que teve inicio o
pânico e os convidados precipitaram-se para as saídas,
atropelando-se uns aos outros.
— Os nanicos vão acreditar que algo falhou na bomba e
que ela explodiu por si mesma. Agora, Absalon virá
recolhê-los com o helicóptero.
— Bem. Impediremos que eles...
— Não. Deixe-os ir. Resta ainda outro botão nesta caixa
detonadora a distância.
— Por Deus... — pasmou Cavanagh. — Você colocou
uma carga no helicóptero de Richardson?
— Lógico. Diga aos rapazes que deixem partir o
helicóptero com os anões. São uns assassinos que merecem
o que lhes vai acontecer. Estabeleça um pouco de ordem por
aí, se achar conveniente, querido chefe.
— Sim, sim... Claro.
***
Cinco minutos mais tarde, os ânimos tinham-se
acalmado, apesar da presença da Polícia e dos Bombeiros,
que tinham acorrido logo após a explosão. Muitos dos
convidados tinham-se retirado, mas outros, de melhores
nervos, permaneciam ali, compreendendo que tudo estava
terminado e um estranho milagre devido a Madame Raquel
salvara as vidas do Presidente e do Primeiro-Ministro.
Os quais, naquele momento, aproximavam-se da mesa a
que a pitonisa continuava sentada, fumando tranqüilamente
com uma longa, exótica piteira.
— Madame — começou o Presidente — não sei como
expressar-lhe... Que foi isso?
Virou a cabeça para a larga janela, onde brilhara um
intenso clarão. Quase em seguida, chegou o estampido...
Fora se ouviram comentários excitados e o Primeiro-
Ministro opinou:
— Parece que algo explodiu nos arredores da cidade...
Deve ter ocorrido algum acidente...
O mandatário de Monteguai pestanejou e de novo virou-
se para Madame Raquel, que naquele momento guardava
uma caixinha com dois bonitos botões vermelhos.
— Dizia-lhe, madame, que não sei como expressar-lhe
meu agradecimento...
— Há um modo muito simples, Excelência; não tenho
mérito algum, já que me limitei a fazer meu trabalho... pelo
qual não recebo os quinhentos dólares que me prometeram.
Os dois políticos ficaram estupefatos. Por fim, sorrindo,
o Presidente sacou sua carteira, dela extraiu cinco cédulas
de cem dólares e estendeu-as à pitonisa.
— De acordo, ‘madame?
— Agora, sim, Excelência. Posso retirar-me? Estou
muito fatigada.
— Acredito. Boa-noite, madame.
— Às suas ordens, Excelência. Senhor Primeiro-
Ministro.
A cigana das horríveis verrugas e do olho branco
afastou-se e saiu ao jardim. Dois policiais aproximaram-se
imediatamente, porém não menos rápidos que’ eles
acorreram dois homens à paisana, que os afastaram quase
aos empurrões.
— Esses são da CIA — murmurou o Primeiro-Ministro.
— É... E parece que a estão protegendo, ou algo assim.
— Talvez pensem detê-la...
Mas tal não aconteceu e pouco depois, em seu carro,
arrastando o reboque, Madame Raquel abandonou o
Consulado de Monteguai.

