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3 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Mauel Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998.
4 Sobretudo em CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, e
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001.
5 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
6 SALCEDO REPOLÊS, María Fernanda. Pode a desobediência civil ser justificada sem se apelar para uma fundamentação
última? In Seminário de Filosofia Política A Fundamentação e a Democracia. Belo Horizonte: Escola do Legislativo da Assem-
bléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, em 8 de outubro de 1998.
questionar decisões que buscam legitimar direitos fundamentais enquanto direitos in-
o uso de tropas fora do território nacional, dividuais. A posição republicana, que remon-
guerras imperialistas não declaradas, ações ta a ROUSSEAU, se vê na jurisdição
repressivas e violadoras dos direitos huma- constitucional alguma função, encara-a
nos, ou projetos econômicos não ecológi- como pedagógica, no sentido da condução
cos desenvolvidos por parte de qualquer de uma educação/correção ética que asse-
governo ou corporação latino-americanos, gure a realização dos valores supostamente
norte-americanos ou europeus, reclaman- subjacentes às normas constitucionais, em
do a falta de participação democrática e face de uma cidadania imatura, radicalizando
evidenciando a contradição entre um capi- a postura do bem-estar social.8
talismo selvagem e um regime político
A postura filosófica aqui adotada
neocorporativo, distanciado e pouco per-
pretende partir de pressupostos diferentes.
meável aos anseios da sociedade civil. Embora não tenha o mesmo receio liberal
quanto à política, descarta o fundamento
2 Ponto de vista teorético- republicano único para a democracia (o
filosófico fundamento ético homogêneo) e preten-
Apresentaremos, agora, a perspecti- de encarar o pluralismo axiológico e cul-
va filosófica, de um ponto de vista reconstru- tural como uma questão central para as
tivo.7 Qual a justificativa histórico-teorética sociedades contemporâneas, sem, contu-
da jurisdição constitucional? do, renunciar à dimensão dialógica da po-
lítica deliberativa. Adota, assim, uma
Duas tradições do pensamento políti- Teoria Discursiva da Democracia e do Di-
co democrático moderno pretendem apre- reito,9 em que a perspectiva procedimental
sentar respostas diferentes para tal indagação. ultrapassa tanto a política como luta de
A perspectiva liberal, que remonta a interesses, como pressupõe o liberalismo,
LOCKE, considera que a jurisdição consti- quanto a política enquanto auto-realiza-
tucional deve impor limites à atividade ção ética, como quer o republicanismo cí-
legislativa no sentido de garantir a razoabili- vico. Entende que a política se baseia em
dade das decisões políticas, procurando ga- razões de diferentes espectros, éticos, mo-
rantir condições equânimes de negociação rais e pragmáticos, em que o peso dessas
entre as diversas tendências políticas, a fim razões se resolve procedimentalmente e
de, por um lado, fazer transparecer a posição não a partir da imagem de um corpo efeti-
política majoritária e, por outro, garantir os vamente unido de cidadãos, como quer o
7 Segundo MANUEL JIMÉNEZ REDONDO, uma teoria que procede em termos reconstrutivos reconstruye la idealidad inmanente
a la facticidad de la realidad como aguijón y elemento de tensión operante en esa misma realidad (Introducción a HABERMAS,
Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad.
Jeménez Redondo. Madri: Trotta, 1998).
8 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
9 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998.
10 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
11 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998.
12 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000 e CATTONI DE
OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos: 2001.
13 COMPARATO, Fábio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, 14.05.1998, caderno 1, p. 3.
do povo brasileiro, está a colocar em risco, ção processual, juristas brasileiros, seguindo
dia após dia, o próprio regime democrático as lições de autores alemães, introduziram
garantidor da autonomia pública e privada na discussão constitucional e processual pá-
dos cidadãos. tria a distinção entre o que seriam um Direi-
to Constitucional Processual o conjunto de
Sobre o pano de fundo dessas ques-
normas constitucionais que estruturam o
tões é que colocamos o problema da neces-
Direito Processual e um Direito Processual
sidade de se reinterpretar a tarefa da
Constitucional processo através do qual a
jurisdição constitucional brasileira, em face
jurisdição constitucional é exercida.14
do Direito Constitucional vigente, buscan-
do, inclusive, superar o enfoque tradicio- O Direito Constitucional Processual
nal que, ao traçar uma dicotomia entre Direito seria formado a partir dos princípios
e realidade, nada contribui, ao contrário, basilares do devido processo e do acesso à jus-
aprofunda os problemas de integração so- tiça, e se desenvolveria através de princí-
cial que devemos enfrentar. pios constitucionais referentes às partes, ao
juiz, ao Ministério Público, enfim, os prin-
Mas, antes disso, a fim de explicitar
cípios do contraditório, da ampla defesa, da
a dimensão operacional de uma teoria do
proibição das provas ilícitas, da publicida-
Direito constitucionalmente adequada ao
de, da fundamentação das decisões, do du-
Estado Democrático de Direito, necessária
plo grau, da efetividade, do juiz natural, etc.
