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Visão e o cheiro dos mortos: uma experiência


etnográfica no Instituto Médico-Legal

Flavia Medeiros
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

DOI 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p77-89 “revelatory experience” that occurred when the


research was already underway , and showed me
resumo Neste artigo irei apresentar e analisar how the smell is a constitutive element of the re-
duas circunstâncias diferentes da “experiência etno- lationship among people that circulate daily in
gráfica” que obtive ao realizar trabalho de campo no the hallways and rooms of the IML. For this, I
Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro (IML). use my perception of two human senses: vision
A “primeira impressão” ao estar em contato com o and smell. And I analyze them as tools that I mo-
campo e ver corpos mortos; e a “experiência revela- bilized for conducting fieldwork with informants
dora”, que ocorreu quando a pesquisa já estava em whose main activity was handling with dead bod-
andamento, e me demonstrou como o cheiro é um ies. Thus, I present how conducting fieldwork
elemento constitutivo das relações dos que circulam among the dead I have identified my visual and
cotidianamente entres os corredores e salas do IML. olfactory perceptions as central methodologi-
Para tanto, acionando a percepção de dois sentidos cal tools for reflection for my ethnographic
humanos – a visão e o olfato –, analiso como no experience.
contexto pesquisado estes são ferramentas daqueles keywords Ethnography; Dead; Smell; Vision;
cuja principal atividade é a manipulação de corpos Medical Legal Institute.
mortos (médicos legistas, papiloscopistas legistas e
técnicos de necrópsia). Discuto ainda como, ao re-
alizar trabalho de campo entre mortos, identifiquei Introdução
as percepções visuais e olfativas como ferramentas
metodológicas centrais para a reflexão da “experiên- Na Antropologia, diversos trabalhos apresen-
cia etnográfica.” tam como a percepção e posterior classificação
palavras-chave Etnografia; Mortos; Olfato; dos sentidos humanos, e também os possíveis
Visão; Instituto Médico-Legal. usos metafóricos destes, conformam um im-
portante objeto para a análise etnográfica (cf.
Sight and smell of corpses: an ethnographic CLASSEN, 1993, 1997; BUBANDT, 1998;
experience in the Forensic Medicine Institute VIVEIROS DE CASTRO, 2002; HOWES,
2004; OVERING, 2006; RENOLDI, 2006).
abstract In this article I will present and Ao acessar e compreender as experiências de
analyze two different circumstances in “ethno- ser e habitar o mundo, na continuidade e di-
graphic experience” that got me while perform- ferenças construídas culturalmente entre o
ing fieldwork in the Medical-Legal Institute in corpo e a mente (INGOLD, 2000), aciona-se
Rio de Janeiro. The “first impression” being in a percepção dos sentidos humanos, e a experi-
touch with the field and see the dead bodies; and ência advinda daí passa a compor a etnografia

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e elucidar formas possíveis de relação com o trabalho de campo, visão e cheiro foram a mim
meio ambiente e o mundo cotidiano. apresentadas como habilidades desenvolvidas por
Construído pela “prática etnográfica”, que médicos legistas, papiloscopistas e técnicos de ne-
tem no olhar sua principal ferramenta, esse co- crópsia que, naquele contexto, tinham como prin-
nhecimento sobre o outro é fruto da observação cipal atividade a manipulação de corpos mortos.
planejada e continuada (cf. MAGNANI, 2009, Neste sentido, ao refletir sobre questões oriundas da
p. 151). Na realização contínua desse exercício, realização do trabalho de campo entre mortos, de-
porém, a etnografia também passa a ser vislum- monstrarei como percepções sensoriais se apresen-
brada como uma experiência através da qual o tam como ferramentas metodológicas na reflexão da
pesquisador não apenas acessa e compreende experiência etnográfica, ao mesmo tempo em que
os elementos acionados pelos interlocutores, foram um elemento relevante na comunicação que
como também é movido, durante o trabalho estabeleci com meus interlocutores.
de campo, a perceber a partir de seus próprios A seguir, o artigo está organizado da seguinte
meios, do seu “organismo/pessoa”, aquele meio forma: primeiramente cotejo o trabalho de campo
ambiente no qual está imerso, acessando assim realizado no IML com aqueles que manipulavam
um novo mundo para si (INGOLD, 2000, corpos mortos. Em seguida, apresento as represen-
p.153). E, nesta direção, constitui a “experiên- tações e opiniões de colegas, amigos e familiares
cia etnográfica”, que desenvolve “tipos não-vi- sobre os mortos e o IML, e como essas me permi-
suais de percepção”, tendo o cheiro como uma tiram compreender as relações de “pureza” e “peri-
de suas alternativas para abranger os diferentes go” (DOUGLAS, 2010) socialmente estabelecidas
estímulos provocados na realização do trabalho em relação aos mortos. Posteriormente, descrevo a
de campo (BUBANDT, 1998, p. 49). minha “primeira impressão” (MAGNANI, 2009)
Neste artigo tenho como objetivo refletir acer- no trabalho de campo e demonstro como o ver e
ca da minha “experiência etnográfica”, durante o o estar em contato com mortos permitiram-me
trabalho de campo1 que realizei no Instituto acessar as “intensidades específicas”, ou seja, os
Médico-Legal do Rio de Janeiro,2 analisando “afetos [...] que geralmente não são significá-
aquele ambiente a partir de duas formas de per- veis” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159) e que,
cepção: a visão e o olfato. Para cada uma delas, por sua vez, tornaram possível a naturalização
destacarei uma circunstância distinta da “experi- da relação de ver e estar em contato com os cadá-
ência etnográfica” que obtive. Na primeira, o veres. A seguir, descrevo a “experiência reveladora”
olhar, ferramenta de percepção tradicional da (MAGNANI, 2009) na qual o cheiro de um cadá-
antropologia, se fez central e é apresentado ver específico me alertou para como o odor que pre-
por meio da “primeira impressão” ao estar em enchia o espaço e impregnava os corpos auxiliava
contato com o campo e ver corpos humanos na classificação dos cadáveres, na organização do
sem vida. A outra circunstância descrita tem o espaço e marcava as relações no meio ambiente.
cheiro como forma de percepção que, em uma Além disso, demonstro como para aqueles que têm
“experiência reveladora”, se demonstrou como a habilidade do faro,3 o olfato é ferramenta de or-
um elemento constitutivo das relações dos que ganização nas relações no tempo e no espaço. Por
circulam cotidianamente entres os corredores e fim, reflito sobre como essa experiência etnográfi-
salas do IML. ca possibilitou compreender aspectos referentes ao
Ademais, minhas percepções, acionadas como ambiente por mim observado e de qual forma uma
ferramentas que mobilizei para a realização do etnografia que leve em conta a multiplicidade das

