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Visao e o Cheiro Dos Mortos Uma Experien PDF
Visao e o Cheiro Dos Mortos Uma Experien PDF
Flavia Medeiros
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.
e elucidar formas possíveis de relação com o trabalho de campo, visão e cheiro foram a mim
meio ambiente e o mundo cotidiano. apresentadas como habilidades desenvolvidas por
Construído pela “prática etnográfica”, que médicos legistas, papiloscopistas e técnicos de ne-
tem no olhar sua principal ferramenta, esse co- crópsia que, naquele contexto, tinham como prin-
nhecimento sobre o outro é fruto da observação cipal atividade a manipulação de corpos mortos.
planejada e continuada (cf. MAGNANI, 2009, Neste sentido, ao refletir sobre questões oriundas da
p. 151). Na realização contínua desse exercício, realização do trabalho de campo entre mortos, de-
porém, a etnografia também passa a ser vislum- monstrarei como percepções sensoriais se apresen-
brada como uma experiência através da qual o tam como ferramentas metodológicas na reflexão da
pesquisador não apenas acessa e compreende experiência etnográfica, ao mesmo tempo em que
os elementos acionados pelos interlocutores, foram um elemento relevante na comunicação que
como também é movido, durante o trabalho estabeleci com meus interlocutores.
de campo, a perceber a partir de seus próprios A seguir, o artigo está organizado da seguinte
meios, do seu “organismo/pessoa”, aquele meio forma: primeiramente cotejo o trabalho de campo
ambiente no qual está imerso, acessando assim realizado no IML com aqueles que manipulavam
um novo mundo para si (INGOLD, 2000, corpos mortos. Em seguida, apresento as represen-
p.153). E, nesta direção, constitui a “experiên- tações e opiniões de colegas, amigos e familiares
cia etnográfica”, que desenvolve “tipos não-vi- sobre os mortos e o IML, e como essas me permi-
suais de percepção”, tendo o cheiro como uma tiram compreender as relações de “pureza” e “peri-
de suas alternativas para abranger os diferentes go” (DOUGLAS, 2010) socialmente estabelecidas
estímulos provocados na realização do trabalho em relação aos mortos. Posteriormente, descrevo a
de campo (BUBANDT, 1998, p. 49). minha “primeira impressão” (MAGNANI, 2009)
Neste artigo tenho como objetivo refletir acer- no trabalho de campo e demonstro como o ver e
ca da minha “experiência etnográfica”, durante o o estar em contato com mortos permitiram-me
trabalho de campo1 que realizei no Instituto acessar as “intensidades específicas”, ou seja, os
Médico-Legal do Rio de Janeiro,2 analisando “afetos [...] que geralmente não são significá-
aquele ambiente a partir de duas formas de per- veis” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159) e que,
cepção: a visão e o olfato. Para cada uma delas, por sua vez, tornaram possível a naturalização
destacarei uma circunstância distinta da “experi- da relação de ver e estar em contato com os cadá-
ência etnográfica” que obtive. Na primeira, o veres. A seguir, descrevo a “experiência reveladora”
olhar, ferramenta de percepção tradicional da (MAGNANI, 2009) na qual o cheiro de um cadá-
antropologia, se fez central e é apresentado ver específico me alertou para como o odor que pre-
por meio da “primeira impressão” ao estar em enchia o espaço e impregnava os corpos auxiliava
contato com o campo e ver corpos humanos na classificação dos cadáveres, na organização do
sem vida. A outra circunstância descrita tem o espaço e marcava as relações no meio ambiente.
