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Legis Augustus ISSN 2179-637 Rio de Janeiro v. 3, n. 2, p. 151-169, jul./dez. 2012

A DEMOCRACIA SEGUNDO KELSEN E A


‘SIGNIFICAÇÃO ORIGINAL” DE OBER: A
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DIANTE
DA REALIDADE PLURALISTA, POR UMA
PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA.
Marcelo dos Santos Garcia Santana
Coordenador do Curso de Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá - São
João de Meriti (Rio de Janeiro); Coordenador de Pós-Graduação Lato Sensu em
Direito da Universidade Estácio de Sá - São João de Meriti (Rio de Janeiro); Professor
de Ciência Política, Direito Constitucional e Direito Internacional na Universidade
Estácio de Sá (Rio de Janeiro) e professor convidado do Curso de Pós-graduação do
Centro Universitário Celso Lisboa (Rio de Janeiro); Pós-graduado em Direito Público
pela Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro); Mestrando em Direito/Teoria do
Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos, em Juiz de Fora (MG); Advogado
e Consultor Jurídico.
marcelogarciasantana@hotmail.com

RESUMO
O Estado, partícipe no processo evolutivo social, com o fito
de adequar-se à “sempre nova” realidade humana, deve
buscar, no processo de aplicação do ordenamento jurídico
positivo, a prévia interpretação das normas de acordo
com essa realidade. Assim deve proceder no que tange
ao processo de aplicação das normas constitucionais. Mas
como deve se dar essa interpretação? Quem interpreta a
Constituição? Considerando o Estado também destinatário
do comando constitucional, assim como a sociedade, seria
o ele, por meio de seus intérpretes jurídicos vinculados
funcionalmente, o único e derradeiro intérprete? A
sociedade, como dito, destinatária da norma constitucional,
estaria habilitada a proceder à interpretação?

Palavras-chave: Poder político. Pós-positivismo.


Neoconstitucionalismo. Teoria da constituição. Democracia.
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THE DEMOCRACY ACCORDING TO KELSEN


AND THE “ORIGINAL MEANING” OF OBER:
CONSTITUCIONAL HERMENEUTICS FRONT
PLURALISTIC REALITY, FOR DEMOCRATIC
PARTICIPATION.
ABSTRACT
The state, a participant in the social evolutionary process,
with a view to adapt to the “always new” human reality,
it should seek, in the process of application of positive
legal system, the previous interpretation of the rules
according to this reality. So it should proceed with regard
to the process of applying the constitutional rules. But as
this interpretation should be given? Who interprets the
Constitution? Considering the state also addressed the
constitutional command, as well as society, it would be
him, through his legal interpreters linked functionally, the
only and final interpreter? Society, as said, addressed the
constitutional norm, would be empowered to interpret?

Keywords: Political power. Post-positivism.


Neoconstitutionalism. Theory of the constitution.
Democracy.

1 INTRODUÇÃO

Os juristas e operadores do direito, atualmente, parecem


não se ter dado conta de que o Direito vem enfrentando
uma importante fase de transição paradigmática, na qual
novas ideias científicas objetivam harmonizar concepções
clássicas, por meio de um processo dialético (e dialógico) de
flexibilização de conceitos que, por vezes, dogmaticamente
postos, são considerados insuficientes diante dos
complexos problemas que se relacionam com a vida social
contemporânea.
Desde o positivismo muito já se evoluiu na Ciência
Jurídica em termos de aplicação do Direito e resolução de
conflitos individuais e coletivos. Passada a fase de radical
apego à dogmática da norma jurídica, os juristas hoje
caminham em busca de soluções que melhor conformem o
Direito à realidade da vida.
Tal mudança de paradigmas se dá pelo fato de que o
Direito em si mesmo é um fato social, pelo que terá que
acompanhar as mutações sociais na exata medida em que
são constatadas pela própria sociedade e pelo Estado,
inserindo-se a norma jurídica no contexto social e político
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que se lhe apresenta.


Conforme ensina J. J. Calmon de Passos (1988, p. 83,
grifo nosso):

Inexiste pureza no direito. O jurídico coabita,


necessariamente, com o político e com o econômico.
Toda teoria jurídica tem conteúdo ideológico. [...]
Nenhum instituto jurídico, nenhuma construção
jurídica escapa dessa contaminação.