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percepções é o meio que o antropólogo possui de No que se refere aos corpos humanos sem
construir conhecimento sobre o outro, tanto quan- vida, são executados exames necroscópicos que
to (re)construir-se após a passagem pelo trabalho de possibilitam identificar a causa mortis, ou me-
campo. lhor, a defini-la em termos médico-legais de
mortes violentas ou daquelas que não tenham
O Instituto Médico-Legal diagnóstico médico conclusivo. Assim, víti-
mas fatais de acidentes de trânsito; projéteis
O IML é onde corpos sem vida encontram por arma de fogo (PAF); perfuração por arma
a morte e, por meio de técnicas da medicina-le- branca (PAB); incêndios; afogamentos; atro-
gal e de procedimentos burocráticos e policiais, pelamento; desabamentos; envenenamento;
são definidos como mortos, sendo a morte suicídios; acidentes em geral; ossadas; partes de
institucionalizada. A partir dos processos de corpos humanos – denominados despojos; ca-
institucionalização e distanciamento da morte, dáveres encontrados em via pública, residência
“tudo se passa na cidade como se já ninguém ou estabelecimento comercial; fetos e alguns
morresse” (ARIÈS, 1988, p. 310), mas, no indivíduos que morrem em estabelecimentos
IML, a caixa preta das vítimas fatais da cidade de saúde têm seus corpos encaminhados ao
do Rio de Janeiro, tudo se passa como se, na IML. São esses cadáveres que ocupam as salas
cidade, todo mundo estivesse, a todo tempo, e circulam entre os corredores do Serviço de
morrendo. Necrópsia do IML. Lá a morte não está escon-
O Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, dida, ela é um “acontecimento” (SAHLINS,
nome oficial do IML do Rio de Janeiro, está 1990), pois faz parte do cotidiano. Numa so-
inscrito na estrutura da Secretaria de Estado de ciedade onde a morte não é bem-vinda e os
Segurança, subordinado diretamente à chefia mortos são continua, ritual e burocraticamente
da Polícia Civil, no grupo de instituições de- expulsos de suas relações sociais, pode-se afir-
nominado Polícia Técnico-Científica. Além mar que o IML é o esconderijo do “tabu da
do IML, compõem esse grupo: o Instituto morte” (RODRIGUES, 2006).
de Criminalística Carlos Éboli (ICCE); Inicialmente, meu objetivo era compreender os
o Instituto de Identificação Félix Pacheco procedimentos realizados em relação aos cadáveres,
(IIFP); o Instituto de Perícias e Pesquisa bem como identificar as lógicas e os valores morais
em Genéticas Forense (IPPGF); e os Postos acionados pelos funcionários dessa instituição no tra-
Regionais de Polícia Técnico-Científica. balho cotidiano com corpos sem vida. Assim, duran-
O IML está localizado na Leopoldina, re- te o trabalho de campo, observei como uma série
gião central da cidade do Rio de Janeiro, e fun- de procedimentos referentes aos mortos eram
ciona num prédio de cinco andares que fora realizados com a finalidade de produzir a identi-
construído, no ano de 2009, com a finalidade ficação civil e estabelecer a causa mortis de um ca-
de abrigar esse instituto. No IML são realiza- dáver por meio dos exames médico-legais. Meus
das perícias médico-legais em corpos humanos interlocutores se referiam a este conjunto de
com e sem vida. Tais procedimentos visam à procedimentos, que denominei de “construção
construção de documentos públicos que per- institucional de mortos” (MEDEIROS, 2012),
mitam estabelecer uma verdade médico-legal como “matar o morto”. Como demonstrarei ao
sobre os corpos, envolvidos ocasionalmente em longo do artigo, tendo como referência direta o
algum tipo de ocorrência policial. corpo sem vida, tais procedimentos construíam

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classificações sobre os mortos, projetando neles pesquisar num lugar sujo, contaminado, fedido,
ações e ativando suas relações sociais. carregado?