CAPÍTULO SEXTO

O carro parou em certo lugar da solitária e escura


estrada. Em seguida, o homenzinho apareceu entre as
árvores e nele entrou, sentando-se junto à pitonisa, que
empunhava o volante.
— Aconteceu algo que não estava em nossos planos —
disse rapidamente “Shadow”. — Vi uma explosão nos ares
que me fez pensar coisas muito inquietantes.
— Por exemplo?
— Não sei... Foi como se explodisse um aparelho.
Poderia ter sido o helicóptero.
— Conduzindo Absalon e os anões, talvez? — riu
asperamente Madame Raquel.
“Shadow” soltou um grunhido, mas depois quase sorriu.
— Sou muito sensível a tudo, Ludmila... Tenho uma
espécie de sexto sentido que me avisa quando as coisas não
correm segundo meu gosto e conveniência. Foi tudo bem no
Consulado de ‘Monteguai?
— Claro.
— Teve dificuldades para escapar?
— Escapar? Querido camarada “Shadow”, eu não
escapei. Ausentei-me, simplesmente, como o fizeram outros
convidados.
— É verdade... Estou nervoso. Asseguro-lhe que algo
não está funcionando como devia.
— Bah... Trouxe os quatrocentos mil dólares do circo?
— Trouxe. Estão nesta pasta. Demoraremos muito a
chegar onde está escondida a verdadeira Madame Raquel?
— Uns vinte minutos. Tranqüilize-se. Você é “Sombra”,
o grande mestre russo da espionagem, o mais perigoso
exterminador, o agente mais eficaz...
— Por que diz isso?
— Porque você está tão nervoso que acabará por tomar-
me nervosa também. E deveria dar exemplo de
tranqüilidade, camarada.
— Tem razão... — riu “Shadow”. — Tem razão,
camarada Ludmila Versakoia.
***
O carro deteve-se diante de uma casinha rodeada de
flores, com um pequeno jardim, e a pitonisa saltou
agilmente. Esperou que “Shadow” se reunisse a ela e
indicou a casa.
— Madame Raquel está aí. Faremos a troca, você lhe
entregará o dinheiro e depois iremos embora. Estou ansiosa
por chegar a Moscou. Tem tudo preparado?
— Tudo.
— Pois vamos lá.
— Parece que não há ninguém...
— Teremos que acordá-la.
Chegaram à porta da casa e a falsa pitonisa apertou a
campainha. Poucos segundos depois se acendeu uma luz.
Em seguida a porta foi aberta e apareceu Madame Raquel,
que lançou uma exclamação ao ver a recém-chegada.
— Boa noite, Madame... — saudou esta. — Já estamos
aqui. Tudo bem?
— Sim, sim... Mas é inacreditável!
Passaram os três ao pequeno living e, enquanto
“Shadow” olhava para uma e outra, absolutamente
admirado, a verdadeira pitonisa não o estava menos,
contemplando sua sósia.
— Inacreditável! — tomou a exclamar. — Como o
conseguiu? Seu disfarce enganaria a mim mesma...
A falsa pitonisa sorriu desagradavelmente, mas, ao ver-
se num espelho, franziu a testa.
— Obrigada por seus elogios, madame. Deixa-a uns
segundos a sós com nosso amigo “Shadow”. Encarregue-se
dos quatrocentos mil dólares que ele lhe entregará. Voltarei
em cinco minutos, “Sombra”.
— Está bem.
Ela dirigiu-se ao banheiro, fechou-se por dentro e sorriu
quando, ao afastar a cortina do box, viu ali a maletinha
vermelha com flores azuis. Segundos depois, metia-se sob o
chuveiro. E quase exatamente cinco minutos mais tarde
reaparecia no living, trajando um gracioso modelo azul
como seus olhos, audaciosamente decotado. “Shadow”
ficou boquiaberto diante de sua beleza e soube apenas
comentar:
— Você tingiu o cabelo...
— Não, não. Este é meu cabelo natural: negro. O louro,
sim, era falso. Bem, madame — virou-se para a autêntica
pitonisa —, estão certos os quatrocentos mil dólares?
— Estão.
— Não sabe quanto lhe agradeço sua ajuda, madame —
sorriu docemente a linda garota de olhos azuis. — Gostaria
de pagar-lhe, mas...
— De maneira alguma, querida — protestou a horrível
mulher. — Você disse que o dinheiro que fosse obtido seria
para obras de caridade, o que me parece magnífico. Sou
velha e feia, menina, mas isso me fez ganhar muito
dinheiro. Como se saiu em seu oficio de pitonisa?
— Creio que muito bem — riu a bonita jovem.
— O circo está à sua espera, madame. Haverá algumas
mudanças de pessoal, mas isso não importa. Por favor,
quando tomar a ver Monsieur Nez, diga-lhe que agradeço
muito que me tenha prestado tão valiosa ajuda do Deuxiême
Bureau através da senhora. Espero que meus amigos a
tenham atendido bem.
— Otimamente. Desde que você usurpou minha
identidade, estive rodeada de atenções. E disso estava
precisada, depois da péssima viagem que fiz desde o Havre.
Detesto viajar de navio.
— Pois eu adoro. Saudades a Monsieur Nez e já sabe,
madame, que conta com o reconhecimento da CIA, além do
meu.
— Muito honrada...
“Shadow”, que as estivera olhando alternadamente,
levantara-se, rosto pálido. Por fim perguntou:
— De que estão falando? Não compreendo...
— Estamos falando de amigos comuns, camarada —
disse sorrindo a garota sensacional: — um dos chefes do
Deuxiême Bureau, para o qual trabalho algumas vezes, e a
CIA, naturalmente, da qual faço parte.
— Não... — gaguejou, lívido como um cadáver. —
Não...
— Que há? Sei muito bem que você é dos melhores
espiões russos que já apareceram nos Estados Unidos, mas
tem que compreender duas coisas, “Shadow”. Primeira, que
nunca é prudente prolongar a permanência num país, porque
acabam por descobrir-nos a pista, o que aconteceu com
você. Segunda, que sempre podemos encontrar um espião
melhor que nós.
— Mas você não pode ser da CIA, se conhece Fedor
Kosarin...
— Ora, vamos... Fui uma vez muito bem atendida por
ele, durante uns poucos dias que passei em Moscou, por
isso o conheço. Na verdade, somos um pouco amigos,
embora mantendo distância, claro.2
— Conseguiu me enganar... A mim!
— Console-se, camarada: não o enganou uma espiã
qualquer, mas “Baby”. Sente-se melhor agora?