O Estado, enquanto ordem jurídica, deve se


aproximar cada vez mais e de forma intensa à realidade
de sua sociedade, mantendo-se adequado àquela
realidade, evitando-se, v.g., a instauração de um processo
revolucionário e perigoso, substitutivo e consectário da
inércia provocadora da estagnação do próprio Estado,
primeiro passo para o retrocesso e para a negação total de
um processo eficazmente evolutivo. Tais conclusões são
atribuídas ao que preleciona Dalmo de Abreu Dallari:

Um dos problemas fundamentais do Estado


contemporâneo é conciliar a ideia de ordem, no
sentido de situação estabelecida, com o intenso
dinamismo social, que ele deve assegurar e promover
e que implica a ocorrência de uma constante
mutação. A incompreensão de que o Estado é um
todo dinâmico, submetido a um constante sistema
de tensões, mas ao mesmo tempo uma ordem, que
permite novas criações sem anular os resultados
obtidos, tem sido desastrosa para a liberdade humana
e a justiça social. Com efeito, há dois erros básicos
de concepção que têm levado o Estado a extremos
opostos: ou mantendo uma organização inadequada,
ou adotando processos muito eficazes para objetivos
limitados, mas conflitantes com o objetivo de
consecução do bem comum de todo o povo. No
primeiro caso tem-se uma concepção formalista e
estática de ordem, que leva à utilização do Estado
como um embaraço às mudanças sociais, tornando-o
expressão de valores anacrônicos, já superados pela
realidade social. Essa noção do Estado como ordem
estática, responsável, entre outras coisas, pela
manutenção de estruturas absolutamente ineficazes,
tem levado à concepção formalista do próprio direito,
sendo responsável pela contradição das ditaduras
constitucionais. Concebida a ordem estatal como
simples forma, que deve ser mantida a todo custo, é
inevitável o recurso à força para impedir que as novas
exigências da realidade imponham a adoção de novas
formas. E o próprio anacronismo dos valores oferece
pretexto para à ação arbitrária, pois toda inovação é
vista como ação destruidora de valores tradicionais e,
dessa maneira, contraditoriamente, a preservação de
uma ordem inadequada serve de fundamento para
impedir que se atinja o ideal de atualização, que é
Estado adequado. (DALLARI, 2010, p. 139).

Nesse sentido, o Estado, partícipe no processo


evolutivo social, com o fito de adequar-se à “sempre nova”
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realidade humana, deve buscar, no processo de aplicação do


ordenamento jurídico positivo, a prévia interpretação das
normas de acordo com essa realidade.
Assim deve proceder no que tange ao processo de
aplicação das normas constitucionais. Mas como deve se dar
essa interpretação? Quem interpreta a Constituição?
Considerando o Estado também destinatário do
comando constitucional, assim como a sociedade, seria
ele, por meio de seus intérpretes jurídicos vinculados
funcionalmente, o único e derradeiro intérprete? A
sociedade, como dito, destinatária da norma constitucional,
estaria habilitada a proceder à interpretação?
Se for admitida a participação social no processo
interpretativo da Constituição, se incluirá conceitualmente
uma via de reconhecimento recíproco nesse contrato
firmado. Obviamente, para que se mantenha adequado à
realidade social, dentro do já mencionado processo dialógico,
o Estado deve liberar uma via de comunicação com seus
administrados, por meio de atitudes de reconhecimento,
que se darão não somente pelas vias procedimentalmente
conhecidas de participação democrática, mas reconhecendo
manifestações sociais diversas, por meio dos discursos
operados na instância cidadã, substancialmente.
Diante destas constatações, cumpre considerar que
uma teoria de interpretação adequada deve abarcar a
concepção de Estado como o conjunto de fatos sociais,
verificados realisticamente, numa abordagem sociológica
do papel a ser cumprido por ele. De acordo com Häberle:

Se se considera que uma teoria da interpretação


constitucional deve encarar seriamente o tema
‘Constituição e realidade constitucional’ - aqui se
pensa na exigência de incorporação das ciências
sociais e também nas teorias jurídico-funcionais,
bem como nos métodos de interpretação voltados
para atendimento do interesse público e do bem-
estar geral -, então há de se perguntar, de forma
mais decidida, sobre os agentes conformadores da
‘realidade constitucional. (HÄBERLE, 1997, p. 12).