cheiro como forma de percepção que, em uma Além disso, demonstro como para aqueles que têm
“experiência reveladora”, se demonstrou como a habilidade do faro,3 o olfato é ferramenta de or-
um elemento constitutivo das relações dos que ganização nas relações no tempo e no espaço. Por
circulam cotidianamente entres os corredores e fim, reflito sobre como essa experiência etnográfi-
salas do IML. ca possibilitou compreender aspectos referentes ao
Ademais, minhas percepções, acionadas como ambiente por mim observado e de qual forma uma
ferramentas que mobilizei para a realização do etnografia que leve em conta a multiplicidade das
percepções é o meio que o antropólogo possui de No que se refere aos corpos humanos sem
construir conhecimento sobre o outro, tanto quan- vida, são executados exames necroscópicos que
to (re)construir-se após a passagem pelo trabalho de possibilitam identificar a causa mortis, ou me-
campo. lhor, a defini-la em termos médico-legais de
mortes violentas ou daquelas que não tenham
O Instituto Médico-Legal diagnóstico médico conclusivo. Assim, víti-
mas fatais de acidentes de trânsito; projéteis
O IML é onde corpos sem vida encontram por arma de fogo (PAF); perfuração por arma
a morte e, por meio de técnicas da medicina-le- branca (PAB); incêndios; afogamentos; atro-
gal e de procedimentos burocráticos e policiais, pelamento; desabamentos; envenenamento;
são definidos como mortos, sendo a morte suicídios; acidentes em geral; ossadas; partes de
institucionalizada. A partir dos processos de corpos humanos – denominados despojos; ca-
institucionalização e distanciamento da morte, dáveres encontrados em via pública, residência
“tudo se passa na cidade como se já ninguém ou estabelecimento comercial; fetos e alguns
morresse” (ARIÈS, 1988, p. 310), mas, no indivíduos que morrem em estabelecimentos
IML, a caixa preta das vítimas fatais da cidade de saúde têm seus corpos encaminhados ao
do Rio de Janeiro, tudo se passa como se, na IML. São esses cadáveres que ocupam as salas
cidade, todo mundo estivesse, a todo tempo, e circulam entre os corredores do Serviço de
morrendo. Necrópsia do IML. Lá a morte não está escon-
O Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, dida, ela é um “acontecimento” (SAHLINS,
nome oficial do IML do Rio de Janeiro, está 1990), pois faz parte do cotidiano. Numa so-
inscrito na estrutura da Secretaria de Estado de ciedade onde a morte não é bem-vinda e os
Segurança, subordinado diretamente à chefia mortos são continua, ritual e burocraticamente
da Polícia Civil, no grupo de instituições de- expulsos de suas relações sociais, pode-se afir-
nominado Polícia Técnico-Científica. Além mar que o IML é o esconderijo do “tabu da
do IML, compõem esse grupo: o Instituto morte” (RODRIGUES, 2006).
de Criminalística Carlos Éboli (ICCE); Inicialmente, meu objetivo era compreender os
o Instituto de Identificação Félix Pacheco procedimentos realizados em relação aos cadáveres,
(IIFP); o Instituto de Perícias e Pesquisa bem como identificar as lógicas e os valores morais
em Genéticas Forense (IPPGF); e os Postos acionados pelos funcionários dessa instituição no tra-
Regionais de Polícia Técnico-Científica. balho cotidiano com corpos sem vida. Assim, duran-
O IML está localizado na Leopoldina, re- te o trabalho de campo, observei como uma série
gião central da cidade do Rio de Janeiro, e fun- de procedimentos referentes aos mortos eram
ciona num prédio de cinco andares que fora realizados com a finalidade de produzir a identi-
construído, no ano de 2009, com a finalidade ficação civil e estabelecer a causa mortis de um ca-
de abrigar esse instituto. No IML são realiza- dáver por meio dos exames médico-legais. Meus
das perícias médico-legais em corpos humanos interlocutores se referiam a este conjunto de
com e sem vida. Tais procedimentos visam à procedimentos, que denominei de “construção
construção de documentos públicos que per- institucional de mortos” (MEDEIROS, 2012),
mitam estabelecer uma verdade médico-legal como “matar o morto”. Como demonstrarei ao
sobre os corpos, envolvidos ocasionalmente em longo do artigo, tendo como referência direta o
algum tipo de ocorrência policial. corpo sem vida, tais procedimentos construíam
classificações sobre os mortos, projetando neles pesquisar num lugar sujo, contaminado, fedido,
ações e ativando suas relações sociais. carregado?
Dessa forma, eu mesma reafirmava esse siste- como seria quando eu estivesse no trabalho de
ma de crenças e reproduzia as representações campo. Sabia que naquela instituição há uma
de nojo e contaminação em relação à morte e grande diversidade de estados do corpo. Não
aos mortos. seriam apenas corpos de pessoas inertes como
eu já havia visto5. mas também ossadas, carbo-
Quanto à visão oposta – de que o ritual primi- nizados, despojos, putrefatos, baleados, corpos
tivo nada tem em comum com nossas ideias de com dimensões e formas alteradas etc. As im-
limpeza – lastimo por ser igualmente prejudicial pressões de professores, colegas, amigos e a fala
ao entendimento do ritual. Nesta visão, nossos dos meus interlocutores reforçavam que o IML
atos de lavar, escovar, isolar e desinfetar, têm so- era reconhecidamente o espaço dos mortos e
mente uma semelhança superficial com purifi- da morte.
