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Rádio Alice Através do Espelho.

Gilles Deleuze. Política e Poética Estóicas na Teoria do Rádio.1

Rádio Alice transmite: música, notícias, jardins floridos, conversa fiada,


invenções, receitas, horóscopos, filtros mágicos, amores, boletins de guerra,
fotografias, mensagens, massagens, mentiras... (uma chamada da Rádio Alice)

Rádio Alice é uma experiência paradigmática de comunicação, no contexto de


um modelo sócio-existencial-político-econômico que se materializava como projeto
nos anos 70, na Itália. Bologna, de 1974 a 1977, tempo de gestação e vida de Alice,
pode ser comparada à Paris de 68: um imenso laboratório ético-político construindo as
bases para um mundo que virá. Sua gestação foi também movida pela publicação do
primeiro dos grandes tratados políticos desse mundo que virá: Lógica do Sentido2, de
Gilles Deleuze, um livro sobre Alice.
A primeira ruptura está na concepção de Alice de contra-informação – ‘contra-
rádio’- centrada na enunciação, e não no enunciado. Não se trata só do conteúdo da
informação a ser contrariado. O que promove o Capital na mídia em geral não é,
principalmente, o explícito nas palavras das notícias, comentários, letras de música,
publicidade, mas a arquitetura do ‘meio’, inseparável de seus recursos retóricos e
poéticos. Talvez, a publicidade seja o modelo mais evidente. Os objetivos de uma boa
peça publicitária não são claramente explicitados. Publicidade é poesia e sedução, é
fazer a corte. O Capital nunca fala de si, de seus propósitos e funcionamento, com
clareza – já nos ensinava Marx - ou seria rejeitado de cara. O Capital é um sedutor.
Assim, a crítica ao Capital, com seu ar de arrancar os véus, de “eis a verdade”, é
sempre ineficaz. Dessa maneira, se organiza a operação comunicativa e política (toda
comunicação é política, e vice-versa) de Alice.
Em Lógica do Sentido encontramos os princípios e o método desse projeto de
comunicação e política ‘através do espelho’. Lógica do Sentido é um livro sobre
organização e desorganização, aparecimento e desfazimento do sentido; sobre os

1
Uma versão de comunicação apresentada ao NP 06 – Rádio e Mídia Sonora, do IV Encontro dos
Núcleos de Pesquisa da Intercom – XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Porto
Alegre, set. 2004 e na Universidade de Sidney, Australia, no evento The Italian Effect. Radical
Thought, Biopolitics and Cultural Subversions., 2004. Publicado, anteriormente, na Revista Polêmica,
www.uerj.br/~labore, v. 14, 2005.
2
Deleuze, Gilles. Lógica do Sentido. Trad de Luis Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva,
1974.
2

poderes da presença e da ausência do sentido. É um texto político estóico (como os