Ora, tomando-se por base a constatação de que a


Constituição é o Estado enquanto realidade normativa,
criado pelo Direito para a realização de fins jurídicos e, de
outro lado, pautando-se na preconcepção de que aqueles
fins jurídicos devem estar voltados para o interesse público
e o bem-estar geral, deve-se verificar que a sociedade,
destinatária do comando constitucional é – e sempre será
– intérprete da Constituição, num círculo hermenêutico que
busca incessantemente a realidade constitucional.
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Nesse ponto, para que se possa considerar a sociedade


partícipe desse processo interpretativo, deve-se certamente
partir do pressuposto de que tudo isso só é possível se
realizado dentro de uma concepção de rule of law que
garanta a participação do privado (em conjunto com o
público)1 no processo de superação dos desafios propostos
pela vida social contemporânea, por meio de uma realidade
verdadeiramente democrática.

2 O QUE É “DEMOCRACIA”?

Considerando essa abordagem, cumpre investigar a


verdadeira significação de democracia a partir do texto
“Foundations of Democracy”( Traduzido para o português
como: Fundamentos da Democracia (KELSEN, 2000), de
Hans Kelsen, e do ensaio intitulado “The original meaning
of “democracy”: capacity to do things, not majority rule”, de
Josiah Ober.

3 A “DEMOCRACIA” SEGUNDO KELSEN: “GOVERNO


PELO POVO” OU “GOVERNO PARA O POVO”?

O movimento de independência das treze colônias


norte-americanas, em 1776, e a Revolução Francesa, de
1789, subvertem o panorama geopolítico e suas respectivas
concepções dos séculos XVII e XVIII. O paradigma do
absolutismo é rompido com uma nova ordem de “liberdade,
igualdade e fraternidade”, culminando com a queda da
dinastia real na França e na ruptura com a metrópole nos
Estados Unidos.
Esses importantes movimentos certamente têm
fundamentos e motivações sociais, políticas, econômicas e
filosóficas, inspirados pelo Racionalismo e pelo Iluminismo,
movimentos marcantes iniciados nos séculos imediatamente
anteriores, assinalando sobremaneira o século XVIII com
esse conjunto de ideias de “Ilustração” que se espalha e
permeia toda a Europa. Essa explosão de luzes culminou
num processo de laicização da política e da moral.
As teorias desenvolvidas no curso dos séculos que
levaram aos fundamentos do Estado Liberal e democrático
são inspiradas na ideia basilar de estabelecer limites ao
poder do Estado, em oposição à concepção absolutista; o
1
European Commission for Estado absoluto, o potestas superiorem non recognoscens
Democracy Through Law (2011).
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(Poder que não reconhece ninguém superior), nascido da


dissolução da sociedade medieval de “caráter pluralista”
(BOBBIO, 2000) por meio de processos de unificação
de fontes de produção jurídica na lei, de ordenamentos
jurídicos superiores e inferiores – igreja e feudos - ao Estado
no ordenamento jurídico estatal, que teve como paradigmas
as obras de Hobbes (Ibid., p. 17-20) e Maquiavel.
Para Bobbio, o Estado absoluto nasce da dissolução
da sociedade medieval, que era de caráter eminentemente
pluralista.

Dizendo que a sociedade medieval tinha um


caráter pluralista, queremos afirmar que o direito
segundo o qual estava regulada originava-se de
diferentes fontes de produção jurídica, e estava
organizado em diversos ordenamentos jurídicos.
[...] Contra a sociedade pluralista medieval, as
grandes monarquias absolutas do início da Idade
Moderna se formam por meio de um duplo
processo de unificação: 1) unificação de todas as
fontes de produção jurídica na lei, como expressão
da vontade do soberano [...]; 2) unificação de todos
os ordenamentos jurídicos superiores e inferiores
ao Estado no ordenamento jurídico estatal, cuja
expressão máxima é a vontade do príncipe”
(BOBBIO, 2000, p. 17-20).

Esse florescimento liberal, que tem como ponto de


partida a Revolução Inglesa do século XVII e as Revoluções
Francesa e Norte-Americana, foi permeado por teorias
políticas e filosóficas que buscavam, essencialmente,
um antídoto contra o venenoso poder absoluto do
príncipe, culminando em um movimento jurídico-político
constitucionalista, cuja preocupação era encontrar, como
dito, meios eficazes para impedir o abuso do poder estatal,
a partir de mecanismos ou teorias próprias do pensamento
liberal, como: o Jusnaturalismo, limitando o poder do
Estado pelos direitos que são inerentes ao homem – direitos
naturais – preexistentes ao Estado e dele independentes;
a Democracia, baseada em ideário de soberania popular
como quebra de paradigma; a Separação de Poderes, como
forma de desconcentrar o poder estatal, atribuindo funções
a órgãos distintos.
Apresenta-se aqui a necessidade de uma importante
diferenciação entre a busca pela legitimação e a busca pelo
limite. Para Bobbio:

