Ensaio sobre filme que trate de relações étnico-raciais
Obra analisada: Ó Paí, Ó. Direção de Monique Gardenberg. Brasil, 2007. 1h36min.
“Ó Paí, Ó” retrata o cotidiano do subúrbio baiano, apresentando um enredo
que se passa no bairro do Pelourinho de Salvador da Bahia, em pleno Carnaval. Os personagens da trama estão interligados por compartilharem o mesmo endereço: o Cortiço de Dona Joana. Insatisfeita com a inadimplência dos inquilinos, a proprietária fecha o registro geral de transmissão de água, deixando os moradores em seca total até que quitem os seus débitos.
O personagem principal, Roque, interpretado por Lázaro Ramos, é um
homem que sobrevive de trabalhos manuais como reparos e pinturas. Embora com pouca instrução formal, o personagem se mostra o mais “descontruído” do filme, pois evita meter-se na vida alheia e cultivar preconceitos e estereótipos que estão presentes nos outros personagens, um comportamento que talvez se deva à sua proximidade com a música e a arte. Roque é negro e protagoniza uma cena em que denuncia o racismo da fala do personagem Boca (Wagner Moura), que é branco e não se sente incomodado em demonstrar o escárnio que sente pela negritude do local.
A ialorixá Mãe Raimunda, cujo ofício é de o de mãe-de-santo, ganha a vida
jogando búzios e prestando serviços espirituais para criar o filho sozinha. A cozinheira Baiana é uma mulher de meia idade, muito sábia, que vende quitutes típicos da culinária de santo baiana como o acarajé e o abará para sobreviver, fazendo de ganha-pão o conhecimento das vivências no terreiro de Candomblé, assim como mãe Raimunda. Está presente ainda Carmem, mãe de sete crianças, que trabalha incansavelmente como auxiliar de enfermagem e ainda realiza abortos a baixo custo em mulheres pobres para obter renda extra.
A travesti Yolanda se prostitui para sobreviver e chama a atenção para a
realidade das mulheres pobres transexuais. Acaba se apaixonando pelo malandro Raimundo, que sobrevive de bicos e trai a esposa Maria descaradamente, evidenciando o machismo e as relações abusivas presentes nos lares brasileiros. A personagem Neusão fecha o elenco principal, posicionando-se no filme como uma mulher lésbica masculinizada, proprietária de um bar vizinho ao cortiço, muito respeitada pela comunidade.
A figura de Dona Joana, dona do cortiço, é central no filme, pois é a mulher
com maior poder econômico da casa. Embora parda, demonstra ter passado por um processo de “branqueamento social”, colocando-se numa posição diferente da dos negros, como se não compartilhasse da pobreza e da realidade daquele povo. Evangélica e extremamente moralista, Dona Joana foi abandonada pelo esposo e cria os filhos sozinha, repudiando a homossexualidade, o Candomblé e o clima festivo do carnaval, que considera pecaminosos. Ainda que desaprove, ela convive com travestis, prostitutas, mães de santo, aborteiras e carnavalescos, dividindo com eles o mesmo espaço social.
O ápice do filme é encaminhado pelo comerciante Seu Jerônimo, um homem
branco, empresário, que paga um policial militar para “limpar a área” dos moleques pobres (e em sua maioria negros) que mendigam e roubam os turistas no entorno de sua loja. Os filhos de Dona Joana acabam sendo confundidos com meninos de rua, e sendo brutalmente assassinados pelo policial militar, cena que denuncia o genocídio dos jovens negros e pobres pela elite social branca. Embora evangélica, a situação de desespero leva Joana a procurar o auxílio espiritual da mãe-de-santo Raimunda, demonstrando como as diferenciações sociais são construídas e desconstruídas no espaço suburbano.
A produção superficialmente mostra a vida do povo, a convivência com as
diferenças, o sacrifício do trabalhador pobre para conquistar o pão de cada dia, o medo da miséria e da solidão. O ambiente suburbano serve, no entanto, como um pano de fundo para evidenciar problemas sociais e questões estruturais, como o racismo, prostituição, homofobia, machismo, intolerância religiosa, aborto, genocídio da juventude negra e abandono parental. Além de denunciar questões sociais através das histórias individuais dos personagens, chama atenção para a cultura popular e os blocos de rua que envolvem o Carnaval, apontando os elementos de resistência e identidade do povo da Bahia.