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Uma Justificação Democrática da

Jurisdição Constitucional Brasileira


e a Inconstitucionalidade
da Lei nº 9.686/991

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira


Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG), Professor Adjunto de Direito Processual Civil e de
Teoria Geral do Processo (UFMG), Ex-Professor Adjunto de Processo Constitucional e de Teoria Geral do
Processo (PUC/MG), Professor Adjunto de Filosofia do Direito e de Hermenêutica e Argumentação
Jurídica (PUC/MG), Presidente do Comitê de Ética na Pesquisa (PUC/MG), Membro do Conselho Estadual
de Direitos Humanos da Secretaria de Estado da Justiça e Direitos Humanos de Minas Gerais, Membro da
Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG, Advogado.

“Se os juízes brasileiros abdicarem dessa autoridade (a de Introdução


controlar a constitucionalidade dos atos do Congresso e do
Executivo), a Constituição republicana ruirá lamentavelmen-
te num esboroamento irreparável, construção magnífica, que
m fins de novembro de 2000, em se-
desaba em momentos, mal lhe retiraram os simples. É que lhe minário exemplarmente organizado
terá faltado o que não depende da ciência do arquiteto: esse
cimento que não se substitui, nem se cria, o elemento humano,
pela Procuradoria da República em
a consciência jurídica e a energia moral, Minas Gerais,2 foi proposta a questão de se
De nada servirá ao povo que suas instituições baixem do no marco do Estado Democrático de Direi-
céu, ou fossem diretamente plantadas por mãos divinas, se a
terra, onde caem, não fosse capaz de produzir a inteireza de to seria adequado caracterizar a Jurisdição
ânimo e a coragem do dever, a executar. O estadista constrói
as garantias; mas se não houver homens no meneio da máqui-
Constitucional como Poder Constituinte perma-
na, quem garantirá as garantias? nente, quando do exercício do controle de
Não creio que seja chegada a crise extrema de levantar- constitucionalidade e na garantia dos direi-
mos esse grito de desespero; porque não posso convencer-me
de que esse último apelo aos tribunais do meu país morra no tos fundamentais, refletindo preocupação
deserto. É ainda um resto de fé que hoje os exoro, pai dirigin-
do-se a pais, senão em nome do interesse de nossa época, já no
ocaso, ao menos no da de nossos filhos, condenados aos amar- 1 Texto inédito, apresentado parcialmente em palestra profe-
gos dos frutos de nossas fraquezas. ‘Recordai-vos, juízes’, como
rida no dia 17 de abril de 2001, na Faculdade Mineira de
dizia d’Aguesseau, ‘que, se sois elevados acima do povo, que
vos circunda a tribunal, não é senão para ficardes mais expos- Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Ge-
tos aos olhares de todos. Vós julgais a sua causa, mas ele julga rais. Dedico este artigo aos caros Professores Doutores
a vossa justiça; e tal é a fortuna, ou a desventura, de vossa Aroldo Plínio Gonçalves, José Alfredo de Oliveira Baracho,
condição, que não lhe podeis esconder nem a vossa virtude, Menelick de Carvalho Netto, José Luiz Quadros de Maga-
nem os vossos defeitos’.” lhães e Rosemiro Pereira Leal, baluartes do Direito Consti-
(Ruy Barbosa in A Constituição e os Actos tucional e Processual Democráticos brasileiros.
Inconstitucionais do Congresso e do Executivo ante a Justiça
2 Procuradoria da República em Minas Gerais, Seminário
Federal, em 31 de março de 1893)
Jurisdição e Hermenêutica Constitucional, nov. de 2000.

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que se torna pertinente com a tentativa de justificação para a jurisdição constitucional


inserção, no Direito Constitucional brasilei- que, a um só tempo, supera tanto os pro-
ro, dos dispositivos da Lei nº 9.868/99, que blemas advindos de sua compreensão sob o
pretende descaracterizar o controle de paradigma do Estado Social, quanto as suas
constitucionalidade das leis, buscando trans- idealizações empreendidas no contexto das
formar o Supremo Tribunal Federal num ar- tradições políticas liberal e republicana.
remedo de Corte Constitucional européia.
Na terceira, enfrentaremos o proble-
A pergunta acerca de um possível ma da reinterpretação da jurisdição consti-
caráter constituinte permanente da juris- tucional de um ponto de vista
dição constitucional, assim como a promul- teórico-dogmático. Trataremos, então, de
gação da Lei nº 9.868/99, deita raízes mais dilemas do Direito Constitucional e Proces-
profundas sobre quais seriam, afinal, sob o sual brasileiros. E procuraremos explicitar,
Estado Democrático de Direito, os pressu- através de duas digressões, a dimensão
postos metodológicos e de legitimidade do operacional de uma teoria do Direito cons-
controle jurisdicional de constituciona- titucionalmente adequada ao paradigma do
lidade das leis, no Direito Constitucional Estado Democrático do Direito, aqui, pres-
brasileiro. suposta.
De uma perspectiva analítica, o que Na quarta parte, pressupondo discus-
ora se inquire pode ser problematizado, pelo sões até então avançadas, daremos conti-
menos, a partir de três pontos de vista: pri- nuidade4 a uma compreensão constitucio-
meiramente, do ponto de vista teorético- nalmente adequada da jurisdição constitu-
histórico e sociológico; segundo, do ponto cional, da jurisdição em matéria constitucio-
de vista teorético-filosófico; e terceiro, do nal, no Brasil.
ponto de vista teórico-dogmático. E, por fim, num quinto momento,
Esta reflexão está dividida em cinco faremos apontamentos críticos à tentativa
partes. Na primeira, procuraremos tratar a de concentração do controle jurisdicional
questão, colocada de um ponto de vista de constitucionalidade das leis que se pre-
teorético-histórico e sociológico, buscando tende com a Lei nº 9.868/99, a título de
caracterizar a jurisdição constitucional no considerações finais.
marco da crise do Estado Social.
1 Ponto de vista teorético-
Na segunda, procuraremos recons-
histórico e sociológico
truir, de um ponto de vista teorético-filosó-
fico, a partir da Teoria Discursiva do Direito Do ponto de vista teorético-históri-
e do Estado Democrático de Direito,3 uma co e sociológico, pode-se analisar a jurisdi-

3 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Mauel Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998.
4 Sobretudo em CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, e
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001.

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ção constitucional no contexto da crise do ção em geração. Aqui a jurisdição consti-


Estado Social. No marco do paradigma do tucional assumiria o lugar de um poder
Estado Social, a jurisdição constitucional, constituinte permanente de desenvolvi-
independentemente do sistema jurídico mento de valores pressupostos à Constitui-
concreto, assumiu o papel de um legislador ção, limitando, dirigindo e antecipando-se
concorrente ou ao menos subsidiário, na sua ao Legislativo.5
forma negativa ou positiva, no sentido da Partindo-se, com razão, de uma ima-
realização de uma suposta ordem concreta gem de sociedade descentrada, em que vá-
de valores, subjacente à ordem constitucio- rios deuses e demônios, para usar uma
nal, que desenvolveria as convicções metáfora weberiana, convivem e concorrem
axiológicas, tidas como majoritárias, para para o florescimento humano, essa visão
não dizer homogêneas, na sociedade. paradigmática da jurisdição constitucional,
Assim, a jurisdição constitucional excessivamente materializada, realizadora
teria o papel de corrigir ou até mesmo de de modelos-padrão de bem-estar, é incon-
antecipar-se ao Legislativo, compreenden- cebível. A tudo isso, acrescenta-se o déficit
do o Direito no sentido da realização do que democrático de uma jurisdição cujos titu-
a nação corporificada no Estado entendes- lares não foram sequer eleitos pelos cida-
se como o bem-comum, materializado atra- dãos e que assume o papel de um superpoder
vés de determinadas condições sociais e que interpreta a pretensa vontade ou inten-
possibilidades políticas definidas no interior ção fundadora daqueles que legislativa-
das burocracias. Nesse sentido, as normas mente burilaram o Texto Constitucional.
constitucionais deveriam ser ponderadas a Instala-se, nesse sentido, uma disputa en-
cada aplicação, enquanto consagradoras de tre uma jurisdição de especialistas e um
bens e de valores a serem otimizados em legislativo suposto representante do pensa-
mento político majoritário de uma socieda-
face dos casos concretos. Questões tais
de de massas. Afinal, quem teria razão,
como segurança nacional, paz e até mesmo
quanto à auto-realização da identidade cí-
liberdade e igualdade teriam de ser
vica do corpo de cidadãos, o legislativo ou
equacionadas segundo uma argumentação
um tribunal especializado (ou todo o judi-
que pudesse explicitar o projeto de auto-
ciário), na definição do melhor para uma
realização de uma comunidade concreta de
dada sociedade?
cidadãos que buscasse o que é melhor para
si, interpretando suas necessidades e Os movimentos de desobediência
potencialidades à luz de uma substância civil,6 quer pelo desarmamento, pela críti-
ético-cultural própria, a ser assumida e ca a um sistema caduco de educação ou pela
transformada de potência em ato, de gera- proteção do meio ambiente, vão procurar

5 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
6 SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. “Pode a desobediência civil ser justificada sem se apelar para uma fundamentação
última?” In Seminário de Filosofia Política – A Fundamentação e a Democracia. Belo Horizonte: Escola do Legislativo da Assem-
bléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, em 8 de outubro de 1998.

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questionar decisões que buscam legitimar direitos fundamentais enquanto direitos in-
o uso de tropas fora do território nacional, dividuais. A posição republicana, que remon-
guerras imperialistas não declaradas, ações ta a ROUSSEAU, se vê na jurisdição
repressivas e violadoras dos direitos huma- constitucional alguma função, encara-a
nos, ou projetos econômicos não ecológi- como pedagógica, no sentido da condução
cos desenvolvidos por parte de qualquer de uma educação/correção ética que asse-
governo ou corporação latino-americanos, gure a realização dos valores supostamente
norte-americanos ou europeus, reclaman- subjacentes às normas constitucionais, em
do a falta de participação democrática e face de uma cidadania imatura, radicalizando
evidenciando a contradição entre um capi- a postura do bem-estar social.8
talismo selvagem e um regime político
A postura filosófica aqui adotada
neocorporativo, distanciado e pouco per-
pretende partir de pressupostos diferentes.
meável aos anseios da sociedade civil. Embora não tenha o mesmo receio liberal
quanto à política, descarta o fundamento
2 Ponto de vista teorético- republicano único para a democracia (o
filosófico fundamento ético homogêneo) e preten-
Apresentaremos, agora, a perspecti- de encarar o pluralismo axiológico e cul-
va filosófica, de um ponto de vista reconstru- tural como uma questão central para as
tivo.7 Qual a justificativa histórico-teorética sociedades contemporâneas, sem, contu-
da jurisdição constitucional? do, renunciar à dimensão dialógica da po-
lítica deliberativa. Adota, assim, uma
Duas tradições do pensamento políti- Teoria Discursiva da Democracia e do Di-
co democrático moderno pretendem apre- reito,9 em que a perspectiva procedimental
sentar respostas diferentes para tal indagação. ultrapassa tanto a política como luta de
A perspectiva liberal, que remonta a interesses, como pressupõe o liberalismo,
LOCKE, considera que a jurisdição consti- quanto a política enquanto auto-realiza-
tucional deve impor limites à atividade ção ética, como quer o republicanismo cí-
legislativa no sentido de garantir a razoabili- vico. Entende que a política se baseia em
dade das decisões políticas, procurando ga- razões de diferentes espectros, éticos, mo-
rantir condições equânimes de negociação rais e pragmáticos, em que o peso dessas
entre as diversas tendências políticas, a fim razões se resolve procedimentalmente e
de, por um lado, fazer transparecer a posição não a partir da imagem de um corpo efeti-
política majoritária e, por outro, garantir os vamente unido de cidadãos, como quer o

7 Segundo MANUEL JIMÉNEZ REDONDO, uma teoria que procede em termos reconstrutivos “reconstruye la idealidad inmanente
a la facticidad de la realidad como aguijón y elemento de tensión operante en esa misma realidad” (Introducción a HABERMAS,
Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad.
Jeménez Redondo. Madri: Trotta, 1998).
8 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
9 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998.

