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DESIGUALDADES URBANAS NA PANDEMIA

Impactos da Covid-19 nas periferias


Acervo Online | Brasil
por Sandro Barbosa de Oliveira
26 de junho de 2020

Com o objetivo de contribuir para uma apreensão de aspectos dessa realidade de desigualdades
urbanas, este artigo apresenta alguns dados e análises preliminares do abismo que se tornou a
vida social em tempos de pandemia

Não é segredo para ninguém que o novo coronavírus evidenciou e potencializou as desigualdades existentes na
sociedade brasileira. Desigualdades sociais, econômicas, raciais e urbanas tornaram-se condições para quem morre
ou vive ante a pandemia mais grave e aguda do último século, que tem vitimado e está interrompendo milhares de
vidas, além da dor, do trauma e da revolta diante dos descasos das diferentes instâncias de governos, da pressão do
“mercado” pela “flexibilização” da quarentena e da demora na tomada de medidas de combate a esta nova doença
que passou a assombrar a vida dos brasileiros e de toda população mundial.

Desde os primeiros casos confirmados oficialmente, no final de fevereiro, passando pelas primeiras vítimas fatais no
começo de março (um porteiro aposentado de São Paulo e uma doméstica no Rio de Janeiro que contraiu a doença
dos patrões por não ter sido liberada para a quarentena), os casos e as mortes não param de crescer; confirmando
ser esta uma das mais graves pandemias enfrentadas no Brasil: segundo lugar em mortes no mundo. Além de
enfrentar a Covid-19, a população precisa lidar com quatro tipos de crises: econômica, política, social e de saúde, ao
evidenciar os equívocos das políticas neoliberais de austeridade fiscal desde o golpe parlamentar de 2016. Só para
citar as que alteraram a Constituição Federal: aprovação da PEC 95, que congelou investimentos em saúde e
educação; a reforma trabalhista de 2017; e aprovação da reforma da previdência em 2019. Essas medidas
contribuíram para precarizar de maneira perversa as condições de vida de milhões de trabalhadores no país e a
provocar o crescimento do trabalho informal que, na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), ultrapassou os
41% em 2019. Além disso, ampliaram as formas de exploração e os trabalhos intermitentes e temporários, que não
garantem proteção trabalhista para milhões de pessoas em tempos de crises agudas, como a situação precária dos
entregadores de aplicativos.

No momento em que escrevo este artigo, oficialmente foram confirmados mais de 1 milhão de casos e 52 mil mortes
por Covid-19 em todo o país. A situação extrema exige das organizações populares, movimentos sociais e
instituições da sociedade reflexão profunda por meio de investigações científicas, mas, sobretudo, de ação política
efetiva para mitigar os crescentes óbitos que revelam a necropolítica (política da morte) e reforçam o direito universal
à respiração defendido por Achille Mbembe (2020).

Com o objetivo de contribuir para uma apreensão de aspectos dessa realidade de desigualdades urbanas, este artigo
apresenta alguns dados e análises preliminares do abismo que se tornou a vida social em tempos de pandemia.
A metrópole de São Paulo tornou-se o epicentro da propagação da pandemia no Brasil, por isso, nossa análise se
centrou nesse território. Só para se ter ideia, até 22 de junho, o Boletim Diário Covid-19 da Secretaria Municipal de
Saúde registrava 11.727 mortes por Covid no município, num total de 119 mil casos confirmados. Só nos hospitais de
campanha do Anhembi e Pacaembu passaram e saíram com vida 4.938 pessoas, registrando apenas um óbito no
período. Todavia, a localização central desses hospitais dificulta o deslocamento de quem sai das periferias, ao
mesmo tempo em que há uma carência de leitos e UTIs nos extremos da cidade, lugares onde o crescimento é
vertiginoso e os óbitos têm ocorrido entre a população trabalhadora de baixa renda, negra e acima de 50 anos. A
figura 1, a seguir, mostra dois mapas que explicitam as condições socioespaciais da segregação urbana dessa
população preta, pobre e periférica:
 

Figura 1: População negra 2019 e mortes por Covid – 2020 em São Paulo

Fonte: Mapa Desigualdade 2019, Rede Nossa São Paulo, e Secretaria Municipal de Saúde, 2020.

Os distritos que mais concentram a população negra (preta e parda) localizam-se nas periferias. O primeiro está na
periferia sul, o Jardim Ângela, com mais de 60% de negros(as), seguido por Grajaú e Parelheiros; depois três
distritos na periferia leste: Lajeado, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, todos esses entre 53% e 56% de negros(as).
As mortes e suspeitas de morte por Covid-19 registradas até 18 de junho mostram a incidência de mortalidade nos
territórios das periferias: 300 em Sapopemba, na periferia leste; 277 mortes na Brasilândia, periferia norte; 267 no
Grajaú, 240 no Jardim Ângela, 237 no Capão Redondo, 235 no Jardim São Luís e 225 na Cidade Ademar, na
periferia sul; 218 no Tremembé, 193 em Cidade Tiradentes e 187 em Itaquera, periferia leste; 181 na Freguesia do Ó
e 178 em Vila Nova Cachoeirinha, na periferia norte; e 173 no Itaim Paulista,168 em São Mateus, 161 no Lajeado e
153 no Cangaíba, na periferia leste. Na Zona Leste vieram a óbito 4.123 pessoas ao representar 38,4% de toda a
cidade, enquanto as mortes na periferia leste representavam 24,4% até essa data.
As desigualdades étnico-raciais estão mediadas pelas socioespaciais, resultado da tríplice segregação socioespacial,
étnico-racial e urbana que produziram espaços segregados por classe raça e território na cidade As classes podem
étnico racial e urbana que produziram espaços segregados por classe, raça e território na cidade. As classes podem
ser verificadas por aproximação através de indicadores de faixas de renda e vínculos empregatícios levantados pela
Pesquisa Origem Destino de 2017 do Metrô de São Paulo. A segregação residencial é uma das fortes expressões da
segregação socioespacial e está caracterizada pelas condições de renda familiar domiciliar, condições de moradia
(adequada, precária) e localização na cidade (periferia, subúrbio, centro expandido). As desigualdades urbanas são
caracterizadas pelas diferentes áreas que concentram maior quantidade de moradias populares; moradias de médio
padrão e moradias de alto padrão.

