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O "ESTILO MODERNO": ARQUITETURA

EM BELO HORIZONTE NOS ANOS 30


E 40

Leonardo Barci Castriota


Luiz Mauro do CarmoPassos

"Que falta a Belo Horizonte para ser uma grande cidade?"


Esta é a pergunta que o Correio Mineiro faz a arquitetos e engenheiros
no início dos anos 30. As respostas, sempre otimistas quanto ao
crescimento da cidade, apontam, de um lado, a necessidade de sua
industrialização e de seu crescimento populacional e, de outro, os
problemas da ocupação de seu espaço. Para um dos arquitetos
ouvidos, Ângelo Murgel, o que faltava a Belo Horizonte era "população",
"em conformidade com o seu tamanho", acrescenta outro, Luiz
Signorelli. Esta avaliação, compartilhada por muitos entrevistados, traz
implícita a imagem de uma cidade vazia, ainda sem a intensidade de
atividades e fluxos que caracterizariam uma metrópole.

Para se atingir tal intensidade, seria necessária, em primeiro


lugar, uma grande densidade de população urbana. Esta, de acordo
com Murgel, faria "aparecer fatalmente todos os outros elementos
próprios às grandes aglomerações humanas". Em segundo lugar,
recomenda o arquiteto, "a principal atividade de nossos homens"
deveria passar "da burocracia para os empreendimentos privados",
deslocamento que não seria inviável, já que a posição de Belo
Horizonte e a sua condição de entroncamento ferroviário favoreciam o
desenvolvimento do comércio e da indústria. Em terceiro lugar, seria
necessário ainda oferecer à população uma "vida confortável", ainda
então "em grande atraso para o tamanho atual de Belo Horizonte",
principalmente em relação à "viação urbana", ao "conforto", ao
"acabamento das edificações" e à própria "vida social", esta "mínima e
provinciana".

Não obstante todas essas condições necessárias para que


Belo Horizonte se tornasse uma metrópole, o arquiteto já vislumbra um
novo horizonte prestes a descortinar-se:

Breve veremos tudo mudado: Estas ruas largas e retas cheias

1
de veículos rápidos, de povo, dessa massa anónima das metrópoles, de
grandes magazins abrindo suas vitrines vistosas, de luz intensa e
faiscante. Os prédios altos afogarão com suas linhas retas e suas massas
impressionantes a paisagem bucólica e "vergel" de hoje. E os nossos
hábitos também mudarão, seremos mais alegres, iremos mais ao cinema,
ao teatro, às casas de chá, aos footings, aos clubes, faremos sport e
seremos standardisados como todos os habitantes das grandes cidades.
Tempo virá ...1

A afirmação de quc Belo Horizonte estava "destinada a ser


um centro de indústria extrativa e manufatureira”, feita já em 1918
pelo então prefeito Vaz de Mello, vai ser ainda um los 30 e 40. Parecia
consensual que a capital mineira somente se tornaria uma “grande
cidade”, capaz de cumprir o papel que lhe havia sido destinado desde
sua fundação, na medida em que se industrializasse. Assim, quando,
em 1935, assume a prefeitura Otacílio Negrão de Lima, que já
manifestara a sua intenção de incentivar a industrialização, crescem as
expectativas neste sentido, que são respondidas, pelo menos
parcialmente, por uma série de medidas tomadas no período: isenção
fiscal e subvenções concedidas pelo governo municipal, além da
criação, por parte do governo estadual, de uma "zona industrial".
Situada ao longo das linhas da estrada de ferro Central do Brasil e
Oeste de Minas e do Ribeirão Arrudas, essa "zona industrial” logo
abrigaria mais de vinte empresas, entre as quais a Companhia de
Cigarros Souza Cruz e a Fábrica de Tecidos Finos da Companhia
Renascença Industrial. 2

Estas medidas, louvadas pela imprensa, reiteravam a ideia de


que, para a realização de sua função civilizatória, a cidade deveria
"caracterizar-se industrialmente". Anunciando em destaque que "Belo
Horizonte será uma cidade industrial", num caderno especial alusivo ao
aniversário da cidade em 1936, a Folha de Minas considerava que o
"início da construção do parque industrial de Belo Horizonte",
completaria o "ciclo" de realizações do Prefeito Negrão de Lima:

Este ciclo fechará o elo ideal de progresso, tanto no terreno da cultura


como no da produção. Estudantes e operários. Um misto de Manchester
com Sorbonne. Ao lado da Universidade e dos educandários de ensino
secundário e profissional, quer-se o desenvolvimento das indústrias.
Xessas duas realizações, está a síntese da cidade moderna, da cidade
ideal como Belo Horizonte. ³

E, de fato, desde os anos 20, com a instalação da indústria


siderúrgica próxima à capital, começara a se deslocar o equilíbrio do
Estado, que até então pendia para o Sul e a Zona da Mata. Nos anos 30

2
e 40, Belo Horizonte vai se firmar como o mais importante pólo
industrial, comercial e financeiro do Estado, consolidando-se como
centro polarizador da economia mineira. Essa mudança faz-se sentir
rapidamente em sua cena urbana, que vai ser marcada nesse período
pela formação de distritos industriais induzidos pelo Estado, pela
verticalização e remodelação de algumas áreas do centro e,
principalmente, pelo incontido crescimento da cidade planejada, que se
espalhava em todas as direções.

UM "PLANEJAMENTO RACIONAL" PARA A


CIDADE'

A ocupação desordenada do espaço urbano, com a formação


de um tecido excessivamente extenso e pouco denso, era tema
frequente nas análises sobre a cidade veiculadas pela imprensa nos
anos 30. O fato é que o processo de ocupação suburbana já vinha
ocorrendo desde os primeiros anos da Capital, estimulado pelo próprio
poder público, que exercia um controle mais rígido na área central,
impondo menores exigências para a zona suburbana. Posteriormente,
este processo foi se acentuando, com a crescente implementação de
loteamentos com precárias condições de urbanização nas periferias.
Nos anos 30, a questão ganha notoriedade, na medida em que, ao
mesmo tempo em que o alto custo dos serviços urbanos trazia ônus
para a Prefeitura, cresciam as reivindicações das vilas e bairros
populares, que dispunham de precários serviços urbanos, sofrendo até
mesmo, em alguns casos, com a fata d’água. Considerando ainda que,
após a Revolução de 30, interessava às forças políticas emergentes
criar bases de sustentação nos centros urbanos – em particular com a
eleição para a Assembléia Constituinte em 1934 e com as eleições
municipais de 1936 –, o atendimento às reivindicações populares e,
consequentemente, o planejamento da urbanização impõe-se
forçosamente para o governo municipal.

Não é de se estranhar, portanto, que neste período – em que


a forma de urbanização de Belo Horizonte aparece como um problema
– multipliquem-se na imprensa local análises da capital sob o ponto de
3
vista urbanístico, sendo frequentes artigos e entrevistas de técnicos
sobre o assunto, que, via de regra, apontam para a necessidade de um
planejamento conforme preceitos da emergente disciplina do
Urbanismo. É digno de nota que esse interesse por um “planejamento
racional” da cidade, segundo uma perspectiva “científica”, não era
especifico de Belo Horizonte, aparecendo nos anos 30 várias iniciativas
de remodelação das grandes cidades brasileiras — podendo se citar,
como exemplos, os estudos pioneiros feitos no Rio de Janeiro pelo
urbanista francês Alfred Agache (1930), em São Paulo por Prestes Maia
(1930) e no Recife por Nestor de Figueiredo, com a colaboração de
Prestes Maia. É interessante perceber, ainda, que esse período vai
marcar também, num campo mais amplo, a adoção do planejamento
social e económico pelo governo federal, após a Revolução de 30, com
a instituição de vários órgãos e planos setoriais. 5

Este tipo de preocupação foi acolhido, ainda que


parcialmente, pelo governo de Belo Horizonte, que, em agosto de
1934, cria a "Comissão Técnica Consultiva da Cidade", com a
atribuição de assessorar o Prefeito na apreciação de diversos
problemas e decisões de política urbana. A iniciativa foi enfaticamente
apoiada pelo jornal Estado de Minas, que publica então entrevista com
os arquitetos Angelo Murgel e Luiz Signorelli sobre o modo e os
problemas do crescimento urbano de Belo Horizonte. Na apresentação
da matéria, o jornal voltava a destacar a expansão suburbana como o
principal problema da cidade:

O desenvolvimento de Belo Horizonte, no sentido dos subúrbios, criou,


entre outros problemas de difícil solução, o da comunicação dos
prolongamentos urbanos com o centro da cidade e o do calçamento e
abastecimento d'água dos bairros mais afastados. (...) a Capital não se
tornou densa, de início, como acontece às grandes cidades (...) Enquanto
as ruas do centro da cidade, em sua maior parte, apresentam casas de
vastos quintais ha nos bairros um formigamento de construções
tendentes a, cada vez mais, ampliar a área da cidade ( ..) a prefeitura,
com poucas rendas, ficou impossibilitada de atender às necessidades
múltiplas que surgiam e surgem com esses acréscimos à Capital.6

Os dois arquitetos ouvidos concordavam tanto com este


diagnóstico, quanto com a possivel soluçao: para Murgel, já que o
crescimento da parte suburbana estava se “processando no descaso
completo das modernas conquistas da arquitetura e do urbanismo”,
fazia-se urgente “a criaçao do plano da Comissão da Cidade”; para
Signorelli, “a idéia mestra” da Comissão também deveria ser “a
elaboração de um plano geral, prevendo o futuro”.
4
A Comissão foi oficialmente instalada em outubro de 1934,
formada por quatro subcomissões: engenharia, arquitetura e
urbanismo, higiene e indústria e comércio. Compunham a subcomissão
de arquitetura e urbanismo os já citados Luiz Signorelli e Ângelo
Murgel, bem como Fábio Vieira e Lincoln Continentino, todos os
arquitetos e engenheiros que frequentavam as páginas da imprensa
local, opinando sobre questões urbanísticas. O "plano de urbanismo”
da capital, preconizado pelos técnicos, foi enfaticamente defendido por
Continentino, que, em junho de 1935, apresenta à Comissão uma
proposta neste sentido. Em seu trabalho preliminar, o engenheiro
aponta alguns problemas cuja "solução não pode prescindir de um
plano sistematizado e racional de expansão", dando grande ênfase à
questão dos loteamentos da região suburbana — que deveriam, a seu
ver, ser objeto de maiores exigências técnicas —, e à necessidade de
se estabelecer o "zoneamento" da cidade e de se realizar "um
inquérito perfeito sobre o tráfego", base para um plano viário mais
amplo. Como arremate à sua proposta, Continentino sugere ainda que
sejam convidados, como consultores, "técnicos experimentados",
lembrando que "no Brasil já podemos contar com urbanistas tais como
Anhaia Melo, Armando de Godoy, Washington Azevedo e Prestes
Maia".7 No entanto, como é comum na administração pública
brasileira, as questões emergentes e pontuais terminaram por se
sobrepor às tentativas de um planejamento mais abrangente: a
Comissão, que funciona intensamente nos dois anos seguintes à sua
criação, não se dedica à elaboração de um plano sistemático,
restringindo-se à análise de questões isoladas e à definição de
algumas prioridades para a ação da Prefeitura, como a criação do Paço
Municipal, rede de esgotos, a abertura da 'Avenida Sanitária" (Pedro
11), na Lagoinha, e a canalização dos córregos do Acabamundo e do
Leitão. Na administração Negrão de Lima (1935/1938), a Comissão da
Cidade ainda toma algumas medidas restritivas a novos loteamentos,
que, no entanto, vão ter efeito inverso ao esperado, avolumando-se o
lançamento de novas vilas sem a aprovação da Prefeitura.

