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MONDENESI, Thiago Vasconcellos; BRAGA JUNIOR, Amaro Xavier. (Organizadores).

Quadrinhos e
Educação: Relatos de Experiências e Análises de publicações. Vol.1. Jaboatão dos Guararapes: SOCEC,
2015. 182 p.

Doutor em História (UFRJ), professor do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de


História da UFRN

A ‘História do Brasil em quadrinhos’, publicada em duas partes


nos anos de 1959 e 1961 pela Editora Brasil-América (EBAL), foi a
primeira obra em que se buscou concatenar didaticamente os principais
episódios históricos do Brasil por meio dos Quadrinhos.
Este pioneirismo fica ainda mais caracterizado pela iniciativa da
EBAL de procurar conciliar essa mídia com o conhecimento e os
procedimentos acadêmicos, juntando na sua produção alguns dos
melhores talentos das várias áreas envolvidas: o desenhista Ivan Wasth
Rodrigues, os historiadores Gustavo Barroso, Manoel Maurício de
Albuquerque e José Hermógenes de Andrade, então uma das referências
na utilização dos Quadrinhos no ensino de História, mas que depois se
tornou mais conhecido pelo nome de ‘Professor Hermógenes’, por conta
de ter introduzido o Hatha Yoga no Brasil.
Dentre os cuidados tomados pela EBAL na empreitada, destaca-
se a pesquisa para os desenhos de vestuários, tipos, paisagens e
veículos de transportes, que tomaram cerca de seis anos de trabalho e
envolveram inúmeros pesquisadores nas idas aos arquivos de vários
estados. Vale a pena colocar que o intervalo de quase três anos entre as
duas partes da ‘História do Brasil em quadrinhos’ deveu-se, em grande
parte, a esses cuidados, pois a doença e o falecimento de Gustavo
Barroso, antes mesmo da publicação da primeira parte da obra, levou a
se ter de contratar Manoel Maurício de Albuquerque e José Hermógenes
de Andrade para as tarefas de revisão da ‘1ª Parte’ e de roteirização final
da ‘2ª Parte’.
Manoel Maurício de Albuquerque, professor da Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje UFRJ), fora o
principal organizador do ‘Atlas Histórico Escolar’, para a Campanha
Nacional de Material de Ensino (CNME), do Ministério da Educação e
Cultura (cf. FALCI, 2015). Nesta tarefa, Albuquerque era diretamente
responsável pela elaboração da parte de História do Brasil, para a qual
Ivan Wasth Rodrigues também foi o desenhista.

OS QUADRINHOS E AS PERSPECTIVAS DO MEC PARA A EDUCAÇÃO


DE MASSA

Entendo que o pioneirismo da ‘História do Brasil em quadrinhos’


e a mistura de suas tarefas e conteúdos com o ‘Atlas Histórico Escolar’
sinalizava uma nova articulação do MEC com as editoras, uma vez que
as iniciativas dos últimos anos da década de 1950 haviam trazido novas
demandas em relação ao livro didático.
MONDENESI, Thiago Vasconcellos; BRAGA JUNIOR, Amaro Xavier. (Organizadores). Quadrinhos e
Educação: Relatos de Experiências e Análises de publicações. Vol.1. Jaboatão dos Guararapes: SOCEC,
2015. 182 p.

Segundo Juliana Filgueiras (2013), a política para os livros


didáticos implantada no governo Juscelino Kubitschek pretendia
diminuir as carências dos estudantes através da CNME e aumentar a
permanência dos estudantes na escola e, nesse intuito, atentando para a
necessidade de reformulação da educação nacional e, atendendo as
novas normas pedagógicas, buscando uma mudança nos métodos de
ensino dos professores.
O direcionamento da CNME era o de colaborar para a
disseminação da cultura, por meio da melhoria da qualidade do material
didático sem, contudo, entrar em confronto com o mercado editorial
privado. Em sintonia com a ênfase do governo Kubitschek na
industrialização, a CNME centrou seus esforços na produção de livros de
consulta, incentivando o parque gráfico nacional a produzir os demais
livros didáticos. (FILGUEIRAS, 2013, p. 315-319).
Minha observação é que a nova articulação entre o MEC e as
editoras provavelmente se deveu às mudanças na Campanha Nacional
de Alfabetização de Adolescentes e Adultos (CNAA), muitas das quais
idealizadas por Inezil Penna Marinho, técnico do Departamento Nacional
de Educação (DNE) e colocadas em prática a partir de 1958.
Enfatizando a necessidade de arregimentação de mais
professores-voluntários para atender a grande quantidade de inscritos
na CNAA e permitir a abertura de mais cursos de alfabetização, Penna
Marinho defenderia a introdução de novos métodos para o público
adolescente e adulto, ao lado da criação de outros tipos de materiais
didáticos, voltados especificamente para o trabalho dos professores-
voluntários, entendido que estes não eram profissionais com rígida
formação didática e pedagógica (PARA, 1958).
Já em 1958 o DNE lançou um concurso de obras educacionais,
visando estimular as vocações do que ele definiria como “novo ramo de
atividade intelectual”, promovendo-se, assim, a produção de “obras de
ficção, educação doméstica, educação profissional e teatro” destinadas à
CNAA, abrangendo “peças e novelas radiofônicas”, que seriam
apresentadas por recém-alfabetizados (QUATROCENTOS, 1958).
Também nesse sentido, mas de modo a combater o analfabetismo
funcional, entendido então não apenas como um entrave ao
desenvolvimento, caso do analfabetismo absoluto, mas como o obstáculo
para a democracia, Penna Marinho defenderia que os livros didáticos
passassem a conter uma quantidade maior de ilustrações e que se
considerasse a adoção das histórias em quadrinhos, na medida em que
os estudos do CNAA mostravam que estas obras eram bem mais
atrativas que os livros didáticos tradicionais e estimulavam a
permanência e o sucesso escolar, capitais para vencer o analfabetismo
funcional (CAMPANHA, 1958).
Penso que o emprego dos Quadrinhos sinalizava uma nova
perspectiva de educação de massas, sendo sintomático que se pensasse
também no emprego da televisão, ainda que seu alcance ainda estivesse
limitado aos grandes centros urbanos. Neste sentido, entendo que as
iniciativas da CNAA iriam se coadunar, então, às experiências do
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Sistema Rádio-Educativo Nacional (SIRENA) – que, inclusive, seria


organizado por Penna Marinho em 1959, na área de Brasília – para
antecipar as perspectivas de ‘conscientização’ e ‘politização’, que seriam
perseguidas no Movimento de Educação de Base (MEB), no início da
década de 1960 (cf. FÁVERO, 2006, p. 56- 82).