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republicanismo, ou de um sistema político 3 Ponto de vista teórico-


encarado à luz da economia de mercado, dogmático
como quer o liberalismo. A participação
democrática é discursiva e se garante atra- Como deve ser tratada a questão do
vés da permeabilidade do sistema político à ponto de vista de uma Teoria do Direito?
opinião pública livre, pressupondo-se o con- Consideramos que a Teoria do Direito pos-
trole público dos meios de comunicação sui uma dimensão operacional, enquanto
formadores de pontos de vista políticos. chave interpretativa do Direito, no caso,
A tese aqui defendida é a de que a Constitucional vigente.12 E então nos vol-
jurisdição constitucional, no exercício do tamos para o Direito Constitucional brasi-
leiro, no sentido de uma interpretação/
controle de constitucionalidade, deve ga-
operacionalização constitucionalmente
rantir o devido processo legislativo, o devi-
adequada dos dispositivos normativos
do processo constitucional e os direitos
pátrios.
fundamentais, no sentido de que consti-
tucionalismo e democracia não são concor- O tema da jurisdição constitucional
rentes, mas faces de uma mesma moeda: os torna-se muito importante num país como
direitos fundamentais são garantias de o Brasil, com recorrentes momentos de inér-
institucionalização de um processo legisla- cia e de déficit de integração social que são
tivo democrático, fundado na autonomia tradicionalmente percebidos e interpreta-
jurídica, pública e privada, e realizador da dos por teorias jurídicas especializadas em
pretensão jurídico-moderna, segundo a qual questões normativas, como contrastes ou
os destinatários das normas são seus pró- hiatos entre um Direito Constitucional que
prios autores.10 se pretende legítimo e realidades político-
Assim, embora a democracia exija sociais e econômicas recalcitrantes, um ideal
uma jurisdição constitucional ofensiva, no a ser buscado e uma crua realidade. Em
sentido da tutela jurídica de direitos cons- momentos de grande agitação política, tal
titucionais garantidores de um processo postura pode traduzir-se no mais autêntico
legislativo democrático, essa não deve nem dos protestos:
precisa ser uma guardiã republicana de
“Não sejamos ridículos. A Cons-
pretensos valores ético-políticos tidos como tituição de 1988 não está mais em vigor.
homogêneos ou majoritários na sociedade, É pura perda de tempo discutir se a con-
como, de fato, se comportou a jurisdição junção e significa ou, se o caput de um
constitucional sob o paradigma do Estado artigo dita o sentido do parágrafo ou se o
Social.11 inciso tem precedência sobre a alínea. A

10 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
11 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998.
12 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000 e CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos: 2001.

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Constituição é hoje o que a Presidência Com certeza, as tentativas bem su-


quer que ela seja, sabendo-se que todas cedidas de viabilização de políticas gover-
as vontades do Planalto são confirmadas namentais através de reformas juridi-
pelo judiciário. camente discutíveis da Constituição e da
As Ordenações Filipinas, que vi- legislação; o uso abusivo e descontrolado
goraram entre nós por muito tempo, de medidas provisórias que está acarretan-
cominavam dois tipos de pena capital: a do uma verdadeira redução do processo
morte natural e a espiritual. A primeira legislativo a uma função meramente
atingia o corpo; a segunda, a alma. O legitimatória de políticas governamentais;
excomungado continuava a viver, mas só e a omissão do Supremo Tribunal Federal
fisicamente: sua alma fora executada pela quanto ao controle dos atos processuais
autoridade episcopal, com a ajuda do
legislativos com base em doutrinas tais
braço secular do Estado.
como a dos atos políticos interna corporis e
Algo semelhante aconteceu com das matérias não-jurisdicionáveis, e, princi-
nossa Carta. Ela continua a existir ma- palmente, na sua compreensão pseu-
terialmente, seus exemplares podem ser doliberal dos estritos limites de sua legiti-
adquiridos nas livrarias (na seção das midade política para exercer um controle
obras de ficção, naturalmente), suas dis- judicial mais efetivo de constitucio-
posições são invocadas pelos profissionais
nalidade e de regularidade da lei e do pro-
do Direito no característico estilo boca
cesso legislativo, muitas vezes reduzindo
de foro. Mas é um corpo sem alma.
HITLER, afinal, não precisou revogar a este último a uma dimensão eminentemen-
Constituição de WEIMAR para instau- te político-deliberativa desprovida de ca-
rar na civilizada Alemanha a barbárie ráter de juridicidade; tudo isso, ainda so-
nazista: simplesmente relegou às traças mado às propostas que freqüentemente se
aquele pedaço de papel. apresentam de se proceder a uma revisão
global da Constituição à margem da pró-
A única razão de ser de uma
pria Constituição, termina por institu-
Constituição é proteger a pessoa huma-
na contra o abuso de poder dos governan- cionalizar o sistemático desrespeito às nor-
tes. Se ela é incapaz disso, porque o mas constitucionais e regimentais, e a co-
governo dita a interpretação de suas nor- locar em risco não somente os direitos das
mas ou as revoga sem maiores formali- minorias parlamentares, mas a própria or-
dades, seria mais decente mudar a dem democrático-constitucional.
denominação – ‘o Presidente da Repú-
blica, ouvido o Congresso Nacional e O desrespeito institucionalizado ao
consultado o Supremo Tribunal Federal, que se poderia chamar de devido processo
resolve: a Constituição da República Fe- legislativo e constitucional, ao contrário de um
derativa do Brasil passa a denominar-se pensamento governista que vê em tais atos ape-
regimento interno do governo’.” 13 nas a vitória da vontade da maioria democrática

13 COMPARATO, Fábio Konder. “Uma morte espiritual”. Folha de São Paulo, 14.05.1998, caderno 1, p. 3.

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do povo brasileiro, está a colocar em risco, ção processual, juristas brasileiros, seguindo
dia após dia, o próprio regime democrático as lições de autores alemães, introduziram
garantidor da autonomia pública e privada na discussão constitucional e processual pá-
dos cidadãos. tria a distinção entre o que seriam um Direi-
to Constitucional Processual – o conjunto de
Sobre o pano de fundo dessas ques-
normas constitucionais que estruturam o
tões é que colocamos o problema da neces-
Direito Processual – e um Direito Processual
sidade de se reinterpretar a tarefa da
Constitucional – processo através do qual a
jurisdição constitucional brasileira, em face
jurisdição constitucional é exercida.14
do Direito Constitucional vigente, buscan-
do, inclusive, superar o enfoque tradicio- O Direito Constitucional Processual
nal que, ao traçar uma dicotomia entre Direito seria formado a partir dos princípios
e realidade, nada contribui, ao contrário, basilares do devido processo e do acesso à jus-
aprofunda os problemas de integração so- tiça, e se desenvolveria através de princí-
cial que devemos enfrentar. pios constitucionais referentes às partes, ao
juiz, ao Ministério Público, enfim, os prin-
Mas, antes disso, a fim de explicitar
cípios do contraditório, da ampla defesa, da
a dimensão operacional de uma teoria do
proibição das provas ilícitas, da publicida-
Direito constitucionalmente adequada ao
de, da fundamentação das decisões, do du-
Estado Democrático de Direito, necessária
plo grau, da efetividade, do juiz natural, etc.
à reinterpretação da jurisdição constituci-
onal no Brasil, propomos duas digressões: Já o Direito Processual Constitucio-
nal seria formado a partir de normas pro-
Digressão 1: A dicotomia Direito
cessuais de organização da Justiça
Constitucional Processual e Direito Proces-
Constitucional e de instrumentos proces-
sual Constitucional: limites em face do
suais previstos nas Constituições, afetos à
modelo brasileiro de controle de
Garantia da Constituição e à Garantia dos
constitucionalidade
direitos fundamentais, controle de
Uma problemática importante, de constitucionalidade, solução de conflitos
antemão, é preciso superar: a dicotomia ar- entre os órgãos de cúpula do Estado, reso-
tificialmente construída entre Direto Cons- lução de conflitos federativos e regionais,
titucional Processual e Direito Processual julgamento de agentes políticos, recurso
Constitucional ou, simplesmente, processo constitucional, Habeas Corpus, Amparo,
constitucional, em face do modelo consti- Mandado de Segurança, Habeas Data, etc.
tucional do processo brasileiro. Essa distinção é problemática à luz
Com a ampla constitucionalização de de uma teoria constitucional constitucio-
princípios processuais, no passado nalmente adequada do Direito brasileiro,
construídos a partir da aplicação da legisla- pelo menos, pelas seguintes razões:

14 Por exemplo, a obra especializada, NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, p. 20-22.

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1º) Por um lado, se o Direito Consti- inconstitucionalidade e todo juiz ou tribu-


tucional é o fundamento de validade de nal, da primeira à última instância, não só
todo o ordenamento jurídico, posto que pode mas deve, como atividade típica e fun-
estabelece os processos através dos quais ção intrínseca à jurisdição brasileira, apre-
todas as demais normas serão produzidas, ciar a constitucionalidade de lei ou ato
quer da perspectiva legislativa, quer da pers- normativo de qualquer espécie, negando a
pectiva da aplicação jurisdicional, não há aplicação de comando eivado de incons-
Direito Processual que não deva ser, nesse titucionalidade. Nesse sentido é que JOSÉ
sentido, constitucional.15 LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES fir-
ma: “No Brasil, toda jurisdição é jurisdição
2º) Por outro lado, no Brasil, apesar
constitucional.”
de vozes discordantes,16 o controle jurisdi-
cional de constitucionalidade das leis e dos Não estamos em WEIMAR. A Ação
atos normativos é fundamentalmente difuso Direta de Inconstitucionalidade, o Manda-
e incidental, como exigência constitucional do de Segurança, o Habeas Corpus, o Man-
basilar no esteio da melhor tradição demo- dado de Injunção nada mais são do que
crática e constitucional brasileira.17 meios processuais especiais, complementa-
res, e, como tais, devem ser compreendidos
Assim, no Brasil e cada vez mais em como formas de concretização do mais am-
toda parte, a Constituição estabelece um plo modelo do direito à tutela jurisdicional.
verdadeiro Modelo Constitucional do Processo A atividade jurisdicional que se desenvol-
(ANDOLINA-VIGNERA),18 estruturante ve através deles não cria um estado de exce-
do Direito Processual que não pode ser ção e nem mesmo o Supremo Tribunal
desconsiderado sob pena de inconstitu- Federal deve assumir o papel de uma corte
cionalidade e até mesmo de descarac- constitucional kelseniana ou de um presi-
terização do instituto do processo enquanto dente do Reich schmitiano. A cidadania não
tal.19 precisa de tutores.
No Brasil, nosso controle de constitu- Portanto, não se pode levar tão a sé-
cionalidade pode dar-se como preliminar de rio a distinção entre um Direito Constitu-
mérito em qualquer processo, cível ou pe- cional Processual e um Direito Processual
nal, de tal forma que todo cidadão tem o Constitucional a ponto de se chegar a distin-
direito de se opor ou de argüir uma guir o que deve estar intimamente relaciona-

15 Sobre isso, ver LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 61-62.
16 MENDES, Gilmar Ferreira. “O controle incidental de normas no Direito brasileiro”. In Revista dos Tribunais, a. 88, v. 760. São
Paulo, fev./1999, p. 12.
17 Por exemplo, BARBOSA, Ruy. A Constituição e os actos inconstitucionais do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal.
Rio de Janeiro: Atlântida, s.d. Também MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. “Reforma do judiciário”. In Jornal da Pós-Gradua-
ção em Direito da Faculdade de Direito/UFMG, a. 2, n. 12. Belo Horizonte, maio/2000, p. 2-4.
18 ANDOLINA, Italo e VIGNRA, Giuseppe. Il modelo costituzionale del processo civile italiano. Torino: Giappichelli, 1990.
19 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo. Porto Alegre: Síntese, 1999,p. 61.