de Lewis Carroll) sobre os potenciais e fluxos do sentido e do não-sentido e de como
os dois se co-pertencem. Um livro para o futuro. Só um grupo como o da revista
A/traverso, os maodadaístas, e outros ativistas do nonsense, organizados em torno de
Alice poderiam percebê-lo tão rápido e tomá-lo como cartilha de guerrilha midiática.
Talvez, a primeira questão apontada por Deleuze, e que deve subverter e
tornar ininteligível o projeto revolucionário de Alice para o conjunto da esquerda
italiana da época, seja sua concepção do tempo. O tempo estóico, que Deleuze rouba
do magnífico estudo de Victor Goldsmith e do artigo de Émile Brehier 3, contraria o
tempo hegeliano que Marx utiliza. Não há seqüência entre passado, presente e futuro e
portanto ‘sifu’ a dialética da História. O presente é eterno e material, presente
contínuo, corpóreo, enquanto passado e futuro são incorpóreos: o passado como
memória e o futuro como expectativa, não têm corpo. Um materialismo do tempo. O
tempo não tem matéria. O presente é feito de causas, todas as causas são materiais, já
os efeitos se fazem apenas na superfície dos corpos – não há relação entre causa e
efeito. Não-linearidade do tempo.
Ora, esta concepção do tempo cai como uma luva na concepção de mídia
eletrônica, que McLuhan formula melhor que a Escola de Frankfurt (com a exceção
de Benjamin4). O caráter marcante da mídia eletrônica – telégrafo, telefone, rádio,
TV, telemática – é o tempo imediato, da comunicação sem intervalo, o presente
contínuo. Esse curto-circuito do tempo cronológico, do tempo espacializado,
‘atualiza’ a concepção estóica não-linear do tempo. Esta é a revolução, percebe,
claramente, Alice.
É neste sentido que ‘o meio é a mensagem (o meio é a massagem)’: aspectos
técnicos da enunciação tornam-se determinantes sobre o enunciado. Como Alice se
apropria deste movimento? Maria Antonietta Macciochi acompanhou de perto a
jornada da Rádio Alice, coincidente com sua própria expulsão do Partido Comunista
Italiano, contada com elegância e humor em Aprés Marx, Avril. Um dos episódios,
que, segundo ela, prepara o clímax do fechamento da rádio, em março de 1977, foi a
3
GOLDSCHMIDT, Victor. Le système stoicien et l'idée de temps. Paris, Vrin, 1953; BRÉHIER,
Emile. La theorie des incorporels dans l’ancien stoïcisme. Vrin, 1928, 11-13.
4
“(…) Benjamin desiste pouco a pouco da forma autobiográfica clássica que segue o escoamento do
tempo vivido pelo autor (...) para concentrar-se na construção de uma série finita de imagens
exemplares, mônadas (para usarmos um dos seus conceitos preferidos) privilegiadas que retêm a
extensão do tempo na intensidade de uma vibração, de um relâmpago, do Kayros.” Gagnebin, Jeanne
Marie. História e Narração em W. Benjamin. Perspectiva, São Paulo, 1999, 80.
3

transmissão ao vivo da passeata estudantil-operária para perturbar a presença de G.


Lamma, presidente da CGT5, em Bologna.
Principal palavra de ordem: “i Lama sono al Tibet” (os lamas estão no Tibet).
Os repórteres maodadaístas da Rádio Alice se espalham ao longo de todo o percurso
da passeata. Fazem a cobertura, como sempre, fantasiados: um pirata, árabes,
arlequins, índios americanos, fadas e bruxas. Entram em todos os lugares por onde a
passeata passa, passou e passará, e entrevistam quem encontram. As pessoas na rua,
dentro e fora da passeata. Uma hora entram num bar, onde homens bebem cerveja, e
nem sabem da passeata. “O que você acha da presença do Lamma em Bologna?”
“Que lama, cumpade, bebe uma... esquece...” Corta para um estudante baleado pela
polícia na linha de frente da passeata. “Uma declaração para Rádio Alice: como você
se sente baleado pela polícia comunista da prefeitura de Bologna?” “AAAH!
AAAAAAH! AAAAAAAAAH!!!”. Ao vivo.
Franco Berardi, numa entrevista para a Rádio Kaxinawá, em janeiro de 2002,
contou-me outra história. O grupo maodadaista passa um trote no Presidente do
Conselho, Giulio Andreotti, ao vivo, no ar. Telefona um dizendo ser o senador
Umberto Agnelli (dono e presidente da Fiat Automóveis). Andreotti atende em quatro
segundos. O suposto Agnelli passa-lhe um sermão: “Como você pensa que a gente
pode trabalhar dessa maneira... greves selvagens, manifestações... não há um dia de
calma por aqui... quero a polícia, me manda a polícia!!!”. Andreotti responde no
mesmo tom: “Você está pensando que a nossa situação é diferente, em Roma? Aqui,
da minha janela, no Ministério... não há um dia sem bandalheira, estudantes,
operários, um horror...!!!” A conversa se prolonga por cinco minutos, com
observações cada vez mais absurdas do suposto Agnelli, até Andreotti perceber que
está sendo enganado...
Nos dois casos, crítica política ‘através do espelho’. No lugar do comentário
de conteúdo e de argumentação racional contra os absurdos do Poder, a anedota,
como na pedagogia Zen, igualmente irracional e dirigida ao Inconsciente, uma ação
de comunicação, ou comunicação, no lugar da interpretação. Como propunha
Guattari, a teoria do Inconsciente é um instrumento no movimento de massas6.
São estas falhas, rachaduras, brechas, dobras, que a comunicação
política anti-isso anti-aquilo não conhecia e cuja base teórica é inovadora ainda hoje –
5
CGIL – Confederação Geral Italiana dos Trabalhadores, ligada ao Partido Comunista Italiano.
6
Guattari, F. e Rolnik. S. Micropolítica. Cartografias do Desejo. Petrópolis, Vozes, 1986.
4

