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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de História

Oficina de Leitura e Escrita de Textos Históricos

O Batuque do Rio Grande do Sul: a religião africanista


gaúcha

Material de divulgação para educação básica

Léo Francisco Siqueira de Moraes

25/10/2018

Porto Alegre – RS
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1. História e origens

O Batuque é uma religião afro-brasileira típica do estado do Rio Grande do


Sul. Os povos africanos, quando foram escravizados e traficados pelos europeus no
período colonial para o Brasil trouxeram consigo sua cultura, língua, costumes e
religiosidade. Todos esses elementos compõem a diversidade étnica e cultural do
Brasil de hoje em dia.
Vale lembrar que o Brasil é um país muito grande e o continente africano,
maior ainda. Não foi apenas uma etnia1 africana que foi trazida para o Brasil: muitos
povos diferentes que viviam naquela terra foram capturados e misturados nos navios
negreiros, trazendo para o nosso continente uma pluralidade de povos muito
diversa.
Devido a essa pluralidade cultural do continente africano e do Brasil, cada
região brasileira acabou reconstruindo sua cultura negra da forma como foi possível
nesta nova terra,
carregando suas
especificidades
regionais. Assim, a
religiosidade afro-
brasileira praticada
na Bahia hoje é
denominada Candomblé, diferente do Tambor de Mina do Maranhão, do Xangô do
Pernambuco e do Batuque do Rio Grande do Sul. Cada região possui sua
especificidade, embora a maioria das divindades cultuadas seja a mesma e haja
algumas semelhanças nos cultos.
A história do povo negro no Brasil é uma história de trabalho e resistência.
Essas pessoas quando aqui chegaram não eram tratadas como seres humanos, não
possuíam direito à liberdade nem dignidade, e eram proibidos de manifestar sua
cultura e religiosidade. Por isso, fingiam estar cultuando santos católicos que tinham
características relacionadas aos Orixás, como São Jorge (o santo guerreiro) no lugar
de Ogum (orixá da guerra), Nossa Senhora dos Navegantes (protetora dos

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Uma etnia é caracterizada por uma coletividade de indivíduos que possuem traços socioculturais
comuns, isto é, língua, costumes e cultura idênticos ou muito semelhantes.
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pescadores) no lugar de Yemanjá (orixá das águas salgadas), e assim por diante.
Criou-se, dessa maneira, o fenômeno conhecido como sincretismo religioso2.
O termo “Batuque” surgiu do som dos tambores rituais característicos do culto
aos Orixás. Ao realizarem suas festas e homenagens, os praticantes da religião
africana utilizam a música e a dança como forma de invocação do sagrado. O som
do batuque dos tambores era prontamente identificado pelos não praticantes, que
por desconhecimento do caráter sagrado das músicas, rotulavam as cerimônias de
“batuque”, e seus praticantes de “batuqueiros”. O rótulo, que tinha no seu princípio
uma conotação pejorativa, acabou sendo adotado pelos praticantes do culto como
uma forma de resistência e afirmação de sua identidade religiosa. O Batuque
também é conhecido como Nação ou Pará pelos seus adeptos, e é comum o uso da
expressão “sou de religião” para identificar-se como integrante deste grupo social
afro religioso.
O Batuque é uma forma de religiosidade que descende da cultura iorubá, um
povo originário da região africana da atual Nigéria e Benin. Os seres humanos
escravizados que desembarcaram em solo brasileiro adaptaram sua fé e formas de
culto à nova realidade em que
se encontravam, fazendo sua
cultura sofrer modificações ao
longo do tempo. O povo iorubá
ainda existe na mesma região,
mas a religiosidade afro-
gaúcha de hoje em dia não é
mais a mesma daqueles povos
tradicionais. Há ainda no Rio
Grande do Sul e por todo o Brasil o culto à Umbanda, uma religião diferente do
Batuque e Candomblé que mescla elementos do africanismo, catolicismo,
espiritismo e crenças indígenas, uma forma de religiosidade brasileira por
excelência.

