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ARTIGO ORIGINAL

Evelyn Eisenstein1
Eduardo Jorge2
Lucia Abelha Lima3
Transtorno do estresse pós-traumático
e suas repercussões clínicas durante a
adolescência
Post traumatic stress disorder and clinical repercussions during
adolescence

Resumo
O transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) se tornou um critério diagnóstico em 1980, após acúmulo de observações clínicas
de mais de um século. Mais do que uma conceituação com motivação política ou social do sofrimento humano, os componentes
biológicos permitiram melhor descrição das consequências do estresse traumático, que ocorre desde a infância e que possui efeitos
adversos a longo prazo, durante a adolescência e a vida adulta. Sintomas do estresse traumático precisam ser identificados pelos
profissionais de saúde para esses eventos serem interrompidos e, mais importante ainda, devem ser realizadas ações preventivas como
um compromisso com os direitos de saúde de crianças e adolescentes.

Unitermos
Transtorno do estresse pós-traumático (TEPT); sintomas de estresse; reações clínicas traumáticas; reações de medo e aprendizado;
crianças e adolescentes

Abstract
Posttraumatic stress disorder (PTSD) became a diagnosis in 1980 as a culmination of over a century of clinical observations. More than
only a politically or socially motivated conceptualization of human suffering, the biological components have allowed a better description
of the consequences of traumatic stress, occurring since childhood and having long term adverse effects during adolescence and adulthood.
Traumatic stress symptoms have to be identified by the health professionals in order to interrupt these events and more importantly, to take
preventive actions and to commit with the health rights of children and adolescents.

Key words
Posttraumatic stress disorders (PTSD); stress symptoms; traumatic clinical reactions; learning and fear reactions; children and adolescents

1
Médica pediatra e clínica de adolescentes; professora adjunta da Faculdade de
Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM/UERJ) e do
Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA); coordenadora da Telemedicina
e Educação a Distância da FCM/UERJ; diretora do Centro de Estudos Integrados,
Infância, Adolescência e Saúde (CEIIAS); diretora médica da Meta Clínica – Clínica
de Adolescentes.
2
Médico neuropediatra; professor adjunto da Universidade do Grande Rio
(UNIGRANRIO); doutor em Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ);
médico da Meta Clínica – Clínica de Adolescentes.
3
Médica psiquiatra e epidemiologista; professora adjunta do Instituto de Estudos de
Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).

Adolescência & Saúde volume 6 ■ nº 3 ■ setembro 2009


 Transtorno do estresse pós-traumático e suas repercussões Eisenstein et al.
clínicas durante a adolescência