A EBAL E A PRODUÇÃO DE QUADRINHOS VOLTADOS PARA A


EDUCAÇÃO

Se o interesse do MEC na utilização dos Quadrinhos estava


ancorado numa nova perspectiva de educação de massas, como
entender que a EBAL, uma editora voltada para o entretenimento,
despendesse tantos recursos numa atividade de tão longo prazo como a
‘História do Brasil em Quadrinhos’, antes mesmo que a nova perspectiva
do MEC estivesse consolidada?
No mais extenso estudo sobre a história em quadrinhos brasileira
realizado até hoje, Gonçalo Junior (2004) apontou que, desde o seu
surgimento como atividade empresarial no Brasil, os Quadrinhos sempre
estiveram sujeitos a intensas críticas da esquerda e da direita política,
cujas teses foram apoiadas tanto pela Igreja Católica quanto pelo maior
conglomerado da mídia nacional, os ‘Diários Associados’ de Assis
Chateaubriand. Os Quadrinhos foram então acusados de promoverem a
alienação intelectual, a desnacionalização dos jovens, a degeneração
moral e a estimularem a violência, teses que foram corroboradas por um
estudo do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do MEC, publicado
na ‘Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos’ em 1944 (GONÇALO,
2004, p. 114).
Portanto, o surgimento da EBAL em 1945 já fora condicionado
pela necessidade de se apresentar os Quadrinhos como complemento da
educação escolar, fazendo com que a Editora, a partir de 1948, tivesse
que despender uma parcela de seus recursos na coleção ‘Edição
Maravilhosa’ quadrinizando romances de escritores estrangeiros e
brasileiros consagrados pela crítica, ainda que os exemplares desta
coleção levassem vários anos para esgotarem. No mesmo sentido, apenas
entre os anos de 1953 e 1954 foram lançadas a série ‘Ciências em
Quadrinhos’, a edição especial ‘O Antigo Testamento em Quadrinhos’ e a
‘Série Sagrada’ que, inclusive, conseguiria emplacar alguns sucessos de
vendas na década de 1950, como ‘A História de Nossa Senhora de
Fátima em Quadrinhos’ e ‘A História de Jesus Cristo em Quadrinhos’
(GONÇALO, 2004, p. 260-261).
Os quadrinhos de história, contudo, foram a primeira e mais
longeva opção de Adolfo Aizen para combater seus críticos: antes mesmo
dele fundar a EBAL, quando ainda estava a frente do ‘Grande Consórcio
Suplementos Nacionais’, lançou a série ‘Grandes Figuras do Brasil’, que
teve dois volumes publicados, um em 1939 e outro em 1940. Os volumes
eram integrados por várias historietas encadernadas em ordem
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alfabética, cada qual dedicada a um personagem da história do Brasil e


composta por nove requadros numerados e legendados.
A série ‘Grandes Figuras do Brasil’ fora criada pelo ‘Grande
Consórcio Suplementos Nacionais’ especialmente para constituir os
volumes iniciais da ‘Biblioteca Pátria’ aos quais foi juntado outro
exemplar, ainda em 1940, o ‘volume especial’ nomeado como: ‘Getúlio
Vargas para crianças’.
Sintomaticamente, na contracapa do segundo volume da série
‘Grandes Figuras do Brasil’ já se lia a recomendação do então
Presidente: “Cultivar nos jovens a admiração pelos heróis nacionais é
obra patriótica e merecedora de louvores. O livro GRANDES FIGURAS
DO BRASIL constitui, nesse sentido, valiosa e oportuna iniciativa.”
Segundo Gonçalo Júnior (2004, p. 84), ‘Getúlio Vargas para
crianças’ teria se transformado num recorde para a indústria editorial
brasileira, uma vez que o MEC comprou várias de suas tiragens com o
intuito de distribuí-las nas escolas.
A continuação da colaboração do ‘Grande Consórcio’ com o
governo foi estimulada pelo próprio ministro da Educação Gustavo
Capanema e resultou na publicação de mais quinze volumes da
‘Biblioteca Pátria’, o primeiro deles nomeado ‘Rui Barbosa para
crianças’.
Todos esses volumes da ‘Biblioteca Pátria’ que seguiram à série
‘Grandes Figuras do Brasil’ visavam atingir diretamente o público
infantil e não adotaram o formato dos Quadrinhos, mas o de ‘história
ilustrada’ [illustrated story], em que as ilustrações, cobrindo toda uma
página, apoiavam e completavam o texto, que preenchia toda a página
anterior.
Os quadrinhos de história seriam retomados em 1957, com a
publicação das séries ‘Grandes Figuras em Quadrinhos’, dedicada a
vultos brasileiros, e ‘Biografias em Quadrinhos’ em 1958, voltada a
estrangeiros. A série ‘Grandes Figuras em Quadrinhos’, uma publicação
bimestral, incorporava preocupações que não estavam presentes na série
de 1939-1940: além de cada volume ser dedicado a um único
personagem histórico, estes eram roteirizados por professores de
história, incluíam as cronologias de cada personagem, as fotos das casas
e das cidades onde estes houvessem nascido, bem como as imagens dos
monumentos erigidos em suas memórias (GONÇALO, 2004, p. 305).
Por conseguinte, os Quadrinhos destinados a complementar a
educação escolar faziam parte de uma estratégia de publicações da
EBAL que não visava especificamente o lucro no mercado, mas combater
as críticas dos seus opositores, orientando-se pelas transformações do
campo educacional, guiada por uma política editorial de busca de
prestígio e inserção na sociedade, sustentada continuamente desde os
primórdios da atuação de Adolfo Aizen.
Cabe fazer notar que o segmento histórico era o mais tradicional
da linha de publicações da EBAL voltada para complementar o ensino
escolar e, ultrapassando o formato dos Quadrinhos, esse segmento já
estivera sintonizado com a política do MEC e fora assim distribuído nas
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escolas enquanto material didático e de propaganda. No caso específico