2. Divindades

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Fusão de mais de uma tradição religiosa.
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Os batuqueiros acreditam em um deus supremo, criador de todas as coisas:


Olorum ou Olodumaré. Este deus teria criado tudo que existe: os céus (orún), as
águas (okún), a terra (ayiê), as divindades (orisás), os seres humanos (eniyan) e os
mortos (egungun) para coexistirem em harmonia. A religião iorubá, assim, busca o
equilíbrio entre os vivos, os deuses e os mortos. Existem mais de 400 divindades no
panteão (Conjunto de deuses de uma religião) iorubá, denominados orixás, porém
apenas 12 são cultuados no Batuque do Rio Grande do Sul: Bará, Ogum, Iansã,
Xangô, Odé, Obá, Ossãe, Xapanã, Ibejis, Oxum, Iemanjá e Oxalá.
Os orixás são as manifestações da natureza, pois se acredita que os
fenômenos naturais são sagrados. Os batuqueiros crêem que existe uma divindade
que reside em cada elemento da natureza, e que cada orixá possui suas próprias
características, cores, oferendas, cantigas e comidas específicas. Além disso, cada
orixá possui domínio sobre determinado aspecto da vida cotidiana, como será
especificado a seguir. Ao fazer oferendas para os orixás, os religiosos acreditam
estar atraindo para suas vidas as bênçãos relacionadas às características daquela
divindade, se conectando com a natureza e o universo.
Os batuqueiros acreditam que toda pessoa possui um orixá que lhe protege e
rege sua vida, a partir de uma relação de pai/mãe e filho. Quando uma pessoa se
vincula ao culto, tem sua vida entregue a um orixá, e deverá devoção a ele. Por isso
diz-se que “fulano é filho de Ogum”, o que significa que o Orixá regente daquela
pessoa é Ogum. Entende-se ainda que toda pessoa guarde características físicas e
de personalidade semelhantes à do seu Orixá regente, devido à influência que a
divindade exerce sobre seu “filho”. A seguir, as características de cada Orixá
cultuado no Batuque do Rio Grande do Sul:

1. Bará
Regência: elo entre o mundo material e o espiritual,
comércio, consciência no mundo físico.
Saudação: Alúpo!
Cor: vermelho
Domínio: ruas, estradas, encruzilhadas, mercados.
Oferenda: pipoca, milho torrado e batatas inglesas
assadas.
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Sincretismo: São Pedro, Santo Antônio.

2. Ogum
Regência: comunicação, trabalho, conquista.
Saudação: Ogunhê!
Cor: verde, verde e vermelho, vermelho e azul
escuro.
Domínio: encruzilhada, matas, campinas,
proximidades de trilhos ferroviários.
Oferenda: pipoca, costela assada e farofa.
Sincretismo: São Jorge e São Paulo.

3. Iansã
Regência: ilusão, vontade, vaidade, transformação.
Saudação: Epaiei ô!
Cor: vermelho, vermelho e branco, marrom.
Domínio: ventos, tempestades, matas e cemitério.
Oferenda: pipoca, maçã e um bolo feito de batata doce
cozida.
Sincretismo: Santa Bárbara, Santa Joana D’Arc.

4. Xangô
Regência: justiça, misericórdia, conhecimento, intelecto,
ciência.
Saudação: Kaô kabecile!
Cor: vermelho e branco, vermelho e marrom.
Domínio: pedreiras, cachoeiras, matas, raios, fogo.
Oferenda: Amalá (carne, mostarda e pirão), bananas,
maçãs, frutas em geral.
Sincretismo: São Jerônimo, São Miguel.

5. Odé e Otim
Regência: caça, abundância, alimento, juventude, energia.
Saudação: Okê bambo!
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Cor: azul escuro, azul escuro e branco, azul


escuro e rosa.
Domínio: matas, cachoeiras, pedreiras.
Oferenda: pipoca, carne de porco frita, farofa,
ovo e guloseimas.
Sincretismo: São Sebastião.

6. Obá
Regência: transmutação, fluxo de energia, lar,
amor, conciliação.
Saudação: Exó!
Cor: rosa.
Domínio: rios, matas e praças.
Oferenda: pipoca, canjica amarela e feijão fradinho.
Sincretismo: Santa Catarina.