trabalhar com o nonsense, com o paradoxo, com os fluxos e intensidades, e não com a
lógica argumentativa de líder sindical, parlamentar, partidário, que é ainda o recurso
corrente (aparente) da política. Trata-se de atuar sobre a mídia como mídia,
apropriando-se de seus meios e virando-os contra si, como já propunham (e faziam),
igualmente, Guy Debord7 e os Situacionistas, antes e durante o 68 parisiense. A velha
política liberal sempre fingiu essa cara ‘racional’, argumentativa; mas a mídia não, a
mídia é espetáculo. E, evidentemente, hoje, como já nos anos 60 e 70, a política é
espetáculo (alguém apoiaria George W. Bush por seus talentos de argumentação?).
Alice assume isso em todos os seus níveis, toda sua máquina de enunciação. A
questão é assumir o paradoxo como principal arma política, o que implica em
renunciar às categorias e às classificações ou às classes

As informações falsas produzem eventos verdadeiros.


A contra-informação denuncia o falso que o poder produz. Assim o
espelho da linguagem do poder reflete a realidade de maneira deformada. A
contra-informação restabelece a verdade, mas de maneira puramente
reflexiva. Como faz um espelho. Rádio Alice é a linguagem através do
espelho.8

Alguns princípios de método apresentados por Alessandro Marucci:


1. A guerrilha informativa praticada pela Radio Alice (...) busca anular a divisão
rígida entre ouvintes e redatores para chegar a produzir coletivamente a
informação. (...). O elemento fundamental desta estratégia é que não devem
existir notícias e informações produzidas fora do circuito comunicativo, coisa
que fazem as agências de notícias, entesourando a notícia para revendê-la
depois. Tendo declarado propriedade social tanto a informação como a música
(liberdade de acesso), criaram as bases para superar a concepção da
propriedade privada do trabalho intelectual.9

2. Ao comentar a influência de Lógica do Sentido, na concepção da estratégia


comunicativa da Rádio Alice, Berardi aponta também que Deleuze, “decifra os
paradoxos atravessados pela heroína de Carroll como metáforas dos
mecanismos de perda da identidade”.
Jogar contra a paranóia identitária será uma das características do
coletivo da rádio (...) Como será fortíssimo o interesse pela operatividade

7
Guy Debord. A Sociedade do Espetáculo. Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo.
Contraponto, Rio de Janeiro, 2002.
8
Franco Berardi. Informazioni false producono eventi veri. Radio Alice, fevereiro 1976.
9
KLEMENS GRUBER: INTERVISTA di Alessandro Marucci (Il Manifesto/Alias 9 marzo 2002)
5

textual de Maiakovski e pela reabilitação da linguagem do corpo operada por


Artaud.10

3. Ao falar da linguagem da rádio, Berardi enfatiza que sua qualidade ‘impura,


ou suja’ decorre de ser linguagem ‘falada’.
As vozes na freqüência de 100,6 megahertz transmitiam a
possibilidade de liberar a expressão lingüística da obrigação do sentido. Vozes
sem imagem, vozes que se intensificam no barulho, ruídos desconhecidos: um
dia, com amplificadores especiais, foi transmitido o ruído do mato crescendo.
Experimento curioso, inocente como a pequena Alice11.

4. A herança de Alice, segundo Berardi:


um fluxo contínuo de produção teórica, mesmo diante dos
microfones, trazendo temas que apontavam já para as mutações globais: o
trabalho como produção do saber, a linguagem e seu controle, um conceito
de sujeito como ponto de cruzamento de energias coletivas.