Introdução Unidas (CDC/ONU) e confirmada pelo Brasil, país


signatário desse documento. Desde 1990 existe
Qual relação existe entre repetência escolar e ainda o Estatuto da Criança e do Adolescente
bala perdida? Como viver bem quando o abandono (ECA), Lei n° 8.069, que assegura os direitos de
da família faz parte do contexto? Como aprender cidadania, saúde e educação, como prioridade
e lembrar algo sobre a lição da escola se as regras absoluta para crianças e adolescentes até os 18
para sobrevivência são outras? Como apagar da anos de idade.
memória as cenas de abusos vivenciadas em casa
e na vizinhança? Como explicar o medo durante
uma consulta médica se “ninguém vai acreditar em Fatores traumáticos e de
mim, mesmo”? estresse
Crianças e adolescentes vivem intensos
períodos de crescimento e desenvolvimentos cor- O estresse pode ser definido como conflito
poral, emocional e cognitivo, precisando de con- grave ou ameaça a liberdade ou integridade física,
dições nutricionais, afetivas e sociais favoráveis e mental, sexual ou social e é vivenciado quando a
positivas para o completo alcance de suas poten- pessoa tem uma perda importante de valor afetivo
cialidades vitais. Violência e maus-tratos ocasionam humano (como a morte de mãe, pai ou outro fa-
distorções traumáticas e negativas, que podem in- miliar), de possessões, como o local onde vive, ou
terromper os processos de maturação e desenvol- qualquer outra conexão de afeto e amor que são
vimento cerebral, tendo repercussões no compor- valiosas e importantes.
tamento na escola e para o resto da vida. Os fatores de estresse são sempre indesejá-
A associação de múltiplas situações de risco veis, incontroláveis, súbitos, muitas vezes imprevi-
e traumas constantes que ameaçam as integrida- síveis e difíceis de adaptar. Resultam em reações
des corporal e emocional pode contribuir para a severas, intensas e negativas do comportamento
fragmentação da sequência das etapas de desen- habitual, pois sofrem influências do eixo hipo-
volvimento, da aquisição das habilidades necessá- talâmico (hipofisário) adrenal do sistema nervoso
rias para o aprendizado e relacionamentos afetivos, central (SNC), com a liberação de vários hormô-
comprometendo o futuro desempenho dos papéis nios e neurotransmissores (dopamina, serotonina,
sociais. A cada dia, e progressivamente, as causas e acetilcolina, noradrenalina e adrenalina), que ati-
os efeitos traumáticos, quando não são resolvidos vam os mecanismos de adaptação corporal para
ou interrompidos, contribuem para repetência, sobrevivência, principalmente o hormônio cortisol.
marginalização escolar e exclusão social, mais dis- Portanto, ocorre um desequilíbrio da homeostase
criminação e, principalmente, para outros episó- corporal, levando a uma cascata de reações sistê-
dios de violência e abusos. As queixas se sucedem micas dos órgãos-alvo como respostas ao sistema
tornando os sintomas pós-traumáticos crônicos e autonômico periférico(2).
agravando os problemas mentais de depressão, Os fatores de estresse são de risco para o
abuso de drogas e transtornos dissociativos, ou desenvolvimento de doenças, com repercussões
ocasionam desfechos trágicos, como desastres e imediatas e a longo prazo, podendo ocasionar
acidentes, conflitos armados entre facções rivais e problemas crônicos e interferindo na qualidade
polícia, balas perdidas e morte precoce de crianças de vida das pessoas que viveram esses traumas
e adolescentes que deveriam estar aprendendo a durante a infância e adolescência. O estudo
sorrir, viver e sendo felizes. Adverse Childhood Experiences (ACE)(4), reali-
A proteção de crianças e adolescentes contra zado na Califórnia e validado em outros países,
qualquer forma de abuso, abandono, exploração demonstrou forte associação entre o número de
e violência está assegurada pela Convenção sobre experiências adversas, incluindo abusos físico e
os Direitos da Criança da Organização das Nações sexual que ocorreram durante a infância, com-

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Eisenstein et al. Transtorno do estresse pós-traumático e suas repercussões 
clínicas durante a adolescência