Alguns anos mais tarde, porém, durante a administração do


Prefeito José Osvaldo de Araújo (1938/1940), o engenheiro Lincoln
Continentino vai ter a oportunidade de desenvolver suas ideias, sendo
encarregado da elaboração de um “plano de urbanismo da cidade”, 8
como preconizara. Esse projeto, apresentado no 1 Congresso Brasileiro
de Urbanismo (Rio de Janeiro, 1941), exemplifica bem, a nosso ver, a
perspectiva dominante entre os técnicos do período: partindo da
5
necessidade de consolidação e aumento da densidade da ocupação de
Belo Horizonte, reúne um conjunto sistemático de diretrizes que
previam uma minuciosa reforma da cidade, mantendo-se, porém, sem
grandes alterações, sua estrutura geral. Assim, o plano vai ter como
pólo articulador a ideia da “centralização da cidade dentro do
perímetro atual”, recomendando que “não fossem mais aprovados
novos projetos de subdivisão de terrenos, fora deste perímetro”.
Dentro desse perímetro, o plano de Continentino propunha uma ampla
reforma do sistema viário, com um ambicioso “Plano das grandes
avenidas”, que, ligando a zona urbana com a suburbana e cidades
vizinhas, configuraria “um sistema de artérias radio-concêntricas,
distantes entre si cerca de um quilometro, prolongando-se algumas
das adiais da cidade e projetando-se uma segunda periférica,
envolvendo a Avenida do Contorno”. É interessante perceber aqui,
como, na tentativa de equacionar sistematicamente algumas das
dificuldades trazidas pelo Plano de Aarão Reis e pela ocupação
posterior da cidade, Continentino chega a apontar para algumas
soluções que vão sendo incorporadas pelas administrações seguintes.
Assim, propõe, entre outros, o prolongamento da Avenida Amazonas,
da Avenida dos Andradas, formando uma "avenida parque" ao longo
do Ribeirão dos Arrudas e da Avenida Afonso Pen nos dois sentidos
(atravessando a Serra do Curral, com um túnel em direção à Nova
Lima, e cruzando o Arrudas rumo ao norte, em direção à Avenida
Pedro I); o alargamento e prolongamento das avenidas Pedro I (atual
Antônio Carlos) e Pedro II; a criação da Avenida Santa Tereza (atual
Francisco Sales), ligando as avenidas Tocantins (atual Assis
Chateaubriand) e Brasil, com um “viaduto sobre a Avenida dos
Andradas e sobre as linhas férreas da Central”, além da criação de um
“Circuito do Turismo”, uma segunda avenida periférica, “passando por
vários pontos dominantes (altos) da cidade, que apresentam
perspectivas surpreendentes”. Também o sistema ferroviário vai ser
considerado no plano, como uma proposta de grande envergadura,
que objetivava a transferência das linhas férreas superficiais do centro
urbano para a periferia, onde seriam localizados terminais conectados
a um sistema de trens eletrificados, “de preferencia, por linhas
subterrâneas”. A estação de passageiros continuaria no mesmo local,
porém substituída por um outro prédio maior, “em estilo norte-
americano”. Quanto ao transporte intra-urbano, a preferência é pelo
ônibus, situando-se a sua estação nas vizinhanças da Feira de
Amostras, “junto à grande radial (Avenida Afonso Pena) e à avenida
periférica (Contorno)”.

O plano previa ainda uma “reforma dos arruamentos


existentes”, principalmente daqueles não edificados, buscando
6
imprimir nos bairros o “caráter de cidade celular”, provendo-os de
serviços urbanos, de modo a torna-los independentes do centro. Ao
mesmo tempo, estabelecia um “zoneamento” para a cidade, marcado
pela especialização de áreas em usos restritos (zona comercial,
industrial, hospitalar, residencial e parques), com a existência também
de “zonas de transição” ou “mistas”. Essas ideias seriam sintetizadas
num novo bairro, a “Cidade Jardim Fazenda Velba”, que, concebido a
partir dos princípios do urbanismo moderno, em sua vertente norte-
americana, reuniria as condições ideais das células imaginadas pelo
urbanista. Assim, esse bairro teria seu traçado viário adequado às
condições topográficas, com quarteirões retangulares longos e de
profundidade reduzida, lotes amplos (1000 m²) e um afastamento
mínimo das construções igual a 10 metros, não sendo permitidos
muros divisórios, contando ainda com “um parque local, atravessando
pelo córrego do Leitão, [...] e envolvendo a sede da Fazenda Velha,
único prédio remanescente do antigo arraial”.9 Também esta ideia vai
ser implementada, com algumas modificações, pela gestão seguinte –
de Juscelino Kubitscheck de Oliveira, que implanta ali o museu da
cidade.

REMODELAÇÃO URBANA E VERTICALIZAÇÃO


Ao longo da década de 20, a maior parte das obras de
urbanização empreendidas pelo poder público em Belo Horizonte
foram no sentido de consolidar a estrutura lançada a partir da "Planta
Geral" de 1895, não totalmente implantada. Além dessas, realizaram-
se também algumas obras que possibilitavam a expansão da cidade: a
ampliação do sistema de bondes em direção a bairros suburbanos
como Serra, Calafate, Gameleira, Matadouro, Bonfim, Prado e Santo
António, a inauguração do primeiro serviço de auto-ônibus e do
primeiro viaduto da cidade — o de Santa Tereza, ligando o centro ao
bairro da Floresta e o início das obras de uma avenida sanitária na
Lagoinha, ao Norte, em direção à região da Pampulha. A partir de
meados da década de 30, principalmente com as obras empreendidas
pelo prefeito Otacílio Negrão de Lima, parece haver uma inflexão neste
rumo, com o discurso e as medidas relativas à urbanização de Belo
Horizonte passando a ter como objeto a remodelação da cidade.

Um marco emblemático desta remodelação foi a


centralização das linhas de bondes na Praça Sete, onde se implantou
uma nova "estação central", o que veio a resultar no deslocamento
para esta praça do "centro" da cidade, até então identificado à região
conhecida como "Ponto", entorno do encontro da Avenida Afonso Pena
7
com Rua da Bahia. Após uma série de estudos, que cogitavam
interligar a antiga estação de bondes às linhas que passavam pelo
Viaduto de Santa Tereza, técnicos da Municipalidade e da Companhia
Força e Luz concluíram, em 1935, pela centralização do tráfego de
bondes na Praça Sete de Setembro, através da implantação de um
"moderníssimo" terminal-circular em torno do obelisco da praça.
Segundo reportagem da época, para "evitar o congestionamento nos
centros de movimento mais acentuado e os retardamentos nocivos aos
despachos dos carros, os técnicos nas cidades mais importantes do
mundo têm recorrido aos terminais em forma de círculo".10 A
transferência da estação central de bondes do "Ponto" para a Praça
Sete veio marcar o deslocamento do "centro" da cidade, o que já em
dezembro de 1936 confirmava a imprensa: "A Praça Sete é hoje o
centro da cidade, por onde pulsa a sua trepidação operosa."11 Daí em
diante, são inúmeras as alusões em crónicas e reportagens ao papel
da Praça como centro da metrópole, que é reforçado ainda mais com o
prolongamento da Avenida Amazonas em direção à Cidade Industrial,
no início dos anos 40.

Entre as iniciativas do poder público neste período, ainda


cabe destacar a construção da Praça Raul Soares, erguida para sediar
o II Congresso Eucarístico Nacional, que, em 1936, reuniu na cidade
100 mil fiéis. Apesar de prevista na planta original de Aarão Reis, onde
aparecia como Praça 14 de Setembro, aquele local não contava com
qualquer infra-estrutura, que vai ser implantada às pressas, a partir de
um projeto de Érico de Paula. Com o Congresso, inaugura-se também
ali uma fonte luminosa de construção estrangeira, com várias cores e
jatos, que passa a ser vista como mais um símbolo da modernização
de Belo Horizonte. A implantação da Praça, aliada ao prolongamento
da Avenida Amazonas, consolida, então, o vetor oeste de crescimento
da cidade.

Ao lado dessas ações de iniciativa estatal, a segunda metade


dos anos 30 foi marcada ainda por um notável incremento na
construção de edifícios privados e, principalmente, pelo aparecimento
de um novo modo de edificação — os edifícios em altura. Assim, em
1935, são construídos em Belo Horizonte dois edifícios que atingiram
pela primeira vez o patamar dos dez pavimentos: o edifício da Feira
Permanente de Amostras (Raffaello Berti) e o edifício de escritórios
Ibaté (Angelo Murgel). Apesar de poucos edifícios verticais terem sido
erguidos na década de 30, eles eram vistos com grande empolgação,
como uma evidência do progresso da capital, colocando-a no patamar
das duas maiores cidades brasileiras — Rio de Janeiro e São Paulo —,
onde, já desde os anos 20, erigiam-se edifícios altos em concreto

8
armado, como o edifício de A Noite (Emílio Baumgart, 1928) e o
Martinelli (Fillinger, 1924/1929), recordistas em altura no Brasil da
época, com seus 24 pavimentos. A construção de arranha-céus em
Belo Horizonte iniciava, como prescreviam os urbanistas, uma
ocupação mais densa do centro, contando, para isso, com o aval do
poder público. Já em 1922, a legislação urbanística da capital havia
sido mudada, passando a permitir a verticalização e um grande
aproveitamento dos lotes da área central: os limites de altura máxima
das edificações, que pelo Regulamento de 1901 era de três
pavimentos, são elevados, passando-se a permitir edifícios com até 25
pavimentos nas vias de 25 metros de largura, 35 pavimentos nas
avenidas de 35 metros e, na Avenida Afonso Pena, de 50 metros de
largura, edifícios com até 50 pavimentos. É interessante observar aqui
que esses limites — extraordinariamente elevados quando
comparados seja aos do regulamento anterior seja às construções
empreendidas no Rio e em São Paulo na época — expressavam muito
mais o interesse e as expectativas do poder público em relação à
verticalização e adensamento da zona urbana do que a uma efetiva
demanda do mercado. Assim, não é de se espantar que essa
regulamentação termine por não produzir nenhum efeito concreto no
sentido da verticalização, num primeiro momento.12

A partir de meados da década de 30, porém, o quadro muda,


iniciando-se o que à época ficou conhecido como o "ciclo do arranha-
céu", com grande repercussão na cidade, como se pode constatar
pelas inúmeras apreciações do fenómeno registradas na imprensa
local. Pela primeira vez a predominância do "arvoredo" e da "chatice
do casario" era alterada pelas "superfícies lisas e claras dos altos
edifícios". Como se pode ver particularmente bem na comemoração do
cinquentenário, em 1947, a "volubilidade fisionómica" da cidade é
encarada como um valor altamente positivo, sendo os aranha-céus
recém-erguidos erigidos à condição de símbolos do "vertiginoso
progresso" que marcava o ingresso de Belo Horizonte na condição
metropolitana. Não era incomum se enunciar, como no artigo "Belo
Horizonte. A Metrópole de 50 anos": "O aranha-céu vai se
multiplicando e vencendo. A marcha do progresso é firme e nítida.
Cinemas, casas de apartamentos, hotéis, edificações que se perdem
de vista."13

O ART DÉCO E A ARQUITETURA PÚBLICA


É com essa cidade — bastante diferente daquela de sua
visita nos anos 20 — que se depara Mário de Andrade, quando retorna
9
a Belo Horizonte em 1940: uma cidade já formada, sem aquele "ar de
coisa recém-inaugurada", tendo desaparecido "o aspecto de feira
internacional". O tempo já se encarregara de dar a Belo Horizonte uma
certa "patina":