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do, Processo e Constituição. Ainda que se programáticas, dos direitos fundamentais


admita a existência de um Processo Cons- em sentido objetivo, que equiparou os di-
titucional, enquanto disciplina a con- reitos a bens negociáveis, que inspirou a
gregar o estudo de instrumentos especiais e doutrina dos escopos metajurídicos do pro-
complementares de garantia, no Brasil, cesso, que criou a jurisprudência dos valo-
qualquer processo é constitucional, quer em res.
razão de sua estrutura e de seus fundamen-
No Brasil, como nos Estados Unidos,
tos, quer pelo fato de garantir as condições
o quadro é outro. Todo cidadão é intérpre-
institucionais para a problematização e para
te da Constituição, qualquer cidadão tem
a resolução de questões constitucionais
o direito de desobedecer a comandos esta-
subjacentes às situações concretas de apli-
tais inconstitucionais e qualquer juiz deve
cação do Direito Penal, Civil, Comercial,
pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade
Administrativo, Tributário, etc.
desses comandos. Não é sem motivo o fato
É preciso pontuar, a distinção entre de que para nós, assim como para os norte-
Direito Constitucional Processual e Direi- americanos, a decisão judicial é declaratória
to Processual Constitucional possui uma e com efeitos retroativos; a decisão é o re-
história. Ela surge no contexto histórico de sultado do reconhecimento institucional de
criação de uma jurisdição constitucional um direito concreto a desobedecer. Quem
concentrada. desobedece a uma lei por considerá-la
inconstitucional não é criminoso; tem ra-
No Direito tradicional continental
zões públicas para isso.20
europeu, o juiz comum, assim como o cida-
dão, deve presumir a constitucionalidade Passemos, agora, à segunda digressão.
dos atos normativos e das leis e guiar-se pelo
Digressão 2: Argumentação jurídica
entendimento da Corte Constitucional. Em
e tutela jurisdicional dos direitos fundamen-
termos kelsenianos, o legislativo e a Corte
tais
são autorizados a interpretar a Constitui-
ção, o cidadão e o juiz comum não. Ques- É notória a classificação histórica
tões sobre constitucionalidade ou dos direitos fundamentais em os de primei-
inconstitucionalidade não devem ser expli- ra geração (individuais), segunda (sociais),
citamente tratadas através dos processos terceira (coletivos) ou até mesmo quarta
comuns e nenhum cidadão pode argüi-las geração (difusos), ainda que admitida, en-
(pelo menos no modelo clássico) e nenhum tre os autores, com alguma modificação.
juiz ordinário pode pronunciar-se acerca Assim, PAULO BONAVIDES, seguindo
delas. Como diria PETER HÄBERLE, tra- KAREL VASAK, vale-se da famosa divi-
ta-se de uma sociedade fechada de intérpretes sa da Revolução Francesa para também uti-
da constituição. Uma sociedade fechada que lizar as expressões direitos de liberdade (pri-
criou a doutrina das normas constitucionais meira geração), direitos de igualdade (segun-

20 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

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da geração) e direitos de fraternidade ou de operacionais da produção e da aplicação do


solidariedade (terceira geração). E a essas Direito uma análise da realidade histórica
três gerações, sucessivas e cumulativas, que reduzisse as decisões jurídicas do pre-
acrescenta uma quarta, como sendo o sente a uma vinculação estrita com as de-
cume de um processo histórico de cisões tomadas no passado, posto que o
universalização concreta dos direitos funda- Direito não poderia ser visto tão-somente
mentais, e que assumiria as gerações ante- como uma questão de fato ou de conven-
riores como dimensões suas, a geração dos ção explícita, como diria RONALD
direitos materializados à democracia, à in- DWORKIN;22 quer do ponto de vista de
formação e ao pluralismo.21 Essa última afir- uma produção legislativa politicamente
mação possui, com certeza, uma preo- consistente, quer do ponto de vista
cupação política e sociológica, ultrapassan- jurisdicional em que cada caso é um caso. A
do a perspectiva meramente cronológica, manutenção da coerência interna ou da
posto que já assume a noção de inter- integridade do Direito pressuporia uma jus-
dependência entre os direitos fundamentais, tificação que ultrapassa no presente as ra-
no que se refere ao seu exercício efetivo e zões concretas articuladas no passado a cada
concreto. nova decisão.
Como classificação histórica, é dis- Todavia, podem ainda permanecer os
cutível o quanto pode contribuir do ponto riscos de se cair na velha armadilha
de vista sistemático da aplicação adequada metodológica que idealmente separa ser e
dos dispositivos que consagram esses direi- dever ser, tanto no que se refere à efetividade
tos, nas chamadas situações de concorrência do Direito, quanto à eficácia prática da teo-
ou de colisão, principalmente quando se trata ria jurídica desenvolvida a cada nova deci-
de direitos considerados como de gerações são. Corre-se o risco de se idealizar, por um
diferentes. Isso porque a análise histórica, lado, a realidade histórica como algo dado e
que procura explicitar os contextos sociais intransponível ou, por outro, uma capaci-
subjacentes à prática jurídica, necessitaria dade sobre-humana dos operadores jurídi-
traduzir-se teoreticamente a fim de garantir cos.
algum suporte à dogmática jurídica.
Do ponto de vista metodológico, a
A perspectiva teórico-jurídica busca tensão entre as análises histórica e teórica,
tratar de forma sistemática e operacional, entre a perspectiva empírica de um historia-
todavia interna ao Direito, o problema da dor/observador e a perspectiva normativa de
produção e da aplicação jurídicas, o que le- um operador teórico-pragmático que garan-
varia a uma diferenciação das questões ju- tiria no máximo uma metodologia sem méto-
rídicas em face do seu ambiente social. Em dos, pode ter reduzida a sua complexidade
outros termos, não bastaria aos níveis através da noção de paradigma jurídico.

21 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 525.
22 DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986, p. 6 e ss.

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Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 187

O uso da noção de paradigma jurídi- tos da geração seguinte: seria necessário


co pretende estabilizar a tensão entre reali- reconhecer que tal cumulação implica inclu-
dade e idealidade, ao defender a tese de que sive uma redefinição paradigmática dos ve-
haveria um horizonte histórico de sentido, lhos em novos direitos.
ainda que mutável, para a prática jurídica
Para JOSÉ LUIZ QUADROS DE
concreta, que pressuporia uma determina-
MAGALHÃES, principalmente após a obra
da percepção do contexto social do Direito,
Poder Municipal,24 que de certa forma altera
a fim de se compreender em que perspecti-
o enfoque anteriormente dado à questão em
va as questões jurídicas deveriam ser inter-
Direitos Humanos na Ordem Jurídica Inter-
pretadas para que o Direito possa cumprir
na,25 a chamada teoria da interdependência
seu papel nos processos de integração so-
dos direitos humanos já apontaria nesse sen-
cial. Assim, a cada nova geração, o certo
tido. O reconhecimento da interde -
seria que os direitos não são simplesmente
pendência entre os direitos romperia com
alargados, mas sim redefinidos a cada novo
o enfoque histórico-cronológico que mar-
paradigma.
ca a classificação dos direitos em gerações,
No que se refere especificamente à posto que o sentido da validade jurídica, da
aplicação jurídica, uma reconstrução vigência e da efetividade dos direitos que
paradigmática do Direito combinaria his- comporiam o chamado núcleo indivisível
tória e teoria, procurando retirar dos om- fundamental deveria resultar modificado
bros do operador jurídico um papel ou em razão de uma nova compreensão jurídi-
encargo que só poderia ser desempenhado ca, a cada nova ruptura paradigmática. Ou
por um juiz Hércules: uma vez reconstruído seja, a cada novo paradigma haveria a ne-
o paradigma, ter-se-ia, sem maiores media- cessidade de se redefinir como compatibilizar
ções, um vetor interpretativo para a resolu- o sentido de um direito em relação aos dos
ção de questões jurídicas. outros, e vice-versa. Para tanto, caberia lan-
Nesse sentido, para MENELICK DE çar mão de noções tais como ideologia cons-
CARVALHO NETTO,23 ao se falar em ge- titucionalmente adotada, economicidade ou
ração de direitos não se poderia tão-somen- linha de maior vantagem,26 algo que, sem
te considerar uma sucessiva cumulação de dúvida, pressupõe uma visão paradigmática
direitos ou até mesmo um progressivo alar- típica do Estado de Bem-Estar Social, ain-
gamento da efetividade do exercício dos da que pouco explicitada, do que seja apli-
direitos de uma geração passada pelos direi- car o Direito.

23 CARVALHO NETTO, Menelick de. “Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de
Direito”. In Revista de Direito Comparado. Mandamentos e Pós-Graduação da Faculdade de Direito/UFMG, v. 3. Belo Horizonte,
1998, p. 480-481.
24 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder municipal. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
25 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos humanos na ordem jurídica interna. Belo Horizonte: Interlivros, 1992.
26 SOUZA, Washington Albino Peluso de. “Conflitos ideológicos na constituição econômica”. In Revista Brasileira de Estudos Polí-
ticos/UFMG, v. 74-75. Belo Horizonte, jan.-jul./1992, p. 35.

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188 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Também, em sentido semelhante, com todo um conjunto de normas em prin-


ANTONIO AUGUSTO CANÇADO cípio aplicáveis, pois o reconhecimento de
TRINDADE27 é enfático ao afirmar que a que há paradigmas jurídicos que informam
classificação dos direitos em gerações é e conformam a prática jurídica leva hoje a
“uma fantasia desagregadora, historicamen- uma disputa não só jurídica mas política
te incorreta e juridicamente infundada”. acerca de qual dentre eles é o adequado à
Uma aplicação adequada das normas jurí- compreensão do Direito, no contexto his-
dicas internacionais (e nacionais) deve par- tórico percebido de uma sociedade aberta
tir de uma “visão holística dos direitos de intérpretes, a cada situação concreta.
humanos, da inter-relação e integralidade
Segundo HABERMAS,28 a interpre-
necessária de todos os direitos humanos”,
que se conseguiria guiando-se pelos “valo- tação jurídica se dá hoje no contexto de uma
res comuns superiores que abrigam e em que disputa entre distintas compreensões
se inspiram”. Deslocando-se cada vez mais paradigmáticas do Direito, que se tornaram
do terreno da política para o do Direito, esse reflexivas. A naturalização de certezas, pró-
autor considera que não se trataria somen- pria de todo paradigma, pode ser vista, no
te de justificar a efetividade interde- contexto de um pluralismo social, político e
pendente entre os direitos no plano cultural, como pura ideologia, posto que “a
sociológico e político da sua promoção, mas interpretação coerente de um caso no mar-
também na perspectiva da sua proteção co de um paradigma jurídico fixo permanece
jurisdicional. essencialmente infradeterminada; tal inter-
pretação terá de competir com outras inter-
Todavia, a tentativa de se reduzir a pretações também coerentes do caso em
complexidade da interpretação jurídica paradigmas jurídicos alternativos”.29
através da reconstrução de um paradigma
jurídico concreto (ou, ainda, da determi- Com a crise do paradigma de bem-
nação não isenta de problemas de uma ideo- estar social e mesmo com as tentativas em-
logia constitucionalmente adotada ou de um preendidas pela dogmática jurídica de
quadro de valores comuns superiores), que escapar da alternativa paradigma liberal ou
desde o início já estabeleceria um horizonte paradigma social, inclusive procurando es-
histórico de sentido para a prática jurídica, tabelecer conexões mais ou menos híbridas
só retiraria em parte dos ombros do juiz a entre eles, fomentou-se uma compreensão
tarefa hercúlia de pôr em relação os traços reflexiva do Direito, assim como a necessi-
relevantes de uma situação concreta, apre- dade de se problematizar modelos sociais
endida de forma a mais complexa possível, que estariam inscritos no próprio Direito.