cações rituais. Nossas práticas são solidamente Ao se referir ao afeto, a antropóloga
baseadas em higiene; as deles são simbólicas: Favret-Saada (2005) apresenta uma nova for-
nós matamos germes; eles afastam espíritos. ma de se relacionar com o trabalho de campo
(DOUGLAS, 2010, p. 47) na qual ao “ser afetado”, o antropólogo per-
mite se expor à dimensão do outro, ao afeto
Não é que os “primitivos” apresentem as- dos seus interlocutores, enfim, a se submeter
pectos apenas simbólicos ao que se refere à à “experiência etnográfica”. Durante todo o
sujeira, enquanto “nós” – “ocidentais” e “mo- tempo que estive fazendo trabalho de cam-
dernos” – e “nossas ideias de sujeira” se refiram po no IML, os policiais buscavam me ensinar
ao caráter higiênico (DOUGLAS, 2010, p. como olhar os corpos e explicitavam sua com-
49).4 O que é “socialmente mal visto” em nossa preensão acerca das relações de distanciamen-
sociedade não é o IML, mas a própria ideia da to naturalmente tomadas diante dos mortos e
morte que o IML e os mortos trazem. Os mor- da morte. Na minha pesquisa, foi a partir da
tos são representantes da desordem nessa clas- experiência cotidiana de meus interlocutores
sificação sistemática, e o IML é o lugar onde com os cadáveres que eu pude experimentar
os mortos são manipulados e as técnicas sobre como era o ver e o estar em contato com os
estes são exercidas. cadáveres.
Portanto, o que se expressa pelas reações Desde a “primeira impressão” foi assim.
e impressões que descrevi pode ser pensado Vinte e sete de dezembro era a data que havia
como repúdio e desejo de distanciamento por marcado com o papiloscopista que se dispo-
parte daqueles cuja noção não admite a morte nibilizou a me auxiliar no início da pesquisa.
como parte da vida. “Resumindo, nosso com- Cheguei ao IML no horário marcado e, após
portamento de poluição é a reação que condena passar pelo balcão, fui direto a sua sala. Lá,
qualquer objeto ou ideia capaz de confundir ou ele me perguntou se eu queria ver os mortos,
contradizer classificações ideais” (DOUGLAS, ao que respondi que não era uma questão de
2010, p. 51). querer, mas que poderia vê-los, sim. Naquela
ocasião, ele havia combinado que iria me apre-
Estando lá: “primeira impressão” sentar a estrutura do prédio do IML, e com a
positividade de minha resposta, saímos pela
Deixando de lado as impressões e repre- entrada principal, passando pelo pátio – que
sentações sobre o IML, passei a me focar em também serve de estacionamento – e seguimos
pelos fundos do prédio, onde estava a porta Com a porta da geladeira aberta, o papilos-
pela qual os corpos entravam no instituto. Ao copista me explicava como é o procedimento
invés de fazer o percurso dos vivos, o papilosco- de organização de corpos ali. Foi quando um
pista optou por me mostrar o IML a partir do dos técnicos de necropsia, responsável pela
percurso feito pelos mortos. remoção de corpos, se aproximou, nos cum-
Assim que subimos a rampa, havia o cadá- primentou e entrou na câmara. Lá olhou em
ver de uma senhora de aproximadamente 90 três gavetas, abriu a terceira, viu o número de
num caixão. Não me assustei, pois já espera- registro na placa de metal presa no dedão do
va ver um morto e, talvez, porque, depois de pé do cadáver e preparou a maca de remoção. A
tantos meses ouvindo histórias e absorven- funerária havia chegado para buscar o corpo.
do representações, esperasse por “algo pior”. Saímos dali.
Contudo a lembrança daquele corpo franzino e Voltávamos pelo mesmo corredor, e no-
encolhido com a pele já num tom esverdeado, vamente passamos pela Sala de Necrópsia.
mal encaixado num caixão, por muito tempo O cadáver da mulher ainda era necropsiado
foi facilmente acessada em minha mente. enquanto o cadáver de um homem aguar-
Depois, seguimos pelo Setor de Necrópsia dava por sua vez na outra mesa. Um pouco
e passamos em frente às salas onde eram fei- depois, quando os exames já tinham sido re-
tos os exames. Em uma delas o cadáver de uma alizados, fui com o papiloscopista até o Setor
mulher aguardava para ser aberto. Fomos até de Vestes para observá-lo coletar as digitais.