Apesar de sua suntuosidade natural, daquela grave nobreza que lhe vem
das suas árvores incomparáveis e das suas avenidas, Belo Horizonte é
hoje uma cidade intensamente humana, sem aquele ar exclusivo de
festa, onde a vida se processa sem preparos especiais; tristezas e
alegrias, dores e aventuras se misturam, nessa fraternidade esquecida
com que cada qual disputa o seu destino. Hoje o forasteiro não "vê" mais
Belo Horizonte, porque a vive. À cidade não é mais um problema de
urbanização forçada, que atrai nossa curiosidade e nossa crítica. Hoje,
Belo Horizonte é uma cidade como as outras e o que ela tem de
excepcional ou de melhor não são teorias aplicadas — as próprias teorias
foram patinadas pelo tempo e desapareceram — mas conquistas
profundamente humanas. 14

De fato, como vimos, desde os anos 20, Belo Horizonte


mudara significativamente, tendo há muito superado a sua condição
de mera cidade administrativa, consolidando-se como importante pólo
de comércio e serviços e caminhando em direção à industrialização. A
sua fisionomia arquitetônica também sofria transformações,
adaptando-se a esses novos tempos: a partir dos anos 30, a cidade vê
surgir uma série de edificações em "estilo moderno", que com sua
ornamentação geométrica e arrojados jogos de volumes, queriam ser
contemporâneas das transformações em curso. É curioso que essa
arquitetura — que se pretendia moderna e que marca a cena urbana
belo-horizontina nos anos 30 e 40 — tenha tido uma fortuna crítica
desfavorável, aparecendo na historiografia da arquitetura moderna
brasileira — sob uma ótica negativa — como uma variante sem maior
importância ou interesse. Apenas recentemente alguns autores têm
começado a apontar a unilateralidade e parcialidade dessa
historiografia, que, ao erigir como paradigma de qualidade e
significação as obras derivadas da visita de Lê Corbusier ao Brasil —
pertencente à corrente que se torna hegemónica após 36 —, criaria
uma narrativa teleológica da evolução da arquitetura em nosso país.
Nesta linha, por exemplo, Günter Weimar, aponta o "mito", alimentado
por essa narrativa canónica, segundo a qual a arquitetura
efetivamente brasileira teria começado no ciclo mineiro, sendo as
obras realizadas anteriormente, interpretadas como uma mecânica de
transplantação para o país da arquitetura de Portugal — uma espécie
de "pré-história" da verdadeira arquitetura brasileira. Corolário de tal
tese, ter-se-ia o mito de que somente a arquitetura barroca — além da
modernista, naturalmente — tinha dignidade, sendo o século e meio
entre os dois períodos taxados como "de uma esterilidade total e,

10
portanto, indignos até de serem citados".15
À recepção negativa que a historiografia reserva à
arquitetura desse período, vem se juntar o quadro complexo que essa
apresenta: de fato, nos anos 30 e 40, encontram-se convivendo na
cena arquitetônica belo-horizontina os últimos avatares do ecletismo, o
chamado "estilo moderno", mais tarde conhecido como art déco — que
se torna hegemónico — e os primeiros exemplares de uma variante do
modernismo vanguardista. E o que é mais interessante: muito mais
que uma oposição frontal entre estilos e perspectivas antitéticas,
parece possível identificar no período um leque de atitudes, onde as
áreas de interpenetração entre uma e outra paleta constituem o que
há de mais característico. Aproximação, superposição, diluição —
ideias que nos permitem pensar um período de buscas, em que a
única certeza era o esgotamento do academicismo e do ecletismo
classicizante do início do século. É neste sentido, que um historiador
da arquitetura latino-americana como Ramón Gutierrez pode
aproximar fenómenos aparentemente tão díspares como o art
nouveau, as "restaurações nacionalistas", como o neocolonial, e o art
déco, que teriam como traço comum uma "ruptura com o
academicismo", "ainda que seus planos de conflito não sejam
similares, oscilando entre uma dialética conceituai e uma disputa
sobre modelos formais".16
No que se refere à variante "moderna" hegemónica nessa
época, a complexidade do período reflete-se na própria denominação a
empregar: o termo art déco, hoje largamente difundido, é recente —
foi utilizado nesta acepção apenas a partir do final da década de 60,
quando Bevis Hillier o popularizou com a publicação de seu livro Art
Déco (1968) — e controverso — muitos autores não o consideram
propriamente um estilo, ou fazem uma série de distinções internas à
ideia.17 (Cabe notar que no período essa arquitetura é conhecida em
Belo Horizonte como "cubista", "futurista" ou simplesmente
"moderna".) Como denominação geral para a arquitetura "moderna"
que começa a dominar a cena urbana belo-horizontina no período, no
entanto, o termo art déco parece-nos adequado: ao remeter
imediatamente à "Exposição de Arte dustrial e Decorativa Moderna",
acontecida em Paris em 1925, remete-nos imediatamente também
déia de um "estilo moderno", que vai ser a tônica desse evento. Em
contraposição à Exposição anterior, de 1900, a de 1925 não deveria
ser, de acordo com seus organizadores, uma exposição historicista,
mas voltada para o futuro, "aberta para todos os fabricantes cujo
produto é artístico no caráter e mostra claramente tendências
modernas". Assim, nos pavilhões da exposição patrocinados pelas
grandes lojas de departamento francesas —Lês Grands Magazins du
11
Louvre, Bon Marche, Lês Galleries Lafayette e Lê Printemps —
expuseram-se objetos que refletiam o novo estilo, que se queria
artístico, industrial e moderno. É interessante perceber, ao analisar os
pavilhões construídos, a influência difusa de traços da vanguarda
arquitetônica da virada do século: ausência de motivos clássicos,
simplificação de formas, ortogonalidade, jogos com volumes. Aquilo
que duas décadas atrás — na obra da primeira geração de arquitetos
modernos — era recebido como excentricidade, ajudava agora a
vender móveis, papéis de parede e objetos de decoração sofisticados.
Se ainda não se aceitava de todo a crítica radical das vanguardas à
tradição, e suas formulações plásticas ascéticas, o período do entre-
guerrras também não mais se sentia ligado ao passado ou à linguagem
clássica, tornando-se necessário, como nos aponta Roberto Segre,
"tornar a propor um novo sistema de signos identificadores da alta
burguesia, mas que se inserissem ao mesmo tempo nos parâmetros
estabelecidos pela estética da máquina sem renegar os supostos
valores universais da cultura clássica".18 Assim, com o art déco logra-se,
como bem resume Aracil, "uma síntese figurativa que, incorporando
soluções formais de vanguarda, consegue criar um amplo repertório de
imagens de fácil assimilação entre amplas camadas da população".19
A partir dos anos 30, essa arquitetura chega a Belo Horizonte
e se difunde largamente, alcançando em 1935 a própria arquitetura
oficial: o projeto vencedor do concurso para o novo Palácio da
Municipalidade, de autoria do arquiteto Luiz Signorelli, vai ter, como
anuncia uma revista da época, sua "fachada lançada em linhas
modernas, obedecendo na sua estrutura e no seu conjunto os moldes
da arquitetura contemporânea".20 (Num outro artigo, publicado na
Folha de Minas, em 25 de dezembro de 1936, o edifício — então em
construção — também é descrito como sendo "em sóbrio estilo
moderno" e com "todos os requisitos de conforto e disposição
racional", chegando a ser saudado como "a vitória da arquitetura
racional em Minas".) A mudança da sede do governo municipal é sinal
de uma cidade que crescera: a antiga Prefeitura, que passou a sediar o
Arquivo Público Mineiro, tornara-se pequena, e, como alegara Negrão
de Lima em seu relatório anual, "não era dado ao Prefeito receber,
decorosamente, na sede da Administração, visitas ilustres".21 Esse
edifício vai expressar bem, a nosso ver, a atitude dominante no
período: elementos e preocupações "modernos" mesclam-se a uma
lógica compositiva e projetual ainda parcialmente tradicional. Assim,
ao mesmo tempo em que, em artigo publicado na época, enfatiza-se o
uso do concreto armado _ que permite grandes vãos —, de grandes
vitrais "basculantes e modernos", e de um "moderno" telhado de vidro
e concreto que encima "um amplo salão central", solução "prática e
lógica" para um edifício público,22 permanecem elementos tradicionais
12
— o tema da torre do relógio municipal, a predominância das massas
sobre os vazados e a presença de elementos monumentais, como o
pórtico e a escadaria de entrada.
Neste sentido, é interessante comparar o projeto de Signorelli
com duas outras construções contemporâneas: a Casa d'Itália
(Raffaello Berti, 1935) e o prédio dos Correios e Telégrafos (José Story
dos Santos, 1936/1939), que representariam combinações diferentes
entre elementos tradicionais e modernos. A primeira, localizada à Rua
Tamoios e que mais tarde passa a abrigar a Câmara dos Vereadores,
mostra exemplarmente como a modernidade ainda penetra
timidamente: se, por um lado, incorpora materiais e elementos visuais
modernos, por outro mantém uma lógica compositiva tradicional e
explora com muita parcimônia os recursos técnicos disponíveis. Neste
caso, é importante perceber como a edificação de uma imponente
Casa d 'Itália testemunha não só a importante presença dos italianos e
seus descendentes em Belo Horizonte, mas principalmente a política
de aproximação Itália-Brasil, que se ensaiava nesse período, e que,
reforçada durante o Estado Novo, refletia a identificação comum a
políticas modernizadoras. A atitude ambígua que apontamos pode ser
percebida a partir da própria composição em planta da "Casa d'Itália":
se, por um lado, a sua resolução em blocos (com o destaque para o
salão de festas), aponta para uma setorização mais nítida — como
propugnada pela arquitetura moderna, por outro, pode-se perceber
ainda um claro eixo de simetria central, ao longo do qual se articulam
as divisões internas da edificação, que se mantêm em módulos muito
acanhados. Também em relação à fachada, a mesma atitude: ao
mesmo tempo em que sua composição mantém-se "clássica", com a
tradicional tripartição, recebendo o bloco principal marcação vertical
em seu centro, ladeado por dois blocos laterais proeminentes, sua
imagem e os elementos decorativos são modernos, geométricos,
emprestando à entrada um caráter de dinamismo e força. Também a
técnica quer ser moderna: o único texto que acompanha o projeto na
sua publicação na revista "Arquitetura" (1935) chama a atenção para
os materiais — modernos — e seus fornecedores. "Foram empregados
neste prédio os seguintes materiais: cimento Perus, fornecido por
Rezende Rache & Cia. Ferros, fabricados pela Siderúrgica Belgo-
Mineira."23.
O prédio dos Correios e Telégrafos, por sua vez, parece se
prender menos às soluções tradicionais, apresentando uma pesquisa
formal mais arrojada e claras preocupações funcionais. Construído no
final dos anos 30, essa edificação retraia bem a remodelação urbana
pela qual passava Belo Horizonte, a que nos referimos anteriormente:
ao mesmo tempo em que se inauguravam o novo Palácio da
13
Municipalidade, o Parque Santo António (conjunto esportivo que viria a
dar origem ao Minas Ténis Clube), um Matadouro Modelo, o Viaduto da
Floresta e se deslocava a "estação central" dos bondes para a Praça
Sete, o Relatório de Prefeito de 1937 anunciava estar entre os planos
do governo a construção de uma nova sede para os Correios e
Telégrafos, devendo a antiga — uma imponente edificação eclética —
ser demolida. Retraía também um desejo de modernização dos
serviços públicos em nosso país, com o fim da República Velha: nos
anos 30, como anola Hugo Segawa, conceitos como funcionalidade,
eficiência e economia na arquitetura, "termos próprios de equações
racionalistas", passam a ter firme aplicação em obras públicas em todo
o Brasil, "boa parte delas projetos de repartições oficiais de engenharia
e arquitetura".24 Nesta direção trabalhava o então Departamento de
Correios e Telégrafos, que se empenhava num ambicioso projeto de
normalização arquitetônica, projetando e construindo sedes regionais
nas capitais e agências nas principais cidades brasileiras: Belém, São
Luiz, Fortaleza, Natal, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba,
Florianópolis, entre outras. Localizado estrategicamente na Avenida
Afonso Pena, a principal da cidade, ao lado da Prefeitura Municipal, a
edificação dos Correios apresenta uma composição moderna,
movimeniada em diversos volumes — geometrizados e simplificados
— que a compõem, numa combinação de linhas retas e sinuosas.
Internamente, é marcada por uma setorização clara, articulando-se em
torno de um amplo e funcional salão de alendimento, possibilitado pelo
uso de concrelo armado.