Quem vê, nem acredita que ela possa Dente de alho


fazer um trabalho de campo desses!
Diversas dicas e conselhos me foram apre-
Ao contar a colegas, familiares e até professo- sentados e, em certa medida, me preocupei
res no programa de pós-graduação onde seria meu com eles. Uma amiga umbandista, ao saber de
trabalho de campo, sempre recebia reações, minha intenção de pesquisar no IML, reco-
fossem elas de surpresa, nojo ou preocupação. mendou-me o uso de um dente de alho junto
Alguns diziam: você é maluca!, outros achavam ao peito, pois aquele é um lugar muito pesado.
corajoso, maneiro, mórbido, sádico, interessante. Eu também deveria tomar banhos especiais –
Não me recordo de alguém que tenha ficado por exemplo, com sabão de coco antes de ir, e
apático. Ninguém disfarçava surpresa, nojo, ad- com sal grosso ao voltar para casa. Os banhos,
miração ou preocupação todas as vezes que eu falava sempre do pescoço para baixo, e o dente de
sobre minha pesquisa. alho funcionariam como uma proteção para as
Muitas pessoas não viam em mim alguém que energias ruins com as quais eu entraria em con-
pudesse trabalhar no IML. Nossa, tão boniti- tato ao também circular naquele espaço. “No
nha, tão novinha, tão limpinha. Quem vê, nem IML as pessoas morreram com muito sofrimento,
acredita que ela possa fazer um trabalho desses!, seus espíritos ainda não estão tranquilos e ficam
me disse uma professora durante uma aula procurando alguém vulnerável para ocupar”, me
de Métodos em Antropologia. Quando vista explicou.
como antropóloga fazendo pesquisa no IML, era Muitos poderiam achar esse procedimento
atingida pelas preocupações dos outros, em de banhos e dente de alho uma bobagem; ou-
especial preocupações de caráter emocional e tros, no entanto, creem nele e não deixariam
espiritual, como demonstro adiante. de fazê-lo. Investindo em minha “experiência
Após explicitar as motivações e explicar etnográfica”, optei pela combinação das duas e,
como construía as questões da pesquisa, as apesar de achar que poderia ser uma bobagem,
pessoas demonstravam interesse. Além de faze- o fiz numa das vezes que fui ao IML. Não sei
rem muitas perguntas em relação ao trabalho, se pela crença no ritual ou por acreditar em mi-
lembravam-se de histórias pessoais ou que ou- nha amiga, mas o dente de alho foi comigo ao
viram contar a respeito do IML. Muitas pes- IML simplesmente para não ter na consciência
soas também me indicavam filmes e livros que o peso de não carregá-lo.
remetiam à morte e aos mortos. Como nos apresenta Mary Douglas (2010),
No entanto, a reação das pessoas colocava qualquer noção de impureza se relaciona dire-
algumas questões a mim: por que tantas pes- tamente a determinado sistema de crenças que
soas, apesar de curiosas e de terem algum tipo se propõe a organizar o mundo a partir de um
de conhecimento sobre a morte e os mortos, sistema de classificação ideal. Ao tomar banho
repudiavam a priori o Instituto Médico-Legal? e colocar dente de alho no peito antes de en-
Por que o fato de uma antropóloga realizar trar em contato com os mortos, expressei uma
trabalho de campo com mortos era algo tão tentativa de me purificar e proteger-me, afas-
surpreendente? Por que, para muitos, escolhi tando os maus espíritos que por lá circulavam.

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Dessa forma, eu mesma reafirmava esse siste- como seria quando eu estivesse no trabalho de
ma de crenças e reproduzia as representações campo. Sabia que naquela instituição há uma
de nojo e contaminação em relação à morte e grande diversidade de estados do corpo. Não
aos mortos. seriam apenas corpos de pessoas inertes como
eu já havia visto5. mas também ossadas, carbo-
Quanto à visão oposta – de que o ritual primi- nizados, despojos, putrefatos, baleados, corpos
tivo nada tem em comum com nossas ideias de com dimensões e formas alteradas etc. As im-
limpeza – lastimo por ser igualmente prejudicial pressões de professores, colegas, amigos e a fala
ao entendimento do ritual. Nesta visão, nossos dos meus interlocutores reforçavam que o IML
atos de lavar, escovar, isolar e desinfetar, têm so- era reconhecidamente o espaço dos mortos e
mente uma semelhança superficial com purifi- da morte.
cações rituais. Nossas práticas são solidamente Ao se referir ao afeto, a antropóloga
baseadas em higiene; as deles são simbólicas: Favret-Saada (2005) apresenta uma nova for-
nós matamos germes; eles afastam espíritos. ma de se relacionar com o trabalho de campo
(DOUGLAS, 2010, p. 47)   na qual ao “ser afetado”, o antropólogo per-
mite se expor à dimensão do outro, ao afeto
Não é que os “primitivos” apresentem as- dos seus interlocutores, enfim, a se submeter
pectos apenas simbólicos ao que se refere à à “experiência etnográfica”. Durante todo o
sujeira, enquanto “nós” – “ocidentais” e “mo- tempo que estive fazendo trabalho de cam-
dernos” – e “nossas ideias de sujeira” se refiram po no IML, os policiais buscavam me ensinar
ao caráter higiênico (DOUGLAS, 2010, p. como olhar os corpos e explicitavam sua com-
49).4 O que é “socialmente mal visto” em nossa preensão acerca das relações de distanciamen-
sociedade não é o IML, mas a própria ideia da to naturalmente tomadas diante dos mortos e
morte que o IML e os mortos trazem. Os mor- da morte. Na minha pesquisa, foi a partir da
tos são representantes da desordem nessa clas- experiência cotidiana de meus interlocutores
sificação sistemática, e o IML é o lugar onde com os cadáveres que eu pude experimentar
os mortos são manipulados e as técnicas sobre como era o ver e o estar em contato com os
estes são exercidas. cadáveres.
Portanto, o que se expressa pelas reações Desde a “primeira impressão” foi assim.
e impressões que descrevi pode ser pensado Vinte e sete de dezembro era a data que havia
como repúdio e desejo de distanciamento por marcado com o papiloscopista que se dispo-
parte daqueles cuja noção não admite a morte nibilizou a me auxiliar no início da pesquisa.
como parte da vida. “Resumindo, nosso com- Cheguei ao IML no horário marcado e, após
portamento de poluição é a reação que condena passar pelo balcão, fui direto a sua sala. Lá,
qualquer objeto ou ideia capaz de confundir ou ele me perguntou se eu queria ver os mortos,
contradizer classificações ideais” (DOUGLAS, ao que respondi que não era uma questão de
2010, p. 51). querer, mas que poderia vê-los, sim. Naquela
ocasião, ele havia combinado que iria me apre-
Estando lá: “primeira impressão” sentar a estrutura do prédio do IML, e com a
positividade de minha resposta, saímos pela
Deixando de lado as impressões e repre- entrada principal, passando pelo pátio – que
sentações sobre o IML, passei a me focar em também serve de estacionamento – e seguimos

