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Evelyn Eisenstein1
Eduardo Jorge2
Lucia Abelha Lima3
Transtorno do estresse pós-traumático
e suas repercussões clínicas durante a
adolescência
Post traumatic stress disorder and clinical repercussions during
adolescence
Resumo
O transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) se tornou um critério diagnóstico em 1980, após acúmulo de observações clínicas
de mais de um século. Mais do que uma conceituação com motivação política ou social do sofrimento humano, os componentes
biológicos permitiram melhor descrição das consequências do estresse traumático, que ocorre desde a infância e que possui efeitos
adversos a longo prazo, durante a adolescência e a vida adulta. Sintomas do estresse traumático precisam ser identificados pelos
profissionais de saúde para esses eventos serem interrompidos e, mais importante ainda, devem ser realizadas ações preventivas como
um compromisso com os direitos de saúde de crianças e adolescentes.
Unitermos
Transtorno do estresse pós-traumático (TEPT); sintomas de estresse; reações clínicas traumáticas; reações de medo e aprendizado;
crianças e adolescentes
Abstract
Posttraumatic stress disorder (PTSD) became a diagnosis in 1980 as a culmination of over a century of clinical observations. More than
only a politically or socially motivated conceptualization of human suffering, the biological components have allowed a better description
of the consequences of traumatic stress, occurring since childhood and having long term adverse effects during adolescence and adulthood.
Traumatic stress symptoms have to be identified by the health professionals in order to interrupt these events and more importantly, to take
preventive actions and to commit with the health rights of children and adolescents.
Key words
Posttraumatic stress disorders (PTSD); stress symptoms; traumatic clinical reactions; learning and fear reactions; children and adolescents
1
Médica pediatra e clínica de adolescentes; professora adjunta da Faculdade de
Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM/UERJ) e do
Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA); coordenadora da Telemedicina
e Educação a Distância da FCM/UERJ; diretora do Centro de Estudos Integrados,
Infância, Adolescência e Saúde (CEIIAS); diretora médica da Meta Clínica – Clínica
de Adolescentes.
2
Médico neuropediatra; professor adjunto da Universidade do Grande Rio
(UNIGRANRIO); doutor em Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ);
médico da Meta Clínica – Clínica de Adolescentes.
3
Médica psiquiatra e epidemiologista; professora adjunta do Instituto de Estudos de
Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).
portamentos de alto risco durante a vida adulta, Critério diagnóstico do transtorno do estresse
incluindo abuso de drogas, obesidade, depressão, pós-traumático (TEPT) segundo a décima revisão
tentativas de suicídio, promiscuidade sexual, e a da classificação estatística internacional de doenças
frequência de doenças sexualmente transmitidas e problemas relacionados com a saúde (CID-10)
(DST). O número de experiências adversas tam- (F 43.1):
bém estava correlacionado com problemas cardí- • exposição a evento ou situação estressante, de
acos, câncer, diabetes, doenças hepáticas e morte curta ou longa duração, de natureza ameaçadora
súbita. O questionário desse estudo está accessí- ou catastrófica, a qual provavelmente causaria
vel e disponível gratuitamente, em inglês, no site angústia invasiva em quase todas as pessoas;
do Centers for Disease Control and Prevention • rememoração ou revivência persistente do fa-
(http://www.cdc.gov/nccdphp/ace/). tor estressor em flashbacks intrusivos. Memórias
Fatores traumáticos extremos ou intensos po- vividas, sonhos recorrentes e angústia em cir-
dem ser definidos como causadores de danos, inju- cunstâncias semelhantes ou associadas ao es-
rias ou lesões corporais ou mentais que ameaçam a tressor/agressor;
própria vida ou a vida de outras pessoas queridas, • tentativas de evitar situações semelhantes ou
levando à morte inesperada. Estão também asso- associadas ao estressor/agressor;
ciados às sensações de perda e falta de segurança, • um dos seguintes aspectos ou sintomas deve
além de maior vulnerabilidade e riscos de dissocia- estar presente:
ção pós-traumática(15). – incapacidade de relembrar, parcial ou com-
As causas mais frequentes enfrentadas por pletamente, alguns aspectos do período de
crianças e adolescentes, principalmente os que vi- exposição ao agressor/estressor;
vem nas favelas e em áreas consideradas de maior – sintomas persistentes de sensibilidade e ex-
risco, são morte de pais ou familiares, testemunho citação psicológica aumentada, demonstra-
de assassinatos, agressões de entes queridos ou da por dois dos seguintes sintomas:
violência intrafamiliar, separações, castigos, cenas a) dificuldade em adormecer ou permane-
de tortura ou ameaça de abusos. Incluem-se tam- cer dormindo/insônia;
bém entre as causas todas as formas de violência b) irritabilidade ou explosões de raiva;
e abusos, doença mental ou alcoolismo (uso de c) dificuldade de concentração;
drogas familiar), cenas de violência entre os gru- d) hipervigilância;
pos armados do tráfico de drogas local, guerrilha e) resposta ao susto exagerada;
urbana ou conflitos armados durante a invasão • os critérios b, c e d devem ter a duração de 30
policial; desastres naturais, como enchentes ou dias e ocorridos dentro de seis meses do evento
desabamentos, e situações de violência coletiva estressante.
como pânico em estádios ou manifestações públi- Em crianças e adolescentes as reações pós-
cas de protesto com confronto policial, em muitas traumáticas são manifestadas de diferentes formas,
regiões, cidades e áreas rurais ou do interior do que variam de acordo com a faixa etária e a fase
Brasil. O sofrimento em silêncio obriga a isola- dos desenvolvimentos físico, afetivo, cognitivo e
mento, além de exclusão, perda da rotina escolar mental em que se encontra a criança(7).