portamentos de alto risco durante a vida adulta, Critério diagnóstico do transtorno do estresse
incluindo abuso de drogas, obesidade, depressão, pós-traumático (TEPT) segundo a décima revisão
tentativas de suicídio, promiscuidade sexual, e a da classificação estatística internacional de doenças
frequência de doenças sexualmente transmitidas e problemas relacionados com a saúde (CID-10)
(DST). O número de experiências adversas tam- (F 43.1):
bém estava correlacionado com problemas cardí- • exposição a evento ou situação estressante, de
acos, câncer, diabetes, doenças hepáticas e morte curta ou longa duração, de natureza ameaçadora
súbita. O questionário desse estudo está accessí- ou catastrófica, a qual provavelmente causaria
vel e disponível gratuitamente, em inglês, no site angústia invasiva em quase todas as pessoas;
do Centers for Disease Control and Prevention • rememoração ou revivência persistente do fa-
(http://www.cdc.gov/nccdphp/ace/). tor estressor em flashbacks intrusivos. Memórias
Fatores traumáticos extremos ou intensos po- vividas, sonhos recorrentes e angústia em cir-
dem ser definidos como causadores de danos, inju- cunstâncias semelhantes ou associadas ao es-
rias ou lesões corporais ou mentais que ameaçam a tressor/agressor;
própria vida ou a vida de outras pessoas queridas, • tentativas de evitar situações semelhantes ou
levando à morte inesperada. Estão também asso- associadas ao estressor/agressor;
ciados às sensações de perda e falta de segurança, • um dos seguintes aspectos ou sintomas deve
além de maior vulnerabilidade e riscos de dissocia- estar presente:
ção pós-traumática(15). – incapacidade de relembrar, parcial ou com-
As causas mais frequentes enfrentadas por pletamente, alguns aspectos do período de
crianças e adolescentes, principalmente os que vi- exposição ao agressor/estressor;
vem nas favelas e em áreas consideradas de maior – sintomas persistentes de sensibilidade e ex-
risco, são morte de pais ou familiares, testemunho citação psicológica aumentada, demonstra-
de assassinatos, agressões de entes queridos ou da por dois dos seguintes sintomas:
violência intrafamiliar, separações, castigos, cenas a) dificuldade em adormecer ou permane-
de tortura ou ameaça de abusos. Incluem-se tam- cer dormindo/insônia;
bém entre as causas todas as formas de violência b) irritabilidade ou explosões de raiva;
e abusos, doença mental ou alcoolismo (uso de c) dificuldade de concentração;
drogas familiar), cenas de violência entre os gru- d) hipervigilância;
pos armados do tráfico de drogas local, guerrilha e) resposta ao susto exagerada;
urbana ou conflitos armados durante a invasão • os critérios b, c e d devem ter a duração de 30
policial; desastres naturais, como enchentes ou dias e ocorridos dentro de seis meses do evento
desabamentos, e situações de violência coletiva estressante.
como pânico em estádios ou manifestações públi- Em crianças e adolescentes as reações pós-
cas de protesto com confronto policial, em muitas traumáticas são manifestadas de diferentes formas,
regiões, cidades e áreas rurais ou do interior do que variam de acordo com a faixa etária e a fase
Brasil. O sofrimento em silêncio obriga a isola- dos desenvolvimentos físico, afetivo, cognitivo e
mento, além de exclusão, perda da rotina escolar mental em que se encontra a criança(7).
e reações de pânico, devido à ruptura da relação As reações mais frequentes podem ser dividi-
de confiança e proteção com sua família ou pes- das em quatro grupos:
soas de sua convivência social. • r eações corporais – atraso do crescimento, de-
As violências social e estrutural são, sem dúvi- senvolvimento com baixa estatura (nanismo
da, as grandes responsáveis pelo aumento da pre- psicossocial) e atraso puberal, inapetência, insô-
valência das reações do transtorno de estresse pós- nia e dificuldade de dormir devido a pesadelos,
traumático com suas repercussões clínicas durante dores de cabeça, tremores, convulsões, hipera-
o desenvolvimento da adolescência. tividade, problemas gastrointestinais (diarreias,

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10 Transtorno do estresse pós-traumático e suas repercussões Eisenstein et al.
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vômitos, náuseas) dores abdominais, reações apresentando problemas de comportamento