2
ver: VIAGEM DE PRAZER
— Vou matá-la... Mulher diabólica, vou lhe...!
Avançou para ela, que não fez o menor movimento.
Nem sequer se deu ao trabalho de sacar a pistolinha de
coronha de madrepérola.
— Lembre-se, camarada, de que nunca porta armas e
que, fisicamente, é um pouco inferior a Absalon. Não
obstante, se quer que lhe quebre a cabeça e os braços,
ataque-me.
“Shadow” começou a retroceder até a porta da casa,
ameaçando com um dedo a jovem que tão magistralmente
zombara dele.
— Ainda nos tornaremos a ver... — murmurou.
— Agora, retiro-me, mas ainda nos tornaremos a ver,
garanto-lhe. E, então, eu a matarei, “Baby”!
Abriu a porta e precipitou-se para fora. Sorrindo, “Baby”
acendeu um cigano e olhou a estupefata Madame Raquel,
que finalmente perguntou:
— Por que o deixa escapar? É um homem muito
perigoso!
— Bah, madame... Nem tanto. Aqui nos despedimos —
beijou-a em ambas as faces e agitou os dedos. — Au revoir,
madame.
— Au revoir, ma petite — respondeu a horrenda
pitonisa. — Obrigada pelos beijos.
“Baby” abriu a porta e dois homens entraram na casa,
trazendo “Shadow” quase suspenso pelos braços. O agente
soviético estava tão sombrio como a própria morte. Atrás
dos dois homens entrou outro, menor, um pouco calvo, de
olhos pequenos e astutos.
— Aposto que o fabuloso “Shadow” vai ser-nos de
enorme utilidade, “Baby”.
— Sem dúvida, tio Charles. Posso fazer mais alguma
coisa por você?
— Mais? — resmungou Pitzer. — Ora, vamos, querida.
— Então, retiro-me... — Voltou-se para o russo e
lançou-lhe no rosto a fumaça de seu cigarro.
— Você tinha razão, camarada, quando disse que nos
tomaríamos a ver. Para onde ia com tanta pressa?
Quando ela entrou no carrinho esporte que tinha
escondido entre uns arbustos, a autêntica Madame Raquel
estava tomando seu carro, ainda rindo, e os três homens da
CIA metiam “Shadow” em outro veículo, grande, negro,
sério.
A última a afastar-se dali foi “Baby”. E quando partiu,
olhando para a pouco distante Nova Iorque, sua expressão
não era exatamente amistosa.
***
— Quem é? — sobressaltou-se Jebediah Richardson.
— Serviço, senhor — respondeu uma voz feminina: —
sou a camareira.
Richardson passou a língua peles lábios. Estava
francamente assustado. Tanto, que pouco antes abandonara
o bar, onde esperava Absalon, por temor de que os outros
hóspedes notassem seu nervosismo. Tinha deixado recado
de que se retirava a seus aposentos, se alguém perguntasse
por ele... e agora não era o negro quem chegava, mas uma
camareira.
— Não pedi nada — alegou.
— É uma carta. Chegou por um mensageiro. Suíte 824,
mister Richardson... é o senhor, não?
Bem... Não podia deixar de abrir. Certamente Absalon
era quem enviava aquela carta ou bilhete; e, finalmente, ele
sairia da dúvida a respeito da última parte do “Plano
Monteguai”. Abriu, pois. Olhou a jovem, que trazia um
avental branco e tinha na mão um envelope. Somente o
envelope, sem bandeja.
— Sou Richardson... — murmurou. — Dê-me isso.
Tomou o envelope e olhou outra vez a jovem, que não se
retirara.
— Tenho que esperar a resposta, cavalheiro.
O diretor do circo pareceu hesitante. Tratava-se de uma
estupenda garota de olhos escuros e um tanto bochechuda,
boca muito pintada...
— Está bem. Entre e espere, por favor.
Ela entrou, fechando a porta. Richardson abriu o
envelope, sacou o papel e leu:

