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ANAGRAMA
by Latuf Isaias Mucci | Dez 29, 2009 | A | 0 comments
A linguagem é um jogo. A arte é lúdica. Como arte, a linguagem joga os signos, joga com
os signos, embaralha os signi cantes. É precisamente na linguagem que o homo ludens pratica
sua melhor capacidade de jogar: a partir do código da língua, a linguagem mistura os signos,
desloca as palavras, revela combinações verbais, surpreende os termos, considerando que em
uma só palavra – “ave, palavra!”, pode-se cantar com Guimarães Rosa (1908-1967), alquimista
da linguagem – estão todas as palavras. O dicionário, realização do código da língua, será o
paradigma de onde os sintagmas fazem a reverberação, a reversibilidade, o transtorno do eixo
vertical, resultando uma salada, uma macedônia, um coquetel de letras. Cada verbo tem um
verso e um reverso, como o espelho e a lua, que preservam, ciosamente, o segredo de seu outro
lado. No vasto elenco das guras de linguagem, o anagrama surge como o espaço em que
melhor se opera o jogo da linguagem; anagramaticamente, ouve-se o desa o: decifra de
quantas palavras cada palavra está grávida! Em Writing, a poeta estadunidense Emily Dickinson
(1830-1886) extasia-se e nos faz extasiar-nos:
I know nothing in the word
that has as much power as a word.
Sometimes I write one, and I
look at it, until it begin to shine.
À força de olhar uma palavra, poderosa palavra, ela se vira de costas, volta-se do
avesso, reverte-se, como o verso do poema. Um verso contém o Universo. Será o anagrama o
nome do brilho que cada palavra, olhada insistentemente, emite. O contemplador da palavra
força-a a dizer seus múltiplos nomes, seus nomes secretos, seus segredos signi cantes. Por seu
turno, a poeta carioca Cecília Meirelles (1901-1964) exclama, num jogo intrincado de
paradoxos e oxímoros, em “Palavras aéreas”, poema inserido no épico Romanceiro da
Incon dência (1953):
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Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência, a vossa! Ai, palavras, ai, palavras, sois
de vento, ides no vento, no vento que não retorna, e, em tão rápida existência, tudo se forma e
se transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota…
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora…
e dos venenos humanos
sois a mais na retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam…
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação, nem de hora…
– e estais no bico das penas,
– e estais na tinta que as molha,
– e estais nas mãos dos juízes,
– e sois o ferro que se arrocha,
– e sois o barco para o exílio,
– e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai palavras,
leis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra…
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois agora?
-Acusações, sentinelas,
bacamarte, algemas, escolta;
– o olho ardente da perfídia,
a velar na noite morta;
– a umidade dos presídios,
– a solidão pavorosa;
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de um nome do que possa imaginar nossa vaidade semiológica. O anagrama reforça, ainda, o
postulado da cultura árabe, segundo o qual no nome da pessoa está inscrito o seu destino, um
maktub. Em minhas elucubrações anagramáticas, descobri, fascinado, que as datas de
nascimento e morte de Jorge Luis Borges são exatamente correspondentes, bastando trocar
de lugar os números, revirar de cabeça para baixo o 6, que vira 9: 1899-1986. Note-se que o
título do sítio de buscas – Internet Anagram Server, anagramaticamente, Rearrangement Star
Vein” ou “Vegetarians Remnant Err” – surge dançando na tela iluminada e con gura uma frase: I,
rearrangement servant (“eu, servidor dos rearranjos”), que estrutura uma mise en abyme dos
signos, ao mesmo tempo que demonstra a disponibilidade in nita da Internet – nova Biblioteca
de Alexandria e incomensurável Babel, feita de letras, números, programas, ícones…
Um anagrama (do grego ???/ana-, “para trás”, e ???????/graphein, “escrever”) é um jogo
de palavras, um artifício lingüístico, um estratagema literário, que consiste em rearranjar as