7. Ossãe

Regência: ervas, agricultura, segredos, medicina,


sexualidade, prazer.
Saudação: Ewê ô!
Cor: verde, verde e branco, verde e amarelo.
Domínio: natureza virgem, matas, campinas.
Oferenda: pipoca, Opeté (bolo de batata inglesa
cozida e azeite de dendê), couve, linguiça, farofa e
ovo.
Sincretismo: São Judas Tadeu, São Benedito.

8. Xapanã
Regência: morte, desconhecido, espiritualidade,
saúde, vitalidade.
Saudação: Abao!
Cor: vermelho e preto, preto e branco, roxo e
lilás.
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Domínio: cemitério, matas, terra.


Oferenda: pipoca, milho, amendoim e feijão torrados.
Sincretismo: São Lázaro.

9. Ibejis
Regência: infância, jovialidade, saúde, perdão,
alegria, humildade e inocência.
Saudação: Ô ibejada!
Cor: colorido (exceto preto).
Domínio: praças, jardins, praia e parques de
diversão.
Oferenda: Amalá, doces e guloseimas.
Sincretismo: São Cosme e São Damião.

10. Oxum
Regência: energia, amor, sentimento, prosperidade,
maternidade.
Saudação: Ora yê yê ô!
Cor: amarelo, dourado, amarelo e branco.
Domínio: rios, cachoeiras, lagos, águas doces,
pororoca.
Oferenda: Canjica amarela, quindins, flores.
Sincretismo: Nossa Senhora Aparecida e Nossa
Senhora da Conceição.

11. Iemanjá
Regência: raciocínio, pensamento, emocional,
família, fertilidade.
Saudação: Omi Odô!
Cor: azul, prateado, lilás, azul e branco.
Domínio: rios, mares, oceanos, águas salgadas.
Oferenda: Canjica branca, cocada, coco ralado,
flores.
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Sincretismo: Nossa Senhora dos Navegantes e Santa Ana.

12. Oxalá
Regência: vida, razão, sabedoria,
discernimento, propósito, equilíbrio
paternidade, espiritualidade, fé.
Saudação: Êpa o Babá!
Cor: branco, branco e preto.
Domínio: céu, mar, fundo dos
oceanos, picos de montanhas.
Oferenda: Canjica branca, cocada e
merengue.
Sincretismo: Jesus Cristo, Menino Jesus de Praga.

3. Particularidades religiosas

Há quem pense que o Batuque e o Candomblé são religiões politeístas, mas


são, em verdade, monoteístas como o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo. A
visão do universo e do mundo espiritual para o africanista, no entanto, é diferente
dessas outras. Os Orixás são divindades que correspondem aos elementos da
natureza, mas eles não são os criadores do universo. Para o batuqueiro, os Orixás
foram criados pelo Deus Supremo (Olorún) tanto quanto os seres humanos.
Fazendo uma analogia ao catolicismo, os Orixás são como se fossem os santos
católicos: seres espirituais sagrados e os vivos recorrem a eles para socorro
espiritual, porém não possuem o status de “deuses”.
Os templos religiosos do Batuque são chamados de Ilês (Casas), ou Casas
de Nação, e os sacerdotes são chamados babalorixá ou pai-de-santo (masculino) e
yalorixá ou mãe-de-santo (feminino). Quase sempre os Ilês são a própria residência
do pai ou mãe-de-santo, que reserva uma parte da casa para a realização dos
rituais. Os iniciados na religião batuqueira são chamados de filhos-de-santo, e
juntamente com outros iniciados (irmãos-de-santo) em uma mesma Casa compõem
uma verdadeira família religiosa, criando-se assim uma gigantesca rede de relações.
O vínculo que se estabelece entre pais e filhos-de-santo e outros membros de uma
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família religiosa se assemelha ao de uma família consanguínea, visto que essas