à reinterpretação da jurisdição constituci-
onal no Brasil, propomos duas digressões: Já o Direito Processual Constitucio-
nal seria formado a partir de normas pro-
Digressão 1: A dicotomia Direito
cessuais de organização da Justiça
Constitucional Processual e Direito Proces-
Constitucional e de instrumentos proces-
sual Constitucional: limites em face do
suais previstos nas Constituições, afetos à
modelo brasileiro de controle de
Garantia da Constituição e à Garantia dos
constitucionalidade
direitos fundamentais, controle de
Uma problemática importante, de constitucionalidade, solução de conflitos
antemão, é preciso superar: a dicotomia ar- entre os órgãos de cúpula do Estado, reso-
tificialmente construída entre Direto Cons- lução de conflitos federativos e regionais,
titucional Processual e Direito Processual julgamento de agentes políticos, recurso
Constitucional ou, simplesmente, processo constitucional, Habeas Corpus, Amparo,
constitucional, em face do modelo consti- Mandado de Segurança, Habeas Data, etc.
tucional do processo brasileiro. Essa distinção é problemática à luz
Com a ampla constitucionalização de de uma teoria constitucional constitucio-
princípios processuais, no passado nalmente adequada do Direito brasileiro,
construídos a partir da aplicação da legisla- pelo menos, pelas seguintes razões:
14 Por exemplo, a obra especializada, NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, p. 20-22.
15 Sobre isso, ver LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 61-62.
16 MENDES, Gilmar Ferreira. O controle incidental de normas no Direito brasileiro. In Revista dos Tribunais, a. 88, v. 760. São
Paulo, fev./1999, p. 12.
17 Por exemplo, BARBOSA, Ruy. A Constituição e os actos inconstitucionais do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal.
Rio de Janeiro: Atlântida, s.d. Também MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Reforma do judiciário. In Jornal da Pós-Gradua-
ção em Direito da Faculdade de Direito/UFMG, a. 2, n. 12. Belo Horizonte, maio/2000, p. 2-4.
18 ANDOLINA, Italo e VIGNRA, Giuseppe. Il modelo costituzionale del processo civile italiano. Torino: Giappichelli, 1990.
19 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo. Porto Alegre: Síntese, 1999,p. 61.
20 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
21 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 525.
22 DWORKIN, Ronald. Laws Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986, p. 6 e ss.
23 CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de
Direito. In Revista de Direito Comparado. Mandamentos e Pós-Graduação da Faculdade de Direito/UFMG, v. 3. Belo Horizonte,
1998, p. 480-481.
24 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder municipal. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
25 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos humanos na ordem jurídica interna. Belo Horizonte: Interlivros, 1992.
26 SOUZA, Washington Albino Peluso de. Conflitos ideológicos na constituição econômica. In Revista Brasileira de Estudos Polí-
ticos/UFMG, v. 74-75. Belo Horizonte, jan.-jul./1992, p. 35.
27 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos
nos planos internacional e nacional. In Revista de Direito Comparado. Mandamentos e Curso de Pós-Graduação da Faculdade
de Direito/UFMG, v. 3. Belo Horizonte, 1998, p. 57.
28 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998, p. ex., p. 293 e p. 477.
29 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998, p. 293.
30 GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1135 e ss.
31 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Garzón Valdés. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
32 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998, p. 326 e ss; GÜNTHER, Klaus. The
sense of appropriateness. Trad. John Farrell, Nova York: State University of New York Press, 1993, p. 240-241.
33 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jiménez Redondo. Madri: Trotta, 1998, p. 293.
34 GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness. Trad. John Farrell. Nova York: State University of New York Press, 1993, p. 240.
35 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas de processo civil. São Paulo: Malheiros, 2000.