da ‘História do Brasil em quadrinhos’, penso que a sintonia desta obra
com as novas expectativas de educação de massas do MEC permitiria
aos editores aventar novamente a possibilidade de sucesso editorial do
segmento, explicando o cuidado e as despesas da EBAL com sua
produção.

RUPTURAS E CONTINUIDADES EXPLICITADAS PELA ‘HISTÓRIA DO


BRASIL EM QUADRINHOS’

Seguindo em nossa perspectiva de analisar a ‘História do Brasil


em quadrinhos’ de modo não-linear,1 visando conciliar o exame dos
Quadrinhos com o Ensino da História e a História da Historiografia,
penso que se torna necessário explicitar minha aproximação com as
ideias de mercadoria e de indústria cultural. Para relacionar estas ideias
com o caso da ‘História do Brasil em Quadrinhos’, entendo que se deve
trabalhar conforme sugerido por Chandra Mukerji (1983, p. 259-261), i.
e., pensar esta obra enquanto objeto partícipe de uma cultura material,
subsumindo um materialismo que atua como força social. Esta atuação
engendra um sistema cultural que, num processo aparentemente
paradoxal, aguilhoa e impulsiona a indústria ao mesmo tempo,
relegitimando, quando se afirma como produto, o capitalismo.
Utilizando uma metáfora de modo a melhor esclarecer o leitor, a
produção e o consumo poderiam ser comparados à figura de Janus, a
divindade romana das mudanças e tradições, que com sua dupla face
avista o passado e o futuro a uma só vez. Nesse sentido, os Quadrinhos
nos permitem apontar não apenas a direção e a ultrapassagem de certas
dinâmicas do sistema cultural em que o livro didático está inserido, mas
também suas ligações com certo passado material e cultural,
descortinando o modo como os Quadrinhos são capazes de exercer
pressão sobre os padrões culturais vigentes ao mesmo tempo em que
levantam novas demandas para a indústria editorial como um todo.

1 Nosso trabalho segue a sugestão de Jacques Derrida, inspirada nos escritos de Edgar Alan Poe,
de se buscar uma analítica crítica não-regular, de modo a se poder enfrentar o problema das
aporias colocadas pela regionalização dos campos. Compreendo, assim, a ‘interpretação ativa’
[interprétation active] enquanto referida ao trabalho em torno daquilo que Derrida
provisoriamente chamou de ‘região de historicidade’ e aonde se perscrutaria a possibilidade do
descentramento da interpretação, i.e, visando levar em conta uma rede de envolvimentos – o
telos husserliano – por meio de procedimentos que considerassem a intencionalidade da
fabricação dos poderes, os quais, por sua vez, instituiriam a produção historiográfica em tais e
tais contextos. A sugestão da analítica pensaria a fronteira entre o autor e o leitor crítico [critical
reader] e, especificamente referindo-se ao uso da palavra ‘analista’ pelo escritor Edgar Alan Poe,
serviria à denúncia das estratégias e demandas do campo. Apontando que o personagem C.
Auguste Dupin, criado por Poe, levara a análise além do cálculo e da regra para ultrapassar a
razão matemática e constituir uma analítica imaginativa capaz de desvendar processos
desencadeados, Derrida a coloca no jargão da desconstrução, segundo a perspectiva de que o
leitor crítico deveria desempenhar um papel em meio a uma investigação [to play a role in this
work] considerando as próprias condições de sua inserção no campo e, em relação ao objeto
(DERRIDA, 1995, p. 9 e 51).
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Assim, entendo que observar a ‘História do Brasil em quadrinhos’


simultaneamente enquanto obra didática, objeto cultural e produto
acadêmico, nos possibilita apontar as rupturas e as continuidades nos
campos da Educação, dos Quadrinhos e da História, bem como as suas
demandas.
Voltando a trabalhar o exemplo oferecido pela coleção ‘Biblioteca
Pátria’, notamos que esta era composta por volumes tanto num formato
mais novo, os Quadrinhos, quanto num formato mais antigo, a ‘história
ilustrada’, configurando-se, portanto, na EBAL, uma tensão entre a
ruptura e a continuidade do formato editorial voltado para a produção
didática.
Escolhendo dentre os dois formatos apenas a ‘história ilustrada’
ou ficção ilustrada [illustrated fiction]2 para desenvolver nosso
argumento, salientamos que Stuart Sillars colocou que o desinteresse da
crítica e dos estudos literários por este formato foi completamente
desproporcional a sua participação como força dominante no mercado
editorial desde o início do século XIX. Para Sillars este problema teria
sua explicação mais provável no fato de as ‘histórias ilustradas’ terem
sido quase sempre consideradas pela academia enquanto uma
subcultura, uma literatura popular insidiosa e perigosamente
proliferada, que se colocava contra o padrão cultural dominante, que
enfatizava a primazia do texto enquanto instrumento de transmissão
cultural (SILLARS, 2005, p.2).
Retomando o trabalho com exemplo da ‘Biblioteca Pátria’,
notamos que a perspectiva do MEC no final da década de 1950 colocaria
em cheque exatamente as obras textuais, a partir da demanda de que os
livros didáticos passassem a conter uma maior quantidade de
ilustrações, ao mesmo tempo em que abria a possibilidade de utilização
dos Quadrinhos no CNAA. Estes pontos nos permitem verificar uma
transformação na apreciação pedagógica dos livros didáticos e, notem
que esta se torna mais visível em virtude de estarmos nos aproximando
dos Quadrinhos por meio da análise não-linear.
Em relação à História e, especificamente por meio das referências
ao Ensino de História, outro exemplo da tensão entre a continuidade e a
ruptura nos campos permite continuar nossa digressão.
No ‘Intróito’ da 1ª Parte da ‘História do Brasil em quadrinhos’,
Gustavo Barroso colocou que acerca do estudo de história, geralmente
se dizia que este era enfadonho e árduo, e esta opinião se justificaria, em
parte, por causa do acúmulo de datas, da monotonia das listas, da
aridez dos textos e da ausência de explicações sobre os motivos e
consequências dos acontecimentos.
Para Barroso, a utilização dos Quadrinhos proporcionava,
sobretudo, a ultrapassagem deste problema do estudo da história, ao
permitir a apresentação de um conteúdo concatenado e didático, em que
as datas eram utilizadas somente como marcos das distâncias entre os