BELO HORIZONTE, PÓLO DE SERVIÇOS


Essa mesma preocupação com a funcionalidade e esse
mesmo desejo de modernidade marcam a construção de uma série de
hospitais nesse período, que usam o novo estilo para expressar uma
nova concepção de medicina. Caso paradigmático é o da construção
da nova Santa Casa de Misericórdia (Raffaello Berti, 1948), já na
segunda metade dos anos 40. Fundada em 1899, aquela instituição
ainda se mantinha na década de 40, organizada em pavilhões, que
vinham se agrupando desde 1908. Avaliando-se como insustentáveis
as condições, e contando-se com o parecer de um especialista do
Ministério da Educação e Saúde, Prof. Sousa Campos — que anuncia
uma "era de renovação hospitalar" —, conclui-se pela necessidade de
uma nova construção, compatível com as exigências da
"hospitalização moderna". O projeto, do arquiteto Raffaello Berti, opta
pelo sistema centralizado, tipo monobloco, concentrando-se o conjunto
hospitalar em um único bloco de 14 pavimentos. O texto explicativo do
14
projeto defende a escolha, enfatizando a grande economia na
construção e na administração:

A administração é centralizada, evitando multiplicação de serviços iguais;


o transporte dos doentes e do pessoal é facilitado no sentido vertical por
elevadores, o movimento de roupa suja e limpa, em tubos de queda e de
monta-cargas. A distribuição de alimentos faz-se mais rapidamente
através de monta-cargas; enfim, o transporte vertical mecânico é mais
rápido do que o horizontal.25

Belo Horizonte firmava-se cada vez mais como um pólo de


serviços, reafirmando sua vocação nas áreas da saúde e da educação.
Os novos hospitais e escolas construídos nesse período oferecem-nos
exemplares significativos do art déco, pelo menos até o final da
década de 40. Assim, no campo hospitalar são dignos de nota o
Hospital Municipal de Belo Horizonte (atual Hospital Odilon Behrens)
(Raffaello Berti, 1944/1945), cujas obras se iniciam ainda no governo
Juscelino Kubitscheck, organizado num partido já moderno, com clara
setorização, mantendo, no entanto, um decorativismo geométrico de
inspiração déco e o hall da Casa de Saúde São Lucas (Angelo Murgel,
1939), que, com sua decoração elaborada, contrasta com a
composição geral da edificação, em volumes elementares, desprovidos
de ornamentos e rasgados por largas aberturas contínuas,
aproximando-se já do racionalismo purista que caracterizaria a
próxima etapa arquitetônica.

O processo de modernização também alcança com força a


área da educação, surgindo, em todo o Brasil, neste período,
estabelecimentos escolares em estilo "moderno", com linhas
geometrizantes e preocupações funcionalistas. Esta tendência é tão
forte que, em estados como o Rio de Janeiro e São Paulo, chegam
mesmo a ser implementadas políticas públicas específicas para tal fim,
criando-se um novo modelo de prédio escolar, que obedecia a uma
série de tópicos funcionais, programáticos e pedagógicos — orientação
do edifício e desenhos de janelas, organização do programa mínimo de
dependências, acabamentos.26 Se na década de 20, o nacionalismo
levara à adoção do neocolonial nos edifícios escolares — bem
exemplificado em Belo Horizonte pela Escola Estadual Pedro II (Carlos
Santos / Paulo Costa, 1926) —, nos anos 30 impõe-se a arquitetura
moderna. Nesta linha, cabe destacar a ação de Romeo de Paoli, autor
do Colégio Santo Agostinho (1935), Colégio Imaculada Conceição
(1936) e Colégio Nossa Senhora do Monte Calvário (1937), e de
Raffaello Berti, responsável pêlos colégios Marconi (1938/1941),
Izabela Hendrix (1937/1939) e Batista Mineiro, todos apresentando
características dessa nova arquitetura. Não se pode esquecer aqui
que, nos anos 30, o governo de Getúlio Vargas, através de Francisco
15
Campos e Gustavo Capahema, articula um projeto moderno de
educação para a nação brasileira, declarando como prioridade encarar
de frente aquilo que o próprio presidente classificava como "a grande
chaga nacional": o despreparo causado pela deficiência da estrutura
educacional do país. Segundo Helena Bomeny, em interessante estudo
sobre o período, impõe-se aqui a ideia do predomínio do Estado como
centro controlador e regulador das atividades de educação e cultura,
instâncias que passam a ser vistas como precipuamente direcionadas
para a formação de cidadãos.27

Um componente importante deste projeto educacional vai


ser o cultivo do corpo: pela Constituição de 1937, ao lado do ensino
cívico, torna-se obrigatória a educação física em todas as escolas
primárias, secundárias e normais do país. Cria-se a Comissão Nacional
de Desportos (1939), e se espalham pelo Brasil inúmeros centros de
recreação, parques infantis e instituições destinadas "ao preparo dos
jovens" como a Juventude Brasileira (1940). Em Belo Horizonte, a
fundação do Minas Tênis Clube ilustra bem este viés: no discurso de
sua inauguração, o próprio Presidente da República, ao elogiar a
iniciativa do interventor Benedito Valadares, que estaria
"perfeitamente identificada com as diretrizes renovadoras do regime
de 10 de dezembro", fala das "legiões moças do Brasil, sadias e
destemerosas, levando nas mãos ágeis e no ânimo viril o glorioso
destino dos forjadores de uma grande Pátria".28 Localizado numa área
próxima ao Palácio da Liberdade, prevista para ser o Jardim Zoológico
da cidade, sua construção se dá em duas etapas: em 1937, inaugura-
se o Parque Esportivo, de autoria de Romeo de Paoli, e em 1940, a
sede social, do arquiteto Raffaello Berti. As instalações deste clube,
que logo se tornaria importante pólo da vida social da cidade,
constituem um dos mais significativos conjuntos arquitetônicos do
período, sendo percebido também como um dos signos da
modernidade de Belo Horizonte, que passava a contar com um
conjunto esportivo à altura. Assim, por exemplo, um jornal da época
vai descrever o vestiário como "um suntuoso edifício de arquitetura
moderna e aspecto imponente e alegre e que obedece a todos os
preceitos de higiene e regulamentos internacionais na prática do
esporte da natação".29 Já em relação à sede, cabe chamar a atenção
para o trabalho com os volumes realizado pelo arquiteto,
predominando na fachada as linhas puras e os volumes geométricos.
Não se tratava, simplesmente, de uma arquitetura decorada: os efeitos
eram conseguidos pelo jogo volumétrico e pêlos materiais, podendo-se
destacar ainda nas fachadas a presença de elementos inovadores
como os brises-soleil e amplas superfícies envidraçadas.30 Cabe ainda
destacar aqui o cuidadoso tratamento do interior do edifício, que

16
recebe um tratamento artesanal de qualidade. Este vai ser o caso do
salão-restaurante, no primeiro andar, que mantém ainda hoje suas
características estilísticas, apresentando trabalho decorativo em
madeira (imbuia) nas vigas do teto, nas colunas e no barrado das
paredes e balcões. O cuidado no tratamento estende-se ao próprio
mobiliário, que se harmoniza com a composição, formando o encosto
em couro das cadeiras desenhos geométricos de inspiração indígena.

D IV ER SÃO PA R A AS M AS SA S
Como observado, o déco ligara-se, desde o seu início, à ideia
de modernidade, espalhando-se sob este signo pela Europa e pelas
Américas. Em todas as latitudes, este estilo parece se prestar bem às
novas exigências de uma sociedade que se via às voltas com a
mecanização de seu cotidiano, sendo utilizado num sem número de
edifícios verticalizados, indústrias, estações de hidroaviões, e outras
tipologias relacionadas com os novos tempos. Para Roberto Segre, a
sua identificação com o mundo industrial e seu vínculo com a moderna
tecnologia da construção vão dar às suas formas "um sentido de
modernidade, de projeção para o futuro".31 Aqui vai ser
particularmente digno de nota como esse "estilo moderno" parece
adequado para o caso dos cinemas, onde o geometrismo déco
substitui a ornamentação clássica até então dominante: de Nova
Iorque a Paris, de Dacar a Buenos Aires, por toda a parte, fachadas
atraentes com linhas aerodinâmicas convidavam a assistir aos filmes
americanos, que se impunham no período. Vivia-se a era dos grandes
estúdios e produções de Hollywood, com filmes como "No Tempo das
Diligências", "Ninotchka", "E o Vento Levou ..." e "Casablanca" atraindo
multidões. No Rio de Janeiro, a revista Arquitetura e Urbanismo
apresentava com entusiasmo os novos cinemas Ipanema e Metro,
chamando a atenção para os seus aspectos modernos, funcional e
decorativamente. Em 1940, uma revista de Belo Horizonte saudava o
cinema como "a grande diversão, a popular, a acessível, a que todos
gostam (...)", explicando tal preferência pela sua capacidade de
"proporcionar de certo modo todas as sensações".32

"Majestoso" — tal foi o termo empregado pela imprensa local


ao apresentar ao público belo-horizontino, em 1932, a nova sala de
exibição da Empresa Cine Teatral Ltda, o Cine Brasil (Angelo Murgel).
E de fato, aquela casa de espetáculos causa sensação na cidade, tanto
por sua linguagem moderna incomum, quanto pelo seu arrojo técnico,

17
ao lançar mão de uma estrutura de inéditos oito pavimentos.
Implantada estrategicamente em terreno de esquina da Praça 7 de
Setembro, o Cine Brasil passa a simbolizar uma nova atitude
construtiva na capital mineira, tanto por sua altura, quanto pela
maneira aerodinâmica com que o seu volume curvo resolvia o tema
tradicional da esquina. Esse papel de símbolo e umbral é reconhecido
num artigo de 1936, do jornal Folha de Minas, onde se avalia que com
aquela construção teria se encerrado o "ciclo do tijolo" em Belo
Horizonte, inaugurando-se o "ciclo do cimento armado", que "teve sua
realização máxima nesse edifício grandioso".33 E, de fato, projetado
pelo arquiteto Ângelo Murgel, em sua construção unem-se
pioneiramente atores que, nos anos seguintes, vão desempenhar um
importante papel neste novo "ciclo": o calculista Emílio Henrique
Baumgart, — que, mais tarde, vai ser conhecido como o "pai do
concreto armado", por suas realizações com esse material, tendo
colaborado com Lúcio Costa e Oscar Niemeyer na renovação da
arquitetura brasileira —, e a firma "Cia Alfredo Carneiro Santiago",
responsável por inúmeras edificações em concreto armado neste
período.34 Não vai ser por acaso que, em 1936, jovens artistas
escolhem o andar térreo daquele edifício para a "Exposição de Arte
Moderna", mais conhecida como "Salão do Bar Brasil", por se realizar
— transgressivamente — no bar ali localizado. Organizada pelo artista
plástico Delpino Jr., essa exposição também representa um marco na
introdução do "estilo moderno" nas artes plásticas de Belo Horizonte,
reunindo nomes como Jeanne Milde, Renato de Lima, Érico de Paula,
Monsã a jovens arquitetos e estudantes de arquitetura como J. Coury,
Hardy Filho, Remo de Paoli, Shakespeare Gomes e Santólia.35