27 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. “Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos
nos planos internacional e nacional”. In Revista de Direito Comparado. Mandamentos e Curso de Pós-Graduação da Faculdade
de Direito/UFMG, v. 3. Belo Horizonte, 1998, p. 57.
28 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998, p. ex., p. 293 e p. 477.
29 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998, p. 293.

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Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 189

Na prática jurídica do cotidiano dos to HABERMAS quanto GÜNTHER


operadores jurídicos, e que em muito ultra- alertam para os riscos de se confundir prin-
passa o círculo fechado dos especialistas, os cípios normativos com valores otimizáveis
paradigmas jurídicos permanecem em ten- e direitos com bens negociáveis, uma com-
são, concorrendo caso a caso para a inter- preensão metodológica errônea em face do
pretação do suposto Direito aplicável. caráter deontológico do Direito. As normas
Essa tensão é que se pretende justa- jurídicas e os direitos nelas previstos esta-
mente mascarar, quando a teoria constitu- belecem uma relação de obrigatoriedade e
cional do bem-estar social fala em colisão não de preferência ou atratividade. 32
ou em concorrência de direitos, e pretensio- No paradigma do Estado Democrá-
samente busca resolvê-las à base de uma tico de Direito, o discurso liberal e o dis-
negociação/otimização de bens juridica- curso de bem-estar devem ser considerados
mente protegidos. reflexiva e criticamente como razões ou até
Segundo GOMES CANOTILHO,30 mesmo lógicas argumentativas concorren-
ocorreria uma concorrência de direitos quan- tes, em face de cada situação concreta de
do um comportamento do mesmo titular aplicação.
preenchesse os pressupostos de fato de vá- Essa afirmação pretende justificar
rios direitos (cruzamento) ou quando deter- uma compreensão procedimentalista do
minado bem jurídico levasse à acumulação, Direito a qual “assinala o nível ou o plano
na mesma pessoa, de vários direitos, o que em que os paradigmas jurídicos, converti-
levaria à discussão acerca de qual direito é dos em reflexivos, se abrem uns aos outros
mais ou é menos limitado, com o fim de se e podem ter crédito na diversidade, mobili-
determinar qual assumiria relevo decisivo. zada em cada caso, que representam as dis-
Ocorreria uma colisão de direitos quando o tintas interpretações possíveis da
exercício de um direito por seu titular coli- situação”.33
disse ou conflitasse com o exercício do di-
reito por outro titular, o que levaria a uma Isso é de uma aplicabilidade prática
discussão acerca de quais direitos admiti- considerável, por exemplo, no uso dos meios
riam restrições e quais não, através de um processuais de proteção dos direitos
juízo de ponderação e de valoração de fundamentais.
prevalência.31 A distinção entre direitos indivi-
Em sua crítica a essa compreensão, duais, coletivos, sociais e difusos é uma dis-
típica de uma jurisprudência de valores, tan- tinção lógico-argumentativa. Deve ser

30 GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1135 e ss.
31 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Garzón Valdés. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
32 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998, p. 326 e ss; GÜNTHER, Klaus. The
sense of appropriateness. Trad. John Farrell, Nova York: State University of New York Press, 1993, p. 240-241.
33 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998, p. 293.

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190 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

considerada do ponto de vista do processo termos do caso concreto, à luz de para-


argumentativo de aplicação das normas que digmas jurídicos concorrentes, liberal e de
lhes consagram. Assim, é possível a utiliza- bem-estar que, por serem concorrentes e
ção dos mais variados meios processuais, nada absolutos, cobram reflexividade, aber-
quer individuais, quer coletivos, para a tu- tura e crítica, no quadro de uma compre-
tela jurisdicional desses direitos. ensão procedimentalista do Direito. Assim,
Essa perspectiva é mais radical do que o Direito não pode ser reduzido quer a uma
aquela fundada na chamada interdepen- lógica argumentativa referente a programas
dência dos direitos, que comporiam o núcleo condicionais (a regras), quer a programas
fundamental e indivisível dos direitos hu- finalistas (a políticas), como forma privile-
manos. Isso, porque, aqui, não se trata sim- giada de regulação.
plesmente de uma aplicação ponderada, Conseqüência disso é que não se
proporcional ou compromissória de normas pode fixar em definitivo (modelo de regras)
constitucionais, semanticamente conside- o que apenas é disposto prima facie (mode-
radas, que pretende restringir ou otimizar o lo de princípios). Se partirmos de uma con-
exercício dos direitos. cepção procedimentalista do Direito, em
Uma argumentação jurídica de apli- que qualquer proposição jurídica é fruto de
cação ponderada, proporcional ou ótima de interpretação, sobre o pano de fundo de
dispositivos normativos, guiada por uma visões paradigmáticas concorrentes, não se
compreensão axiológica do Direito, confun- pode pré-definir o conteúdo ou a extensão
de e reduz a aplicabilidade ou adequa- total de um dispositivo normativo, que ga-
bilidade de uma norma à justificação ou nha sentido a cada novo caso concreto,
extensão da sua validade ou vigência jurí- predeterminando-se materialmente a argu-
dicas. Nos discursos de aplicação, não se mentação. É necessário, mais uma vez, rom-
pretende apresentar argumentos pragmáti- per com uma teoria material do Direito e
cos, éticos ou morais que venham a justifi- dos direitos que estabelece um modelo pa-
car a extensão em grau ótimo da validade/ drão, fixo, para a sua efetivação, até mesmo
legitimidade ou do âmbito jurídicos de uma porque a dinâmica de uma sociedade de-
norma, mas a sua adequabilidade procedi- mocrática e pluralista não coaduna com
mentalmente justificada a cada caso con- visões privilegiadas e excessivamente con-
creto, livre de qualquer predeterminação cretas do que seja vida, liberdade, igualda-
material em que se dê prioridade a certos de, segurança, trabalho ou até mesmo
pontos de vista normativos sobre outros.34 dignidade humana.
Estaremos, portanto, tratando do O direito à liberdade de expressão, por
processo de aplicação adequada de normas exemplo, num caso concreto, pode ser consi-
jurídicas, argumentativamente fundada nos derado, conforme argumentação adequada,

34 GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness. Trad. John Farrell. Nova York: State University of New York Press, 1993, p. 240.

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Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 191

empreendida pelas partes e devidamente dos direitos trans ou metaindividuais, em


apreciada pelo juiz, como direito individu- que direitos individuais homogêneos, direi-
al, coletivo, social e até mesmo difuso, a tos coletivos e direitos difusos não são esta-
legitimar, quer o meio processual individu- belecidos num catálogo fechado (novo art.
al, quer o coletivo, para a sua tutela 1º, IV, da Lei da Ação Civil Pública e art.
jurisdicional. Daí se poder protegê-lo quan- 81, parágrafo único, I, II e III, do Código de
do se tolhe ou se ameaça tolher a palavra Defesa do Consumidor).
de alguém; ou a participação de uma asso-
Por um lado, o que sejam direitos in-
ciação representativa de uma coletividade;
dividuais homogêneos, direitos coletivos e
quando se afirma que a educação é pressu-
direitos difusos, com base no art. 81, pará-
posto do ter o que dizer; ou quando se dis-
grafo único, incisos I, II e III, do Código de
cute o impacto na comunidade da violência,
Defesa do Consumidor, só pode ser deter-
da pornografia na televisão ou na Internet;
minado e até mesmo diferenciado através
ou ainda a existência ou não de monopólio
de uma argumentação jurídica de aplicação
dos meios de comunicação.
adequada em cada processo jurisdicional,
Não é sem razão que uma das maio- tendo-se em vista o caso concreto.
res vantagens do nosso sistema de garanti-
Por outro, não há uma excessiva con-
as processuais é que o meio coletivo não
fiança, nem no meio processual coletivo e
deve excluir a priori o individual, e vice-
nem nos legitimados processualmente para
versa, como se pode adequadamente com-
o seu uso,36 o que pode ser esclarecido atra-
preender as disposições, por exemplo, da Lei
vés de uma interpretação adequada dos dis-
da Ação Civil Pública (art. 1º, da Lei Fede-
positivos normativos que determinam os
ral nº 7.347/85), combinando-as com as do
legitimados (que são partes legais) para pro-
Código de Defesa do Consumidor (arts. 81,
por essas ações, podendo ser eles instâncias
83, 91, 94, 97, 98, 103, § 3º, e 104 da Lei
políticas (União, Estados, Municípios), ad-
Federal nº 8.078/90).
ministrativas (órgãos e agências públicas
Cabe considerar que a inter-relação especializadas ou não), o Ministério Públi-
entre esses diplomas normativos, explicita- co ou associações da sociedade civil (em que
mente prevista pela Lei Federal nº 8.078/ a necessidade de pré-constituição e de pre-
90, que determina aplicar seus dispositivos visão estatutária podem ser afastadas); a que
à ação civil pública (art. 117) e aplicar os título se legitimam (representação e não
dispositivos da Lei Federal nº 7.347/85 às substituição processual); e de que forma as
ações que prevê (art. 90), cria um verda- decisões, favoráveis ou desfavoráveis (por
deiro código de ações coletivas 35 que ausência de provas ou não) os atingem, en-
viabilizam a tutela jurisdicional dos chama- quanto partes (legais) que são para propor as

35 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas de processo civil. São Paulo: Malheiros, 2000.
36 GONÇALVES, Aroldo Plínio. “A coisa julgada no Código de Defesa do Consumidor e o novo conceito de parte”. In Revista
Forense, separata do v. 331. Rio de Janeiro, 1995.