o Laboratório Necropapiloscópico, do lado Eram os cadáveres da mulher e do homem
oposto do corredor, pegar o E.P.I6. Enquanto que eu vira minutos antes. Ela havia sofrido
vestia as luvas, observava os potes de vidro um infarto no miocárdio, e ele fora balea-
com punhos, falanges e mãos carbonizados que do no abdômen. Ambos os corpos estavam
boiavam nas soluções químicas. Tive a certe- muito inchados. O papiloscopista iniciou
za de que naquele momento meu trabalho de seu procedimento de coleta de digitais pelas
campo havia começado. Minha sensação era de mãos da mulher.
ansiedade, não apenas por ver outros corpos Enquanto isso, contava-me sobre como
mortos, mas, principalmente, para ter certeza começou a trabalhar com mortos. No come-
de que eu não teria nojo ou qualquer problema ço tinha nojo; quando estava na Academia da
com cadáveres, pois disso dependia meu traba- Polícia Civil gastou todas as faltas que podia
lho de campo. Hoje compreendo que minha nas visitas do IML. A primeira vez que viu um
ansiedade era em ver naturalmente os corpos. morto tão de perto na vida foi quando começou
Dirigimo-nos à câmara frigorífica. Quando a trabalhar nesse Instituto, e que a dica que de-
passamos novamente pela sala de necrópsia, o ram para ele, a qual usa até hoje, é não olhar
corpo da mulher estava sendo aberto. Olhei ra- para o corpo, mas apenas para as mãos. Eu não
pidamente, mas não consegui ver nada. O pa- preciso de mais nada, só de saber se a digital tá
piloscopista abriu a porta da câmara frigorífica. boa ou não.
Junto com a saída do vapor gelado, a minha Ao compartilhar como desenvolveu sua téc-
ansiedade se resfriou. E então, pela primeira nica para lidar, manipular e identificar cadáve-
vez, passei a olhar atentamente para aquela res, o papiloscopista buscava demonstrar que,
coleção de corpos em gavetas, dos quais eu só em certo nível, compreendia a sensação de ver
conseguia ver os pés. corpos sem vida pela primeira vez, pois já havia
passado por ela. Ou melhor, além dela, afinal simplesmente não queria pensar ou me im-
ele não apenas observava como inclusive deve- portar com eles.
ria tocar e movimentar os corpos. Tentei seguir Assim que cheguei em casa, o primeiro de-
a dica por ele oferecida e me concentrar em sejo era de tomar banho. Sabia que qualquer
olhar as mãos, mas a curiosidade de compreen- risco de contaminação biológica ou sujeira é
der a costura bizarra que atravessava longitudi- nulo7, mas a sensação era de que minhas roupas
nalmente o corpo, a cabeça jogada para o lado pesavam mais do que de costume.
direito, a língua quase que para fora da boca e
as pernas inchadas daquele corpo atraíam meu Impureza ou sujeira é aquilo que não pode
olhar. Assim como aqueles que trabalham roti- ser incluído, se se quiser manter um padrão.
neiramente com os cadáveres, eu estava tentan- Reconhecê-lo é o primeiro passo para a com-
do ver um cadáver naturalmente. preensão da poluição. Não nos envolve numa
A “comunicação involuntária” (FAVRET- distinção clara entre o sagrado e o secular. O
SAADA, 2005) que estabelecia com meus mesmo princípio se aplica do começo ao fim.
interlocutores se dava nos momentos em que Outrossim, não envolve uma distinção especial
nenhuma fala podia significar a sensação de es- entre primitivos e modernos: estamos todos
tar junto aos mortos por mais que se tentasse sujeitos às mesmas regras. (DOUGLAS, 2010,
fazê-lo. Apesar de descrever minha experiência p. 56).
e as sensações que tive a partir delas, minha
descrição não é capaz de transmitir tal afeto: Nesse dia foi difícil não retomar incons-
“o próprio fato de que aceito ocupar esse lu- cientemente a imagem dos corpos. Fui deitar
gar e ser afetada por ele abre uma comunicação às onze horas da noite. Ainda me esforçava
específica com os nativos: uma comunicação para pensar em outra coisa e tentei até ficar
sempre involuntária e desprovida de inten- cansada de tanto forçar o pensamento, mas
cionalidade, e que pode ser verbal ou não”. só consegui dormir poucas horas antes do
(FAVRET-SAADA, 2005, p.159). amanhecer.