No lado oposto da paleta de atitudes, vamos encontrar


aqueles cinemas onde os signos de modernidade se localizavam
basicamente em seu sistema ornamental — as linhas e diagonais que
decoram suas fachadas e interiores, num procedimento não muito
diferente daquele dos estilos historicistas do século XIX. Esta mesma
lógica explica também a facilidade de "adaptação" ao novo estilo das
edificações ecléticas, que são "modernizadas", ganhando
ornamentação geométrica em suas fachadas. Este vai ser o caso do
Cine Metrópole (1942), que mostra com perfeição a compatibilidade
entre um edifício originalmente em estilo eclético e a nova
ornamentação geometrizante. No final dos anos 30, pensava-se em
uma simples reforma do antigo Teatro Municipal, encomendando-se a
um técnico da própria Prefeitura Municipal, Érico de Paula, o "desenho"
da fachada, com a intenção de se modernizar estilisticamente o
edifício. No entanto, ao assumir a Prefeitura, no início dos anos 40,
Juscelino Kubitscheck decide dotar Belo Horizonte de "obra melhor e

18
mais moderna", e o prédio é colocado em hasta pública. Arrematado
pela Empresa Cine Teatral, tem sua destinação transformada,
prevendo-se ali a construção de um "luxuoso cine-teatro, com ar
condicionado, poltronas estofadas etc., para lançamento na Capital,
em primeira-mão, de películas de qualidade".36 Ao ser contratado para
executar o projeto, o arquiteto Raffaello Berti encontra praticamente
tudo pronto, mantendo as diretrizes básicas do projeto anterior,
especialmente no que se refere à fachada. Inaugurado em 1942, este
cinema passa a constituir — já a partir de seu próprio nome —
importante signo de modernidade local, o que se pode perceber na
imprensa da época, que exalta os seus aspectos "modernos", em
especial o seu conforto e mecanização. Assim, já na própria
programação de abertura, lê-se: "O Metrópole é seu, pois, Belo-
horizontino! Foi para Você que a Cine-Teatral o realizou, numa
homenagem singela ao progresso vertiginoso, incomparável,
gigantesco da metrópole linda e encantadora dos filhos de Minas-
Gerais". Também sua ornamentação era louvada, sendo descrita como
"ao gosto moderno", composta por "formas simplificadas, seguindo
padrões geométricos e linhas retas", em oposição às características
ecléticas — ultrapassadas — do antigo Municipal.37

Se essa foi a era do cinema, foi igualmente a era do rádio,


que se torna, na década de 30, o outro veículo da nascente cultura de
massas no Brasil. Presente no país desde os anos 20, vai ser, no
entanto, apenas depois de 1932, quando um decreto governamental
permite a publicidade em seus programas, que o rádio se torna
comercial e popular. Os programas de variedades vêm substituir as
emissões educativas e a música erudita, e o rádio passa a ter
penetração maciça em todo o país, criando legiões de ouvintes fiéis,
influenciando os costumes e ditando modas. É a era de ídolos como
Carmen Miranda, Mário Reis, Francisco Alves, Lamartine Babo,
Almirante, Noel Rosa, que alimentam a emergente indústria
fonográfica nacional. Em Belo Horizonte, surge, ainda em 1931, de
forma precária, a pioneira Rádio Mineira, numa sede provisória à Rua
Ouro Preto. Depois de uma passagem pelo Conselho Deliberativo, à
Rua da Bahia, inaugura em 1946 sua sede própria, à Rua São Paulo,
um edifício de inspiração cubo-futurista, que, entre outros, conta com
um moderno auditório, onde são gerados concorridos programas.
Também desta época é a Rádio Inconfidência, que se instala, desde o
início, num outro símbolo da modernidade do período — o edifício da
Feira de Amostras (Luiz Signorelli, 1935).
Localizado no início da Avenida Afonso Pena, esse edifício
monumental veio ocupar o lugar do antigo Mercado Municipal, eclético,
considerado, em meados dos anos 20, insuficiente para a cidade que
19
crescia. Transferido, em 1926, para um terreno pertencente ao
América Futebol Clube, em seu lugar vê surgir a Feira Permanente de
Amostras, iniciativa do governo do Estado, que pretendia criar uma
espécie de vitrine da economia mineira, cujos produtos eram exibidos
ao lado de exposições itinerantes e de curiosidades variadas. Abrigava
alguns setores da então poderosa Secretaria da Agricultura e de outros
órgãos públicos, dispondo ainda de serviços de apoio como
restaurante, salão de conferências e até um posto do Touring Club
para abastecimento e reparo de veículos. Projeto de Luiz Signorelli, a
Feira de Amostras compunha-se de um bloco central com cinco
pavimentos, a partir do qual se elevava uma torre que atingia 10
pavimentos, produzindo um efeito de verticalidade e
monumentalidade, reforçado por sua simetria e por uma enfática
marcação dos elementos compositivos. Claramente filiada à tendência
mais seca e geométrica do art déco, a Feira de Amostras sintetiza
imageticamente a ideia de modernidade que marca a Belo Horizonte
dos anos 30: ao lado de uma exposição das — tradicionais — riquezas
minerais, ali se mostram as conquistas da industrialização que avança,
enquanto do alto da torre, a Rádio Inconfidência, emissora oficial,
anuncia os novos tempos que se descortinam. No entanto, como uma
típica imagem da modernidade, o seu destino — como o do Mercado
Municipal que a antecedera — também vai ser o rápido
desaparecimento: já na década de 60 a Feira é demolida, sendo
substituída por uma nova estação rodoviária.

A C ASA FU TU RISTA
João Alphonsus, um dos mais atentos observadores da cena
belo-horizontina dos anos 30, registra em seu romance Totônio
Pacheco (1935) a rapidez das transformações da cidade, o rápido
envelhecimento dos "bairros burocráticos", "cheios de casas de
platibandas que foram nos primeiros tempos a última palavra em
arquitetura". A cena era decididamente eclética:

Os beirais voltaram com os bangalôs, que surgiram aos milhares. A


revivescência da casa colonial, o estilo neocolonial, com ornamentos da
fábrica das velhas igrejas, muito menos sóbria do que a dos casarões
passados (e que se explicava nos templos pelo amor católico às pompas
exteriores do culto), se misturou com os estilos melecas, insinceros,
complicados, literários. Aliás, havia casas que participavam de dois e três
estilos. Outros, de nenhum.38

Não se tratava mais, desde a Primeira Guerra, daquele


ecletismo neoclassicizante, das "casas de platibandas", mas de um
20
"segundo ecletismo", onde uma atitude de tolerância estilística acolhia
as mais diversas influências. Nessa cena, marcada pelo pluralismo
estilístico, podia-se notar a crescente influência das publicações
especializadas e, mais tarde, do cinema, que fazia dos Estados Unidos
o principal pólo irradiador dos novos modismos. Bangalôs e chalés
conviviam com casas em estilo "missões", "normando", "californiano",
"neocolonial" e ... "moderno". E, de fato, a busca de um "estilo
moderno" não se restringia às construções públicas ou monumentais,
atingindo também rapidamente a arquitetura residencial:

Podia-se notar ainda as tentativas de um estilo nítido — seria


propriamente estilo ou a abolição consciente e útil dessa coisa? — linhas
cruas e secas, cimento armado e ferro, ousadia de varandas avançando
sem apoio, em balanço de concreto, terraços em vez de telhados, tudo
geometricamente simples.39

Belo Horizonte, que vive um acelerado desenvolvimento


urbano na época,40 vê o "estilo moderno" impor-se por todo a parte,
tanto no Centro — onde vão se localizar os principais prédios públicos
e edifícios verticais modernos — quanto nas "velhas" periferias e nos
novos subúrbios e bairros nobres que se formavam. No caso da
arquitetura residencial, parece-nos possível identificar o mesmo "leque
de atitudes", com combinações diferentes entre os elementos
tradicionais e modernos, que já apontamos: aqui também vamos
encontrar desde edificações tradicionais, cuja modernidade se resume
à ornamentação geométrica, até exemplares com maiores e mais
ousadas experimentações formais e técnicas. Nos bairros nobres,
como o de Lourdes, que se formava então à oeste de Funcionários,
encontrava-se uma série de residências — projetadas por renomados
arquitetos e engenheiros —, que exemplificam essa última atitude,
caracterizando-se por uma maior desenvoltura no jogo volumétrico,
com articulações entre volumes puros, engenhosas combinações em
planta e delicados trabalhos de serralheria, bem como pela utilização
mais frequente do concreto armado. Um bom exemplo oferece-nos a
residência projetada por Raffaello Berti, em meados dos anos 30, à
Rua Alvarenga Peixoto,425. Ali, apesar da ornamentação — frisos
verticais e horizontais, que distinguem os planos da edificação — a
tónica vai ser dada pelo elaborado tratamento plástico dos planos e
volumes, chamando a atenção a composição assimétrica, que é
enfatizada pela organização da fachada em dois planos. Outro
exemplar digno de nota é a residência localizada à Praça Tiradentes,
na confluência da Avenida Brasil com Rua Paraíba, com a sua
tradicional solução de esquina já apresentando afastamentos frontal e
laterais, com suas varandas semi-embutidas no segundo pavimento e
com sua utilização do revestimento "pó-de-pedra" — argamassa de
21
cimento com lâminas de mica — em diversas tonalidades. É
interessante perceber, nesse último caso, a permanência de um
recurso cenográfico, remanescente do ecletismo: enquanto se passa a
impressão da existência de um moderno teto-terraço — inclusive com
a utilização de um guarda-corpo no coroamento das fachadas —, ali se
encontra, na verdade, uma cobertura tradicional em telhas francesas.

As "velhas" periferias, como Floresta e Lagoinha, que se


consolidavam como pólos densamente povoados, mas também as
novas vilas e bairros populares que se formavam — Vila Santo André,
Cachoeirinha, Concórdia, Renascença, Sagrada Família, entre outros —
fornecem-nos inúmeros exemplares da apropriação popular dessa
linguagem moderna. Construídos, em sua maioria, por mestres-de-
obra anônimos, essas edificações conservam mais as tipologias — casa
"porta-e-janela", "palacetes-comércio"... — e os esquemas construtivos
— estrutura em tijolo — herdados do ecletismo, dando-lhes uma
roupagem moderna. Outro traço marcante da arquitetura eclética, que
permanece nessas releituras populares, é um certo fachadismo, com a
valorização plástica das elevações frontais, sendo absolutamente
tradicional o tratamento das demais. Muitas vezes a utilização de
estilemas déco apresenta-se mesmo apenas como artifício de
modernização de fachada de residências mais antigas, permanecendo
as soluções tradicionais de composição formal.
Um dos sinais da ampla difusão do "estilo moderno" na Belo
Horizonte dos anos 30 é a publicação pelo jornal Estado de Minas da
coluna "A Casa Moderna", onde se tratava de divulgar modelos desse
tipo de arquitetura residencial. O artigo inaugural da coluna, de 26 de
julho de 1936, que prometia "realizar com nossos projetos todos os
desejos do leitor", atacava o "fachadismo" em arquitetura e, ao
descrever a edificação proposta, enunciava um credo de tom
funcionalista:

Não tivemos, ao executar este projeto, o cuidado de fazer fachada.