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pelos fundos do prédio, onde estava a porta Com a porta da geladeira aberta, o papilos-
pela qual os corpos entravam no instituto. Ao copista me explicava como é o procedimento
invés de fazer o percurso dos vivos, o papilosco- de organização de corpos ali. Foi quando um
pista optou por me mostrar o IML a partir do dos técnicos de necropsia, responsável pela
percurso feito pelos mortos. remoção de corpos, se aproximou, nos cum-
Assim que subimos a rampa, havia o cadá- primentou e entrou na câmara. Lá olhou em
ver de uma senhora de aproximadamente 90 três gavetas, abriu a terceira, viu o número de
num caixão. Não me assustei, pois já espera- registro na placa de metal presa no dedão do
va ver um morto e, talvez, porque, depois de pé do cadáver e preparou a maca de remoção. A
tantos meses ouvindo histórias e absorven- funerária havia chegado para buscar o corpo.
do representações, esperasse por “algo pior”. Saímos dali.
Contudo a lembrança daquele corpo franzino e Voltávamos pelo mesmo corredor, e no-
encolhido com a pele já num tom esverdeado, vamente passamos pela Sala de Necrópsia.
mal encaixado num caixão, por muito tempo O cadáver da mulher ainda era necropsiado
foi facilmente acessada em minha mente. enquanto o cadáver de um homem aguar-
Depois, seguimos pelo Setor de Necrópsia dava por sua vez na outra mesa. Um pouco
e passamos em frente às salas onde eram fei- depois, quando os exames já tinham sido re-
tos os exames. Em uma delas o cadáver de uma alizados, fui com o papiloscopista até o Setor
mulher aguardava para ser aberto. Fomos até de Vestes para observá-lo coletar as digitais.
o Laboratório Necropapiloscópico, do lado Eram os cadáveres da mulher e do homem
oposto do corredor, pegar o E.P.I6. Enquanto que eu vira minutos antes. Ela havia sofrido
vestia as luvas, observava os potes de vidro um infarto no miocárdio, e ele fora balea-
com punhos, falanges e mãos carbonizados que do no abdômen. Ambos os corpos estavam
boiavam nas soluções químicas. Tive a certe- muito inchados. O papiloscopista iniciou
za de que naquele momento meu trabalho de seu procedimento de coleta de digitais pelas
campo havia começado. Minha sensação era de mãos da mulher.
ansiedade, não apenas por ver outros corpos Enquanto isso, contava-me sobre como
mortos, mas, principalmente, para ter certeza começou a trabalhar com mortos. No come-
de que eu não teria nojo ou qualquer problema ço tinha nojo; quando estava na Academia da
com cadáveres, pois disso dependia meu traba- Polícia Civil gastou todas as faltas que podia
lho de campo. Hoje compreendo que minha nas visitas do IML. A primeira vez que viu um
ansiedade era em ver naturalmente os corpos. morto tão de perto na vida foi quando começou
Dirigimo-nos à câmara frigorífica. Quando a trabalhar nesse Instituto, e que a dica que de-
passamos novamente pela sala de necrópsia, o ram para ele, a qual usa até hoje, é não olhar
corpo da mulher estava sendo aberto. Olhei ra- para o corpo, mas apenas para as mãos. Eu não
pidamente, mas não consegui ver nada. O pa- preciso de mais nada, só de saber se a digital tá
piloscopista abriu a porta da câmara frigorífica. boa ou não.
Junto com a saída do vapor gelado, a minha Ao compartilhar como desenvolveu sua téc-
ansiedade se resfriou. E então, pela primeira nica para lidar, manipular e identificar cadáve-
vez, passei a olhar atentamente para aquela res, o papiloscopista buscava demonstrar que,
coleção de corpos em gavetas, dos quais eu só em certo nível, compreendia a sensação de ver
conseguia ver os pés. corpos sem vida pela primeira vez, pois já havia