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192 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

ações e não como titulares dos direitos que de antemão, a tutela jurisdicional, através
se pretende tutelar jurisdicionalmente (arts. de meio processual que poderá ser o coleti-
82, 91, 94, 103 e 104 do Código de Defesa vo, cuja adequação só poderá ser analisada
do Consumidor). caso a caso.
Conforme o caso, por exemplo, o di- Um direito é individual, coletivo,
reito ao meio ambiente saudável pode ser social ou difuso conforme seja definido, atra-
tratado argumentativamente como questão vés da argumentação jurídica adequada,
interindividual de direito de vizinhança, caso a caso: é correto afirmar, por exemplo,
como condições adequadas de trabalho de que uma associação de pescadores pode
uma categoria profissional, ou até mesmo defender o meio ambiente marítimo, numa
como direito das gerações futuras: depen- situação concreta, porque seus associados
de da perspectiva argumentativa, se indivi- ou até mesmo toda uma coletividade retira
dual, coletiva, social ou difusa de quem o o seu sustento da pesca legalmente permi-
defender. tida, ainda que tal finalidade ambientalista
não esteja prevista em seus estatutos. Não
Devemos abandonar teorias semânti-
há pesca de peixe morto, contaminado ou
cas da interpretação37 que pretendem fixar
ameaçado de extinção.
abstratamente e fora do contexto de apli-
cação a extensão do sentido dos textos Poder-se-ia considerar ameaçadas a
normativos. Isso implica não somente aban- certeza e a segurança jurídicas com o racio-
donar uma teoria material do Direito, como cínio jurídico que expomos. Mas o que é
também uma teoria estrutural das normas certeza jurídica hoje? A certeza ou
jurídicas que pretende fixar a interpretação previsibilidade do conteúdo das decisões,
adequada dos textos normativos à base da como se o Direito pudesse ser mecanica-
sua literalidade. mente aplicado?
Modelos interpretativos são sempre Se exceto algumas enunciados nor-
bem vindos, como verdadeiros redutores da mativos cujas cláusulas especificam em tal
complexidade interpretativa, ainda que pas- nível de detalhe as condições de aplicação
síveis de abertura e de revisão. Mas dizer, que só se podem aplicar a poucas situações-
por exemplo, que o Ministério Público não padrão altamente tipificadas e bem circuns-
poderá defender direitos a não ser os cole- critas (as regras, para usar um conceito de
tivos e difusos, nunca os individuais homo- RONALD DWORKIN), todas as normas
gêneos, que os direitos coletivos e difusos válidas são, de início, indeterminadas em
são tais ou quais, previstos nos artigos tais, sua referência e têm necessidade de cone-
fixados numa lista fechada ou só defensá- xões relacionais adicionais no caso concreto
veis em única perspectiva, é reduzir as pos- individual, via argumentação – o que vale não
sibilidades de acesso à jurisdição e negar, só para os princípios e direitos constitucio-

37 DWORKIN, Ronald. Law’s Empire, Cambridge: Harvard University Press, 1986, p. 31 e ss.

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Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 193

nais estruturantes do sistema jurídico; se Numa sociedade lingüisticamente


elas são aplicáveis prima facie, no sentido estruturada, plural e sem a possibilidade de
de que devemos ingressar em um discurso fundamentos absolutos, a única certeza pela
de aplicação para comprovar se encontra- qual podemos lutar é a de que os melhores
rão aplicação em uma situação não previs- argumentos, em uma situação de participa-
ta pelo processo de justificação ou se, ção em simétrica paridade entre as partes
embora válidas, devem ceder a outras, es- que serão afetadas pelo provimento
sas, sim, adequadas; se uma norma somen- jurisdicional, sejam levados corretamente
te fundamenta um juízo normativo singular, em consideração, ao longo do processo e
que pode ter a pretensão de ser correto, se no momento da decisão, por um juiz que
essa norma se comprovar singularmente demonstre a sua imparcialidade. 39
adequada ao caso em questão; se a valida-
Aqui, a questão metodológica
de prima facie de uma norma tão-somente
entrecruza-se, mais uma vez, com o proble-
significa que essa norma foi imparcialmen-
ma da legitimidade das decisões.
te justificada; e se a solução correta advém,
pois, do desenvolvimento de um senso de Há muito a questão acerca da legiti-
adequabilidade normativa, de uma interpre- midade das decisões judiciais deixou de ser
tação racional e argumentativamente fun- um problema que se reduza tão-somente à
dada em cada situação, tendo-se em vista pessoa do juiz, sua virtude ou sua forma de
reconstruções paradigmáticas apropriadas seleção, ou a um momento quase mítico de
do Direito vigente,38 a resposta à questão tomada de decisão. O que garante a legiti-
acerca de uma certeza jurídica que poderia midade das decisões são antes direitos e ga-
ser alcançada, não importa a argumentação rantias fundamentais, de caráter processual,
jurídica que se realize, só pode ser não. atribuídas às partes e que são, principalmen-
te, os do contraditório e da ampla defesa,
Deveríamos, então, renunciar à nos-
além da necessidade racional de fundamen-
sa pretensão cotidiana de certeza e de segu-
tação das decisões. Embora o Direito diga
rança em prol de um uso alternativo (ou
respeito a todos os cidadãos, nos discursos
nenhum uso!) do Direito, pragmaticamente
de aplicação essa necessidade de legitimida-
considerando que a legitimidade das deci-
de afeta diretamente aqueles que sofrerão os
sões só poderia ser alcançada a posteriori, ten-
efeitos do provimento jurisdicional.40
do-se em vista o seu impacto político, eco-
nômico, ético ou social, como quer o Realis- Assim, como se trata de um proces-
mo Jurídico, ontem e hoje? Também não. so argumentativo, a construção da decisão

38 GÜNTHER, Klaus. “Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica”. Trad. Leonel
Cesarino Pessôa. In Cadernos de Filosofia Alemã, n. 6. São Paulo, 2000, p. 85-102.
39 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jeménez Redondo. Madri: Trotta, 1998; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica
processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.
40 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jeménez Redondo. Madri: Trotta, 1998; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica
processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.

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194 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

judicial, que importa na determinação da 4 Jurisdição constitucional


norma adequada a um dado caso, assegura- brasileira
da num nível institucional, depende do
Como reconstruir adequadamente,
entrelaçamento de argumentos e de pers-
pois, o papel da jurisdição constitucional,
pectivas de interpretação acerca do caso
jurisdição em matéria constitucional, no Bra-
concreto que não pode, por um lado, dei-
sil?
xar de considerar os pontos de vista dos di-
retamente implicados, nem, por outro, se Partindo de uma compreensão da
deixar reduzir à sua mera consideração. O Constituição, sob o paradigma do Estado
que se coloca em questão, nesse momento, Democrático de Direito, como a regulação
é a própria garantia de integridade do Di- de processos que visam a garantir o exercí-
reito, a fim de se garantir tanto a coerência cio da autonomia jurídica, numa perspecti-
normativa da decisão ao sistema jurídico, va que supera tanto o paradigma liberal,
quanto a sua adequabilidade ao caso con- quanto o paradigma de bem-estar social, de
creto. Constituição e de autonomia, poderemos
reconstruir a tarefa da jurisdição constitu-
Toda essa digressão leva, pelo me- cional como primordialmente referida ao
nos, à necessidade de se ultrapassar as no- exame e à garantia de realização das condi-
ções de devido processo formal e de devido ções procedimentais, das formas comuni-
processo material, no que se refere à dimen- cativas e negociais, para um exercício
são institucional da argumentação jurídi- discursivo da autonomia política. Os direi-
ca de aplicação. Essa articula-se com o tos fundamentais exprimem essas condi-
Direito Processual, impossibilitando que ções, possibilitam um consenso racional, ou,
seja tratada como um caso especial de ar- ao menos, um processo equânime de nego-
gumentação moral, mas todavia garantin- ciação, acerca da institucionalização das
do no aspecto temporal, social e objetivo normas do agir, e tornam possível a gênese
que ela ganhe curso, sem que haja uma pré- democrática do Direito. Através da partici-
definição formal ou material a algum fim pação discursiva no processo legislativo
que se possa pretender alcançar, a não ser democrático, os destinatários das normas
o da construção imparcial, coerente e par- jurídicas são os autores das mesmas. Tal re-
ticipada da decisão: tal seria, inclusive, a ferência às condições procedimentais do
noção que consideramos a atual do prin- processo legislativo democrático não faz da
cípio constitucional do devido processo jurisdição constitucional um poder legis-
legal. lativo, ainda que negativo, nem tão pouco
Uma vez que explicitada a dimensão a tornará um guardião republicano de um
operacional de uma teoria do Direito cons- processo político restrito a questões ético-
titucionalmente adequada ao paradigma do culturais, como numa leitura republicana
Estado Democrático de Direito, retomare- do paradigma do Estado Social.
mos, agora, a tarefa de reinterpretação da Procuraremos, agora, delinear, em ter-
jurisdição constitucional brasileira. mos analíticos, como deve ser compreendido

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 195

o papel da jurisdição constitucional no con- interpretados como valores concretos de


trole jurisdicional de constitucionalidade uma dada tradição ético-política, como su-
das leis e do processo legislativo, no marco gerem alguns republicanos, a partir de uma
da Constituição da República brasileira, sob teoria substantiva dos direitos fundamentais ou
o Estado Democrático de Direito. Buscare- de uma teoria do devido processo substantivo.
mos caracterizar, em linhas gerais, o con-
2. Garantia do devido processo
trole jurisdicional de constitucionalidade
constitucional; ou seja, imparcialidade e
das leis e do processo legislativo, em via
adequabilidade nos discursos de aplicação
principal e em via incidental, como ativi-
jurídica em geral. Nessa perspectiva, a ju-
dade de aplicação jurídico-normativa.
risdição constitucional deve garantir, de
A tarefa geral da jurisdição constitu- forma constitucionalmente adequada, a
cional e, especialmente, no controle participação ou a representação nos proces-
jurisdicional de constitucionalidade das leis sos ordinários cíveis, penais e nos proces-
e do processo legislativo, no marco da Cons- sos especiais de garantia de direitos consti-
tituição da República brasileira, sob tucionais e de controle jurisdicional de
paradigma do Estado Democrático de Di- constitucionalidade, dos possíveis afetados
reito, é a de garantia das condições processu- por cada decisão, através de uma interpre-
ais para o exercício da autonomia pública e da tação construtiva que compreenda o pró-
autonomia privada dos co-associados jurídicos, prio processo jurisdicional como garantia
no sentido da interdependência e da das condições para o exercício da autono-
equiprimordialidade delas. Essa tarefa mia jurídica dos cidadãos. Ao possibilitar a
densifica-se nas seguintes perspectivas: garantia dos direitos fundamentais proces-
suais jurisdicionais, nos próprios processos
1. Garantia do devido processo
de controle jurisdicional de constitu-
legislativo democrático; ou seja, democra-
cionalidade, em via incidental ou principal,
cia e abertura nos discursos legislativos de
a jurisdição em matéria constitucional tam-
justificação das normas jurídicas do agir. Sob
bém garantirá as condições para o exercí-
o paradigma do Estado Democrático de
cio da autonomia jurídica dos cidadãos, pela
Direito, a jurisdição constitucional deve
aplicação a si mesma do princípio do devido
referir-se primeiramente aos pressupostos
processo legal, compreendido, aqui, como
comunicativos e às condições processuais
modelo constitucional do processo.
para uma gênese democrática do Direito.
Tal perspectiva não poderá reduzir-se a uma Desse modo é que a garantia dos di-
leitura meramente instrumental do proces- reitos fundamentais, da autonomia políti-
so legislativo, como sugerem os enfoques ca, capacidade para uma escolha racional e
liberais da política, pois há que se levar ex- auto-realização ética – que se ramifica no
plicitamente em conta o caráter normativo uso público das liberdades comunicativas e no
dos princípios constitucionais que justificam uso privado das liberdades subjetivas – e a ga-
a legitimidade desse processo. Mas esses rantia do direito das gerações futuras ao
princípios não podem nem necessitam ser exercício da autonomia jurídica repousam