letras de uma ou mais palavras e obter uma ou mais novas palavras diferentes, sem adicionar
ou subtrair letras. Sem empreender uma incursão pelos complexos aspectos matemáticos e
informáticos dos anagramas (do ponto de vista da matemática, da informática e da teoria da
linguagem, uma palavra, uma locução ou uma frase é um elo ou, equivalentemente, uma
disposição com repetição em torno do alfabeto das letras que a compõem. A relação “ser
anagrama de” é uma equivalência. Para os matemáticos e os pesquisadores da informática,
Roma é anagrama de Roma), convém frisar que, foco da atenção de psicanalistas, poetas,
antigos e contemporâneos, Ferdinand de Saussure (1857-1913), paralelamente ao trabalho
teórico, postumamente publicado na obra Cours de Linguistique Générale (1916), realizou, entre
1906 e 1909, um outro estudo que é comumente chamado de Cahiers d’anagrammes, onde
perscrutou um corpus de poemas clássicos para tentar provar a existência de um mecanismo de
composição poética – “un secret de fabrication”-, baseado na análise fônica das palavras,
mecanismo este formado pelo anagrama e pelo hipograma: o hipograma, fundado, não mais na
letra, mas na sílaba, subjacente, palavra-tema, é o nome de um deus ou de um herói diluído
foneticamente no poema. O anagrama, por sua vez, é o processo que propicia a diluição do
hipograma nos versos, a disseminação do que estava, até então, dissimulado. O anagrama seria
o princípio de base da técnica poética indo-européia ; com efeito, encontram-se anagramas nos
poemas romanos, que proferem o elogio dos mecenas e dos heróis ; o lingüista genebrino criou
também o paragrama, espécie de anagrama livre : o texto, de acordo com Saussure, é uma
matriz de signi cantes, que permite signi cações in nitas, accessíveis por chaves ; o anagrama
é uma gura de estilo que joga com o sentido oculto. Contrariamente ao anagrama tradicional,
baseado na letra, são os fonemas o elemento fundamental nos anagramas saussurianos Os
anagramas fônicos têm, na poesia homérica, na poesia e na prosa latinas, um papel mais
importante do que a rima e a aliteração, por exemplo. No poema The Raven (1845), de Edgar
Allan Poe (1809-1849), o refrão « Nevermore » tem no advérbio de tempo « never » um
anagrama de « raven », título do poema. O Corvo (Raven) repete, ao longo do poema, no lamento
monótono do refrão, a expressão Never more (Nunca mais). Ora, raven (RVN), demonstra
Jakobson, é a inversão fonológica perfeita de Never (NVR). Nessa medida, a palavra Never,
desolado refrão que o pássaro imutavelmente repete, constitui numa imagem invertida da
própria palavra Raven (Corvo). O corvo não podia dizer outra coisa a não ser virar seu próprio
nome pelo avesso Em Les mots sous les mots, les anagrammes de Ferdinand de Saussure (1971),
Jean Starobinski estuda os anagramas saussurianos; a preposição francesa “sous” (“sob”)
remete a palimpsesto, vale dizer, sob cada palavra há palavras, camadas de palavras; outra
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preposição seria “dans” (“dentro”), indicando que, no bojo de cada palavra, moram outras
palavras. J. Starobinski cita estes versos de Le cimetière marin (1871), de Paul Valéry (1871-
1945) : “la mer toujours recommence!/ Ô recompense après une pensée”, “onde o segundo verso se
constrói sobre a imitação fônica de “recommencée”. William Camden (1551-1623), historiador
e antiquário inglês, de ne, canonicamente, em sua “miscelânia” Remains Concerning Britain, o
anagrama : “Anagrammatisme is a dissolution of a name truly written into his letters, as his
elements, and a new connection of it by arti cial transposition, without addition, subtraction or
change of any letter, into different words, making some perfect sense applyable (i.e., applicable) to the
person named”.
Perde-se na noite dos tempos, a gênese do anagrama, cuja criação, segundo consta, se
atribui ao poeta grego do século III a. C. Licofrón de Cálcis, autor de anagramas encomiastas a
reis; havia, inclusive, nas cortes, o cargo de anagramatista o cial. De acordo com Celspirius,
teólogo luterano, em seu tratado De anagrammatismo (1713): “Deus é o pai do anagramatismo”.