5. E o mais importante, a pesquisa de mídia, pesquisa dos recursos próprios do


‘veículo’ rádio, associada ao resgate do grito de Tristan Tzara, de sessenta
anos atrás: “Abaixo a Arte. Abaixo a Vida Cotidiana. Abaixo a separação
entre a arte e a vida cotidiana!!!” Segundo Berardi, “assim se formou uma
inteligência criativa e alegre, precursora da atual cultura da rede”.12

A luta contra a ‘paranóia identitária’ e a construção do conceito de


subjetividade como ‘ponto de cruzamento de energias coletivas’, eis dois temas
centrais em Deleuze e Guattari, que continuam perturbadores. Eles formulam um
novo regime subjetivo que já vinha se anunciando na literatura, desde os anos 20; tem
sua face revolucionária com os movimentos de juventude dos anos 60 e 70; e ganha
consistência no novo regime do trabalho imaterial, do trabalho cognitivo, em nossa
era pós-fordista ou pós-industrial. Esse ‘sujeito sem caráter’ que angustiava na
literatura de Musil (O Homem sem Qualidades), de Kafka ou Becket, aparece com
alegria libertária no Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter, de Mário de Andrade
ou no Dharma Bums de Jack Kerouac.
Esse é também o ‘sujeito’ vazio do Budismo Zen, ou dos estóicos em busca de
Deus como a afirmação do Destino – viver o seu Destino com o máximo de
positividade. Sempre dizer Sim ao Destino. Assim falam os estóicos, ou os

10
Idem, Marucci / Klemens Gruber.
11
Ibidem, Marucci / Klemens Gruber
12
Idem, ibidem, Marucci / Klemens Gruber
6

personagens de Kieslowski, em Bleu, Blanc, Rouge, obra prima do cinema estóico


contemporâneo.13. Assim fala Nietszche. Deleuze desenvolverá sua concepção de
subjetividade (e depois, em parceria com Felix Guattari) como multiplicidade,
experiência do tempo bergsoniano de muitas camadas; múltiplos ‘eus’, como em
Fernando Pessoa.
Esta concepção tem sua primeira versão em Lógica do Sentido, começando na
Segunda Série de Paradoxos: Dos Efeitos de Superfície, em que apresenta a
temporalidade/corpo e subjetividade estóicas. Depois, na Décima Segunda Série:
Sobre o Paradoxo, analisa e destrói a construção do ‘bom senso’ e do ‘senso
comum’, ambos necessitantes (e co-fundantes) da forma de um eu fixo, de uma
identidade.
É contudo aí que se opera a doação de sentido, nesta região que
precede todo bom senso e senso comum. Aí a linguagem atinge sua mais alta
potência com a paixão do paradoxo. Para além do bom senso, as parelhas de
Lewis Carroll representam os dois sentidos, ao mesmo tempo, do devir-louco.
Primeiro, em Alice, o chapeleiro e a lebre de março: cada um habita em uma
direção, mas as duas direções são inseparáveis, cada uma se subdivide na
outra, tanto que as encontramos, ambas, em cada uma. É preciso ser dois
para ser louco, somos sempre loucos em dupla, ambos se tornam loucos no
dia em que ‘massacraram o tempo’, isto é, destruiram a medida, suprimiram
as paradas e os repousos, que referem a qualidade a alguma coisa de fixo14.

A apresentação continua na Décima Quinta Série: Das Singularidades, quando


mostra a concepção de individuação (física e biológica, como psicológica e social) de
um de seus aliados teóricos mais ricos, o biofísico e filósofo Gilbert Simondon, com
seus conceitos de metaestabilidade (nem estável, nem instável, nem caos nem cosmos,
caosmos); e de singularidade. Esta, associada à obra do matemático Albert Lautman,
sobre a teoria das equações diferenciais15.