No final do dia, saí do IML e joguei fora
o dente de alho que estava junto ao meu pei- [...] quando um etnógrafo aceita ser afetado,
to. Imagens iam e vinham na minha cabeça. isso não implica identificar-se com o ponto de
Eram imagens de corpos mortos. E enquan- vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de
to me dirigia ao ponto de ônibus e passa- campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser
va por transeuntes, rapidamente na minha afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de
mente via essas pessoas como corpos sem ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois
vida, deitadas nas macas de metal do IML se o projeto de conhecimento for onipresente,
aguardando pela necrópsia. Quanto mais eu não acontece nada. Mas se acontece alguma coi-
me esforçava para não pensar em cadáveres, sa e se o projeto de conhecimento não se perde
mais eu pensava. Eram cadáveres desconhe- em meio a uma aventura, então uma etnografia é
cidos, de pessoas de quem não sabia o nome possível. (FAVRET-SAADA, 2005, p.160)
ou a identificação. Na tentativa de parar de
ver imagens dos corpos, me esforçava para Em algumas semanas de observação, esse
pensar em outras imagens. Buscando natu- ver involuntário diminuiu. E, depois de algum
ralizar o ver cadáveres, naquele momento, eu tempo, o ver cadáveres já não me impressionava
tanto. Habituei-me a ver corpos e assistir a to- Se, por um lado, eu já havia naturalizado o
dos os procedimentos nos exames de necrópsia. ver e o estar com os mortos e até estava protegi-
Aos poucos, no decorrer de um pouco mais do da deles, por outro me encontrava plenamente
que a metade dos nove meses de trabalho siste- vulnerável a sua presença. O repúdio e a curio-
mático de campo, considerava que eu havia me sidade em relação ao IML não se dão apenas
socializado com os corpos. Já parecia ter na- por essa via espiritual, em que o contato com
turalizado aquela atividade. E, ao rememorar os mortos é visto como algo perigoso. O cheiro
os cadáveres para narrá-los, sou capaz de cons- daquele lugar também é tomado como um mo-
truir mentalmente as imagens desses corpos. Se tivo para o distanciamento e evidência de sua
após minha “primeira impressão” no IML eu impureza. É um dos principais motivos para o
não tinha controle sobre as visões em minha repúdio, mas também fator de curiosidade aos
mente, depois do trabalho de campo finalizado que não conhecem o local.
continuei não o tendo, só que em um sentido O sentir cheiro de carnes humanas em es-
diferente. Se a princípio essas imagens eram tado de putrefação – os chamados corpos po-
exarcebadas, depois se tornaram quase nulas. dres – é considerado muito desagradável. E, ao
Eu havia aprendido a ver corpos de pessoas mencionar o IML no Rio de Janeiro, muitas
mortas. pessoas comentam que no antigo IML, cujo
Além disso, compartilhar o mesmo espaço endereço é na Rua dos Inválidos no bairro da
com corpos sem vida por um período de tempo Lapa, o cheiro era tão forte e tão ruim que não
construiu em mim uma capacidade de imagi- só o prédio mas também seu entorno fediam a
nar cadáveres. E, por mais que eu não consiga corpos putrefatos. No atual lugar, os corpos, em
vê-los exatamente como os vi nos corredores e geral, não circulam no interior do prédio, tendo
salas do IML, sou capaz de representar mental- uma área anexa reservada e separada a eles. Foi
mente o cadáver de qualquer pessoa e inclusive por isso que, quando o cadáver de Lucilene8 foi
saber que os corpos sem vida que figuram em aberto na sala dois do Setor de Necrópsia, um
filmes e séries policiais, por exemplo, muito grande incômodo se instalou, o fedor era muito
pouco têm a ver com o possível. forte, e ao perceber a intensidade daquele chei-
ro, eu passava ali por uma “experiência revela-
Cheiro: “experiência reveladora” dora” em meu trabalho de campo.
Esqueceram essa mulher no hospital!, excla-
[...] as pessoas podiam fechar os olhos diante da mou o perito ao constatar que o cadáver, com
grandeza, do assustador, da beleza, e podiam ta- morte registrada no hospital às 18 horas, já
par os ouvidos diante da melodia ou de palavras estava em estado de putrefação às 21 horas.
sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. No interior do cadáver, vísceras em putrefação
Pois o aroma é um irmão da respiração - ele pe- e estômago em estado intermediário de putre-
netra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe fação corroboravam com a hipótese do perito
caso queiram viver. E bem para dentro delas é médico-legista: Sacanagem! Ela tá podre!.