2Em vez do termo ‘ficção ilustrada’, adotado por Sillars, utilizo aqui ‘história ilustrada’, preferido
pelo teórico dos quadrinhos Will Eisner (cf. EISNER, 1998).
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fatos e, de modo a produzir o sentimento da cronologia. Como vantagem,


a obra possibilitava a apresentação de ilustrações que haviam sido
rigorosamente desenhadas de acordo com os tempos, os lugares e as
personalidades, para dar “vida aos acontecimentos e os homens que
deles participaram”. Tudo isto tornaria a leitura da obra e a
compreensão da história, acessíveis e proveitosas (BARROSO, 1959).
Esta visão de que se lançava mão de um novo recurso para
superar um descompasso não apenas do Ensino de História, mas
também dos livros didáticos com a historiografia, era compartilhada
também por Manoel Maurício de Albuquerque.
No prefácio da 2ª Parte da ‘História do Brasil em quadrinhos’,
Manoel Maurício deixou claro entender que o pioneirismo dessa obra era
o de visualizar e expor os principais episódios históricos brasileiros por
meio de uma linguagem contemporânea e, que o seu grande mérito era o
de “não amesquinhar a narrativa, nem tampouco adensá-la de forma a
confundi-la com a de um livro comum” (ALBUQUERQUE, 1961).
Podemos colocar que os dois autores pensavam os quadrinhos a
partir do conhecimento histórico e enquanto um instrumento para
superar o descompasso entre o Ensino e a Academia. Por conseguinte, a
linguagem dos quadrinhos foi pensada e operada na ‘História do Brasil
em quadrinhos’ a partir de um repertório já existente e de um lugar que
os historiadores julgavam ocupar na sociedade e na Academia. Por fim,
poder-se-ia colocar que a afinação com a Historiografia era um valor que
não deveria ser sacrificado pelo livro didático e pelas experiências do
Ensino de História.
A ilustração documental foi uma das soluções encontradas para
se adaptar a linguagem dos quadrinhos a estas condições e para se
compreender sua importância, assim, no seguimento do nosso
raciocínio, entendo que se deve analisá-la em conjunto com a própria
‘História do Brasil em quadrinhos’.

A ILUSTRAÇÃO DOCUMENTAL E A ‘HISTÓRIA DO BRASIL EM


QUADRINHOS’

Para se compreender a inserção da ‘História do Brasil em


quadrinhos’ na historiografia brasileira deve-se ressaltar que esse livro
não foi apenas a primeira obra em quadrinhos dedicada ao ensino de
História do Brasil, mas, também o primeiro compêndio de História do
Brasil no formato de quadrinhos, de sorte que a coincidência da reunião
de duas primazias na mesma obra constitui um dado que merece ser
bem avaliado, pois desde a primeira década do século XX já se
publicavam quadrinhos sobre a História do Brasil e nunca se tentou
sequer reuni-los numa publicação comercial.
Começando-se nossa avaliação dessa reunião extraordinária,
deve-se relembrar que a 1ª parte de ‘História do Brasil em quadrinhos’
somente foi aprontada em 1959, embora o segmento de quadrinhos
históricos tivesse uma importância especial para a EBAL e mesmo que
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esta editora já houvesse publicado duas coletâneas de biografias de