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passado por ela. Ou melhor, além dela, afinal simplesmente não queria pensar ou me im-
ele não apenas observava como inclusive deve- portar com eles.
ria tocar e movimentar os corpos. Tentei seguir Assim que cheguei em casa, o primeiro de-
a dica por ele oferecida e me concentrar em sejo era de tomar banho. Sabia que qualquer
olhar as mãos, mas a curiosidade de compreen- risco de contaminação biológica ou sujeira é
der a costura bizarra que atravessava longitudi- nulo7, mas a sensação era de que minhas roupas
nalmente o corpo, a cabeça jogada para o lado pesavam mais do que de costume.
direito, a língua quase que para fora da boca e
as pernas inchadas daquele corpo atraíam meu Impureza ou sujeira é aquilo que não pode
olhar. Assim como aqueles que trabalham roti- ser incluído, se se quiser manter um padrão.
neiramente com os cadáveres, eu estava tentan- Reconhecê-lo é o primeiro passo para a com-
do ver um cadáver naturalmente. preensão da poluição. Não nos envolve numa
A “comunicação involuntária” (FAVRET- distinção clara entre o sagrado e o secular. O
SAADA, 2005) que estabelecia com meus mesmo princípio se aplica do começo ao fim.
interlocutores se dava nos momentos em que Outrossim, não envolve uma distinção especial
nenhuma fala podia significar a sensação de es- entre primitivos e modernos: estamos todos
tar junto aos mortos por mais que se tentasse sujeitos às mesmas regras. (DOUGLAS, 2010,
fazê-lo. Apesar de descrever minha experiência p. 56).  
e as sensações que tive a partir delas, minha
descrição não é capaz de transmitir tal afeto: Nesse dia foi difícil não retomar incons-
“o próprio fato de que aceito ocupar esse lu- cientemente a imagem dos corpos. Fui deitar
gar e ser afetada por ele abre uma comunicação às onze horas da noite. Ainda me esforçava
específica com os nativos: uma comunicação para pensar em outra coisa e tentei até ficar
sempre involuntária e desprovida de inten- cansada de tanto forçar o pensamento, mas
cionalidade, e que pode ser verbal ou não”. só consegui dormir poucas horas antes do
(FAVRET-SAADA, 2005, p.159). amanhecer.
No final do dia, saí do IML e joguei fora
o dente de alho que estava junto ao meu pei- [...] quando um etnógrafo aceita ser afetado,
to. Imagens iam e vinham na minha cabeça. isso não implica identificar-se com o ponto de
Eram imagens de corpos mortos. E enquan- vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de
to me dirigia ao ponto de ônibus e passa- campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser
va por transeuntes, rapidamente na minha afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de
mente via essas pessoas como corpos sem ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois
vida, deitadas nas macas de metal do IML se o projeto de conhecimento for onipresente,
aguardando pela necrópsia. Quanto mais eu não acontece nada. Mas se acontece alguma coi-
me esforçava para não pensar em cadáveres, sa e se o projeto de conhecimento não se perde
mais eu pensava. Eram cadáveres desconhe- em meio a uma aventura, então uma etnografia é
cidos, de pessoas de quem não sabia o nome possível. (FAVRET-SAADA, 2005, p.160)
ou a identificação. Na tentativa de parar de
ver imagens dos corpos, me esforçava para Em algumas semanas de observação, esse
pensar em outras imagens. Buscando natu- ver involuntário diminuiu. E, depois de algum
ralizar o ver cadáveres, naquele momento, eu tempo, o ver cadáveres já não me impressionava

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tanto. Habituei-me a ver corpos e assistir a to- Se, por um lado, eu já havia naturalizado o
dos os procedimentos nos exames de necrópsia. ver e o estar com os mortos e até estava protegi-
Aos poucos, no decorrer de um pouco mais do da deles, por outro me encontrava plenamente
que a metade dos nove meses de trabalho siste- vulnerável a sua presença. O repúdio e a curio-
mático de campo, considerava que eu havia me sidade em relação ao IML não se dão apenas
socializado com os corpos. Já parecia ter na- por essa via espiritual, em que o contato com
turalizado aquela atividade. E, ao rememorar os mortos é visto como algo perigoso. O cheiro
os cadáveres para narrá-los, sou capaz de cons- daquele lugar também é tomado como um mo-
truir mentalmente as imagens desses corpos. Se tivo para o distanciamento e evidência de sua
após minha “primeira impressão” no IML eu impureza. É um dos principais motivos para o
não tinha controle sobre as visões em minha repúdio, mas também fator de curiosidade aos
mente, depois do trabalho de campo finalizado que não conhecem o local.
continuei não o tendo, só que em um sentido O sentir cheiro de carnes humanas em es-
diferente. Se a princípio essas imagens eram tado de putrefação – os chamados corpos po-
exarcebadas, depois se tornaram quase nulas. dres – é considerado muito desagradável. E, ao
Eu havia aprendido a ver corpos de pessoas mencionar o IML no Rio de Janeiro, muitas
mortas. pessoas comentam que no antigo IML, cujo
Além disso, compartilhar o mesmo espaço endereço é na Rua dos Inválidos no bairro da
com corpos sem vida por um período de tempo Lapa, o cheiro era tão forte e tão ruim que não
construiu em mim uma capacidade de imagi- só o prédio mas também seu entorno fediam a
nar cadáveres. E, por mais que eu não consiga corpos putrefatos. No atual lugar, os corpos, em
vê-los exatamente como os vi nos corredores e geral, não circulam no interior do prédio, tendo
salas do IML, sou capaz de representar mental- uma área anexa reservada e separada a eles. Foi
mente o cadáver de qualquer pessoa e inclusive por isso que, quando o cadáver de Lucilene8 foi
saber que os corpos sem vida que figuram em aberto na sala dois do Setor de Necrópsia, um
filmes e séries policiais, por exemplo, muito grande incômodo se instalou, o fedor era muito
pouco têm a ver com o possível. forte, e ao perceber a intensidade daquele chei-
ro, eu passava ali por uma “experiência revela-
Cheiro: “experiência reveladora” dora” em meu trabalho de campo.
Esqueceram essa mulher no hospital!, excla-
[...] as pessoas podiam fechar os olhos diante da mou o perito ao constatar que o cadáver, com
grandeza, do assustador, da beleza, e podiam ta- morte registrada no hospital às 18 horas, já
par os ouvidos diante da melodia ou de palavras estava em estado de putrefação às 21 horas.
sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. No interior do cadáver, vísceras em putrefação
Pois o aroma é um irmão da respiração - ele pe- e estômago em estado intermediário de putre-
netra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe fação corroboravam com a hipótese do perito
caso queiram viver. E bem para dentro delas é médico-legista: Sacanagem! Ela tá podre!.
que vai o aroma, diretamente para o coração, Quando saí da sala de necropsia e entrei na
distinguindo lá categoricamente entre atração e de digitação de laudos, a policial do setor virou-
menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem -se e me disse: Vixe, você tá fedendo! Cheirei meu
dominasse os odores dominaria o coração das cabelo e minhas roupas em busca do fedor, e não
pessoas. (SUSKIND, 1985).   encontrei. Sério?! Você acha?, e levei meu cabelo