Seguimos simplesmente a planta que foi estudada com o máximo
cuidado de modo a proporcionar aos seus moradores o conforto que a
vida moderna exige, resolvendo assim os problemas da insolação e
espaço. É a verdadeira arquitetura funcional, produto da lógica e da
sinceridade.41

O projeto apresentado, do "Studio Buffalo e Castro", assinado


pelo engenheiro civil Waldemar Uchoa, era o de uma "casa moderna"
de três quartos, "para um terreno de 13 metros por 20 de fundo", que
procurava traduzir esse ideal, utilizando uma composição não-
ornamental, caracterizada por um jogo de volumes cúbicos e curvos,
22
encimado por um teto-terraço. Quanto à planta, a novidade se
restringia a uma setorização mais marcada e uma certa fluidez do
espaço, caracterizado pela ligação entre a sala e a copa, podendo-se
notar ainda a quase repetição da planta nos dois pavimentos,
derivada, provavelmente, das limitações de uma estrutura tradicional
em tijolo. Naquela coluna, chama a atenção como a um tratamento
formal moderno, que resultava numa arquitetura "cúbica", vai
corresponder uma linguagem de nítida inspiração corbuseana,
aparecendo reiteradamente ao longo dos artigos as ideias de conforto,
higiene, despojamento e economia. Quanto a esse último item, é
interessante destacar ainda que em quase todos os artigos estima-se o
custo provável da construção, ressaltando-se as vantagens também
financeiras dessa nova arquitetura. (Não é por acaso que muitas das
casas de aluguel, que se multiplicam à época como forma de
investimento, são construídas em "estilo moderno".)

O "CICLO DO ARRANHA-CÉU'
No início dos anos 30, a cidade de Belo Horizonte vai ser
personagem importante nas crónicas que Carlos Drummond de
Andrade escreve sob o pseudónimo de António Crispim. Numa delas,
flagra-se a Avenida Afonso Pena desnudada após uma drástica poda
de seus fícus:

Podaram as árvores e verificou-se que a Avenida não tinha mistério


algum. Era uma rua como as outras, com os mesmos sobradinhos e as
mesmas casinhas térreas das outras, apenas com um espaço maior entre
uma e outra fileira de casinhas e sobrados. E mesmo essa particularidade
não é sua, é de todas as avenidas de Belo Horizonte.42

Naquele momento, a silhueta que se revelava, despida da


cortina verde, era a de uma cidade definida por sobrados e casas
térreas, onde se destacavam as edificações de três pavimentos, como
a Casa Bleriot, de cujo terraço um "holofote poderoso" esculpia "a
cidade na massa das trevas".

A partir da segunda metade dos anos 30, no entanto, edifícios


de escritório e de apartamentos começam a ser erguidos na área
central da cidade, substituindo velhas residências do início do século.
A cidade surpreendia por sua "volubilidade fisionómica", saudada pela
imprensa como o ingresso da Capital num novo ciclo de construções e
na condição de "grande metrópole". Segundo expressões da época, na
"cidade das picaretas e dos andaimes" abria-se o "ciclo dos arranha-
céus", com um "vertiginoso crescimento" em todas as direções, em
23
"latitude e altitude".43 "O arranha-céu, cheio de andares, cómodo,
elegante, suntuoso, moderno, (...) é bem a construção característica
do nosso século, e para o futuro será a residência ideal", vaticinava o
cronista Djalma Andrade. E, de fato, ao lado da notável mudança na
forma urbana, os edifícios recém-construídos traziam também novos
modos de organização do trabalho e da moradia.

A literatura da época não permanece indiferente a essas


mudanças: em 1936 é publicado o romance O Cabo das Tormentas, de
Eduardo Frieiro, onde a nova cena urbana vai ser mais que pano de
fundo. Inspirado num fato verídico que ocupara o noticiário local, o
livro trata das aventuras amorosas de um homem de 40 anos,
referindo-se seu título justamente a um momento de tumultuada
passagem. Além da sugestiva analogia à cidade — que também estava
prestes a completar seus 40 anos — encontramos nesse romance
outras referências mais explícitas aos novos edifícios e ambientes
urbanos de então. Os episódios, narrados de modo conciso e ágil,
transcorrem no ano de 1935 em Belo Horizonte, e têm como cenário
principal o Edifício Santa Cruz, mais precisamente um de seus
escritórios, de propriedade de um amigo do protagonista. O edifício é
descrito como um

casarão de cimento armado, em estilo paquebot e que parece um grande


transatlântico ancorado na parte mais central da cidade (...) Todas as
salas, ali, estão alugadas para consultórios médicos, gabinetes dentários,
bancas de advogados, escritórios comerciais e de procuratórias, agências
de companhias de seguros, sedes de empresas industriais, consultórios e
outros. Centenas de pessoas circulam de manhã à noite, num tráfego
contínuo, pelos elevadores e corredores do vasto prédio.44

A comparação do edifício com um transatlântico — além de


remeter à conhecida associação da arquitetura moderna às imagens
náuticas, marcantes nos escritos de Lê Corbusier —, sugere os seus
aspectos formais: o estilo paquebot é uma denominação francesa,
usual nos anos 20 e 30, para os edifícios modernos caracterizados por
uma volumetria compacta e de linhas simples e dinâmicas, à
semelhança de um navio veloz e compacto. Além disso, sugere
também o impacto da grandiosidade deste edifício no ambiente
urbano — um estranho transatlântico ancorado na capital provinciana.
O ambiente moderno — movimentado, massificado e anônimo — vai
ser o cenário adequado aos encontros furtivos do protagonista, que se
davam no escritório emprestado de seu amigo. Outras passagens do
romance informam que este edifício situava-se na esquina da Avenida
Afonso Pena e tinha oito pavimentos, aspectos cruciais no desfecho da
história, uma cena trágica assistida por uma "multidão que saía do
cinema próximo", "congestionando e interrompendo o trânsito num
24
largo trecho da rua".

Diversas indicações do romance levam-nos a associar o


edifício ficcional a um edifício de fato existente em Belo Horizonte, e
que à época de sua construção causara assombro: o já citado edifício
do Cine Brasil — nome que o Santa Cruz do romance evoca, localizado
na mesma avenida e no ponto central da cidade, a Praça Sete,
contendo oito pavimentos de escritórios. Também estilisticamente
aproxima-se do Santa Cruz: o edifício consiste, como vimos, em um
volume de superfície lisa e predominantemente maciça, podendo ser
qualificado como em estilo paquebot. Embora este edifício não viesse a
ser reputado como o primeiro arranha-céu da cidade, ele indica uma
gradual mudança no porte dos edifícios da área central: ainda em 34,
os dois maiores palacetes da década anterior — o eclético Banco do
Comércio (Ricardo Wriedt, 1925) e a neoclássica Secretaria do Interior
(Luiz Signorelli, 1926-1930) — eram destacados em artigo da imprensa
como "expressões do progresso de Belo Horizonte" e iniciadores de
uma "nova orientação arquitetônica" — o que se deve, certamente ao
seu porte incomum — seis pavimentos — e não às suas características
estilísticas, ainda tributárias do vocabulário historicista.

Apesar do impacto causado, o edifício do Cine Brasil, tal como


outros construídos na primeira metade da década de 30, com altura
entre seis e oito pavimentos, ainda pode ser incluído no mesmo
modelo tipológico — intermediário entre os sobrados e os arranha-céus
— dos maiores edifícios da cidade, construídos a partir dos anos 20.
Trata-se do tipo de edifício característico das capitais europeias:
limitados à altura de 20 metros, ou seja, com um máximo de sete
pavimentos, e, em geral, ocupando quase a totalidade do lote. Embora
o "Regulamento das Construções" da cidade já previsse desde 1922,
como vimos, alturas bem maiores que esta, pelo menos até metade
dos anos 30 este será o padrão dos maiores edifícios da cidade, que, a
despeito de variações estilísticas, apresentavam o mesmo porte e
configuração tipológica semelhante. Um exemplo desta conformação
arquitetônica oferece-nos o Edifício Guimarães (Zimmer Wezphal,
1935), que com seus seis pavimentos, apresenta os esquemas
compositivos classicistas de simetria e de repetição de elementos, com
discretos traços art déco. Este modelo predominou até o início dos
anos 40, em edifícios como o Lutetia (1939), o Teodoro (1939) e o San
Marco (1939). Aqui é importante ressaltar que a adoção desta tipologia
pêlos construtores parece ter-se dado não apenas pela assimilação do
modelo europeu, mas principalmente pela falta de concentração de
capital para maiores empreendimentos. Outro edifício destacado pela
imprensa neste período como exemplo do "grande surto" das
construções e do "embelezamento da capital" vai ser o Edifício Haas,
25
localizado na confluência da Avenida Afonso Pena com Rua da Bahia.
Com quatro pavimentos e em estilo semelhante ao do Cine Brasil, com
um volume monolítico, com superfícies lisas marcado por elementos
art déco, este edifício representa também exemplarmente o processo
de substituição das residências na área central a partir da década de
30. Em matéria do Estado de Minas, o seu proprietário explica ter
decidido demolir sua residência, dando lugar a um novo edifício, por
razões econômicas, e ainda "por ordem estética", pois o local, "o mais
frequentado e visitado" da capital, mereceria um edifício à sua altura.45

Finalmente caberia destacar aqui ainda o Edifício Chagas


Dória (Alfredo Carneiro Maretrof, 1934), que ao mesmo tempo em que
se enquadra nesta tipologia de transição, apresenta uma notável
justaposição de traços estilísticos característicos da arquitetura
corrente nos anos 30 e 40. Se alguns aspectos de sua composição
ainda são tradicionais — a simetria, o esquema base-corpo-
coroamento — a sua linguagem ornamental, no entanto, já se afasta
dos motivos clássicos. Assim sobressaem, à primeira vista, seus
elementos decorativos geométricos bem marcados: feixes de placas
verticais, que, sugerindo elementos de travamento, conferem ao
edifício um movimento ascendente. Esses elementos vêm se justapor
a um volume de superfícies lisas e segmentado por vãos largos,
definindo faixas horizontais dominantes. A esse jogo de massas
geométricas interpenetrantes vem se juntar outro marcante traço
moderno: o volume de esquina tem suas arestas recortadas por largos
vãos — recurso plástico revelador de liberdade compositiva em relação
à estrutura e que possibilita uma maior continuidade entre interior e
exterior.