e reações de pânico, devido à ruptura da relação As reações mais frequentes podem ser dividi-
de confiança e proteção com sua família ou pes- das em quatro grupos:
soas de sua convivência social. • r eações corporais – atraso do crescimento, de-
As violências social e estrutural são, sem dúvi- senvolvimento com baixa estatura (nanismo
da, as grandes responsáveis pelo aumento da pre- psicossocial) e atraso puberal, inapetência, insô-
valência das reações do transtorno de estresse pós- nia e dificuldade de dormir devido a pesadelos,
traumático com suas repercussões clínicas durante dores de cabeça, tremores, convulsões, hipera-
o desenvolvimento da adolescência. tividade, problemas gastrointestinais (diarreias,
quando o corporal está perdido. Essa fragmen- tante papel adaptativo da modulação cortical e
tação e a descontinuidade da experiência mental das respostas dos sistemas límbico, do mesencé-
estão relacionadas com alterações de partes do falo e do tronco cerebral para perigo e medo. Daí
cérebro responsáveis pela integração da informa- a preocupação sobre os efeitos adversos da com-
ção, as estruturas corticais, hipocampo, tálamo, binação da diminuição moduladora cortical e do
amígdala e a comunicação prejudicada entre os aumento da reatividade límbica, mesencefálica e
hemisférios cerebrais, causando o fenômeno da do tronco cerebral sobre cognição, controle de
dissociação. Por isso o termo usado por leigos: impulsos, agressividade e regulação do controle
“conhecimento sem consciência”(12). emocional.
As pessoas, e principalmente as crianças
em desenvolvimento cerebral, processam, arma-
Medo e aprendizado zenam e recordam as informações e depois res-
pondem ao mundo dependendo de seu estado
A evidência científica indica quatro princi- fisiológico momentâneo, ou seja, suas respostas
pais períodos de mudanças estruturais no desen- dependem de seu estado interno. Se a criança foi
volvimento cerebral correspondentes aos grupos exposta a ameaças ou possui traumas extremos
etários(8): e invasivos, seu sistema de estresse pode ficar
• infantil – entre o nascimento até 4 anos de sensibilizado e haverá dificuldade de responder
idade; a experiências cotidianas, como se essas fossem
• escolar – entre 4 e 10 anos de idade; também ameaçadoras. Dependendo das variá-
• período inicial da puberdade – entre 10 e 15 veis passadas e de suas respostas ao estresse, a
anos de idade; criança ou o adolescente poderá se mover pri-
• período da adolescência média até o final – em mariamente por meio do continuum dissociativo
torno dos 18 aos 20 anos de idade. ou de estímulo, mas qualquer mudança irá re-
Esses estágios do crescimento cerebral e da duzir sua habilidade de aprender a informação
reorganização cortical se sobrepõem aos ganhos cognitiva, como o trabalho em sala de aula,
do desenvolvimento nas funções cognitivas e apresentando queda no rendimento escolar. Um
emocionais. Existe também uma correspondên- adolescente que está calmo processa a informa-
cia na progressão da habilidade da criança e do ção de modo bem diferente de qualquer outro
adolescente em fazer uma estimativa do perigo alarmado ou traumatizado, que irá tender para
externo, avaliar riscos e considerar possíveis me- uma resposta dissociativa ou hiperativa. Quanto
didas de proteção e prevenção para si mesmo e mais estressado e ameaçado ele se sentir, mais
para outros ao seu redor(11). respostas e comportamentos primitivos e regres-
Perry et al.(10) propõem que o trauma que sivos ele terá. O adolescente ameaçado só pensa
ocorre durante esses períodos de infância e ado- em sobreviver naquele minuto, o que é impor-
lescência, por afetar diferencialmente os subsis- tante para entender os pensamentos, as reações
temas cerebrais, irá influenciar as futuras avalia- e os comportamentos de alguém traumatizado.
ções de perigo e resposta às ameaças traumáti- A recompensa imediata, positiva e afetiva é mais
cas. Assim, os traumas que ocorrem em idades importante do que uma gratificação futura, que é
precoces alteram as estruturas límbicas, do me- quase impossível. A resultante no comportamen-
sencéfalo e corticais, por meio de modificações to, incluindo o comportamento violento, é devi-
de “dependência de uso”, secundárias às reações do às capacidades de regulação cerebral interna
prolongadas de alarme. O desenvolvimento cor- e de mecanismos de adaptação ao estresse, e o
tical pode ser retardado por períodos de privação tronco cerebral age de maneira reflexiva, impul-
e negligência em idades precoces ou estimulado siva e muitas vezes agressiva, frente a qualquer
por condições favoráveis e assim afetar o impor- estímulo que perceba como ameaça (Tabela).
Tabela
Relações de associação entre o medo e o aprendizado no desenvolvimento cerebral de
crianças e adolescentes(9)
Estado interno Calmo Alerta Alarme Medo Terror
Estilo cognitivo Abstrato Concreto Emocional Reativo Reflexivo
Região Tronco cerebral
Região reguladora córtex e Córtex e região Região límbica e
mesencefálica e e respostas
cerebral neocortical límbica mesencefálica
tronco cerebral autonômicas
Dissociação e
Continuum Descanso e Complacência movimentos fetais
Repulsa (rejeição) Desmaio
dissociativo relaxamento (submissão) (balanceamento
do corpo)
Continuum
Descanso e Resistência Desafios (reativos
de estímulo Vigília Agressividade
relaxamento (choro) e pirraça)
(provocação)
Sem qualquer
Sensação do Expectativas de Minutos e
Dias e horas Horas e minutos sensação de
tempo futuro segundos
tempo
Acompanhamento Notificação
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