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para próximo ao nariz dela. Ih, não é você, não! vezes o odor se assemelha ao de dejetos fecais;
Você não foi lá fora?. Ela se referia ao outro exame outras vezes, quando coletado o material do es-
que ia ser realizado na sala de necrópsias destina- tômago, um forte cheiro similar ao de vômito
da a putrefatos. Não, tava aqui mesmo, respondi. era exalado. Cadáveres carbonizados também
Não é possível! Esse cheiro é daqui, então?! Meu apresentam seu cheiro característico. Como
Deus! Neguinho perde a noção, espantou-se. carnes que passaram do ponto, o odor de um
O forte cheiro do cadáver putrefato de corpo humano queimado é percebido como
Lucilene ocupou os corredores. O perito médi- um dos menos desagradáveis.
co-legista entrou na sala de digitação de laudos. Já na câmara frigorífica, junto com o ar frio
Esse podrinho eu acho que vou indeterminar, se que sai desse congelador de corpos, chega o
referindo a causa mortis que iria declarar no odor azedo de carne não tão fresca. O cheiro do
Laudo Médico-Legal de Lucilene: morte inde- Setor de Necrópsia, em geral, não é agradável,
terminada por avançado estado de putrefação do mas, para mim, também não era insuportável.
cadáver. Enquanto o médico-legista e a poli- Quanto mais me aproximava do fim do corre-
cial construíam o Laudo, e o técnico de cortes dor, onde está a câmara frigorífica, percebia que
suturava o cadáver, funcionários da equipe de menos agradável ficava o cheiro.
limpeza começavam o trabalho no corredor Pela percepção de diferentes odores, o ol-
para amenizar o cheiro. Os produtos de lim- fato auxilia na leitura do corpo, permitindo
peza utilizados eram tão densos, que dessa vez identificar seu estado e condição. O olfato é a
foi o cheiro da creolina que incomodou perito ferramenta que faz perceber os cheiros e ativa
e policial. Cacete, isso aqui não tem janela! Cês a memória dos que por aquelas salas e corre-
querem me matar?, exclamou a policial. dores circulam. O cheiro é uma das maneiras
O cheiro, ou fedor, era tema constante possíveis de percepção do meio ambiente e de
de conversa entre os funcionários do IML. expressão da existência do “organismo/pessoa”
Os serventes da empresa terceirizada de limpeza (INGOLD, 2000, p. 95). A elaboração dos
contavam que muitas pessoas, principalmente aromas no corpo e na mente constitui um lu-
mulheres, não conseguiam trabalhar no Setor gar determinado (CLASSEN, 1993) e, ao mes-
de Necrópsia porque passavam mal devido ao mo tempo, quando vinda dos corpos sem vida,
cheiro. Ver morto a gente acostuma, mas o chei- mantém viva a presença dos mortos no mundo.
ro mexe com a gente diferente... nem sempre tem Além daquele dos corpos, outros odores ha-
como controlar, me explicou uma das serventes. bitam os corredores do IML. Metaforicamente,
Para ela, o cheiro é um daqueles sentidos cuja o faro é o “olfato dirigido” (RENOLDI, 2007a,
percepção atinge os sentimentos9. p. 156) que torna os policiais capazes de per-
Diferente do cadáver de Lucilene, durante ceber e intuir o mundo. No Instituto, o faro
a realização de necrópsias de corpos não-putre- policial faz parte do denominado tirar policial,
fatos, o odor é outro. Esse era descrito como sendo usado como uma ferramenta de avalia-
sendo cheiro de sangue, muito sangue mistura- ção policial que constitui o saber dos policiais
do. Há também o odor dos órgãos do sistema sobre o outro (KANT DE LIMA, 1995). Ele é
digestório e as substâncias presentes neles. Os ativado pelos odores que ocupam os corredores
cadáveres são frescos, mas os alimentos ingeri- e são indicadores das práticas e dos momen-
dos horas antes de morrer, nem tanto. Assim, tos da rotina de trabalho. O cheiro permite
quando aberto o abdômen dos cadáveres, por que se visualizem coisas onde essas não estão