Essa tipologia só vai ser superada a partir de 1935 quando se


constrói o Edifício Ibaté (Angelo Murgel), o primeiro — juntamente com
a torre da Feira Permanente de Amostras — a atingir o patamar de dez
pavimentos na cidade. Primeiro a ser considerado um "arranha-céu", o
Ibaté também pode ser considerado o primeiro decididamente
racionalista de Belo Horizonte, com sua composição de planos
elementares marcada pela ausência de elementos decorativos e pela
leveza conferida pelas suas largas aberturas. Aqui já não se encontra o
tradicional esquema tripartido, com sua fachada manifestando o
empilhamento de andares semelhantes, não apresentando também os
elementos de ênfase vertical de coroamento, comuns até então. Ao
Ibaté segue-se uma série de edifícios altos, que vai marcando a
paisagem da cidade, pontuando aqui e ali a sucessão de "sobradinhos"
e "casinhas térreas". Também no que se refere a essas edificações em
altura, reencontramos aquela paleta de atitudes a que se referiu, um
espectro de soluções compositivas e formais, das quais os projetos se
26
servem, combinando de diversas maneiras os elementos tradicionais e
modernos. Neste amplo espectro é possível, para efeito de
classificação, distinguir algumas orientações compositivas
predominantes na arquitetura corrente nos anos 30 e 40 em Belo
Horizonte. Trata-se, é preciso ressaltar, de apenas um ensaio analítico
das tendências gerais do período, e não de uma classificação
estilística, já que essas orientações não são excludentes, e, na maior
parte dos casos, os edifícios deste período não se distinguem pela
exata correspondência a uma delas. Além das variações e mesclas
dessas soluções, é possível notar ainda uma certa tendência de
transformação: se nos anos 30, encontramos uma arquitetura mais
variada, exuberante como no Chagas Dória ou graciosa, como no
Cecília (atual Hotel Estoril), nos anos 40 nota-se uma tendência mais
homogênea em direção a um sóbrio modernismo", onde os volumes
geométricos, despojados de ornamentos, são submetidos a uma
composição com fortes valores clássicos, como a simetria e a
hierarquia.

A primeira dessas tendências, mais notável nos anos 30, vai


ser justamente aquela que poderia ser chamada — de uma maneira
mais apropriada — de art déco, conhecida à época no Brasil como
"futurista". Caracterizada pela profusa utilização da decoração
moderna geometrizada, aliada à forte ênfase expressiva e
monumental, assimila tanto recursos da matriz clássica quanto
racionalismo "cubista". Além dos já mencionados Casa d'Itália e
Chagas Dória, são exemplares o edifício Piraquara / Hotel Gontijo
(Romeo de Paoli, 1938-1939), o Hotel Metrópole e o Magnífico Hotel.
Nesses edifícios, o cruzamento de linhas ortogonais, subordinadas à
dominante vertical, expressa um dinamismo triunfante e a coesão dos
elementos sob um princípio dominante, que nos remetem às imagens
do autoritarismo que permeou a arquitetura corrente e o imaginário
político e cultural da Europa, da URSS, dos Estados Unidos e do Brasil,
nos anos 30. Expressivo deste imaginário é um elemento encontrado
abundantemente nos edifícios deste período, tanto em modestos
galpões quanto na monumental Santa Casa: o agrupamento de placas
verticais, encravadas nos volumes, geralmente cruzando linhas
horizontais, sugerindo a função de enrijecimento ou travamento e
imprimindo um sentido de ascendência à composição. Outro recurso
decorativo bastante comum no período é a incrustação (justaposição
em baixo relevo) de emblemas figurativos estilizados, alegorias como
os internacionalmente populares “mercúrios" em edificações ligadas
ao comércio, e outros afirmativamente nacionalistas, como a palmeira
estilizada na fachada do Edifício Indaiá (Raffaello Berti) e os índios do
Edifício Acaiaca (Luiz Pinto Coelho, 1943-1947). Ganham também
proeminência os nomes dos edifícios, merecedores de grande apuro
27
gráfico, constituindo elementos de empenho persuasivo de uma
arquitetura que ainda procurava seduzir o pedestre.

A segunda tendência, derivada do racionalismo purista


europeu, fica conhecida no Brasil como "cúbica" ou cubista, pelo seu
jogo assimétrico de massas cúbicas. A decomposição dos volumes
geométricos se realiza aqui por meio de volumes e lajes planas em
balanço, por aberturas rasgadas horizontalmente e por arestas
recortadas, que imprimem movimento à composição. O Edifício
Cruzeiro que, no final dos anos 30, foi considerado um aranha-céu a
despeito de seus oito andares, é um bom exemplo dessa orientação,
com sua composição assimétrica, jogos de volumes puros e
encaixados e volumes rasgados por aberturas horizontais. Aqui, no
entanto, como em vários casos, essa orientação não é pura: no topo
do edifício pode-se notar um discreto ornato. Outros exemplos que
poderiam ser citados são os edifícios San Marco (1939), um dos
primeiros edifícios de apartamentos, o Sarandi, de menor porte e o
Hotel Madrid (Romeo de Paoli), com plástica estritamente purista e
rigoroso equilíbrio do jogo volumétrico. Ainda digno de menção é o
Conjunto Habitacional IAPI (White Lírio da Silva, 1942), exemplar em
relação à supressão de qualquer ornamento, e à redução dos
elementos plásticos. É interessante perceber que o ascetismo da
imagem gerada — de difícil absorção por um público acostumado à
linguagem ornamental — faz com que a orientação racionalista
purista, embora presente de modo diluído ao longo de todo o período,
raramente apareça isolada.

Uma terceira tendência, bastante próxima à anterior, é


marcada pelo aspecto mais compacto do volume, por vezes obtida
pelo emprego de formas cilíndricas e pelo acentuado dinamismo das
linhas horizontais dominantes. Aqui reconhecemos o estilo paquebot,
no Brasil sugestivamente denominado "estilo aerodinâmico", e no qual
pode ser identificada uma certa influência da arquitetura
expressionista alemã, notadamente a dos edifícios de escritórios de
Poelzig e Mendelson. Nesta tendência podem ser incluídos desde o já
citado Cine Brasil (1932), de volumetria mais contida ao movimentado
Centro dos Chauffeurs (1937), passando pela Casa de Saúde São
Lucas (1939), os três projetados pelo arquiteto Angelo Murgel, cujas
obras, no contexto belo-horizontino desse período, são as que mais se
aproximam das propostas das vanguardas arquitetônicas. Um traço
marcante desta tendência vai ser a resolução das esquinas em curva
— muitas vezes com sacadas —, exemplificada em edifícios dos mais
variados portes, como o Edifício Abras (atual Hotel BH Centro), o
Banco Mineiro (atual Unibanco) e o proeminente Edifício IAPI (1945),
que com sua esquina cilíndrica rasgada por vãos, foi descrito em 1947
28
como uma gigantesca belonave de concreto e aço.

A quarta tendência, que poderíamos denominar classicismo


moderno, ou, recorrendo a uma expressão da época "modernismo
moderado", torna-se preponderante na década de 40. Assimilando de
forma bastante parcimoniosa as inovações trazidas pelo "estilo
moderno", essas edificações seguem lançando mão de traços
tradicionais, como a simetria e o esquema tripartido base-corpo-
coroamento. Caracterizam-se por uma redução ornamental em relação
aos anos 30, por uma clara preferência por formas simétricas e de
aspecto sólido, pela repetição de elementos simples e pela modulação
de aberturas retangulares. Nas formas dos edifícios e nos atributos
então frequentemente empregados para descrevê-los afirmava-se a
busca concomitante de "sobriedade" e de "imponência". Segundo
arranha-céu construído na cidade, o Edifício Capixaba (Raffaello Berti,
1936) prenuncia essa direção, apresentando uma composição
simétrica enfatizada por dois corpos laterais ligeiramente salientes,
com vãos regulares e clara tripartição entre base, corpo e coroamento.
Este esquema, bastante clássico em seu resultado, viria a ser adotado
em muitos outros edifícios, tais como o Minas Gerais (Hermínio Gauzi,
1945-1947), o Andrade Campos e o Dantés, também de meados dos
anos 40. Aqui cabe destacar ainda um arranjo bastante usual no
período, caracterizado pelo uso de volumes e balcões em projeção,
como no Mariana (1940-1942), no Tupis (Nicola Sartolio, 1945), no Rio
Branco e ainda no Banco Financial da Produção (Romeo de Paoli,
1944), atual Hotel Financial, então aclamado como um dos mais
elevados edifícios da América Latina, com seus 23 andares.

Finalmente, caberia destacar ainda dois edifícios próximos,


que, construídos nos mós 40 na Avenida Afonso Pena, marcaram, cada
um a seu modo, a paisagem urbana belo-lorizontina.: o Sulaméríca /
Sulacap (Roberto Capello, 1941-1945) e o Acaiaca (Luiz Pinto Coelho,
L943-1947). O primeiro, um conjunto de blocos "iguais e
simetricamente dispostos", de 'arquitetura simples e sóbria", lembra,
com seus volumes cúbicos e lisos, o stile littorio italiano. Esse
conjunto, que ocupa um quarteirão inteiro, sobressai por uma notável
relação que estabelece com a cena urbana: recusando "o espírito
mercantilista do aproveitamento máximo do terreno", e atendendo a
uma exigência da Prefeitura de se construir uma galeria ligando a
Avenida Afonso Pena ao Viaduto de Santa Tereza, o projeto opta pela
criação de uma "bela praça, em plena Afonso Pena, que oferece não
somente novas e variadas perspectivas ao conjunto, como também,
numa excelente solução urbanística, quebra a monotonia dos grandes
edifícios que se alinham naquela Avenida".46 O seu agenciamento
responde ao do próprio tecido urbano: os blocos do edifício formam um
29
ângulo de 45° entre si focando de forma excepcional o Viaduto de
Santa Tereza, que daí se descortina. E de se lamentar, no entanto, que
o "espírito mercantilista", afastado de início, tenha finalmente se
imposto com a construção de um anexo na área livre, que prejudica
enormemente o efeito descrito.

O segundo, um "imponente edifício, com seus 29 andares",


implantado convencionalmente ao longo do alinhamento das vias e
simetricamente composto, destaca-se por sua grandiosidade e pela
justaposição de dois elementos sugestivos — à primeira vista
antitéticos —, que compõem as linhas verticais das arestas nas suas
duas esquinas: na parte inferior, foram modeladas duas totêmicas
carrancas indígenas, e, na parte superior, dois pares de cilindros
totalmente envidraçados. O elemento indígena se referiria à tribo
Acaiaca e à lendária história de sua destruição no período colonial.
Segundo a lenda, essa tribo, até então invencível, ao ter seu totem —
uma grande árvore — destruído pelos portugueses, entrou em
acirradas disputas internas quanto à atitude a tomar, terminando por
se autodestruir. A moral da história parece se encaixar com perfeição
ao imaginário nacionalista dos anos 30 e 40, com seu tema ideológico
da unidade de um povo como fundamento de sua força. Por outro lado,
os cilindros de vidro, elemento de cunho futurista, apontam para as
arrojadas conquistas técnicas da civilização moderna. Interpretada à
luz das discussões travadas desde os anos 20 sobre a cultura brasileira
— a propósito de seu caráter nacional, suas raízes e sua relação com a
civilização moderna internacional —, a justaposição desses dois
elementos sugere-nos uma alegoria da integração do primitivo e do
autóctone à civilização moderna. O elemento indigenista evocaria o
fundamento da identidade nacional, ou seja, a unidade do povo e a
manutenção de suas tradições: a lição dos índios derrotados — pela
perda de sua identidade e pela astúcia do colonizador português —
deveria ser assimilada pêlos brasileiros na constituição de uma nação
moderna, em sua inevitável marcha para o progresso. O edifício, como
um novo totem da metrópole, ao incorporar o totem indígena,
representaria a conservação dos valores autóctones, como
constituintes do caráter nacional, e, ao mesmo tempo, a vitória da
civilização moderna, cujo poder tecnológico se traduz no arrojo dos
cilindros que, como torres de vidro, coroam o edifício.