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196 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

e são desenvolvimentos das duas garantias de um processo democrático de reforma, no


constitucionais processuais básicas acima tempo, das interpretações subjacentes às
elencadas. decisões políticas e jurídicas fundamentais,
acerca de o que deva ser o juridicamente cor-
Como a atuação da jurisdição cons-
reto, possibilitando às gerações futuras a
titucional deve referir-se às condições
apropriação reflexiva das tradições políti-
procedimentais do processo legislativo cons-
co-constitucionais, no sentido de que a
titucionalmente estruturado, de acordo com
Constituição deverá ser sempre considera-
o qual os cidadãos, no exercício de seu di-
da como um projeto em aberto, numa De-
reito de autodeterminação, possam realizar
mocracia. Por outro lado, a garantia de um
o projeto cooperativo de estabelecer con-
processo legislativo democrático de refor-
dições recorrentemente mais justas de vida,
ma constitucional deve impedir que os dis-
essa atuação deve justamente assegurar o
positivos constitucionais sejam objeto de
sistema de direitos que apresentam tais con-
alteração através do exercício de um poder
dições procedimentais e que, assim, garan-
constituinte derivado distanciado das fon-
tem as autonomias pública e privada dos
tes de legitimidade situadas nos fóruns de
cidadãos, não somente perante o poder ad-
uma esfera pública política que não se re-
ministrativo do Estado mas também em face
duz ao Estado. O que leva a que mais uma
do poder social e econômico.
vez se retome, explícita e radicalmente, a
Vista da perspectiva da garantia do pergunta pelos fundamentos democráticos
direito das gerações futuras ao exercício da e pluralistas do constitucionalismo, relaci-
autonomia jurídica, a tarefa da jurisdição onados à própria pretensão de legitimidade
em matéria constitucional envolve a pró- do Direito moderno e dos vínculos consti-
pria questão acerca do futuro da democra- tucionais.
cia entre nós, assim como a relação entre a
Mas isso não pode fazer da jurisdi-
Constituição e o tempo, o que envolve a
ção constitucional, como já assinalado an-
reconstrução, por exemplo, de um princípio
teriormente, uma guardiã republicana do
constitucional da reversibilidade dos entendi-
processo político e da cidadania, que a
mentos jurisprudenciais subjacentes das deci-
transformaria numa espécie de poder cons-
sões, ao lado de um princípio da
tituinte permanente.
não-escravidão voluntária, como corolários
do princípio democrático, princípios, esses, Uma interpretação do processo polí-
que devem estruturar os processos formais tico fundada numa compreensão procedi-
e informais de mudança constitucional. mental do Direito e da política não deve
Nesse sentido, no que se refere aos proces- conceber a política deliberativa como um
sos formais, cabe dizer que a jurisdição cons- processo estabilizador de identidades ético-
titucional, no exercício do controle culturais, nem muito menos reduzir o Di-
jurisdicional de constitucionalidade do pro- reito a uma eticidade consuetudinariamente
cesso legislativo de reforma constitucional, herdada. A formação democrática da vonta-
deve garantir as condições procedimentais de e da opinião, ao contrário do que pressu-

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 197

põe a tradição republicana do pensamento via principal, como atividades processual-


político, não tira sua força legitimadora da mente institucionalizadas de aplicação do
convergência de convicções e de razões éti- Direito: o controle jurisdicional de
cas, mas dos pressupostos comunicativos e constitucionalidade não deverá ser exerci-
dos processos que possibilitam o aporte de do da perspectiva de um legislador negati-
razões e interesses de amplo espectro, de vo ou positivo.
tal modo a selecionar os melhores argumen-
O controle por via incidental inicia-
tos. A autonomia pública, assim como o
se com vistas à resolução de casos individuais
Direito, não pode ser assimilada a uma con-
e, por isso, limita-se à aplicação de normas
cepção ética, o que fundamenta, segundo
constitucionais, afastando-se do sentido
HABERMAS, o fato de a Teoria do Dis-
curso não precisar reservar o modo da polí- inconstitucional dos dispositivos normativos.
tica deliberativa a condições excepcionais.41 Desse modo, sua caracterização como ativi-
Assim, a jurisdição constitucional, com base dade de aplicação do Direito não deve le-
numa compreensão procedimentalista da vantar grandes questionamentos em relação
Constituição, não tem que buscar sua legi- à sua natureza. Ao possibilitar a garantia dos
timidade em tais condições excepcionais. direitos fundamentais, reafirma as condições
Ela pode permanecer no quadro de sua au- do exercício das autonomias pública e priva-
toridade para aplicar o Direito, na certeza da pelos cidadãos e, nesse sentido, o contro-
de que o processo democrático, que ela deve le jurisdicional de constitucionalidade por via
proteger, não precisa ser descrito como um incidental também pode ser reconstruído
estado de exceção. Temos, para isso, de livrar tendo-se por referência a dinâmica do pro-
o conceito de política deliberativa de cesso de elaboração democrática do Direito.
conotações excessivas, impostas por uma Já o controle jurisdicional de
concepção republicana do processo políti- constitucionalidade por via principal, que
co, que colocariam a jurisdição constituci- tantas questões vem suscitando ao longo
onal sob permanente pressão. Concordando dos anos, para ser reconstruído no quadro
com HABERMAS, ela “não pode assumir traçado da jurisdição constitucional demo-
o papel de um regente que toma o lugar de crática, deve diretamente referir-se às con-
um sucessor menor de idade ao trono”.42 dições procedimentais para a realização do
No quadro traçado da jurisdição processo democrático e das formas
constitucional, será possível compreender deliberativas da formação política da opi-
o controle jurisdicional de constitucio- nião e da vontade. Tais condições, por sua
nalidade das leis e do processo legislativo, vez, referem-se ao exercício discursivo das
no Brasil, tanto em via incidental quanto em autonomia pública que viabiliza o processo

41 Segundo HABERMAS, Direito e democracia: Entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, v. I, 1997, p. 345: “A tradição republicana sugere um tal excepcionalismo, uma vez que liga a prática política dos
(cidadãos) ao ethos de uma comunidade naturalmente integrada. A política correta só pode ser feita por (cidadãos) virtuosos”.
42 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: Entre facticidade e validade, vol.I, p. 347.

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198 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

legislativo democrático, através do qual os Tais afirmações podem ser exempli-


próprios cidadãos são os autores de seus ficadas ao analisarmos os efeitos e a natu-
próprios direitos e deveres, na dinâmica da reza das decisões jurisdicionais tomadas em
gênese legítima do Direito. sede de um e do outro modo de controle.
E de que modo se relacionam o con- Aqui, pretendemos afastar uma série de mal-
trole por via incidental e o controle por entendidos, à luz de o que viemos conside-
via principal? Em princípio, essa questão rando uma compreensão da jurisdição
ganha concretude ao ser respondida no constitucional, no marco do Estado Demo-
quadro de uma ordem jurídica específica, crático de Direito.
e que consagra os dois modos de controle. Tradicionalmente, os autores euro-
No Direito brasileiro, o controle por via peus e norte-americanos têm-se dividido ao
incidental deve ser compreendido como caracterizar os efeitos e a natureza das de-
modo ordinário, assim como o controle por cisões jurisdicionais constitucionais. E isso
via principal deve ser compreendido como está bastante relacionado ao modo com que
modo especial, de controle jurisdicional de fundamentalmente concebem a jurisdição
constitucionalidade, não somente por ra-
constitucional, quer como atividade de apli-
zões históricas, jurisprudencialmente as-
cação do Direito, ainda que construtiva, quer
sentadas, mas em função da sistemática do
como legislador negativo ou até como le-
controle jurisdicional de constitucio-
gislador positivo, concorrente ou, ao me-
nalidade das leis e do processo legislativo,
nos, subsidiário.
no quadro da Constituição da República.
Tal compreensão seria a única que possi- As posições são, fundamentalmente,
bilitaria uma visão não-excludente ou não- três:43
incompatível dos dois modos de controle.
1. as decisões têm sempre caráter
As conseqüências de se caracterizar declaratório, atingindo quer as partes, quer
o controle por via incidental como modo a todos, dependendo de como a questão é
ordinário e o controle por via principal como suscitada, e sempre em caráter retroativo;
modo especial são, fundamentalmente, as
seguintes: 2. as decisões têm sempre caráter
constitutivo, atingindo quer as partes, quer
1. a normativa do controle em via
a todos, por um lado, podendo, por outro,
incidental se aplica subsidiariamente ao
retroagir ou não, conforme o Direito vigen-
controle em via principal;
te;
2. o controle em via incidental e o
controle em via principal são complemen- 3. o caráter e os efeitos da decisão
tares. estão relacionados ao modo de controle, se
por via incidental, se por via principal.

43 Acerca de tais posições, ver também BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. “Efeitos do pronunciamento judicial de
inconstitucionalidade no tempo”. In Cadernos da Pós-Graduação (Teoria Geral do Processo Civil), Pós-Graduação em Direito/
UFMG. Belo Horizonte, 1995, p. 25 e ss.

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Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 199

As duas primeiras posições são as que Essa seria estatalista porque está fundada,
tentam conciliar, de alguma forma, os dois antes de tudo, num positivismo jurídico que,
modos de controle, e, por isso, em princí- ao contrário do que muitas vezes se afirma
pio, são candidatas em razão do seu caráter acerca da obra kelseniana, está adequada ao
sistemático. A terceira, por estabelecer uma paradigma do Estado Social, na medida em
relação de concorrência ou até de oposição que instrumentaliza, através da noção de in-
entre os dois modos de controle, perde em terpretação autêntica ou autorizada, a
sistemática, mas, ao final, poderá ser des- discricionariedade necessária ao desenvolvi-
cartada em razão de outros argumentos. mento de políticas governamentais de im-
A primeira posição é tradicionalmen- pacto, cujo mérito nunca poderia ser conhecido
te exposta em termos individualistas, en- pela Ciência do Direito.45 KELSEN restrin-
quanto a segunda, em termos estatalistas. ge, assim, a comunidade de intérpretes au-
A primeira afirma que a norma torizados da Constituição aos órgãos
inconstitucional é uma contradição em ter- jurídicos, não a estendendo a todo o público
mos e que, portanto, pode ser reconhecida de cidadãos, o que o leva a não diferenciar
por qualquer um como inválida e nula, no aquele que nega a força vinculante do co-
sentido de que ninguém está submetido a mando por não reconhecer a sua objetivida-
um comando inconstitucional. A segunda de, ou seja, o seu fundamento de validade,
considera que tão-somente os órgãos esta- como o mero criminoso, que desobedece à
tais competentes e autorizados para tanto norma sem apresentar razões plausíveis, já
podem pronunciar-se a respeito da que todos os dois assim se comportariam por
inconstitucionalidade de uma norma e fazê- sua conta e risco.46
la cessar de gerar efeitos, ou seja, de anulá- Ao assim conceber o processo de
la. Mesmo a nulidade, para a doutrina que interpretação e aplicação do Direito, como
defende a natureza constitutiva da decisão uma questão de decisão juridicamente
jurisdicional, seria apenas o grau mais alto institucionalizada, de produção discricio-
de anulabilidade, de uma anulação a ope- nária do Direito, KELSEN inverte a lógica
rar efeitos retroativos.44
do controle de constitucionalidade, privile-
A teoria que chamaremos estatalista giando, mais que uma pretensão de validade
pode ser analisada a partir de uma crítica à dos comandos estatais, uma compreensão
sua maior representante, a teoria kelseniana. da dinâmica jurídica incompatível com o

44 Esta é a posição, por exemplo, de KELSEN, exposta na Teoria pura do direito. Trad. João Batista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 1987, p. 293-294.
45 Sobre isso, ver CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. “Interpretação como ato de conhecimento e interpretação como ato
de vontade: A tese kelseniana da interpretação autêntica”. In Revista de Direito Comparado, Pós-Graduação em Direito/UFMG,
v. 1. Belo Horizonte, 1997, p. 201-227. CARVALHO NETTO, Menelick. “A interpretação das leis: Um problema metajurídico ou
uma questão essencial do Direito? De Hans Kelsen a Ronald Dworkin”. In Cadernos da Escola do Legislativo, n. 5. Belo Horizon-
te, 1997, p. 27-30.
46 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 293.