alérgicas e crises de asma, urticária e problemas em sala de aula por dificuldade de controlar
imunológicos desencadeantes de doenças crô- emoções e impulsos nervosos e levando ainda a
nicas, anorexia, bulimia, sobrepeso, problemas outras situações antissociais, bullying, abuso de
de fala, audição e incoordenação psicomotora drogas e autoagressões com mutilações corpo-
com movimentos repetitivos (balançar a cabe- rais, muitas vezes disfarçadas no meio de tantos
ça, os pés, as mãos); piercings.
• reações emocionais – choque com amnésia O sofrimento em silêncio muitas vezes se
(perda de memória), medo intenso, pavor e expressa em choros frequentes, noturnos, cri-
terror noturno, dissociações afetivas e da rea- ses de ausência e dificuldades de concentração,
lidade, raiva e irritabilidade, culpa, reações de perdas de memória, reações de pânico e angús-
ansiedade, regressões e infantilismo, desespero, tia, isolamento social, reações de medo com
apatia, choros frequentes e reações depressivas tentativas de se esconder, fugir de casa ou men-
com enurese (perda de urina durante o sono); tiras constantes e regressões comportamentais.
• reações cognitivas – dificuldade de concen- A dor emocional ou trauma é invisível ao profis-
tração, perda de memória e confusão mental, sional de saúde desatento, porém é marcante
“branco na prova”, distorções da realidade e e indelével para o adolescente e se multiplica
imaginárias com flashbacks, pensamentos intru- em queixas e sintomas considerados evasivos.
sivos e suicidas ou de autoagressão, perda da Muitas vezes essas queixas parecem não ter
autoestima, dislexia e problemas da escrita; nexo diagnóstico e são classificadas de forma
• reações psicossociais – alienação, passividade, errada como reações de conversão, hiperativi-
agressividade, isolamento social e solidão, difi- dade, ou transtorno desafiador de conduta.
culdades no relacionamento afetivo, abuso de
drogas, perda de habilidades vocacionais e de
expectativas de futuro (sem sonhos e incapaci- Dissociação pós-traumática
dade de projetar o amanhã) e falta de interesse
nas atividades com evasão escolar. Dissociação é a perda da capacidade de
Como o trauma constante destrói o senso integração dos vários aspectos de identidade,
de segurança pessoal e a relação de confiança memória, percepção e consciência após a expo-
e proteção com os familiares e outras pessoas sição a eventos traumáticos. Ocorrem problemas
adultas de convivência, além de contribuir para de amnésia traumática, despersonalização, estu-
a falta de conexões afetivas e expectativas de fu- por e desorganização do pensamento. Outros
turo, ocorrem rupturas e interrupções nas fases sintomas frequentes são a perda do senso de
de crescimento e desenvolvimentos mental e realidade, de interesse, do controle de si próprio
cognitivo, causando profundo impacto nos me- e dos mecanismos de adaptação ao estresse e a
canismos de adaptação e sobrevivência, além de inabilidade afetiva.
problemas no comportamento e no aprendizado É importante entender a associação entre
escolares. trauma e dissociação. Trauma é a experiência de
ser vítima da raiva ou da indiferença de outra
pessoa, o agressor, que torna a vítima um objeto
Dor emocionaL de seu poder, como se fosse “qualquer coisa”.
O estresse traumático é a experiência do deses-
Crianças e adolescentes que sofreram abu- pero e perda total de controle sobre si mesmo e
sos, abandono e traumas da violência podem as reações corporais. A dissociação pode ocorrer
reagir impulsivamente em condutas de defesa como mecanismo de defesa do trauma numa
e se tornarem mais agressivos e indisciplinados, tentativa de manter algum controle mental

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clínicas durante a adolescência

quando o corporal está perdido. Essa fragmen- tante papel adaptativo da modulação cortical e