personalidades brasileiras, além de trinta e oito volumes de biografias,
desde a década de 1940. Destes quinze volumes eram da série ‘Grandes
Figuras em Quadrinhos’, sete da série ‘Biografias em Quadrinhos’, todos
publicados a partir de 1957, mais os dezesseis da ‘Biblioteca Pátria’,
publicados no formato de ‘história ilustrada’, na primeira metade dos
anos 40.
Sem entrar no mérito de se poder explorar este conjunto
biográfico produzido pela EBAL enquanto um corpus dotado de sentido
histórico, esta diferença de produtividade entre os autores das biografias
e os do compêndio, demonstra que os desafios enfrentados por estes
últimos eram bem maiores.
Suas dificuldades podem ser mais bem avaliadas se for
trabalhada uma comparação com ‘Casa Grande e Senzala em
quadrinhos’, o mais próximo que a EBAL se aventurou na direção de
produzir obra semelhante ao compêndio de História do Brasil até a
década de 1970.
A iniciativa de quadrinizar ‘Casa Grande e Senzala’ foi anunciada
em 1957 por Adolfo Aizen como o mais ambicioso projeto da EBAL, com
o enorme orçamento de um milhão de cruzeiros, mas, apesar disto,
somente em 1981, vinte e quatro anos depois, é que essa obra seria
publicada (GONÇALO, 2004, p. 290 e 303).
Seu principal problema foi a exigência de se desenharem
vestuários, objetos e figuras consistentes com o conhecimento histórico.
Ainda que a tarefa dos contratados estivesse circunscrita ao texto de
Gilberto Freire, pelo menos cinco desenhistas terminaram desistindo de
ilustrar ‘Casa Grande e Senzala’ após terem assumido a tarefa, tamanha
a complexidade e os riscos do trabalho, problema que só foi sanado
quando Ivan Wasth Rodrigues aceitou conduzir a sua quadrinização em
1980 (ALDÉ, 2008).
Além da dificuldade de se quadrinizar os conteúdos históricos, ou
seja, de escolher, organizar e conjugar eventos e imagens num todo
dinâmico e coerente – por si só um tremendo problema em termos
historiográficos, os textos e as imagens teriam de ser transpostos para a
linguagem dos quadrinhos e, desta, para a da história.
Em relação à ilustração documental, muitas vezes, se fazia ainda
necessário produzir registros inéditos a partir da pesquisa de vestuários,
uniformes militares, retratos, objetos, monumentos e paisagens, uma
tarefa a que poucos desenhistas estavam qualificados, mesmo fora do
Brasil e, arrisco a dizer, um trabalho que poucos historiadores
desejariam avalizar (veja-se, por exemplo, a recriação do retrato de
Calabar por Ivan Wasth– ver ‘Figura 01’).
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Figura 01 – Requadro 108: Retrato de Calabar recriado por Ivan Wasth Rodrigues.
Fonte: BARROSO, Gustavo. História do Brasil em quadrinhos. 1ª Parte. Rio de Janeiro: Editora
Brasil-América, 1959, p. 27. © 1959, EBAL. Todos os direitos reservados.

No caso da ‘História do Brasil em quadrinhos’ as tarefas de


ilustração foram assumidas por Ivan Wasth em decorrência da sua
tradição familiar, que se prolongou na sua inserção profissional. José
Wasth Rodrigues, tio, incentivador e tutor artístico de Ivan, iniciou seu
trabalho como ilustrador documental na década de 1920, desenhando
para o livro de Gustavo Barroso ‘Uniformes do Exército Brasileiro (1720-
1922’). Para cumprirem esta tarefa Barroso e José Wasth realizaram
uma extensa pesquisa dos fardamentos e acessórios para uso militar na
Biblioteca Nacional e nos Arquivos Públicos de vários estados, valendo-
se de manuscritos, gravuras, retratos e fotografias.
Essa primeira aproximação com a ilustração documental se
desdobrou para a ilustração de bandeiras, brasões, tipos históricos,
paisagens e utensílios em outras obras, onde também ligava sua
habilidade como desenhista e aquarelista ao conhecimento histórico,
desenvolvendo o ofício que passaria a seu sobrinho.
Ivan Wasth trabalharia para diversos empregadores, dentre os
quais a EBAL, onde acabaria trabalhando, como o tio, com Gustavo
Barroso e para várias instituições governamentais dentre elas o MEC,
ocasião em que se tornaria amigo de Manoel Maurício de Albuquerque
durante a feitura do ‘Atlas Histórico Escolar’. O ‘Atlas’ inauguraria uma
parceria que resultaria em vários projetos e que se deslocou também
para a EBAL, quando Manoel Maurício foi contratado para terminar a
‘História do Brasil em quadrinhos’ com o falecimento de Gustavo
Barroso.
Em beneficio do nosso raciocínio historiográfico é interessante
apontar que novamente se processou uma reunião extraordinária em
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torno da ‘História do Brasil em quadrinhos’ e que também esta deve ser


avaliada.
Note-se que Gustavo Barroso era politicamente afinado com a
direita, tendo, inclusive, assumido a liderança da fração mais radical
desse movimento na década de 1930, mas que Barroso foi substituído
por Manoel Maurício, um historiador que era alinhado com a esquerda,
tendo sido, inclusive, afastado da Universidade do Brasil, preso e
torturado por conta de suas posições.3
Ainda que Manoel Maurício coloque no prefácio da 2ª Parte da
obra que havia respeitado “escrupulosamente as conceituações” de
Barroso e, que seu trabalho se limitara à revisão da parte documental,
entendo que podem se notar certas inferências das suas posições
ideológicas que, colocadas junto ao trabalho no ‘Atlas Histórico Escolar’,
já me permitem apontar que nestas obras estão as origens da sua
‘Pequena História da Formação Social Brasileira’.
Por exemplo, no requadro 355 da ‘História do Brasil em
quadrinhos’, nomeado como ‘A República dos Conselheiros’,
sugestivamente se estampou Antônio Conselheiro em primeiro plano (ver
‘Figura 02’). Além de se fazer um metajogo historiográfico entre o nome
do beato que liderou Canudos e o período histórico em que a República
foi presidida por representantes das oligarquias estaduais; Manoel
Maurício antecipava as explicações do evento de Canudos, bem como os
atributos (‘Conselheiro’, ‘Místico’) e a descrição por ele atribuídas ao
beato em ‘Pequena História da Formação Social Brasileira’
(ALBUQUERQUE, 1961, p. 36; 1981, p. 530-533).
Juntando as duas reuniões – a do compêndio de história com o
ensino de história por meio dos quadrinhos e a dos historiadores de
ideologias antagônicas pelos quadrinhos, penso, por um lado, que
somente com a ‘descoberta’ da ilustração histórica pelos historiadores
brasileiros é que os quadrinhos puderam ser aceitos pelo campo
histórico. Por outro lado, a despeito da amizade com Ivan Wasth, o
simples fato de Manoel Maurício aceitar substituir Barroso apesar das
divergências historiográficas e ideológicas entre estes, nos permite
apontar uma convergência no campo histórico em torno do sentido
daquilo que os quadrinhos possibilitariam transformar: o Ensino da
História.
É interessante ainda observar, para que não se avalie
unilateralmente a leitura dos quadrinhos feita por esses historiadores
como uma atitude recorrente no campo da história, que Hélio Vianna,
um historiador conservador, recebeu bem a obra, mas frisou que se
deveria ter trabalhado mais os campos cultural e econômico, muito
embora, quando revisasse a obra para a EBAL, tivesse deixado,