36 GONÇALVES, Aroldo Plínio. A coisa julgada no Código de Defesa do Consumidor e o novo conceito de parte. In Revista
Forense, separata do v. 331. Rio de Janeiro, 1995.
ações e não como titulares dos direitos que de antemão, a tutela jurisdicional, através
se pretende tutelar jurisdicionalmente (arts. de meio processual que poderá ser o coleti-
82, 91, 94, 103 e 104 do Código de Defesa vo, cuja adequação só poderá ser analisada
do Consumidor). caso a caso.
Conforme o caso, por exemplo, o di- Um direito é individual, coletivo,
reito ao meio ambiente saudável pode ser social ou difuso conforme seja definido, atra-
tratado argumentativamente como questão vés da argumentação jurídica adequada,
interindividual de direito de vizinhança, caso a caso: é correto afirmar, por exemplo,
como condições adequadas de trabalho de que uma associação de pescadores pode
uma categoria profissional, ou até mesmo defender o meio ambiente marítimo, numa
como direito das gerações futuras: depen- situação concreta, porque seus associados
de da perspectiva argumentativa, se indivi- ou até mesmo toda uma coletividade retira
dual, coletiva, social ou difusa de quem o o seu sustento da pesca legalmente permi-
defender. tida, ainda que tal finalidade ambientalista
não esteja prevista em seus estatutos. Não
Devemos abandonar teorias semânti-
há pesca de peixe morto, contaminado ou
cas da interpretação37 que pretendem fixar
ameaçado de extinção.
abstratamente e fora do contexto de apli-
cação a extensão do sentido dos textos Poder-se-ia considerar ameaçadas a
normativos. Isso implica não somente aban- certeza e a segurança jurídicas com o racio-
donar uma teoria material do Direito, como cínio jurídico que expomos. Mas o que é
também uma teoria estrutural das normas certeza jurídica hoje? A certeza ou
jurídicas que pretende fixar a interpretação previsibilidade do conteúdo das decisões,
adequada dos textos normativos à base da como se o Direito pudesse ser mecanica-
sua literalidade. mente aplicado?
Modelos interpretativos são sempre Se exceto algumas enunciados nor-
bem vindos, como verdadeiros redutores da mativos cujas cláusulas especificam em tal
complexidade interpretativa, ainda que pas- nível de detalhe as condições de aplicação
síveis de abertura e de revisão. Mas dizer, que só se podem aplicar a poucas situações-
por exemplo, que o Ministério Público não padrão altamente tipificadas e bem circuns-
poderá defender direitos a não ser os cole- critas (as regras, para usar um conceito de
tivos e difusos, nunca os individuais homo- RONALD DWORKIN), todas as normas
gêneos, que os direitos coletivos e difusos válidas são, de início, indeterminadas em
são tais ou quais, previstos nos artigos tais, sua referência e têm necessidade de cone-
fixados numa lista fechada ou só defensá- xões relacionais adicionais no caso concreto
veis em única perspectiva, é reduzir as pos- individual, via argumentação o que vale não
sibilidades de acesso à jurisdição e negar, só para os princípios e direitos constitucio-
37 DWORKIN, Ronald. Laws Empire, Cambridge: Harvard University Press, 1986, p. 31 e ss.
38 GÜNTHER, Klaus. Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica. Trad. Leonel
Cesarino Pessôa. In Cadernos de Filosofia Alemã, n. 6. São Paulo, 2000, p. 85-102.
39 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jeménez Redondo. Madri: Trotta, 1998; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica
processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.
40 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Jeménez Redondo. Madri: Trotta, 1998; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica
processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.
41 Segundo HABERMAS, Direito e democracia: Entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, v. I, 1997, p. 345: A tradição republicana sugere um tal excepcionalismo, uma vez que liga a prática política dos
(cidadãos) ao ethos de uma comunidade naturalmente integrada. A política correta só pode ser feita por (cidadãos) virtuosos.
42 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: Entre facticidade e validade, vol.I, p. 347.
43 Acerca de tais posições, ver também BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Efeitos do pronunciamento judicial de
inconstitucionalidade no tempo. In Cadernos da Pós-Graduação (Teoria Geral do Processo Civil), Pós-Graduação em Direito/
UFMG. Belo Horizonte, 1995, p. 25 e ss.