Na Cabala judia, que joga com os mistérios e segredos entretecidos nas letras, encontram-se
anagramas no Sefer Ha Zohar (Sefer ha-Zohar Sefer ha-ZoharThe Book of Splendour: O livro dos
esplendoresWhat is The Sefer ha-Zohar? The Zohar [radiance] is the greatest classic of Jewish
mysticism.; Zohar – irradiação – é o maior clássico do misticismo judaico; trata-se de um It is a
mystical commentary on the Torah, written in Aramaic, and is purported to be the teachings of
the 2nd century Palestinian Rabbi Shimon ben Yohai. comentário místico sobre a Torah,
escrito em aramaico, que se supõe ser o ensinamento, no século II, do rabino palestino
Shimon ben Yohai, que viveu no século I ou II da era cristã. Legend relates that during a time of
Roman persecution, Rabbi Shimon hid in a cave for 13 years, studying Torah with his son;
During this time he is said to have been inspired by G@d to write the Zohar.Refere a lenda que,
durante um tempo de perseguição romana, o rabino Shimon escondeu-se, por treze anos, em
uma caverna, estudando a Torah com seu lho. Durante esse tempo, ele diz ter sido inspirado
por Deus para escrever o Zohar. However, there is no real mention of this book in any Jewish
literature until the 13th century. No entanto, não existe, até o século XIII, referência autêntica
a esse livro em qualquer literatura judaica. In the 13th century, a Spanish Kabbalist by the
name of Moses De Leon [1240-1305] claimed to discover the text of the Zohar, and the text
was subsequently published and distributed throughout the Jewish world. No século XIII, um
espanhol Kabbalist, conhecido pelo nome de Moisés De Leon [1240-1305] a rmou ter
descoberto o texto do Zohar, que foi posteriormente publicado e distribuído em todo o mundo
judeu). However de Leon denied authorship his entire life. Na França, Pierre Ronsard (1524-
1585) criou, em Amours (1552), um dos mais célebres anagramas, inserido num epigrama, em
homenagem à Virgem Maria: « Marie, qui voudroit vostre beau nom tourner / Il trouveroit aimer:
aimez-moi donc, Marie », em que o substantivo próprio « Marie » (« Maria ») eclode o verbo
« aimer » (« amar »). Ainda na rubrica do panegírico religioso, reza-se, na liturgia católica : « Ave
Maria, gratia plena, Dominus tecum” (« Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco » ), que se
« anagrama » em “Virgo serena, pia, munda et immaculata” (« Virgem serena, piedosa, pura e
imaculada »). A lenda dá conta, segundo São Jerônimo (347-c.420), o tradutor da Bíblia do
grego antigo e do hebraico para o latim – a Vulgata -, de que, quando Pilatos perguntou a Jesus
Quid est veritas ? (« O que é a verdade ? »), obteve uma resposta que é um anagrama : « Est vir qui
adest » (« É o homem que está diante de ti »). Também foi usado o anagrama para se evitarem
problemas com a Inquisição, como no caso da correspondência entre Galileu Galilei (1554-
1642) e Johannes Kepler (1571-1630), em que o físico, matemático, astrônomo e lósofo
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orchestra / carthorse; Eleven plus two / Twelve plus one; A decimal point / I’m a dot in place; The
Germans soldiers/ Hitler’s men are dogs ; Astronomers/no more stars; Funeral / real fun; George
Bush/He bugs Gore; Madonna Louise Ciccone / Occasional nude income; William Shakespeare / I am
a weakish speller; Roger Meddows-Taylor / Great words or melody; Margaret Thatcher / That great
charmer; Alec Guinness /Genuine Class; Elvis Aaron Presley /Seen alive? Sorry, pal!; listen/ silent. Em
italiano : attore /teatro; bibliotecario / beato coi libri.