13
V. Andréa França. Cinema em Azul, Branco, Vermelho. A trilogia de Kieslowski, Sete Letras, Rio de
Janeiro, 1996.
14
Deleuze, op. Cit. 81-82.
15
Deleuze, op. cit., 106-109. V. Simondon, Gilbert. L’individu et sa genèse physico-biologique.
P.U.F., Paris, 1964 [ a introduçao deste texto foi traduzida em Pelbart, Peter .P. e da Costa, N. O
Reencantamento do Concreto, Hucitec, São Paulo, 2003.] e Lautman, Albert. Le Probleme du Temps,
Hermann, Paris, 1946.
7

As singularidades são os verdadeiros acontecimentos transcendentais:


o que Ferlinghetti chama de “a quarta pessoa do singular”. Longe de serem
individuais ou pessoais, as singularidades presidem à gênese dos indivíduos e
das pessoas: elas se repartem em um “potencial” que não comporta por si
mesmo nem Ego (Moi) individual, nem Eu (Je) pessoal, mas que os produz,
atualizando-se, efetuando-se, as figuras desta atualização não se parecendo
em nada ao potencial efetuado16.

Singularidades nômades que não são mais aprisionadas na


individualidade fixa do Ser infinito (a famosa imutabilidade de Deus) nem nos
limites sedentários do sujeito finito (os famosos limites do conhecimento).
Alguma coisa que não é individual nem pessoal e, no entanto, que é singular,
não abismo indiferenciado, mas saltando de uma singularidade para outra,
sempre emitindo um lance de dados que faz parte de um mesmo lançar sempre
fragmentado e reformado em cada lance17.

A questão continua na Décima Nona Série: Do Humor, em que a vinculação


selvagem – e precisa - entre o pensamento estóico e o budismo Zen é formulada:
Esta aventura do humor, esta dupla destituição da altura e da
profundidade, em proveito da superfície, é primeiro a aventura do sábio
estóico. Mas, mais tarde e em outro contexto, é também aquela do Zen –
contra as profundidades bramânicas e as altitudes búdicas. Os célebres
problemas-provas, as perguntas-respostas, os koan, demonstram o absurdo
das significações, mostram o não-senso das designações18.

E, finalmente, na Vigésima Primeira Série: Do Acontecimento, e na Vigésima


Quarta Série: Da Comunicação dos Acontecimentos, a noção de acontecimento é
central no pensamento dessubjetivado, em que se anuncia o além do homem
nietszcheano, que Deleuze cerca e a Rádio Alice veicula.

A divergência das séries afirmadas forma um ”caosmos” e não mais


um mundo; o ponto aleatório que os percorre forma um contra-eu e não mais
16
Deleuze, op. cit. , 105.
17
Deleuze, op.cit., 110.
18
Deleuze, op. cit., 139.
8

um eu; a disjunção posta como síntese troca seu princípio teológico contra
um princípio diabólico. Este centro descentrado é que traça entre as séries e
para todas as disjunções a impiedosa linha reta do Aion, isto é, a distância em
que se alinham os despojos do eu, do mundo e de Deus: grande Cañon do
mundo, fenda do eu, desmembramento divino. Assim, há sobre a linha reta um
eterno retorno como o mais terrível labirinto de que falava Borges, muito
diferente do retorno circular ou monocentrado de Cronos: eterno retorno que
não é mais o dos indivíduos, das pessoas e dos mundos, mas o dos
acontecimentos puros que o instante deslocado sobre a linha não cessa de
dividir em já passados e ainda por vir19.

Eu comentaria, então, o artigo de Lewis Carroll – The Dynamics of a Parti-cle


– (citado por Deleuze20), publicado em 1865: a primeira crítica pretermicropolítica à
política partidária, uma obra de humor e sabor surpreendentes tratando de questões
como a da representação e a das divisões, cismas e disparates (como se vota, como se
calculam vantagens, ganhos, salsichas e pizzas) da prática parlamentar. Mas, remeto o
leitor ao texto – in The Complete Works of Lewis Carroll, Penguin Books, 1982,
1016-1026, e prefiro terminar esta comunicação traçando as correlações entre a teoria
deleuzeana da dessubjetivação e o rádio como medium.
Como ficou claro, o acontecimento se dá não no tempo cronológico, mas no
tempo estóico, sem matéria, Aion, puro fluxo futuro-passado, sempre esquivando o
presente e/ou no tempo do eterno retorno – sobre a linha reta, o mais terrível labirinto
– tempo não mais dos indivíduos, das pessoas, dos mundos. Quem ouve rádio é a
quarta pessoa do singular.
A referência é Marshall McLuhan, escorraçado teórico da mídia. Lembramos
que McLuhan inaugurou, e levou para o uso corrente, as expressões medium – um
meio de comunicação, i.e, o rádio, a televisão, o computador, a fala, a linguagem
escrita, o dinheiro, a luz elétrica, o automóvel, o telefone, a roupa, o penteado, a
escrita tipográfica, etc – e o plural ou genérico media, que, por aqui virou mídia21.
Todos esqueceram os mediums, talvez com medo dos feiticeiros, das mães-de-santo.