As duas primeiras posições são as que Essa seria estatalista porque está fundada,
tentam conciliar, de alguma forma, os dois antes de tudo, num positivismo jurídico que,
modos de controle, e, por isso, em princí- ao contrário do que muitas vezes se afirma
pio, são candidatas em razão do seu caráter acerca da obra kelseniana, está adequada ao
sistemático. A terceira, por estabelecer uma paradigma do Estado Social, na medida em
relação de concorrência ou até de oposição que instrumentaliza, através da noção de in-
entre os dois modos de controle, perde em terpretação autêntica ou autorizada, a
sistemática, mas, ao final, poderá ser des- discricionariedade necessária ao desenvolvi-
cartada em razão de outros argumentos. mento de políticas governamentais de im-
A primeira posição é tradicionalmen- pacto, cujo mérito nunca poderia ser conhecido
te exposta em termos individualistas, en- pela Ciência do Direito.45 KELSEN restrin-
quanto a segunda, em termos estatalistas. ge, assim, a comunidade de intérpretes au-
A primeira afirma que a norma torizados da Constituição aos órgãos
inconstitucional é uma contradição em ter- jurídicos, não a estendendo a todo o público
mos e que, portanto, pode ser reconhecida de cidadãos, o que o leva a não diferenciar
por qualquer um como inválida e nula, no aquele que nega a força vinculante do co-
sentido de que ninguém está submetido a mando por não reconhecer a sua objetivida-
um comando inconstitucional. A segunda de, ou seja, o seu fundamento de validade,
considera que tão-somente os órgãos esta- como o mero criminoso, que desobedece à
tais competentes e autorizados para tanto norma sem apresentar razões plausíveis, já
podem pronunciar-se a respeito da que todos os dois assim se comportariam por
inconstitucionalidade de uma norma e fazê- sua conta e risco.46
la cessar de gerar efeitos, ou seja, de anulá- Ao assim conceber o processo de
la. Mesmo a nulidade, para a doutrina que interpretação e aplicação do Direito, como
defende a natureza constitutiva da decisão uma questão de decisão juridicamente
jurisdicional, seria apenas o grau mais alto institucionalizada, de produção discricio-
de anulabilidade, de uma anulação a ope- nária do Direito, KELSEN inverte a lógica
rar efeitos retroativos.44
do controle de constitucionalidade, privile-
A teoria que chamaremos estatalista giando, mais que uma pretensão de validade
pode ser analisada a partir de uma crítica à dos comandos estatais, uma compreensão
sua maior representante, a teoria kelseniana. da dinâmica jurídica incompatível com o
44 Esta é a posição, por exemplo, de KELSEN, exposta na Teoria pura do direito. Trad. João Batista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 1987, p. 293-294.
45 Sobre isso, ver CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Interpretação como ato de conhecimento e interpretação como ato
de vontade: A tese kelseniana da interpretação autêntica. In Revista de Direito Comparado, Pós-Graduação em Direito/UFMG,
v. 1. Belo Horizonte, 1997, p. 201-227. CARVALHO NETTO, Menelick. A interpretação das leis: Um problema metajurídico ou
uma questão essencial do Direito? De Hans Kelsen a Ronald Dworkin. In Cadernos da Escola do Legislativo, n. 5. Belo Horizon-
te, 1997, p. 27-30.
46 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 293.
decisão jurisdicional é declaratória e não quadro geral das chamadas ações coletivas
constitutiva? Ela é o reconhecimento e, por outro, reconhecer, como veremos,
formal ou a formalização de uma opinião a inconstitucionalidade da Lei nº 9.868/
pública segundo a qual as razões para 99.
desobedecer demonstraram-se constitu-
cionalmente fundadas. E quando não Como o processo jurisdicional da
forem, os desobedientes civis não deverão ação direta de inconstitucionalidade é es-
ser tratados como criminosos, até mesmo pecial em face do processo jurisdicional do
porque, um dia, em razão da própria controle incidental, esse, sim, é o ordiná-
dinâmica da interpretação constitucional, rio, possível de ser realizado, em princípio,
a posição deles pode democraticamente vir em face de qualquer demanda, por qual-
a prevalecer. quer juiz ou tribunal, por provocação das
partes ou mesmo ex officio. Enquanto tal,
A decisão é de eficácia retroativa, ou aquilo que a Constituição, em primeiro
seja, vem formalizar, institucionalizar, o re- lugar, e o Código de Defesa do Consumi-
conhecimento público da invalidade da dor combinado com a Lei da Ação Civil
norma, que se deu na esfera pública infor- Pública, em segundo lugar, não excep-
mal ou até mesmo no plano da Administra- cionam, quanto aos legitimados para a
ção Pública. propositura, quanto ao modo processual e
Tal perspectiva pode ser válida para quanto aos atingidos pela coisa julgada,
as decisões jurisdicionais tomadas através vale para a ação direta de incons -
do controle por via principal, desde que, por titucionalidade, como vimos, o que vale
um lado, seja repensado o conceito proces- para o controle incidental. A ação direta
sual de partes, assim como o de legitimação de inconstitucionalidade é uma ação co-
processual.47 Os legitimados pela Constitui- letiva, proposta, como a ação civil públi-
ção, em seu art. 103, representam a cida- ca, por representantes da cidadania em
dania. geral.48
47 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.