Dado que toda palavra é uma senha, o cinema, no quadro do suspense e do enigma,
joga com a potência misteriosa de toda palavra, que, com sua oblicuidade, remete a signos
outros. Em seguida, alguns poucos exemplos do amplo espectro de anagramas
cinematográ cos : em Matrix (1999), dos irmãos Wachowski, o herói Neo sabe que é o
« eleito » (One, em inglês). Em O segredo da pirâmide, “eh tar”, guru da seita “rame tep”, é o
anagrama de sua verdadeira identidade : Rathe. Em O bebê de Rosemary (1968), título de um
romance publicado em 1967, de autoria de Ira Levin e adaptado ao cinema por Roman
Polanski e William Castle, a heroína descobre que o nome de Steven Marcato, encontrado em
um livro de bruxaria, é o anagrama do nome de seu vizinho Roman Castevet. Em O código de Da
Vinci, lme, de 2006, baseado no livro homônimo (2003) e dirigido por Ron Howard, a maior
parte dos segredos e enigmas resolve-se através de anagramas : no solo da grande galeria do
Louvre, aparece a mensagem: “O, Draconian Devil!. Oh, lame Saint“, que signi ca “Leonardo Da
Vinci, The Mona Lisa (A Mona Lisa); no quadro Mona Lisa encontra-se a frase : “So Dark The
Con of Man” (Madonna of the Rocks). Cabe mencionar que no livro também aparecem
anagramas, como o nome do editor, Jonas Faukman, que é anagrama de Jason Kaufman.
O anagrama coloca, ainda, a problemática do sagrado na língua, algo próximo do
esoterismo, que o usa muito, bem como as práticas mágicas e os vaticínios. ; nos poemas do
monge beneditino e teólogo alemão, autor, inclusive do cântico « Veni, Creator Spiritus »
(utilizado na 8a. Sinfonia de Gustav Mahler) Rabanus Maurus Magnentius (c. 780-856) « De
laudibus sanctae crucis « (« Em louvor da santa cruz ») por exemplo, a palavra incorpora louvor e
verdade sagrada. Concebida como combinatória, a escritura dir-nos-á algo sobre Deus, sobre o
universo, sobre nós mesmos. A já citada Cabala judia liga-se, na Renascença, à Cabala cristã, e
confere uma grande importância às transposições, às migrações e aos deslocamentos de
letras : o nome de Deus é uma condensação do movimento e da mutação das letras, bem como
haverá uma analogia entre os átomos que compõem o universo e as letras do alfabeto.
Este verbete abriu-se tratando da potência e do brilho das palavras, que se convertem
em outras, que se metamorfoseiam, que se deslocam, no jogo montado e remontado pelo
anagrama. Mister é também apontar o sêmen e o sangue que cada palavra contém. Verdadeiro
pharmakon, a palavra é, ao mesmo tempo, salvação e perdição. Do caráter extremamente
venenoso da palavra, dá conta o extraordinário lme-documentário francês La langue ne ment
pas ( Idiomas não Mentem, na versão brasileira), de 2003, de Stan Neumann, cujo enredo é o
seguinte: durante o Terceiro Reich, como cou conhecido o período entre a ascensão de Adolf
Hitler até sua derrota no nal da Segunda Guerra Mundial, a língua alemã passou por uma
transformação. O dia-a-dia dessa mudança foi percebido e registrado em um diário por Victor
Klemperer, então professor de Filoso a Românica na Universidade de Dresden; judeu, o
professor-escritor sobreviveu ao holocausto graças a seus estudos. Narrado de forma como
se ele próprio lesse seu diário, o lme intercala fotogra as pessoais e imagens históricas a m
de contar como o governo de Hitler usou o idioma como um objeto de manipulação pública. Na
época, todos os alemães – dos camponeses aos industriais, passando pelos o ciais do exército
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e até aos judeus reclusos nos campos de concentração – começaram a usar palavras ou
expressões criadas e modi cadas pelo governo. Tratava-se de sutis interferências, que foram
inseridas ao longo dos anos com um único e claro propósito: difundir a ideologia nazista e
disseminar o anti-semitismo na Alemanha. Se a linguagem é um jogo, se a arte é um jogo, se
cada palavra é um jogo, esse jogo, lingüístico, artístico, literário pode ser vital ou letal. O uso
decidirá o caráter e a nalidade da palavra, divina e diabólica, ao mesmo tempo. Quantos
mistérios se incrustam na palavra, que o anagrama (re)vela!
{bibliogra a}
CAMDEN Wiliam. Remains concerning Britain (1657). MEIRELES, Cecília. Romanceiro da
Incon dência (1953). STAROBINSKI, J. Les mots sous les mots (1971).
http://wordsmith.org/anagram/anagram.cgi?anagram=anagram&t=1000
http://www.servantsofthelight.org/QBL/Books/Zohar_1.html
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