pessoas se conhecem por muitos anos, criando amizades por vezes de toda uma
vida.
Os compromissos religiosos do Batuque são chamados de “obrigações”, pois
assim são encarados pelos iniciados. Os batuqueiros levam muito a sério seus
rituais e deixam de comparecer a eles somente por motivos muito fortes. Há muitos
rituais específicos dentro do Batuque, mas basicamente o culto aos Orixás consiste
na realização dos serões (matanças rituais) e dos xirês (festas rituais em
homenagem às divindades).
A sacralização (imolação ritual) de animais é uma característica essencial da
religiosidade africanista, pois é através dela que os vivos homenageiam e entram em
contato com as divindades. O axorô (sangue) representa a energia vital, e possui a
conotação de alimentar o vínculo espiritual entre o orún (mundo dos deuses) e o
ayiê (mundo dos vivos). São sacralizadas aves (galinhas, galos, pombos), pequenos
quadrúpedes (cabras, bodes, carneiros, ovelhas) e em alguns casos, bois. O sangue
é utilizado nos rituais e a carne é servida ao público visitante nas festas e doado aos
frequentadores dos Ilês.
Ressalte-se que a sacralização é própria das religiões de matriz africana e
deve ser tratada com o devido respeito, visto que é um ponto fundamental dessas
comunidades tradicionais. O Batuque é uma religião típica do povo negro,
historicamente marginalizado e escravizado, compondo hoje a maioria da porção
mais pobre da sociedade. A presença das Casas de Nação nas periferias da região
metropolitana e outras regiões do estado representa muitas vezes uma forma de
matar a fome da comunidade, visto que os Ilês distribuem a carne dos animais
sacralizados entre seus membros. A sacralização cumpre assim um importante
papel religioso para os batuqueiros e social para as comunidades periféricas das
grandes cidades.
O Batuque cultua e celebra a vida. Cada Orixá é responsável por um aspecto
importante da vida das pessoas. O xirê (festa) representa a celebração das etapas
da vida e da alegria de se estar vivo e compartilhar as bênçãos das divindades com
seus pares. A morte, em contrapartida, é encarada como tabu pelos religiosos
africanistas, algo a que se respeita, embora seja indesejável. Os mortos (eguns) são
cultuados como ancestrais, antepassados que trouxeram os conhecimentos e
ensinamentos aos mais jovens. Embora se adote uma postura de resignação frente
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à morte, muito raramente se verá um batuqueiro pensando ou falando sobre o que


lhe acontecerá quando morrer, pois a existência no ayiê é tão sagrada quanto a
existência no orún. Não se faz distinção, assim, entre vida e morte, céu e inferno,
bem e mal. Não há penitência, castigo ou pecado do ponto de vista africanista, pois
tudo é sagrado. A distinção entre mundano e divino, deus e diabo são elementos
próprios de outras religiosidades que não as africanistas.
Ser batuqueiro, assim, implica assumir uma identidade dentro de sua
comunidade, uma personalidade, aceitar uma filosofia de vida diferente da
hegemônica baseada em princípios morais judaico-cristãos. O batuqueiro não é
religioso apenas quando está no templo; é religioso 24 horas por dia, porque celebra
o sagrado em todas as coisas. Compreender alguns aspectos da religiosidade
africanista do Rio Grande do Sul é um conhecimento fundamental para se conhecer
a diversidade religiosa e cultural brasileira, além de uma ferramenta necessária para
se construir a cidadania democrática, o respeito às diferenças e a tolerância
religiosa.

4. Referências:

BRAGA, Reginaldo Gil. Batuque Jêje-Ijexá em Porto Alegre: A música no culto aos
Orixás. Porto Alegre: FUMPROARTE/SMC-PMPA, 1998.

CORRÊA, Norton Figueiredo. (2006), O batuque no Rio Grande do Sul: antropologia


de uma religião afro -rio-grandense. São Luís: Cultura e Arte.

DA SILVA, Paulo Roberto Santos. Batuque: seus encantos e rituais. Porto Alegre:
Besouro Box, 2016.

ORO, Ari Pedro. Religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul: Passado e


Presente. Revista Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, vol.24, n.2, 2002.

SILVEIRA, Hendrix Alessandro Anzorena. “Não somos filhos sem pais: História e
Teologia do Batuque do Rio Grande do Sul”. Dissertação de mestrado Teologia/
Faculdades EST: São Leopoldo, 2014.

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