tação e a descontinuidade da experiência mental das respostas dos sistemas límbico, do mesencé-
estão relacionadas com alterações de partes do falo e do tronco cerebral para perigo e medo. Daí
cérebro responsáveis pela integração da informa- a preocupação sobre os efeitos adversos da com-
ção, as estruturas corticais, hipocampo, tálamo, binação da diminuição moduladora cortical e do
amígdala e a comunicação prejudicada entre os aumento da reatividade límbica, mesencefálica e
hemisférios cerebrais, causando o fenômeno da do tronco cerebral sobre cognição, controle de
dissociação. Por isso o termo usado por leigos: impulsos, agressividade e regulação do controle
“conhecimento sem consciência”(12). emocional.
As pessoas, e principalmente as crianças
em desenvolvimento cerebral, processam, arma-
Medo e aprendizado zenam e recordam as informações e depois res-
pondem ao mundo dependendo de seu estado
A evidência científica indica quatro princi- fisiológico momentâneo, ou seja, suas respostas
pais períodos de mudanças estruturais no desen- dependem de seu estado interno. Se a criança foi
volvimento cerebral correspondentes aos grupos exposta a ameaças ou possui traumas extremos
etários(8): e invasivos, seu sistema de estresse pode ficar
• infantil – entre o nascimento até 4 anos de sensibilizado e haverá dificuldade de responder
idade; a experiências cotidianas, como se essas fossem
• escolar – entre 4 e 10 anos de idade; também ameaçadoras. Dependendo das variá-
• período inicial da puberdade – entre 10 e 15 veis passadas e de suas respostas ao estresse, a
anos de idade; criança ou o adolescente poderá se mover pri-
• período da adolescência média até o final – em mariamente por meio do continuum dissociativo
torno dos 18 aos 20 anos de idade. ou de estímulo, mas qualquer mudança irá re-
Esses estágios do crescimento cerebral e da duzir sua habilidade de aprender a informação
reorganização cortical se sobrepõem aos ganhos cognitiva, como o trabalho em sala de aula,
do desenvolvimento nas funções cognitivas e apresentando queda no rendimento escolar. Um
emocionais. Existe também uma correspondên- adolescente que está calmo processa a informa-
cia na progressão da habilidade da criança e do ção de modo bem diferente de qualquer outro
adolescente em fazer uma estimativa do perigo alarmado ou traumatizado, que irá tender para
externo, avaliar riscos e considerar possíveis me- uma resposta dissociativa ou hiperativa. Quanto
didas de proteção e prevenção para si mesmo e mais estressado e ameaçado ele se sentir, mais
para outros ao seu redor(11). respostas e comportamentos primitivos e regres-
Perry et al.(10) propõem que o trauma que sivos ele terá. O adolescente ameaçado só pensa
ocorre durante esses períodos de infância e ado- em sobreviver naquele minuto, o que é impor-
lescência, por afetar diferencialmente os subsis- tante para entender os pensamentos, as reações
temas cerebrais, irá influenciar as futuras avalia- e os comportamentos de alguém traumatizado.
ções de perigo e resposta às ameaças traumáti- A recompensa imediata, positiva e afetiva é mais
cas. Assim, os traumas que ocorrem em idades importante do que uma gratificação futura, que é
precoces alteram as estruturas límbicas, do me- quase impossível. A resultante no comportamen-
sencéfalo e corticais, por meio de modificações to, incluindo o comportamento violento, é devi-
de “dependência de uso”, secundárias às reações do às capacidades de regulação cerebral interna
prolongadas de alarme. O desenvolvimento cor- e de mecanismos de adaptação ao estresse, e o
tical pode ser retardado por períodos de privação tronco cerebral age de maneira reflexiva, impul-
e negligência em idades precoces ou estimulado siva e muitas vezes agressiva, frente a qualquer
por condições favoráveis e assim afetar o impor- estímulo que perceba como ameaça (Tabela).