Para uma aproximação das desigualdades urbanas oriundas da segregação residencial por renda domiciliar, a figura
2 mostra dois mapas que comparam essas duas variáveis (renda e moradia), ao permitir relacioná-las também com
os mapas da figura 1 (concentração população negra e mortes por Covid). Esses mapas expressam somente uma
representação, haja vista que a realidade é complexa, diversa e a precariedade nas condições de vida maior do que
as suas possibilidades de apreensão.

Figura 2: Mapas renda domiciliar e proporção de domicílios em favelas


Fonte: Mapa Desigualdade 2012 e 2019, Rede Nossa São Paulo.

Como se vê nos mapas, há maior concentração de domicílios com renda entre 0,5 e 2 salários mínimos nos extremos
da cidade, locais onde se concentra o maior número de favela e assentamentos precários. Esses três indicadores
apresentados (concentração de população negra, domicílios de baixa renda e favelas/assentamentos precários)
mostram três condições de vida da população preta, pobre e periférica em São Paulo e suas precariedades para
enfrentar a Covid-19. Tais condições de vida fundamentam a condição socioespacial da classe trabalhadora que se
articula a partir de três condições fundamentais para a reprodução dos trabalhadores:

– condições de trabalho e renda, sendo variável e distinta de acordo com os ramos de atividades econômicas e
funções exercidas por trabalhadores, ao passo que estratos salariais são determinados pela divisão técnica e social
do trabalho, mas também pela ideologia da meritocracia liberal do esforço individual e da valorização de atividades e
funções reificadas pelo capital – alto salário de jogadores de futebol, apresentadores de programas sensacionalistas
de televisão, entre outras –, enquanto o trabalho doméstico de reprodução, por exemplo, é mal remunerado;

– as condições de moradia, as quais trabalhadoras e trabalhadores enfrentam com pagamento do preço da terra por
meio de aluguéis excessivos e financiamentos exorbitantes, ou construindo moradias provisórias e/ou permanentes
como puxadinhos em terrenos de parentes ou em ocupações precárias;

– e as condições de deslocamento, definida pelas condições de mobilidade precária e acessibilidade da localização


da moradia em contraposição às localizações de emprego.

As condições de trabalho, moradia e deslocamento articulam-se como um enlace contraditório das diferentes
condições entre classes sociais desigualmente percebidas na cidade por meio da segregação socioespacial, étnico-
racial e urbana que implicam na definição do tempo de deslocamento socialmente determinado entre a residência e o
trabalho, resultado das barreiras espaciais para a vida social de trabalhadores(as). Não obstante, a Covid-19 foi
propagada por meio do transporte e da circulação das categorias definidas por trabalhadores essenciais, aqueles que
não puderam parar para que a outra parte da sociedade pudesse cumprir a quarentena. Em São Paulo, sabe-se que
os primeiros distritos com maior concentração de casos de Covid-19 foram os nobres, onde se concentram as
melhores condições de vida e reprodução das classes sociais e dos indivíduos que ali habitam, distritos do quadrante
sudoeste[1] e centro expandido, doença propagada pelas linhas da Companhia do Metrô, da Companhia Paulista de
Trens Metropolitanos (CPTM) e linhas de ônibus municipais e intermunicipais.

Nas periferias, as condições precárias de moradia muitas vezes inviabilizam, ao trabalhador que tenha contraído a
Covid-19, fazer o isolamento social necessário para não propagar ainda mais a doença. Casas autoconstruídas
pequenas, com famílias numerosas e mais de duas pessoas por dormitório mostram uma impossibilidade dada pela
desigualdade urbana, resultado das desigualdades sociais entre as diferentes classes. A noção de periferia é
ampliada aqui a partir da: 1) distância das moradias em relação aos centros de empregos, universidades e serviços
(urbano); 2) condições de trabalho e mobilidade urbana que definem o tempo de deslocamento (cotidiano); e 3)
condições dos espaços vividos e percebidos como lugar da reprodução (espaço). Nas periferias e favelas, há entre
35% e 40% das moradias com mais de duas pessoas por quarto, enquanto no Itaim Bibi, distrito nobre, estas não
passam de 2%, conforme o mapa a seguir.
 

Figura 3: Mais de dois moradores por quarto – RMSP – IBGE, 2010.

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