19
Deleuze, op.cit. 182.
20
Deleuze, op. cit., 12 – Segunda Série de Paradoxos: Dos Efeitos de Superfície.
21
Marshall McLuhan. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo, Cultrix,
1970.
9

McLuhan analisa comparativamente os diversos media, pela arquitetura


fenomenológica da percepção e a arquitetura social de seu uso. Suas fontes não
confessadas: a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty e as constelações de
Walter Benjamim. Assim, a leitura do livro impresso estimulou determinado uso da
‘visão separada’ que ‘cria’ a pintura em perspectiva, o palco italiano, a fotografia, um
hábito linear e analítico de pensar, Descartes, a ciência clássica. A ditadura desta
‘visão separada’ criou também os analfabetos, modificou a arquitetura da memória,
matou o poeta improvisador – de Homero ao cantador de cordel e toda a música
africana.
Há uma diferença de natureza entre a fala e o escrito – a fala com seu tempo,
seu vai-vem, seu balanço, sua ‘levada’, ritmos, crescendos, decrescendos, sua música,
emoção, fica seca, aplainada, fria, homogênea e sem tempo, na escrita. Os velhos
africanos culturalmente ágrafos não reconhecem seus filhos que foram a escola 22.
Grupos aimará e quechua, no Perú e na Bolívia, lutam pelo “direito ao
analfabetismo”, para que sua cultura e vida não desapareçam. A televisão, como a
escrita, são frias. O rádio, como a fala, quentes.
McLuhan, ao apresentar o rádio – “O Tambor Tribal” – em seu capítulo de
Understanding Media, cita a resposta de uma ouvinte a uma pesquisa sobre o meio:
“Quando ouço rádio, parece que vivo dentro dele. Eu me abandono mais facilmente
ao ouvir rádio do que ao ler um livro”. A fenomenologia de McLuhan/Merleau-Ponty
mostra como o olho é pessoal, o visto é escolhido a partir da posição e direção do teu
olhar. Vendo, você está sempre ‘diante de’. Enquanto o ouvido é inclusivo, você
ouve dentro; é mais difícil fazer a separação de dentro/fora, localizar no espaço de
onde vem os sons ouvidos. A visão tem no máximo 180º, enquanto você ouve em
360º.
As profundidades subliminares do rádio estão carregadas daqueles ecos
ressoantes das trombetas tribais e dos tambores antigos. Isto é inerente à própria
natureza deste meio, com seu poder de transformar a psique e a sociedade numa
única câmara de eco.23
Mais do que o telégrafo e o telefone, o rádio é uma extensão do sistema
nervoso central, só igualada pela própria fala humana. Não é digno de meditação
que o radio sintonize tão bem com aquela primitiva extensão de nosso sistema

22
Carothers, J.C. “Culture, Psychiatry and the Written Word”, Psychiatry, nov., 1959.
23
McLuhan, op.cit, 1970, 336-337.
10

nervoso central, aquele meio de massas aborígene – que é a língua vernácula? O


cruzamento destas duas e poderosas tecnologias humanas não poderia deixar de
fornecer algumas formas extraordinariamente novas à experiência humana.24
O rádio traz de volta nossa África interna. Rádio Alice e todas as suas
herdeiras livres e comunitárias que estão no ar, hoje, no Brasil, como na Itália, nos
Estados Unidos, no México, na Argentina, trazem a África de volta na voz do rap, no
hip hop, na reinvenção da política que aprendemos com Deleuze, Bifo, McLuhan e
Lewis Carroll. Quem ouve rádio é a Quarta Pessoa do Singular.

24
Idem, 339-340.

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