48 Essa é uma questão que pretendemos desenvolver em estudo posterior.
tade, emanado do Legislativo ou do Execu- Cada vez mais, à retórica das deci-
tivo, que fere, formal ou materialmente, a sões contraditórias acrescentam-se outros
Constituição, carece de seu fundamento de argumentos metodológicos e pragmáticos acer-
validade, e, por isso, embora exista como ca do controle de constitucionalidade. Pri-
ato de vontade, não existe como lei ou ato meiramente, argumenta- se, com base
normativo, como ato dotado de norma- sobretudo em KELSEN, que não se pode
tividade, de obrigatoriedade. sustentar a tese da nulidade absoluta ou de
pleno direito da lei inconstitucional; o Di-
Nesse sentido, um ato inconsti-
reito moderno é caracterizado por sanções
tucional nunca vinculou o Judiciário e a
organizadas que não se aplicam automati-
Administração e, muito menos, os cidadãos,
camente, não se podendo confundir o ví-
que têm o direito fundamental a não se sub- cio da inconstitucionalidade com a sanção
meterem a comandos inconstitucionais. de nulidade.
Mesmo após a introdução da via prin- As conseqüências tiradas dessas afir-
cipal de controle, considera a jurisprudên- mações seriam, primeiramente, a de que não
cia que o sistema permanece eminentemen- haveria nenhuma questão de princípio que
te difuso (procedimento ordinário de con- se pudesse reconhecer a fim de se concluir
trole), devendo o processo e o julgamento que uma decisão que anule uma norma
da ação direta submeterem-se aos princí- inconstitucional o faria sempre com cará-
pios assentados jurisprudencialmente. ter retroativo. A lei é presumida constitu-
Todavia, desde a República Velha, cional até que órgão competente, exercendo
vozes já se levantavam contra o sistema o papel de legislador negativo, a considere
difuso e, num nível pragmático, buscavam inconstitucional e a anule. Segundo, seria
alertar para o que seria o risco de decisões o Direito Positivo que definiria o aspecto
contraditórias, na medida em que as deci- temporal dos efeitos da decisão ou, na au-
sões judiciais brasileiras, diferentemente das sência de norma expressa, o próprio órgão,
norte-americanas, não possuiriam efeito discricionariamente. E, terceiro, caberia
vinculante, nem fariam precedente obriga- tão-somente ao órgão competente anular a
tório. lei, centralizando a autorização para apli-
car a sanção, não assistindo aos cidadãos
Progressivamente, foram inseridos um direito à desobediência: como vimos,
mecanismos que teriam a finalidade de su- em termos kelsenianos, quem não cumprir
prir o que seria uma deficiência do sistema uma lei por considerá-la inconstitucional
brasileiro, a começar pela possibilidade do assim o faria por sua conta e risco, já que o
Senado retirar do quadro das leis uma lei órgão competente poderia considerar a lei
declarada inconstitucional, em última ins- constitucional.
tância, pelo Supremo Tribunal, até a intro-
dução do controle por via principal e, agora, Além dos argumentos metodológicos,
a com a atribuição de efeito vinculante às e da já tradicional retórica das decisões con-
decisões desse Tribunal em matéria consti- traditórias, acrescentaram-se outros de ca-
tucional. ráter pragmático. O esquema tradicional do
49 MENDES, Gilmar Ferreira e MARTINS, Ives Gandra da Silva. Controle concentrado de constitucionalidade: Comentários à Lei nº
9.878, de 10.11.1999. São Paulo: Saraiva, 2001. Para nós, esse argumento não procede à luz de uma concepção contrutiva da
interpretação constitucional: o caso seria de se aplicar o princípio constitucional da igualdade e não simplesmente o de declarar,
negando tutela jurisdicional adequada, uma omissão parcial.
50 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, apêndice.