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200 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Estado Democrático de Direito que, É fundamental a relação que se esta-


fundado numa compreensão procedimenta- belece entre sociedade aberta de intérpretes
lista do Direito e da Política, não parte de da Constituição e Estado Democrático de
um modelo fechado das normas jurídicas, Direito. Como já avançado, sob o Estado
mas aberto e principiológico. Democrático de Direito, a jurisdição cons-
E a primeira posição, pode sustentar- titucional, no exercício do controle
se no marco do Estado Democrático de jurisdicional de constitucionalidade, deve
Direito e, portanto, no da Constituição da voltar sua atuação para a garantia das con-
República brasileira? Acreditamos que sim, dições procedimentais do exercício da au-
desde que superado o seu caráter individua- tonomia por parte dos cidadãos e, com isso,
lista e um tanto quanto privatista. garantir as condições para a realização do
processo democrático, mas sem assumir a
Se, no marco do Estado Liberal, a postura de um guardião da virtude, com base
nulidade ou nulidade absoluta de um co- em fundamentos ético-culturais ou em
mando inconstitucional é sanção que ope- meramente político-pragmáticos. O contro-
ra de pleno direito, em razão de um vício le jurisdicional de constitucionalidade não
grave, de ordem pública, a refugir do mero pode ser tratado como um questão de Esta-
interesse privado de quem quer que fosse, do. É no contexto de uma esfera pública
é compreensível a concepção segundo a política de cidadãos os quais, no exercício
qual a decisão judicial seria meramente de seus direitos fundamentais, aprofundam
declaratória, de reconhecimento por parte o seu sentimento de Constituição e de De-
de um juiz ou tribunal de um estado de coi- mocracia, que a jurisdição constitucional
sas já existente anteriormente à sua aprecia- deve ser exercida.
ção, assim como seria possível fundar a
desobediência à esse comando em termos Com base nesse paradigma jurídico-
individualistas: quem se sentisse lesado que democrático é que se pode dizer que todos
procurasse defender-se. os cidadãos têm o direito, desde que
discursivamente fundados, de desobedecer a
Mas tal compreensão é muito ingê- um comando normativo que considerem
nua, diante da reflexividade cobrada pelo inconstitucional. Só assim poderá ser com-
paradigma jurídico do Estado Democrático preendida, hoje, a expressão nulidade de ple-
de Direito. Mas mesmo assim, é preciso re- no direito, declarada judicialmente, fruto de
construir os argumentos de modo a fortale- um processo de reconhecimento público
cer a primeira posição, em face, inclusive, que, tendo por base a sociedade civil, gera
da necessidade democrática de se fazer fren- influência política através dos diversos es-
te à segunda posição. Afinal, o que signifi- paços públicos e transforma-se em poder
caria nulidade de pleno direito, no quadro político, ao ganhar os canais institucionais
traçado da jurisdição constitucional, no no interior do Poder Judiciário.
exercício do controle jurisdicional de
constitucionalidade, sob o paradigma do E como pode ser compreendida a
Estado Democrático de Direito? afirmação segundo a qual a natureza da

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Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 201

decisão jurisdicional é declaratória e não quadro geral das chamadas ações coletivas
constitutiva? Ela é o reconhecimento e, por outro, reconhecer, como veremos,
formal ou a formalização de uma opinião a inconstitucionalidade da Lei nº 9.868/
pública segundo a qual as razões para 99.
desobedecer demonstraram-se constitu-
cionalmente fundadas. E quando não Como o processo jurisdicional da
forem, os desobedientes civis não deverão ação direta de inconstitucionalidade é es-
ser tratados como criminosos, até mesmo pecial em face do processo jurisdicional do
porque, um dia, em razão da própria controle incidental, esse, sim, é o ordiná-
dinâmica da interpretação constitucional, rio, possível de ser realizado, em princípio,
a posição deles pode democraticamente vir em face de qualquer demanda, por qual-
a prevalecer. quer juiz ou tribunal, por provocação das
partes ou mesmo ex officio. Enquanto tal,
A decisão é de eficácia retroativa, ou aquilo que a Constituição, em primeiro
seja, vem formalizar, institucionalizar, o re- lugar, e o Código de Defesa do Consumi-
conhecimento público da invalidade da dor combinado com a Lei da Ação Civil
norma, que se deu na esfera pública infor- Pública, em segundo lugar, não excep-
mal ou até mesmo no plano da Administra- cionam, quanto aos legitimados para a
ção Pública. propositura, quanto ao modo processual e
Tal perspectiva pode ser válida para quanto aos atingidos pela coisa julgada,
as decisões jurisdicionais tomadas através vale para a ação direta de incons -
do controle por via principal, desde que, por titucionalidade, como vimos, o que vale
um lado, seja repensado o conceito proces- para o controle incidental. A ação direta
sual de partes, assim como o de legitimação de inconstitucionalidade é uma ação co-
processual.47 Os legitimados pela Constitui- letiva, proposta, como a ação civil públi-
ção, em seu art. 103, representam a cida- ca, por representantes da cidadania em
dania. geral.48

A extensão da incidência dos efei- Após a análise das duas primeiras


tos retroativos sobre os atos singulares posições, a terceira fica prejudicada, pelo
praticados com base em comando in- fato de buscar conciliar duas concepções
constitucional deve ser analisada caso a que partem de paradigmas jurídicos diferen-
caso, segundo a lógica argumentativa dos tes, o que nada contribui para uma com-
discursos de aplicação jurídica. Para isso, preensão adequada do controle jurisdicional
seria adequado, por um lado, procurar tra- de constitucionalidade das leis e do processo
tar a ação direta de inconstitucionalidade no legislativo.

47 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.
48 Essa é uma questão que pretendemos desenvolver em estudo posterior.

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202 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

5 A inconstitucionalidade da maioria de 2/3 (dois terços) de seus mem-


Lei Federal nº 9.868 e a bros, restringir os efeitos daquela decla-
ração ou decidir que ela só terá eficácia
interpretação a partir do trânsito em julgado ou de ou-
constitucionalmente tro momento que venha a ser fixado.”
adequada dos efeitos
Como se pode depreender da análi-
temporais das decisões do se desse dispositivo, a Lei nº 9.868/99 visa
Supremo Tribunal Federal atribuir ao Supremo Tribunal a competên-
em sede de ação direta de cia para determinar, com força vinculante
inconstitucionalidade e eficácia orga omnes (nos termos do pará-
Em 10 de novembro de 1999 foi pro- grafo único do seu art. 28), o momento em
mulgada a Lei Federal nº 9.868, que “Dis- que suas decisões, em sede do controle por
põe sobre o processo e julgamento da ação via principal, irão entrar em vigor. Assim, o
direta de inconstitucionalidade e da ação Tribunal poderia modular os efeitos tempo-
declaratória de constitucionalidade peran- rais de suas decisões, definindo a partir de
te o Supremo Tribunal Federal”. quando uma lei ou ato normativo
inconstitucional perderia sua eficácia, se
Tal Lei, que só recentemente vem após o trânsito em julgado da decisão, ou
merecendo a atenção dos magistrados, dos até mesmo no momento que se julgar con-
membros do Ministério Público e de veniente, “tendo em vista razões de segu-
doutrinadores pátrios, pretende introduzir rança jurídica ou de excepcional interesse
uma série de inovações no sistema de con- social”. Conseqüência mínima disso é que
trole de constitucionalidade brasileiro, al- mesmo declarados inconstitucionais um ato
terando-lhe, profundamente, a feição, normativo ou uma lei, o Supremo Tribunal
principalmente no que se refere aos efeitos Federal poderia exigir o seu cumprimento
temporais das decisões do Supremo Tribu- pelos demais órgãos do Poder Judiciário,
nal Federal, em sede do controle por via pelo Poder Executivo e pela cidadania em
principal. geral.
Essas inovações, com certeza, mere- Sabemos que não somente por razões
cem não somente a atenção dos operado- históricas mas também sistemáticas a tra-
res jurídicos, mas também a da cidadania dição da jurisprudência constitucional bra-
em geral, em razão das conseqüências ne- sileira é a de que mesmo em sede de ação
fastas advindas dos princípios subjacentes direta os efeitos temporais da decisão que
à sua adoção. declara a inconstitucionalidade de lei ou de
O art. 27, da referida Lei, dispõe: ato normativo são retroativos. Como vimos,
segundo esse entendimento constitucional-
“Ao declarar a inconstitu-
mente adequado ao modelo brasileiro de
cionalidade de lei ou ato normativo, e
tendo em vista razões de segurança jurí- controle de constitucionalidade, a lei ou o
dica ou de excepcional interesse social, ato normativo inconstitucional é uma con-
poderá o Supremo Tribunal Federal, por tradição em termos, pois todo ato de von-

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Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 203

tade, emanado do Legislativo ou do Execu- Cada vez mais, à retórica das deci-
tivo, que fere, formal ou materialmente, a sões contraditórias acrescentam-se outros
Constituição, carece de seu fundamento de argumentos metodológicos e pragmáticos acer-
validade, e, por isso, embora exista como ca do controle de constitucionalidade. Pri-
ato de vontade, não existe como lei ou ato meiramente, argumenta- se, com base
normativo, como ato dotado de norma- sobretudo em KELSEN, que não se pode
tividade, de obrigatoriedade. sustentar a tese da nulidade absoluta ou de
pleno direito da lei inconstitucional; o Di-
Nesse sentido, um ato inconsti-
reito moderno é caracterizado por sanções
tucional nunca vinculou o Judiciário e a
organizadas que não se aplicam automati-
Administração e, muito menos, os cidadãos,
camente, não se podendo confundir o ví-
que têm o direito fundamental a não se sub- cio da inconstitucionalidade com a sanção
meterem a comandos inconstitucionais. de nulidade.
Mesmo após a introdução da via prin- As conseqüências tiradas dessas afir-
cipal de controle, considera a jurisprudên- mações seriam, primeiramente, a de que não
cia que o sistema permanece eminentemen- haveria nenhuma questão de princípio que
te difuso (procedimento ordinário de con- se pudesse reconhecer a fim de se concluir
trole), devendo o processo e o julgamento que uma decisão que anule uma norma
da ação direta submeterem-se aos princí- inconstitucional o faria sempre com cará-
pios assentados jurisprudencialmente. ter retroativo. A lei é presumida constitu-
Todavia, desde a República Velha, cional até que órgão competente, exercendo
vozes já se levantavam contra o sistema o papel de legislador negativo, a considere
difuso e, num nível pragmático, buscavam inconstitucional e a anule. Segundo, seria
alertar para o que seria o risco de decisões o Direito Positivo que definiria o aspecto
contraditórias, na medida em que as deci- temporal dos efeitos da decisão ou, na au-
sões judiciais brasileiras, diferentemente das sência de norma expressa, o próprio órgão,
norte-americanas, não possuiriam efeito discricionariamente. E, terceiro, caberia
vinculante, nem fariam precedente obriga- tão-somente ao órgão competente anular a
tório. lei, centralizando a autorização para apli-
car a sanção, não assistindo aos cidadãos
Progressivamente, foram inseridos um direito à desobediência: como vimos,
mecanismos que teriam a finalidade de su- em termos kelsenianos, quem não cumprir
prir o que seria uma deficiência do sistema uma lei por considerá-la inconstitucional
brasileiro, a começar pela possibilidade do assim o faria por sua conta e risco, já que o
Senado retirar do quadro das leis uma lei órgão competente poderia considerar a lei
declarada inconstitucional, em última ins- constitucional.
tância, pelo Supremo Tribunal, até a intro-
dução do controle por via principal e, agora, Além dos argumentos metodológicos,
a com a atribuição de efeito vinculante às e da já tradicional retórica das decisões con-
decisões desse Tribunal em matéria consti- traditórias, acrescentaram-se outros de ca-
tucional. ráter pragmático. O esquema tradicional do