A respeito do plano de “Shadow”, fracassou


totalmente. Ele está em poder da CIA e os outros
morreram. Mas em ação, para dizê-lo de algum
modo. Ao contrário de Michelino, que não morreu
em ação, mas assassinado friamente.
Encontramos seu cadáver, par fim, perto de um
dos lugares onde acampou o “Great Clown
Circus”. Há bem poucos esclarecimentos a fazer e
os mais importantes são estes:
1) Michelino não era russo, mas americano.
Chamava-se Johnny.
2) Conseqüência direta desta revelação é a de que
Ludmila Versakoia também era americana, como
seu querido Johnny.
3) Você assassinou pessoalmente Míchelino-
Johnny e isto eu não lhe perdoarei jamais, pois
sempre vingo a morte de meus Johnnies.
4) Do exposto, depreende-se que você vai morrer
agora.
“Baby”
Agente Muito Especial
P.S. — Para ver-me, tem apenas que erguer o
olhar.

Pálido como se um agente funerário o tivesse metido


dentro de um ataúde, Jebediah Richardsou levantou os olhos
para a camareira, ainda com a esperança de que aquilo
fosse... uma brincadeira.
Mas os formosos olhos femininos, como pontas de gelo,
estavam cravados nele. Havia ainda um terceiro olho, que
também o fixava, o de uma pequena pistola empunhada por
mão firme.
— Eu... — começou Richardson.
Plop...Plop... Plop...
SERIA PRECISO ESTAR DOIDO

— Enfim, querida, vou partir. Já lhe disse?


— Claro — sorriu Brigitte Montfort. — Já me disse que
ia partir, há várias semanas, mas não para onde.
— Para Hong Kong.
— Mais chá, querida?
— Não, não... Preciso ir. Tenho ainda muito o que fazer
e nosso avião sai amanhã. Mas não queria viajar sem
despedir-me de você. Lembre-se do que lhe disse de
Harold?
— De seu filho mais velho. Aquilo sobre a garota que...?
— Sim, sim... Parece que está resolvido a casar-se e
continuar estudando. Terrível, querida, terrível!
— Não seja intransigente, Alma — sorriu Brigitte. — É
verdade que são jovens, mas se gostam um do outro...
— Oh, conheço suas teorias a respeito do amor. Acho-a
um pouco estranha, querida, mas sempre é reconfortante
conversar com você. Gosto de lhe contar tudo e creio que o
mesmo se dá com todos da boa sociedade nova-iorquina...
Compreende-me?
— Claro. Mas não me julgo estranha, Alma.
— Um pouco sim, querida. Às vezes, quando lhe falo de
minhas coisas, é... é como se você já as soubesse de
antemão.
— Tolice.
— Tal como aquela mulher, aquela... pitonisa. Sabe que
está agora em Nova Iorque, com um sucesso total? Oh, foi
incrível acredite! Adivinhou tudo, como se me tivesse
conhecido desde sempre! E também adivinhou aquele
complot no Consulado de Monteguai... Uma mulher
pavorosa! Bom, vou andando... Mandarei-lhe um postal de
Hong Kong, querida!
— Você é muito amável, Alma.
— Sabe de uma coisa que me deixou um bocado
surpreendida? Você sempre está em todos os lugares onde
acontece algo importante, entretanto não se encontrava lá
naquela noite.
— É impossível estar em todos os lugares onde ocorre
algo interessante, querida. Para isso é necessário ser... uma
pitonisa.
Alma Mary Sutters riu alegremente.
— É verdade! — exclamou. — E você de pitonisa é que
não tem nada.
— Eu sei — sorriu Brigitte. — Seria preciso estar doido
para confundir-me com uma pitonisa. Adeus, Alma Mary:
feliz viagem a Hong Kong.

A seguir: PARALISAÇÃO MUNDIAL

© 1970 – LOU CARRIGAN


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Dizem que o pessimista é um otimista que foi melhor
informado

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