última instância, a possibilidade de inter- rídicas (ALEXY). Assim, uma vez que tam-
por recurso extraordinário ao Supremo Tri- bém se reconhecesse status constitucional
bunal Federal contra decisão judicial que às razões de segurança jurídica e de rele-
se apresente contrária à Constituição, nos vante interesse social, o princípio da nuli-
termos do art. 102, III, a. dade da lei inconstitucional incorreria numa
Como bem assinalava, inclusive, operação de sopesamento, que envolveria
GILMAR FERREIRA MENDES, em sua tais razões, e teria a sua aplicação afastada
Tese de Doutorado, se, em face de um processo específico de
controle concentrado, tais razões encontras-
Tanto o poder do juiz de negar sem maior relevância do que a simples de-
aplicação à lei inconstitucional quanto a claração de nulidade, com efeitos ex tunc.
faculdade assegurada ao indivíduo de
negar observância à lei inconstitucional A questão é que essa posição não leva
demonstram que o constituinte pressu- a sério o caráter especificamente deon-
pôs a nulidade da lei inconstitucional. tológico dos princípios constitucionais. Os
Nessa medida, é imperativo concordar princípios, enquanto normas, diferenciam-
com a orientação do STF que parece re-
se dos valores justamente porque estabele-
conhecer hierarquia constitucional ao
cem um vínculo de obrigatoriedade e não
postulado da nulidade da lei incompatí-
vel com a Constituição.51 da preferência ou de conveniência. Princí-
pios estabelecem o que é devido e não o
Por fim, cabe analisar um argumento que é preferível. Enquanto tal, possuem um
que vem sendo apresentado por defensores código binário e não gradual, não podendo
da constitucionalidade da Lei nº 9.868/99, ser cumpridos em maior ou menor exten-
fundado numa determinada compreensão são.
dos princípios constitucionais, desenvolvi-
da por autores vinculados à chamada juris- Outro problema dessa concepção é
prudência dos valores. Essa posição não o de confundir a perspectiva argumentativa
nega a hierarquia constitucional do princí- do processo jurisdicional com a perspecti-
pio da nulidade da lei inconstitucional, mas va argumentativa do processo legislativo.
acredita que, sendo os princípios mandatos Enquanto nesse último se colocam questões
de otimização (ALEXY), esses terão sua apli- que venham, justamente, a justificar a vali-
cação sujeita a um princípio de pondera- dade das normas, naquele se coloca a ques-
ção, segundo o qual os princípios se tão acerca da adequabilidade de uma norma
diferenciariam das regras justamente por- à solução de um caso concreto. Dizer que
que, ao lado de questões de validade, colo- os princípios se distinguem das regras por
cariam questões de peso, podendo, eles colocam, em seu processo de aplicação,
portanto, serem aplicados em diferentes questões de ponderação ao lado de ques-
graus, segundo circunstâncias fáticas e ju- tões de validade, que lhe possibilitam um
51 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 256.
52 A crítica se destina diretamente tanto a BRUCE ACKERMAN e seu modelo dualista de democracia, quanto a FRANK MICHELMAN
e sua caracterização do papel da Suprema Corte norte-americana, mas pode estender-se ao republicanismo em geral. Assim,
afirma HABERMAS, Direito e democracia, v. 1, p. 345, que: A tradição republicana sugere um tal excepcionalismo, uma vez que
liga a prática política dos civis ao ethos de uma comunidade naturalmente integrada. A política correta só pode ser feita por
(cidadãos) virtuosos.
Pública e aos demais juízes e tribunais, a compreensão não é correta, quer do ponto
obediência a leis e atos normativos decla- de vista teorético-filosófico adequado ao
rados inconstitucionais pelo próprio Tribu- paradigma do Estado Democrático de Di-
nal, com base em razões (?) de segurança reito, aqui, adotado, quer de um ponto de
jurídica ou de excepcional interesse social vista teórico-dogmático adequado ao Direi-
(art. 27, da Lei nº 9.868/99). to Constitucional brasileiro. Assim, o exer-
cício da jurisdição constitucional, sob o risco
Cabe concluir, enfim, com a seguin- de afetar a democracia, o pluralismo e os
te advertência: Se do ponto de vista da re- direitos fundamentais, não deve assumir, do
construção teorético-histórica e sociológica ponto de vista argumentativo da aplicação
se pode dizer que a jurisdição constitucio- jurídica no Estado Democrático de Direi-
nal, no marco do paradigma do Estado So- to, uma posição de poder legislativo, con-
cial, tenha agido como legislador corrente ou subsidiário, e muito menos de
concorrente ou ao menos subsidiário, tal poder constituinte permanente.