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12 Transtorno do estresse pós-traumático e suas repercussões Eisenstein et al.
clínicas durante a adolescência

Tabela
Relações de associação entre o medo e o aprendizado no desenvolvimento cerebral de
crianças e adolescentes(9)
Estado interno Calmo Alerta Alarme Medo Terror
Estilo cognitivo Abstrato Concreto Emocional Reativo Reflexivo
Região Tronco cerebral
Região reguladora córtex e Córtex e região Região límbica e
mesencefálica e e respostas
cerebral neocortical límbica mesencefálica
tronco cerebral autonômicas
Dissociação e
Continuum Descanso e Complacência movimentos fetais
Repulsa (rejeição) Desmaio
dissociativo relaxamento (submissão) (balanceamento
do corpo)
Continuum
Descanso e Resistência Desafios (reativos
de estímulo Vigília Agressividade
relaxamento (choro) e pirraça)
(provocação)
Sem qualquer
Sensação do Expectativas de Minutos e
Dias e horas Horas e minutos sensação de
tempo futuro segundos
tempo

Alterações corporais e tes do hormônio liberador de corticotropina (CRH)


manifestações clínicas e arginina-vasopressina (AVP), além de outros
núcleos da medula e dos neurônios catecolaminér-
Nem sempre a história de violência, abuso ou gicos do locus ceruleus, são os principais coorde-
trauma aparece durante a primeira entrevista rea- nadores do sistema de estresse central, enquanto
lizada pelo profissional de saúde durante o atendi- o eixo hipotalâmico-pituitário-adrenal (HPA) e o
mento clínico do adolescente. Mas as queixas e os sistema adrenomedular simpatomimético eferente
sintomas, muitas vezes, são disfarçados ou mal ver- representam as ações periféricas. Os neurônios no-
balizados, pois o adolescente possui dificuldades radrenérgicos e CRH são estimulados pelas seroto-
de relatar o ocorrido por vários motivos, inclusive nina e acetilcolina e inibidos por glucocorticoides,
por medo, vergonha ou sentimento de desconfian- ácido gama-amino-butírico (GABA), corticotropina
ça: “ninguém vai acreditar em mim ou no o que (ACTH) e peptídeos opioides. Durante o estresse,
aconteceu”. Mas aos poucos vão surgindo mais a secreção de CRH e AVP aumenta, resultando no
evidências com relação às respostas adaptativas aumento da secreção de ACTH e cortisol. Outros
ao estresse, devido às mudanças comportamen- fatores também são acionados, potencializando as
tais e corporais. Os componentes desses sistemas atividades do eixo HPA, como angiotensina II, ci-
central e cerebral recebem informações constantes toquinas e mediadores lipídicos da inflamação. O
e estímulos dos órgãos periféricos, do ambiente e sistema nervoso autonômico simpatomimético pe-
do SNC. Apesar de serem vias complexas, são alta- riférico também responde rapidamente ao estres-
mente eficientes e flexíveis, numa rede fisiológica sor, pela inervação das células dos tecidos muscular
que tenta manter o equilíbrio dinâmico do orga- liso e vascular da medula adrenal e dos rins e trato
nismo, em homeostase, apesar de repercutir com gastrointestinal, justificando a secreção de outros
as deficiências na homeorrese ou nos incrementos neuropeptídeos, como somatostatina (com efei-
necessários para crescimento e desenvolvimento to no crescimento e desenvolvimento), galanina,
saudáveis dos adolescentes(13). encefalina, neurotensina, neuropeptídeo Y (NPY),
Os neurônios do núcleo paraventricular do assim como o trifosfato de adenosina (ATP da mul-
hipotálamo (NPH), com os neurônios componen- tiplicação celular) e o óxido nítrico.

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Todos esses mecanismos do sistema de estres- • dificuldades na cognição, memória e atenção,


se são complexos e mediados pelas interações de com queda do rendimento escolar;
outros três elementos do SNC(3): • inibição da atividade imunológica (com aumen-
• sistemas dopaminérgicos mesocortical e meso- to das doenças infecciosas, HIV/AIDS, agravo
límbico – incluem o córtex pré-frontal e o nú- das colagenoses);
cleo accumbens e estão envolvidos nos fenôme- • atraso do crescimento e desenvolvimento, com
nos de reforços antecipatório e motivacional e nanismo psicossocial;
também nos mecanismos de recompensa; • transtorno obssessivo compulsivo (TOC) e ou-
• complexos do hipocampo e da amígdala – es- tros equivalentes emocionais;
tão envolvidos com os estressores emocionais, • aumento e sensibilização ao abuso de álcool e
como o medo condicionado; drogas;
• neurônios do núcleo arcuado secretores dos • reações de medo, pânico, terror noturno, con-
peptídeos opioides – alteram a sensibilidade à fusão mental e sintomas dissociativos já descri-
dor e influenciam o tônus emocional. tos, incluindo desmaios e crises epilépticas.
Por isso, as respostas de adaptação ao estres-
se generalizado ocasionam desregulação e etiolo-
gia de vários transtornos clínicos: Intervenção e prevenção
• depressão, hiperatividade e problemas de an-
siedade; Unidades de serviço de atendimento a esco-
• anorexia, desnutrição e transtornos gastrointes- lares e adolescentes precisam alertar seus profissio-
tinais; nais e integrar suas equipes multidisciplinares para
• taquicardia, hipertensão e alterações cardiovas- o diagnóstico e as intervenções necessárias para se
culares; interromper a cadeia associada de eventos traumá-
• alterações respiratórias de ritmo, inclusive asma ticos, violência e abusos e todas as consequências
emocional; clínicas, comportamentais e psicossociais.
• disforia e mudanças repentinas de humor; A Figura a seguir apresenta um exemplo de
• hipervigilância, dificuldades em dormir, insônia fluxograma para aumentar a detecção precoce de
e transtornos do sono; transtornos abusivos ou pós-traumáticos, pode

Entrada na unidade de saúde


Houve demora entre o abuso ou trauma e a busca por ajuda médica, sem explicação satisfatória
Não Sim
A história do abuso ou trauma que é contada é consistente a cada vez?
Sim Não
Ao exame, a criança ou o adolescente tem lesões que são inexplicáveis?
Não Sim
O comportamento e a interação durante o exame são apropriados?
Sim Não
Baixa suspeita de violência Alta suspeita de violência
Diagnosticar e tratar de acordo Discutir o caso com a equipe