3 Pedro Tórtima, colaborador e amigo próximo de Manoel Maurício, entende que ele já estava
alinhado com o pensamento marxista à época da colaboração na ‘História do Brasil em
quadrinhos’, por outro lado, Miridan Britto Falci, que trabalhou próxima a Manoel Maurício no
‘Atlas Histórico Escolar’ e que foi sua aluna na Universidade do Brasil, opinou que naquele
tempo ele podia ser mais bem definido como “uma pessoa preocupada com o social” (TÓRTIMA,
2014; FALCI, 2014).
MONDENESI, Thiago Vasconcellos; BRAGA JUNIOR, Amaro Xavier. (Organizadores). Quadrinhos e
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2015. 182 p.

completamente, de reparar no trabalho de Ivan Wasth... (VIANNA, 1961).


Parecida com esta, foi a leitura dos quadrinhos que fica apontada na
resenha feita por J. B Magalhães para a Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Magalhães não examina o trabalho de Ivan Wasth,
mas observa que “as legendas de Gustavo Barroso, complementando os
notáveis desenhos do desenhista [sic] Ivan Wasth Rodrigues, formam
com eles, um conjunto merecedor de atenção e aplauso” (MAGALHÃES,
1960).

Figura 02 – Requadro 355: ‘A República dos Conselheiros’. Fonte: ALBUQUERQUE, Manoel


Maurício de. História do Brasil em quadrinhos. 2ª Parte. Rio de Janeiro: Editora Brasil-América,
1961, p. 36. © 1961, EBAL. Todos os direitos reservados.

OS PRECEDENTES DA ‘HISTÓRIA DO BRASIL EM QUADRINHOS’

O recurso das legendas empregado por Gustavo Barroso é talvez


a maior diferença da ‘História do Brasil em quadrinhos’ em relação aos
gibis, que há muito já empregavam vários tipos de balões para fazer os
elementos textuais interagirem com os desenhos nos quadrinhos,
constituindo, por conseguinte, um traço que possibilita ir adiante em
nossa análise.
Will Eisner, explica o renascimento do formato da ‘história
ilustrada’ na década de 1970 por conta deste ter sido então percebido
como um veículo idôneo para desenhistas altamente qualificados e
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Educação: Relatos de Experiências e Análises de publicações. Vol.1. Jaboatão dos Guararapes: SOCEC,
2015. 182 p.

escritores sofisticados, porquanto nesta forma de narração gráfica, o


roteirista e o desenhista teriam sua autonomia conservada (EISNER,
1998, p. 27).
Poderíamos entender que essa explicação se aplicaria bem ao
Brasil do final da década da década de 1950, na medida em que
professores e acadêmicos passariam a trabalhar no segmento histórico
da EBAL e se observa a utilização da legenda em lugar do balão em
praticamente todos os seus volumes.
Contudo, outras possibilidades se abrem se considerarmos que
os quadrinhos do ‘Príncipe Valente’ [Prince Valiant] foram publicado no
Brasil já em 1937, na ‘Edição Maravilhosa’ do ‘Suplemento Juvenil’
editado por Adolfo Aizen. Harold Foster, seu autor, uma das maiores
influências para os desenhistas que se importavam com o trabalho
histórico, chegava a trabalhar até cinquenta horas em cada página do
‘Príncipe Valente’ e cuidava de pesquisar em museus e documentos cada
detalhe das indumentárias, objetos e paisagens, sempre utilizando o
recurso da legenda, uma sobrevivência do formato da ‘história ilustrada’
e nunca se rendeu aos balões (HAROLD, 1983).
Por sua vez, a própria sobrevivência do formato da ‘história
ilustrada’ nas primeiras publicações do segmento histórico da EBAL na
década de 1940, caso da ‘Biblioteca Pátria’, nos leva a inquirir se não
haveria outro legado a ser considerado.
Alguns poucos autores utilizaram o formato da ‘história ilustrada’
para trabalhar eventos ou episódios da História do Brasil antes da
década de 1940, entretanto, sem o ultrapassarem em direção aos
quadrinhos.
Nas décadas de 1930 e 1940, Messias de Melo desenhava
quadros de História do Brasil para a ‘Gazeta Juvenil’, editada em São
Paulo. Estes quadros eram ilustrações de página inteira, um só quadro
por edição da Gazeta, com um pequeno trecho explicativo inserido na
ilustração, geralmente na parte de menor detalhamento ou importância
do desenho da cena histórica.
Por sua vez, Álvaro Marins, usando o pseudônimo de ‘Seth’,
assumiu o desenho e o retiro de ‘Meu Brasil’, um dos predecessores dos
atuais livros didáticos ilustrados de História. Publicado em 1934, ‘Meu
Brasil’ era um caderno de estudos de História do Brasil para crianças,
ilustrado com mapas, gráficos e retratos, acompanhados de sínteses
históricas.
A única publicação de quadrinhos históricos no Brasil antes das
biografias da EBAL foi a seção ‘História do Brasil em Figuras’,
desenhada a partir de 1905 por Leônidas Freire e publicada esporádica,
mas continuamente na revista ‘O Tico-Tico’ do Rio de Janeiro. Sabendo-
se que Gustavo Barroso foi leitor e depois colaborador da revista ‘O Tico
Tico’ e, reparando-se que alguns dos temas da seção de Leônidas Freire
e mesmo vários trechos de suas legendas foram repetidos na ‘História do
Brasil em quadrinhos’, poder-se-ia aventar que esta última fosse
simplesmente uma adaptação da primeira (ver ‘Figura 03’ e ‘Figura 04’).
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Educação: Relatos de Experiências e Análises de publicações. Vol.1. Jaboatão dos Guararapes: SOCEC,
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No entanto, penso que as demais sobrevivências e influências