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204 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

controle não se adaptaria às necessidades do ma de controle jurisdicional de constitu-


Estado Social. Seria necessário modular os cionalidade das leis e de atos normativos
efeitos temporais da decisão constitucional, que, todavia, fere o modelo constitucional-
em razão dos novos fins e tarefas assumidos mente previsto.
pelo Estado. A técnica da declaração de
Ao atribuir ao Supremo Tribunal Fe-
inconstitucionalidade não seria adequada a
deral a competência para modular os efei-
um sistema jurídico que estabelecesse pro-
tos de suas decisões, em sede do controle
gramas a serem progressivamente imple-
por via principal, admitindo a eficácia ex
mentados ou que possibilitariam a sua apli-
nunc, ao atribuir natureza constitutiva à
cação em diversos graus. Ou seja, a própria
decisão, assim como a possibilidade de que
distinção constitucionalidade/inconstitu-
cionalidade deveria, assim, ser revista, pois esta passaria a gerar efeitos quando o Tri-
não consideraria situações intermediárias, bunal assim o determinar, o art. 27, da Lei
tais como as de omissões parciais do legisla- nº 9.868/99 fere uma interpretação consti-
dor.49 Esse argumento, inclusive, é explicita- tucionalmente adequada de uma série de
mente apresentado pela Comissão especial dispositivos constitucionais, dentre eles:
que redigiu o anteprojeto que mais tarde veio 1. o princípio do Estado Democráti-
a servir de base para a Lei nº 9.868/99.50 co de Direito, fixado no art. 1º;
Uma vez que já tratamos, anterior- 2. a aplicação imediata dos direitos
mente, a questão acerca da justificação do fundamentais, § 1º, art. 5º;
controle de constitucionalidade, assim
como acerca da caracterização constitucio- 3. a imutabilidade dos princípios
nalmente adequada dos efeitos temporais constitucionais, no que concerne aos direi-
das decisões jurisdicionais em matéria cons- tos fundamentais e ao processo especial de
titucional no Brasil, poderemos analisar o reforma da Constituição, art. 5º, §§ 1º e 2º;
que poderá significar, para o sistema jurídi- art. 60, § 4º;
co brasileiro, a inclusão dos dispositivos pre- 4. o sistema ordinário de controle
vistos pela Lei nº 9.868/99, assim como a jurisdicional difuso da constitucionalidade,
questão acerca de se esses dispositivos são art. 97 e art. 102, III, a, b e c, que atribui
constitucionais, à luz de uma compreensão competência a todo juiz ou tribunal para
constitucionalmente adequada do contro- deixar de aplicar a lei inconstitucional, as-
le de constitucionalidade. sim como o direito que dele decorre ao ci-
A inclusão de tais dispositivos repre- dadão de se recusar a cumprir a lei
senta a tentativa de uma alteração do siste- inconstitucional, assegurando-se-lhe, em

49 MENDES, Gilmar Ferreira e MARTINS, Ives Gandra da Silva. Controle concentrado de constitucionalidade: Comentários à Lei nº
9.878, de 10.11.1999. São Paulo: Saraiva, 2001. Para nós, esse argumento não procede à luz de uma concepção contrutiva da
interpretação constitucional: o caso seria de se aplicar o princípio constitucional da igualdade e não simplesmente o de declarar,
negando tutela jurisdicional adequada, uma omissão parcial.
50 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, apêndice.

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Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade ... 205

última instância, a possibilidade de inter- rídicas (ALEXY). Assim, uma vez que tam-
por recurso extraordinário ao Supremo Tri- bém se reconhecesse status constitucional
bunal Federal contra decisão judicial que às razões de segurança jurídica e de rele-
se apresente contrária à Constituição, nos vante interesse social, o princípio da nuli-
termos do art. 102, III, a. dade da lei inconstitucional incorreria numa
Como bem assinalava, inclusive, operação de sopesamento, que envolveria
GILMAR FERREIRA MENDES, em sua tais razões, e teria a sua aplicação afastada
Tese de Doutorado, se, em face de um processo específico de
controle concentrado, tais razões encontras-
“Tanto o poder do juiz de negar sem maior relevância do que a simples de-
aplicação à lei inconstitucional quanto a claração de nulidade, com efeitos ex tunc.
faculdade assegurada ao indivíduo de
negar observância à lei inconstitucional A questão é que essa posição não leva
demonstram que o constituinte pressu- a sério o caráter especificamente deon-
pôs a nulidade da lei inconstitucional. tológico dos princípios constitucionais. Os
Nessa medida, é imperativo concordar princípios, enquanto normas, diferenciam-
com a orientação do STF que parece re-
se dos valores justamente porque estabele-
conhecer hierarquia constitucional ao
cem um vínculo de obrigatoriedade e não
postulado da nulidade da lei incompatí-
vel com a Constituição.”51 da preferência ou de conveniência. Princí-
pios estabelecem o que é devido e não o
Por fim, cabe analisar um argumento que é preferível. Enquanto tal, possuem um
que vem sendo apresentado por defensores código binário e não gradual, não podendo
da constitucionalidade da Lei nº 9.868/99, ser cumpridos em maior ou menor exten-
fundado numa determinada compreensão são.
dos princípios constitucionais, desenvolvi-
da por autores vinculados à chamada juris- Outro problema dessa concepção é
prudência dos valores. Essa posição não o de confundir a perspectiva argumentativa
nega a hierarquia constitucional do princí- do processo jurisdicional com a perspecti-
pio da nulidade da lei inconstitucional, mas va argumentativa do processo legislativo.
acredita que, sendo os princípios mandatos Enquanto nesse último se colocam questões
de otimização (ALEXY), esses terão sua apli- que venham, justamente, a justificar a vali-
cação sujeita a um princípio de pondera- dade das normas, naquele se coloca a ques-
ção, segundo o qual os princípios se tão acerca da adequabilidade de uma norma
diferenciariam das regras justamente por- à solução de um caso concreto. Dizer que
que, ao lado de questões de validade, colo- os princípios se distinguem das regras por
cariam questões de peso, podendo, eles colocam, em seu processo de aplicação,
portanto, serem aplicados em diferentes questões de ponderação ao lado de ques-
graus, segundo circunstâncias fáticas e ju- tões de validade, que lhe possibilitam um

51 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 256.

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cumprimento gradual, nada diz acerca da força legitimadora da convergência de con-


sua adequabilidade. vicções e de razões éticas, mas dos pressu-
postos comunicativos e dos processos de
Ao final, ao se reduzir o Direito a
justificação normativa que possibilitam o
valores que, por sua natureza, não são ho-
aporte de razões e interesses de amplo es-
mogêneos numa mesma sociedade, aumen-
pectro, de tal modo a possibilitar a seleção
ta-se o risco da irracionalidade do processo
dos melhores argumentos. A autonomia
jurisdicional de controle, transformando-o,
pública, assim como o Direito, não pode ser
em uma instância político-legislativa que se
reduzida a uma auto-realização ética, o que
sobressairia ao próprio legislador democrá-
justifica, segundo HABERMAS, o fato de
tico. Instaurar-se-ia, desse modo, uma di-
a Teoria do Discurso não precisar revestir o
tadura de boas intenções éticas e políticas que
processo político de condições excepcionais
desrespeita a cidadania e o legislativo, à
de consciência e de virtude cívicas.52 Assim, a
medida que os reduz a meros tutelados do
jurisdição constitucional não tem, portan-
Tribunal de cúpula ou, no caso alemão, da
to, que buscar sua legitimidade em condi-
Corte Constitucional.
ções excepcionais. Ela pode permanecer no
Como exaustivamente afirmado, quadro de sua autoridade para aplicar o Di-
embora a tarefa de garantir as condições reito, na certeza de que o processo demo-
processuais para o exercício das autonomias crático, que ela deve proteger, não precisa
pública e privada dos cidadãos necessite de ser descrito como um estado de exceção.
uma jurisdição constitucional ofensiva, nos
casos em que se deve impor o processo de- É um imperativo reconhecer, portan-
mocrático e a forma deliberativa da forma- to, a inconstitucionalidade da Lei nº 9.868/
ção política da opinião e da vontade, isso 99, que pretende descaracterizar o contro-
não pode fazer da jurisdição constitucional le difuso, ao buscar alterar o artigo 482 do
uma guardiã republicana do processo políti- Código de Processo Civil, e por intentar
co e da cidadania. Uma interpretação do transformar as decisões em ação direta de
processo político, que seja adequada à com- inconstitucionalidade perante o Supremo
plexidade das sociedades atuais, não pode Tribunal Federal num meio espúrio de sus-
reduzir a política a um processo de auto- pensão da ordem constitucional, ao preten-
realização ética, nem muito menos reduzir der atribuir ao Supremo o poder de restringir
a Constituição a uma ordem concreta de o conteúdo e de fixar os efeitos temporais
valores. A formação democrática da von- de suas decisões, flagrantemente invertendo
tade e da opinião, ao contrário do que pres- a hierarquia das fontes do Direito, ao poder
supõe a tradição republicana, não tira sua determinar, à cidadania, à Administração

52 A crítica se destina diretamente tanto a BRUCE ACKERMAN e seu modelo dualista de democracia, quanto a FRANK MICHELMAN
e sua caracterização do papel da Suprema Corte norte-americana, mas pode estender-se ao republicanismo em geral. Assim,
afirma HABERMAS, Direito e democracia, v. 1, p. 345, que: “A tradição republicana sugere um tal excepcionalismo, uma vez que
liga a prática política dos civis ao ethos de uma comunidade naturalmente integrada. A política correta só pode ser feita por
(cidadãos) virtuosos”.

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Pública e aos demais juízes e tribunais, a compreensão não é correta, quer do ponto
obediência a leis e atos normativos decla- de vista teorético-filosófico adequado ao
rados inconstitucionais pelo próprio Tribu- paradigma do Estado Democrático de Di-
nal, com base em “razões (?) de segurança reito, aqui, adotado, quer de um ponto de
jurídica ou de excepcional interesse social” vista teórico-dogmático adequado ao Direi-
(art. 27, da Lei nº 9.868/99). to Constitucional brasileiro. Assim, o exer-
cício da jurisdição constitucional, sob o risco
Cabe concluir, enfim, com a seguin- de afetar a democracia, o pluralismo e os
te advertência: Se do ponto de vista da re- direitos fundamentais, não deve assumir, do
construção teorético-histórica e sociológica ponto de vista argumentativo da aplicação
se pode dizer que a jurisdição constitucio- jurídica no Estado Democrático de Direi-
nal, no marco do paradigma do Estado So- to, uma posição de poder legislativo, con-
cial, tenha agido como legislador corrente ou subsidiário, e muito menos de
concorrente ou ao menos subsidiário, tal poder constituinte permanente.

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