Acompanhamento Notificação

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14 Transtorno do estresse pós-traumático e suas repercussões Eisenstein et al.
clínicas durante a adolescência

servir de instrumento simples de rastreamento e cautela e constante supervisão devido ao potencial


avaliação inicial, a ser complementado por dados de dependência. Agentes antiadrenérgicos, como
mais específicos e posteriores durante o acompa- betabloqueadores (propanolol), também têm sido
nhamento integrado da equipe de saúde(1). utilizados, principalmente em casos apresentan-
Os principais componentes de intervenção em do sintomas de ansiedade exacerbada, além dos
casos suspeitos de eventos abusivos com TEPT podem agonistas alfa2-adrenérgicos (clonidina). Em al-
ser resumidos e esquematizados em seis etapas(14): guns estudos, o uso de anticonvulsivantes como
• avaliação e diagnóstico de maus-tratos e even- a carbamazepina tem sido demonstrado eficaz, ou
tos traumáticos e identificação dos fatores as- combinações de medicamentos de acordo com
sociados, predisponentes e precipitantes, com os sintomas apresentados e a evolução do caso(6).
interrupção imediata da cadeia dos eventos Outros estudos(5) defendem a psicoterapia cogni-
traumatizantes; tivo-comportamental e treinamentos antiestresse,
• avaliação completa de exame físico e dados incluindo técnicas de relaxamento e respiração e
complementares para doenças sexualmente reorganização emocional com relação ao trauma
transmissíveis (DST/AIDS), teste de gravidez, vivenciado. A interrupção imediata dos fatores
abuso de álcool/drogas ou outros dados labo- traumáticos causadores do estresse deve ser sem-
ratoriais ou radiográficos necessários; pre a principal prioridade de quaisquer tratamento
• avaliação dos riscos comportamentais e apoio e acompanhamento, uma questão dos direitos à
psicossocial; saúde, assegurada com amparos legal e judiciário,
• avaliação da dinâmica e dos riscos familiares e se for o caso, em situações mais complexas.
acompanhamento;
• notificação compulsória e intervenção legal (pe-
rícia judicial); Conclusão
• proteção imediata e intervenção para o melhor
interesse da criança ou do adolescente, inclusi- A palavra-chave do TEPT que ocorre em crian-
ve com hospitalização, se necessário. ças e adolescentes é prevenção. Todo evento trau-
Esquemas terapêuticos com uso de medica- mático deve ser evitado durante as fases de cresci-
mentos devem ser considerados com cuidado, e mento e desenvolvimento cerebral, pois as reper-
deve-se decidir se haverá supervisão psiquiátrica cussões serão marcantes e indeléveis no corpo e
ou clínica com acompanhamentos regulares, visitas no comportamento, e é importante minimizar seus
periódicas agendadas e possibilidade de visita domi- impactos negativos a longo prazo. A implementa-
ciliar ou relatórios trocados com os responsáveis da ção de medidas de prevenção do problema tem
escola, abrigo ou conselho tutelar, se for o caso. O sempre um custo social menor em termos de saúde
tratamento medicamentoso é bastante controverso pública do que programas de intervenção precoce,
para os transtornos do estresse pós-traumático e ainda que necessários e urgentes no atendimento
não pode substituir a necessidade da psicoterapia de adolescentes nos serviços de educação e saúde
de apoio para o adolescente e sua família. no país. As equipes multidisciplinares precisam de
O tratamento com medicamentos pode ser treinamentos específicos para avaliação diagnósti-
útil para aliviar alguns sintomas como agitação, ca da violência que ocorre cotidianamente e dos
insônia, ansiedade e depressão. Os mais indica- traumas causados com tantas repercussões clínicas
dos são os inibidores seletivos da recaptação de durante os períodos da infância e da adolescência.
serotonina (ISRS), como a sertralina e a fluoxeti- A banalização da violência fortalece os danos à saú-
na. Os antidepressivos do tipo tricíclicos, como a de, o ciclo da pobreza e a falta de aprimoramento
amitriptilina, a imipramina e os inibidores da mo- dos fatores de proteção social que todo cidadão
noamino oxidase, e os benzodiazepínicos, como o merece, especialmente os adolescentes, que repre-
clonazepam. Esses últimos devem ser usados com sentam o futuro imediato para o nosso país.

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clínicas durante a adolescência

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Adolescência & Saúde volume 6 ■ nº 3 ■ setembro 2009

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