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evidentes e que se identifiquem características O escrever se dá enquanto o momento,


nas pessoas, lugares e situações antecipadamen- ou ato cognitivo, nesse processo de constru-
te – “o olfato não é nem o ‘treinamento’, nem ção do conhecimento quando o olhar previa-
a ‘intuição’ em si, mas a complexa coexistência mente orientado é refratado pela disciplina, e
em movimento dessas habilidades, mais outras, o ouvir atento e exercitado já foram realizados
talvez” (RENOLDI, 2007b, p. 62). (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998). A etno-
Aos que têm a habilidade do faro, o chei- grafia é, assim, a expressão do pensamento e da
ro é ponto de referência nas relações de espaço memória do antropólogo no “being here” sobre
e tempo, sendo um dos indicadores do ritmo o “being there”. “Seja a etnografia o que mais
social do IML. Isto é, permite perceber e iden- for […], ela é, acima de tudo, uma apresen-
tificar os diferentes odores que se espalham tação do real, uma verbalização da vitalidade.”
pelo ambiente. Gradativamente, no trabalho (GEERTZ, 2009, p. 186). A etnografia é por-
de campo, aprendi a perceber que o cheiro de tanto, uma construção narrativa da experiência
café entre as 15 e 16 horas era indicativo da vivida pelo antropológo com seus interlocuto-
volta do horário de almoço, e do retorno, após res. Para descrever os processos institucionais
o café, da realização de exames. Passei a identi- de construção de mortos, apresentei algumas
ficar também que o cheiro de formol estava nos de minhas interações com meus interlocutores
laboratórios que conservam órgãos e partes hu- durante o trabalho de campo, destacando as
manas; e que, na parte externa, vez ou outra o experiências pelas quais passei ao elaborar essa
odor de madeira dos caixões da Santa Casa era etnografia.
encoberto pelo de fumaça que saía dos canos
de descarga dos rabecões, dos carros funerários A etnografia como experiência
e dos veículos da Polícia Militar que entravam
e saíam trazendo pessoas detidas para exames Identificar as sensações que percebia durante
médico-legais. Diante de tantos aromas, chei- o trabalho de campo fez parte de um processo
ros, fedores e perfumes, o IML seria um paraí- que me permitiu obter “uma experiência”, no
so olfativo a Grenouille10. sentido apresentado por Dilthey e discutido por
Turner (2005)11. Ao se referir à origem da pala-
Estando aqui vra experiência, Turner demonstra que ela se re-
fere tanto a uma passagem, no sentido de passar
Na Antropologia, a textualização dos fenô- por algo, o que denota um rito; quanto a um
nemos socioculturais observados a partir do experimento, um perigo em relação a algo que
“being there” (GEERTZ, 2009), da “capacidade põe o passante diante do risco do desconhecido.
de nos convencer de que o que eles (os antropó- Nessa perspectiva, ser antropóloga num
logos) dizem resulta de haverem realmente pe- espaço de construção da morte foi um expe-
netrado numa outra forma de vida” (GEERTZ, rimento tanto quanto uma passagem. Para al-
2009, p. 15), se dá enquanto um processo de guns, um risco junto aos mortos. Para mim,
comunicação interpares e de conhecimento. É um rito junto aos vivos. Realizar o trabalho de
por meio de uma linguagem específica, o idio- campo, esse rito de passagem (DA MATTA,
ma da disciplina, que as categorias e os conceitos 1981), é necessário antropologicamente e
básicos constitutivos da antropologia se apresen- implica a possibilidade de redescobrir for-
tam para a análise do que se viu, ouviu e sentiu. mas de relacionamento social. Foi no IML, a

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instituição que consolida a linha de separação en- Notas


tre mortos e vivos, que me apresentei para tal rito
da experiência antropológica do trabalho de cam- 1. Realizei nove meses de trabalho de campo nesta ins-
po. Lá estabeleci novas relações sociais e explorei tituição, em pesquisa que resultou na etnografia
minhas capacidades de percepção e compreensão apresentada em minha dissertação de mestrado em
sobre um meio ambiente desconhecido, sobre um Antropologia, intitulada “Matar os mortos: a constru-
mundo ocupado pelos vivos, mas que é represen- ção institucional de mortos no Instituto Médico-Legal
tado como sendo dos mortos. E foi a imersão do Rio de Janeiro”, orientada pelo Prof. Roberto Kant
nesse universo social, o distanciamento das de Lima e coorientada pela Dra. Lucía Eilbaum. A et-
minhas próprias relações sociais para a cons- nografia foi defendida em abril de 2012 no Programa
tituição de outras, novas, que me permitiram de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
passar pelas experiências que aqui descrevi e Federal Fluminense.
analisei sob o ponto de vista etnográfico. 2. A partir daqui, identificado ao longo do texto pela si-
Portanto, a reflexão sobre esses sentidos e sen- gla IML.
sações faz parte de um processo que me permitiu 3. Ao longo do texto, apresentarei categorias nativas em
obter “a experiência etnográfica”. Realizar uma itálico. As categorias analíticas estão entre aspas.
etnografia num espaço de construção dos mor- 4. Redimo-me aqui de qualquer autorreferência ao “nós,
tos foi o experimento que me possibilitou pas- ocidental” construído por Mary Douglas. Ao contrá-
sar pelo que é denominado rito de passagem do rio, suponho que, na perspectiva dessa autora, estou
trabalho de campo, e me construir como antro- (enquanto antropóloga brasileira) muito mais próxi-
póloga. Logo, foi na instituição que consolida a li- ma da noção “primitivos” do que dos “ocidentais” ou
nha de separação entre mortos e vivos que eu mesma dos “modernos”.
passei pelo rito antropológico do trabalho de campo. 5. Já havia visto os mortos em ocasião de outra pesqui-
Para concluir, quero destacar que nos dois sa, quando fiz trabalho de campo na emergência de
sentidos aqui apresentados – o olfato e a vi- um hospital público em Niterói/RJ. Essa pesquisa re-
são – os mortos eram mediadores das relações sultou em minha monografia de conclusão de curso
entre vivos no tempo e no espaço. Em ambos de bacharelado em Ciências Sociais, na Universidade
os casos, seja pela “primeira impressão”, seja Federal Fluminense, sob orientação do Professor
pela “experiência reveladora”, uma forma es- Dr. Roberto Kant de Lima (cf. MEDEIROS, 2009,
pecífica de estar em contato com os mortos 2011).
direcionava a vida de meus interlocutores e, 6. Equipamento de Proteção Individual. Composto por
por consequência, a minha. Em ambas eram luvas, touca, máscara e avental.
consideradas razões externas e particulares 7. Sobre a possibilidade de contaminação biológica
de relação com os mortos – que têm sua face e as noções de contágio moral e risco no IML, ver
negativa quer pelo contágio, quer pelo incô- PESCAROLO, 2007.
modo. A experiência de convívio cotidiano com 8. Nome fictício.
corpos sem vida me permitiu compreender como 9. Outros antropólogos que também passaram pela ex-
os mortos são construídos institucionalmente periência de trabalho de campo em um IML destacam
e me levou a refletir sobre o distanciamento e a essa dimensão: “Num primeiro momento pensei que
evitação, a impureza e o perigo que há em rela- o termo ‘podrão’ (ou “podre”, frequentemente utili-
ção à morte e, por consequência, em relação aos zado) fosse alguma espécie de chiste utilizado pelos
mortos. funcionários do IML para se referir a determinados