citadas anteriormente devam ser levadas em conta: na ‘História do Brasil
em quadrinhos’ as legendas não são estáticas como na História do Brasil
em Figuras’, mas sua posição depende da composição dos requadros,
nos moldes do que era feito por Harold Foster em ‘Príncipe Valente’. Já
quanto à repetição de certos trechos nas legendas, penso que isto
decorre da utilização das mesmas fontes historiográficas, a maioria delas
relativas ao período colonial e que não haviam ainda sido superadas na
década de 1950.
Finalmente, os desenhos de Ivan Wasth são tão distantes
daqueles feitos por Leônidas Freire que se torna necessário aceitar o uso
do termo ‘ilustração documental’ por Manoel Maurício para designar o
trabalho de Ivan Wasth, a despeito de possíveis mal-entendidos em
relação aos demais desenhistas, tem um emprego historiográfico
inarredável.

A COMPARAÇÃO COM A ‘HISTÓRIA DO BRASIL EM FIGURAS’

Esse compromisso do campo da história com a ilustração e com o


ensino pode ser avaliado através da comparação no tratamento de certos
eventos em cada uma das duas publicações. Este é o caso da ‘Figura 03’,
um recorte do quadrinho de Leônidas Freire nomeado ‘Invasão e
estabelecimento dos Holandeses em Pernambuco’ e da ‘Figura 04’, uma
ilustração de Ivan Wasth para a seção ‘Invasões e Conquistas dos
Holandeses’ da 1ª Parte da ‘História do Brasil em quadrinhos’.
Pelo desenho de Leônidas Freire fica patente o alinhamento da
obra com as teorias racialistas de sua época, observável na
zoomorfização das figuras de Felipe Camarão e Henrique Dias e, se
reparadas o desenho de suas expressões faciais, a estereotipização dos
indígenas e dos afro-brasileiros (ver ‘Figura 03’).
Já na ilustração de Ivan Wasth, se pode reparar a preocupação
com a reconstrução histórica dos vestuários, armamento, fortificação e
da paisagem, bem como dos retratos de Felipe Camarão e Henrique
Dias; nota-se também que esta reconstrução se apresenta
explicitamente como uma história da formação da nação, em que o
nacionalismo reconhecia as diferenças, mas, amalgamado pelo
catolicismo, as superava: “Em face do invasor herege, esses homens
representaram simbolicamente a união das raças que formaram o Brasil,
numa aliança prenunciadora da Paz Étnica, glorioso apanágio de nossa
Pátria” (ver ‘Figura 05’).
Do mesmo modo podemos comparar a ‘Figura 05’, do quadrinho
de Leônidas Freire ‘Os Palmares – sua destruição (1697)’ e a ‘Figura 06’,
uma ilustração de Ivan Wasth para a seção ‘A Guerra dos Palmares’.
Aqui também devemos notar na roteirização dos eventos na obra da
EBAL o seu diálogo com a historiografia e os quadrinhos de Leônidas
Freire.
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Ainda que a legenda do requadro 4 de Leônidas Freire aponte os


excessos e atrocidades dos brancos, o seu desenho retrata a luta final
com os palmarinos como um sobrepujamento dos afro-brasileiros pelos
elementos brancos (ver ‘Figura 04’).
Já a ilustração de Ivan Wasth (ver ‘Figura 06’) representa essa
batalha como uma luta entre iguais, uma contenda cruenta, mas sem
vencidos nem vencedores, se desvinculando das citações historiográficas
apenas lembradas nas legendas 155 e 156 (ver ‘Figura 06’), mas
representadas por Leônidas Freire nos requadros 4, 5 e 7: o assalto final
a Palmares, o suicídio dos últimos resistentes e a distribuição de
dinheiro ao povo como parte das comemorações pela vitória (ver ‘Figura
05’ e ‘Figura 07’).

Figura 03 – Requadro 355: Figuras de Felipe Figura 04 – Requadro 4: ‘Os Palmares – sua
Camarão e Henrique Dias. Fonte: Revista ‘O destruição (1697)’. Fonte: Revista ‘O Tico-
Tico-Tico’, nº 16, 24 jan. 1906 © 2015, BN. Tico’, nº 16, 24 jan. 1906 © 2015, BN. Todos
Todos os direitos reservados. os direitos reservados.
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Educação: Relatos de Experiências e Análises de publicações. Vol.1. Jaboatão dos Guararapes: SOCEC,
2015. 182 p.

Figura 05 – Requadro 104: Retratos de Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e Henrique Dias.
Fonte: BARROSO, Gustavo. História do Brasil em quadrinhos. 1ª Parte. Rio de Janeiro: Editora
Brasil-América, 1959, p. 26. © 1961, EBAL. Todos os direitos reservados.

Figura 06 – Requadro 155: ‘Guerra dos Palmares’. Fonte: BARROSO, Gustavo. História do Brasil
em quadrinhos. 1ª Parte. Rio de Janeiro: Editora Brasil-América, 1959, p. 36. © 1959, EBAL.
Todos os direitos reservados.
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Educação: Relatos de Experiências e Análises de publicações. Vol.1. Jaboatão dos Guararapes: SOCEC,
2015. 182 p.

Figura 07 – Requadros 5 e 7: ‘Os Palmares – sua destruição (1697)’. Fonte: Revista ‘O Tico-Tico’,
nº 16, 24 jan. 1906 © 2015, BN. Todos os direitos reservados.