30
NOTAS

1. CORREIO MINEIRO. Belo Horizonte, p.l e 8, 22 jun. 1933.


2 Tais iniciativas não tiveram, pelo menos num primeiro momento, o êxito
esperado: ainda que algumas indústrias tenham sido instaladas nesta
região, a "zona industrial" não contou com suficiente fornecimento de
energia elétrica pela companhia concessionária destes serviços na capital
e alguns anos mais tarde, em 1940, uma outra iniciativa do governo
estadual — a instalação da "Cidade Industrial Juventino Dias", no município
de Contagem, próximo a Belo Horizonte — desloca o crescimento industrial
rumo a oeste.
3. BELO Horizonte será uma cidade industrial. Folha de Minas, Belo Horizonte,
25 dez. 1936. Caderno especial, 4a seção, p.l-l 2.
4. Para um quadro detalhado do período, confira PASSOS, Luiz Mauro do
Carmo. A metrópole cinquentenária: fundamentos do saber arquitetônico e
imaginário social da cidade de Belo Horizonte (1897-1940). Belo Horizonte:
FAFICH/UFMG, 1996. (Dissertação, Mestrado em História).
5. IANNI, Octávio. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p.13-57.
6. A EXPANSÃO suburbana de Belo Horizonte e os problemas que dela
decorrem. (...) O "Estado de Minas" ouve o professor Angelo Murgel sobre o
assunto. Estado de Minas, Belo Horizonte, p.3,22 ago. 1934.
7. PLANO de urbanismo de Belo Horizonte. Interessante trabalho do sr.
Lincoln Continentino, apresentado na última reunião da Comissão Técnica
Consultiva da Cidade. Folha de Minas, Belo Horizonte, p.8-11,15 jun. 1935.
8. PLANO de urbanização de Belo Horizonte. Conferência realizada no 1º
Congresso Brasileiro de Urbanismo [Rio de Janeiro]. Revista Mineira de
Engenharia, Belo Horizonte, n.25-26, p.41-59, mar./abr. 1941.
9. Ibidem. p.51.
10. A CENTRALIZAÇÃO do tráfego de bondes na Praça Sete. Estado de Minas,
Belo Horizonte, 20 out. 1936.
11. FOLHA DE MINAS, Belo Horizonte, 25 dez. 1936. 4ª seção, p.8.
12. Este regulamento é novamente modificado em 1930, sofrendo ao longo
da década diversas outras modificações, vindo a se consolidar no
"Regulamento das Construções" de 1940, conhecido por "Código de
Obras", e que permanece vigente, em sua forma completa, até 1976.
13. BELO Horizonte. A metrópole de 50 anos. Arquitetura e Engenharia, Belo
Horizonte, ano l, n.l, p.40, maio/jun. 1946.
14. ANDRADE, Mário de. Belo Horizonte. Folha de Minas, Belo Horizonte, p.3,9
jan. 1940.
15. WEIMER, Günter. História da arquitetura brasileira: centralidade versus
regionalismo. Revista PÓS, São Paulo, set. 1976. Número especial, Anais do
Seminário Nacional "O estudo da história na formação do arquiteto", v.ll,
p.50.
16. GUTIERREZ, Ramón. Arquitectura y Urbanismo en Iberoamerica. Madrid:
31
Ediciones Cátedra, 1984. p.533. Segundo Ramón Gutierrez, a Academia,
fracassada na tentativa de manter uma rígida preceptiva formal e de
composições, e, ao mesmo tempo, possibilitar a insaciável necessidade de
individualismo das obras, ingressara paulatinamente num ecletismo que
lhe permitiu responder à demanda, porém ao custo de atraiçoar seus
princípios. "Uma vez aberta a comporta do 'vale-tudo', foi muito difícil à
École dês Beaux-Arts manter as antigas ortodoxias frente aos revivals
neogóticos e neo-românticos e nunca conseguiu recuperar-se dessa crise."
Roberto Segre, por sua vez, agrupa essas mesmas manifestações como
"movimentos culturais 'marginais'", apontando-os como "alternativas
divergentes com o academicismo", cujos resultados formais e espaciais, no
entanto, integrar-se-ão fortemente na cultura ambiental da América Latina.
(SEGRE, Roberto. América Latina, fim de milênio: raízes e perspectivas de
sua arquitetura. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Studio Nobel, 1991.
p.97.)
17. Neste sentido, por exemplo, Eva Weter lista como variantes estilísticas
art déco o estilo denominado classical modern ou stripped classicism, o
zigzag style dos arranha-céus americanos dos anos 20 e 30, o streamline
style ou style paquebot, entre outros. (WEBER, Eva. Art Déco. Wigton:
Magna Books, 1994. p.22-55.)
18. SEGRE, Roberto. América Latina, fim de milénio: raízes e perspectivas de
sua arquitetura. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Studio Nobel,
1991.p.l09.
19. ARACIL, Alfredo; RODRÍGUEZ, Delfin. El siglo XX. Entre Ia muerte dei arte
y el arte moderno. Madrid: Istmo, 1982. p.333.
20. PALÁCIO da Municipalidade. Arquitetura, Belo Horizonte, n.3, p.6-13,
jul./ago. 1935. A respeito do concurso, confira Revista Mineira de
Engenharia, n.2-3, p.101. Aqui é preciso registrar a controvérsia que se
mantém sobre a autoria desse edifício — e de outros do mesmo período.
No caso do Palácio da Municipalidade, discute-se se o projeto não seria, na
verdade, do arquiteto Raffaello Berti, que, recém-cbegado da Itália, não
estaria habilitado, não podendo assinar o trabalho. Tal suposição parece-
nos fortalecida, por exemplo, pela maneira em que, no mesmo período,
publicam-se projetos assinados por Berti, tal como o da Casa d’ltália, que
aparece na revista Arquitetura como "Proieto do escritório SIGNORELLI.
Arquiteto Raffaello Berti". (CASA d'ltália. Arquitetura, Belo Horizonte, n.2,
p.14-15, jun. 1935.)
21. PREFEITURA de Belo Horizonte. Relatório anual, 1937.
22. PALÁCIO da Municipalidade. Arquitetura, Belo Horizonte, p.6-13, jul./ago.
1935.
23. CASA d'ltália. Arquitetura, Belo Horizonte, n.2, p.14, jun. 1935.
24. SEGAWA, Hugo. Modernidade pragmática: arquitetura no Brasil nos anos
1920 a 1940. Art Déco na América Latina, Rio de Janeiro, Prefeitura da
cidade do Rio de Janeiro/SMU, Solar Grandjean de Montigny-PUC/RJ,
p.174,1997.
25. ALVARENGA, A. Mello. Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte.
Arquitetura e Engenharia, Belo Horizonte, n.3, p.23, nov./dez. 1946.
26. A esse respeito, confira SEGAWA. Modernidade pragmática: arquitetura
no Brasil nos anos 1920 a 1940. Art Déco na América Latina, Rio de Janeiro,
Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro/SMU, Solar Grandjean deMontigny-
PUC/RJ, p.175,1997.
27. BOMENY, Helena. Guardiães da razão: modernistas mineiros. Rio de

32
Janeiro: Editora UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994. p.133-136.
28. O DISCURSO do Presidente Getúlío Vargas na parada esportiva do Minas
Ténis Clube. Folha de Minas, Belo Horizonte, p.12,14 maio 1940. É
interessante observarmos que a implantação do Minas Tênis Clube ilustra,
à perfeição, a proximidade suspeita entre interesses públicos e privados,
que tem caracterizado a nossa historia: construído pelo Poder Público, em
terreno público, é rapidamente repassado a um grupo privado, que, em
troca de tímidas "contrapartidas", passa a ter o direito de sua utilização,
tornando-se, algum tempo depois, proprietário do terreno e das
instalações.
29. A MAIS bella praça de esportes do Brasil. Estado de Minas, p.4, Belo
Horizonte, 28 nov. 1937.
30. Aqui caberia acrescentar que um terceiro momento na construção do
conjunto do MTC é representado pelo ginásio coberto, cujo projeto do
arquiteto Rafael Hardy Filho, escolhido em concorrência púbica aberta em
1948 e inaugurado em 1951, constitui um importante exemplar da
arquitetura modernista realizada pela primeira geração formada pela
Escola de Arquitetura. (A esse respeito, confira CONCURSO de ante-projeto
para o gimnasium do Minas Tênis Clube. Arquitetura, Belo Horizonte, ano l,
n.4, p.31-32,1948.)
31. SEGRE, Roberto. América Latina, fim de milênio: raízes e perspectivas de
sua arquitetura. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Studio Nobel, 1991. p.l
11.
32. ONDE a cidade se diverte. O cinema é ainda a grande distração popular.
Furos cinematográficos. Revista Bello Horizonte, Belo Horizonte, ano VIII,
n.l 19, p.108, ago. 1940.
33. FOLHA DE MINAS, Belo Horizonte, p.12,14 jul. 1936.
34. A respeito da trajetória Baumgart, também responsável pelo projeto do
Viaduto de Santa Tereza, confira DICIONÁRIO BIOGRÁFICO DE
CONSTRUTORES E ARTISTAS DE BELO HORIZONTE: 1894/1930. Belo
Horizonte: IEPHA/MG, 1997. p.54. A respeito da firma construtora, confira a
mesma obra, à p.239.
35. A respeito do Salão do Bar Brasil, confira VIEIRA, Ivone Luzia. Emergência
do modernismo. In: RIBEIRO, Marília Andrés, SILVA, Fernando Pedro da
(Org.). Um século de artes plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte:
C/Art/ Fundação João Pinheiro, 1997. p.147-163. 1.
36. FOLHA DE MINAS, Belo Horizonte, 8 ago. 1941.
37. PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Metrópole: a trajetória de um espaço
cultural. Belo Horizonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte / Secretaria
Municipal de Cultura, 1993. P.28-32. A esse respeito, confira ainda
CASTRIOTA, Leonardo Barci. O Cine Metrópole e a Pampulha. O art déco e o
moderno em Belo Horizonte. Art Déco na América Latina, Rio de Janeiro,
Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro/SMU, Solar Grandjean de Montigny –
PUC/RJ, p.179-183, 1997.
38. ALPHONSUS, João. Totônio Pacheco. 2.ed. Rio de Janeiro: Edições o
Cruzeiro, 1955. p.70-71.
39. Ibidem. P.71.
40. PLAMBEL. O processo de desenvolvimento de Belo Horizonte: 1897-1970.
Belo Horizonte: Superintendência de Desenvolvimento da Região
Metropolitana – PLAMBEL, 1979. P.182-255.
41. ESTADO DE MINAS, Belo Horizonte, 26 jul. 1936. 2ª seção, p.2.
42. ANDRADE, Carlos Drummond de. Crônicas. 1930-1934. Belo Horizonte:

33
Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais / Banco de
Desenvolvimento de Minas Gerais, 1987. P.76.
43. VISÕES da mais moderna metrópole brasileira. Homenagem da AE ao
cinquentenário de Belo Horizonte. Arquitetura e Engenharia, Belo
Horizonte, n.6, p.24-33, nov./dez. 1947.
44. FRIEIRO, Eduardo. O cabo das Tormentas. 2.ed. Belo Horizonte: Itatiaia,
1981. p.156. (A primeira edição é de 1936).
45. AS GRANDES iniciativas particulares e o que elas representam no
embellezamento da Capital. Estado de Minas, Belo Horizonte, p.5,12out.
1934.
46. EDIFÍCIO Sulamérica/Sulacap. Arquitetura, BeIo Horizonte, n.l, p.31-33,
set./out. 1946.

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