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corpos, notadamente aqueles em estado avançado de Referências bibliográficas


decomposição. Rapidamente, porém, descobriria que
o termo é mais denotativo que conotativo, e que a par- ARIÉS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente
tícula aumentativa não faz, nem de longe, jus ao odor desde a Idade Média. Lisboa: Teorema, 1989a.
que corpos nessas condições exalam. Lembro-me de _________. O homem diante da morte. Trad. Luiza
que meu primeiro pensamento ao adentrar o necroté- Ribeiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, v.1. 1989b.
rio naquela tarde foi o medo de vomitar logo no início ARLEY, Patrick. Corpos sem nome, nomes sem cor-
do trabalho de campo; enquanto o segundo foi que pos: Desconhecidos, desaparecidos e a constituição
não há descrição densa capaz de descrever a densidade da pessoa. Dissertação de Mestrado. Programa de
do cheiro de um corpo humano em estado avançado Pós-Graduação em Antropologia. Belo Horizonte:
de putrefação. O máximo que posso dizer a respei- UFMG, 2012.
to é que se trata de um odor impregnante, algo que BUBANDT, Nils. The Odour of Things: Smell and the
fica, algo diante do qual se respira com todo o corpo, Cultural Elaboration of Disgust in Eastern Indonesia.
como se todo o corpo fosse olfato. Pode-se aprender a In: Ethnos, v. 63. Routledge, 1998, p.48-80.
conviver com esse odor, mas é impossível ignorá-lo.” CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do
(ARLEY, 2012, p. 21). antropólogo: olhar, ouvir e escrever. In: __________.
10.Jean-Baptiste Grenouille é o personagem princi- O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 1998.
pal do livro alemão O perfume, de Patrick Süskind. CLASSEN, Constance. Worlds of Sense: Exploring the
Grenouille é um jovem francês nascido no século Senses in History and Across Cultures. Londres e Nova
XVIII que não exalava cheiro algum e que, ao mesmo York: Routledge, 1993.
tempo, apresentava olfato extremamente desenvolvi- DA MATTA, Roberto. O trabalho de campo como rito
do, capaz de identificar odores por mais longe que de passagem. In: _________. Relativizando: uma in-
estivessem e armazená–los todos em sua memória. trodução à Antropologia Social. Petrópolis, Vozes. 1981.
Em busca do odor humano perfeito, Grenouille tor- DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Ed.
na-se um assassino em série e um grande perfumista Perspectiva, 2010.
com técnicas e acervo de odores únicos. Ao alcançar FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser Afetado. In: Cadernos
o perfume ideal e perfumar-se com ele, torna-se o de Campo, n. 13. São Paulo: FFLCH/USP, 2005,
principal e único prato de um banquete canibal em p.155-161.
praça pública. GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas: o antropólogo como au-
11. Sobre a origem da palavra experiência, Turner afirma: tor. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
“ensaiei uma etimologia da palavra inglesa ‘experien- HOWES, David. Empire of the Senses: The Sensual Culture
ce’, derivando-a da base indoeuropéia *per-, ‘tentar, Reader. Oxford e Nova York: Ed. Berg, 2004.
aventurar-se, arriscar’ – podemos ver como seu duplo, INGOLD, Tim. The perception of the environment, essays
‘drama’, do grego dran, ‘fazer’, espelha culturalmen- on livelihood, dwelling and skills. Londres e Nova York:
te o ‘perigo’ etimologicamente implicado na palavra Routdlege, 2000.
‘experiência’. O cognato germânico de per relaciona KANT DE LIMA. A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro:
experiência com ‘passagem’, ‘medo’ e ‘transporte’, por- seus dilemas e paradoxos. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed.
que p torna-se f na Lei de Grimm. O grego peraō rela- Forense, 1995.
ciona experiência a ‘passar através’”, com implicações MAGNANI. José G. C. Etnografia como Prática e
em ritos de passagem. Em grego e latim, experiência Experiência. In: Horizontes Antropológicos, UFRGS/
associa-se a perigo, pirata e experimento”. (TURNER, IFCH. Ano 15, n. 32, 2009. Porto Alegre: PPGAS,
2005, p. 178) 2009, p. 129-156.

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autora Flavia Medeiros


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal
Fluminense (PPGA/UFF).

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014

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