A LIGA EXTRAORDINÁRIA

Voltando com o argumento de que a ‘História do Brasil em


quadrinhos’ proporcionou reuniões extraordinárias e, utilizando
novamente o ‘prefácio’ de Manoel Maurício e o ‘Intróito’ de Barroso,
quero fazer notar que as expressões “visualizar e expor os principais
episódios históricos brasileiros por meio de uma linguagem
contemporânea” e “dar vida aos acontecimentos e os homens que deles
participaram” devem ser compreendidas também como parte de um
sentido hoje perdido, mas que o campo da história ainda incorporava no
final da década de 1950 e que possibilitou a produção pelos
historiadores de obras como a ‘História do Brasil em quadrinhos’ e o
‘Atlas Histórico Escolar’ do MEC.
Os cursos de Geografia e o de História ainda não estavam
separados na Universidade do Brasil e a utilização da cartografia, um
meio visual por excelência, fazia parte da formação comum dos
historiadores e geógrafos, assim como a geopolítica, um saber que
discorre sobre a relação do espaço com os eventos humanos, também
estava incorporada aos conteúdos e raciocínios desses profissionais.
O exercício profissional daqueles que então se definiam enquanto
historiadores também não se restringia às atividades formais da
História: o próprio Manoel Maurício lecionava aulas de Geografia e de
História, trabalhou para Instituto Nacional de Imigração e Colonização,
para o Conselho Nacional de Geografia e para o Instituto Brasileiro de
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Educação: Relatos de Experiências e Análises de publicações. Vol.1. Jaboatão dos Guararapes: SOCEC,
2015. 182 p.

Geografia e Estatística antes de se tornar professor da Universidade do


Brasil.
As duas partes da ‘História do Brasil em quadrinhos’ contém
dezenas de citações à geopolítica, à geografia e à cartografia nas suas
legendas, bem como possui vários mapas reproduzidos por Ivan Wasth,
em sua maioria, das obras de Jaime Cortesão, uma das grandes
influências historiográficas sobre ‘História do Brasil em quadrinhos’
(PEIXOTO, 2014a). As próprias capas desta obra são um tributo à
visualidade e à capacidade explicativa proporcionada pela cartografia e
pela geopolítica à História (ver ‘Figura 08’).

Figura 08 – À esquerda, capa da 1ª Parte da ‘História do Brasil em quadrinhos’, à direita, capa da


2ª Parte da mesma obra. Fonte: BARROSO, Gustavo. História do Brasil em quadrinhos. 1ª Parte.
Rio de Janeiro: Editora Brasil-América, 1959; ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. História do
Brasil em quadrinhos. 2ª Parte. Rio de Janeiro: Editora Brasil-América, 1961. © 1959, EBAL;
1961, EBAL. Todos os direitos reservados.

Penso que a ‘História do Brasil em quadrinhos’ tal como a


conhecemos hoje se tornou possível porque os quadrinhos foram então
beneficiados por essas reuniões inusitadas e verdadeiramente
extraordinárias em seu caráter e raridade: tomando emprestado o título
de uma obra muito conhecida de Alan Moore, poderíamos dizer que a
Educação de Massa reuniu em torno dos quadrinhos uma ‘Liga
Extraordinária’ [The League of Extraordinary Gentlemen].
Articulada em torno do que chamou de ‘teoria unificada da ficção’
[A unified field theory of fiction], em que cada mundo de ficção inclui
potencialmente todos os mundos de ficção, Alan Moore reuniu vários
MONDENESI, Thiago Vasconcellos; BRAGA JUNIOR, Amaro Xavier. (Organizadores). Quadrinhos e
Educação: Relatos de Experiências e Análises de publicações. Vol.1. Jaboatão dos Guararapes: SOCEC,
2015. 182 p.

personagens da literatura vitoriana e edwardiana para formar um grupo


de aventureiros em um cenário ficcional que poderia ter existido como
alternativa ficcional à Inglaterra Vitoriana, cada figura e cada movimento
fiéis às suas origens, mas ressoantes com a contemporaneidade do
cenário ficcional (MILLIDGE, 2012, p. 212-219).
Sabendo que a ‘teoria unificada da ficção’ foi esboçada a partir de
outra teoria de Alan Moore, a da ‘ideia-espaço’ [idea space] da ficção, i.e,
de uma ficção contínua com a realidade [continuum of fiction], e de que
ambos os mundo se espalham porque é o nosso mundo que cria a ficção,
seria interessante colocar o término da nossa ‘Liga Extraordinária’ nos
termos de Alan Moore.
Em 22 de janeiro de 1970 Ivan Wasth fez chegar às mãos de
Adolfo Aizen uma carta de Manoel Maurício em que este pedia que seu
nome fosse retirado do frontispício da ‘História do Brasil em quadrinhos’,
junto com o prefácio que escrevera, ambas as condições prontamente
aceitas pelo Diretor Geral da EBAL (AIZEN, 1970). Ocorreu que a 2ª
Parte da obra de Manoel Maurício, cassado pela Ditadura Militar, preso e
torturado, acabava exatamente na instalação do Governo em Brasília,
mas a última reedição da ‘História do Brasil em quadrinhos’ terminava
de outro modo (ver ‘Figura 09).

Figura 09 – Requadro 397 – Retrato de Costa e Silva. ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de.
História do Brasil em quadrinhos. 2ª Parte. Rio de Janeiro: Editora Brasil-América, 1968. ©
1968, EBAL. Todos os direitos reservados.
MONDENESI, Thiago Vasconcellos; BRAGA JUNIOR, Amaro Xavier. (Organizadores). Quadrinhos e
Educação: Relatos de Experiências e Análises de publicações. Vol.1. Jaboatão dos Guararapes: SOCEC,
2015. 182 p.

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Maurício, Rio de Janeiro. Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro CP/MM Cx. 02 Ps
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ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. História do Brasil em quadrinhos. 2ª Parte.


Rio de Janeiro: Editora Brasil-América, 1961.

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2008. Disponível em <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/o-fim-
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