que vai o aroma, diretamente para o coração, Quando saí da sala de necropsia e entrei na
distinguindo lá categoricamente entre atração e de digitação de laudos, a policial do setor virou-
menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem -se e me disse: Vixe, você tá fedendo! Cheirei meu
dominasse os odores dominaria o coração das cabelo e minhas roupas em busca do fedor, e não
pessoas. (SUSKIND, 1985). encontrei. Sério?! Você acha?, e levei meu cabelo
para próximo ao nariz dela. Ih, não é você, não! vezes o odor se assemelha ao de dejetos fecais;
Você não foi lá fora?. Ela se referia ao outro exame outras vezes, quando coletado o material do es-
que ia ser realizado na sala de necrópsias destina- tômago, um forte cheiro similar ao de vômito
da a putrefatos. Não, tava aqui mesmo, respondi. era exalado. Cadáveres carbonizados também
Não é possível! Esse cheiro é daqui, então?! Meu apresentam seu cheiro característico. Como
Deus! Neguinho perde a noção, espantou-se. carnes que passaram do ponto, o odor de um
O forte cheiro do cadáver putrefato de corpo humano queimado é percebido como
Lucilene ocupou os corredores. O perito médi- um dos menos desagradáveis.
co-legista entrou na sala de digitação de laudos. Já na câmara frigorífica, junto com o ar frio
Esse podrinho eu acho que vou indeterminar, se que sai desse congelador de corpos, chega o
referindo a causa mortis que iria declarar no odor azedo de carne não tão fresca. O cheiro do
Laudo Médico-Legal de Lucilene: morte inde- Setor de Necrópsia, em geral, não é agradável,
terminada por avançado estado de putrefação do mas, para mim, também não era insuportável.
cadáver. Enquanto o médico-legista e a poli- Quanto mais me aproximava do fim do corre-
cial construíam o Laudo, e o técnico de cortes dor, onde está a câmara frigorífica, percebia que
suturava o cadáver, funcionários da equipe de menos agradável ficava o cheiro.
limpeza começavam o trabalho no corredor Pela percepção de diferentes odores, o ol-
para amenizar o cheiro. Os produtos de lim- fato auxilia na leitura do corpo, permitindo
peza utilizados eram tão densos, que dessa vez identificar seu estado e condição. O olfato é a
foi o cheiro da creolina que incomodou perito ferramenta que faz perceber os cheiros e ativa
e policial. Cacete, isso aqui não tem janela! Cês a memória dos que por aquelas salas e corre-
querem me matar?, exclamou a policial. dores circulam. O cheiro é uma das maneiras
O cheiro, ou fedor, era tema constante possíveis de percepção do meio ambiente e de
de conversa entre os funcionários do IML. expressão da existência do “organismo/pessoa”
Os serventes da empresa terceirizada de limpeza (INGOLD, 2000, p. 95). A elaboração dos
contavam que muitas pessoas, principalmente aromas no corpo e na mente constitui um lu-
mulheres, não conseguiam trabalhar no Setor gar determinado (CLASSEN, 1993) e, ao mes-
de Necrópsia porque passavam mal devido ao mo tempo, quando vinda dos corpos sem vida,
cheiro. Ver morto a gente acostuma, mas o chei- mantém viva a presença dos mortos no mundo.
ro mexe com a gente diferente... nem sempre tem Além daquele dos corpos, outros odores ha-
como controlar, me explicou uma das serventes. bitam os corredores do IML. Metaforicamente,
Para ela, o cheiro é um daqueles sentidos cuja o faro é o “olfato dirigido” (RENOLDI, 2007a,
percepção atinge os sentimentos9. p. 156) que torna os policiais capazes de per-
Diferente do cadáver de Lucilene, durante ceber e intuir o mundo. No Instituto, o faro
a realização de necrópsias de corpos não-putre- policial faz parte do denominado tirar policial,
fatos, o odor é outro. Esse era descrito como sendo usado como uma ferramenta de avalia-
sendo cheiro de sangue, muito sangue mistura- ção policial que constitui o saber dos policiais
do. Há também o odor dos órgãos do sistema sobre o outro (KANT DE LIMA, 1995). Ele é
digestório e as substâncias presentes neles. Os ativado pelos odores que ocupam os corredores
cadáveres são frescos, mas os alimentos ingeri- e são indicadores das práticas e dos momen-
dos horas antes de morrer, nem tanto. Assim, tos da rotina de trabalho. O cheiro permite
quando aberto o abdômen dos cadáveres, por que se visualizem coisas onde essas não estão
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Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014