o característico do Estado liberal e democrático não


é tanto a maneira como é justificado ou instituído
[fazendo alusão às teorias contratualistas que,
segundo o autor, parecem estar ligadas à doutrina
moderna do Estado liberal, fundamentando o
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poder estatal num acordo dos simples membros da


comunidade], mas os limites que lhe são atribuídos,
os meios escolhidos para impedir o abuso de poder
(BOBBIO, 2000, p. 28, grifo nosso).

Nesse sentido, Kelsen atribui o renascimento


democrático a esses fatos provocadores da quebra de
paradigma no século XIX:

A ideia política do século XIX, nascida das


revoluções americana e francesa do século XVIII,
foi a democracia. Sem dúvida, também existiam
na civilização ocidental forças extraordinárias a
serviço da manutenção do princípio autocrático.
Seus representantes, porém, foram estigmatizados
como reacionários. O futuro pertencia a um governo
pelo povo. Essa era a esperança de todos os que
acreditavam no progresso, que defendiam padrões
mais elevados de vida social. Foi, sobretudo, a jovem
e ascendente burguesia que lutou por essa ideia.
(KELSEN, 2000, p. 139).

Por outro lado, mudanças intelectuais e políticas se


iniciam no século XX. Os Estados recém-criados pós Primeira
Guerra, por certo, adotam constituições democráticas – o
Reich alemão, o mais poderoso baluarte da monarquia,
tornou-se uma república –, porém, na Itália – a tinta do
documento de paz de Versalhes mal havia secado – o
governo fascista chegou ao poder. Na Alemanha, o partido
nacional-socialista dava início a sua vitoriosa ofensiva.
Junto com eles, defendia-se uma nova doutrina política
que se opunha ardorosamente à democracia e proclamava
uma nova forma de salvação política: a ditadura. A história
não deixa dúvidas acerca das figuras que exerceram a
liderança carismática sobre a burguesia naquele período,
não apenas na Itália e na Alemanha, mas em todo o mundo
ocidental, construindo teorias políticas que se opunham
ao ideal democrático. O comunismo soviético espelha uma
“democracia” substancialista, em que a ditadura do partido
comunista, pretendendo ser a ditadura do proletariado, é
apresentada como democracia (KELSEN, 2000, p. 28). Aqui,
segundo Kelsen, surge o problema do regime.
O significado original do termo “democracia”, para
Kelsen, cunhado pela teoria política da Grécia antiga, era o
de “governo pelo povo” (demos = povo, kratein = governo).
Em referência à democracia clássica, em sua essência,
designava-se pela participação dos governados no governo,
“o princípio de liberdade no sentido de autodeterminação
política” (Ibid., p. 140); e foi com esse significado que o termo
foi adotado pela teoria política da civilização ocidental.
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Contemplado, então, um governo “pelo povo”, seria


ele “para o povo”? Um governo “para o povo”, nos termos
de Kelsen (Ibid., p. 140), “significa um governo que atua no
interesse do povo”. Como questão relativa, aquilo que o povo
considera ser de seu interesse pode ser facilmente deturpado.
Adversários da democracia, Platão e Aristóteles
chamaram a atenção para o fato de que um governo pelo
povo, enquanto governo exercido por homens inexperientes
nas práticas governamentais e sem o necessário
conhecimento dos fatos e problemas da vida política, pode
estar totalmente distanciado dos interesses do povo e,
assim, revelar-se um governo contra o povo. Para Kelsen
(2000, p. 141), “governo para o povo” não é a mesma coisa
que “governo pelo povo”, uma vez que não só a democracia,
mas também o seu extremo oposto, a autocracia, podem ser
um governo para o povo. Nesse passo, essa “qualidade” não
pode ser um dos elementos da definição de democracia,
segundo o autor.
Outro ponto marcantemente considerado na doutrina
kelseniana refere-se ao bem comum impossível de ser
determinado pelo povo, na medida em que a questão quanto
ao que possa ser o bem comum “só pode ser respondida
por meio de juízos de valor subjetivos que podem diferir
fundamentalmente entre si, e que, mesmo que existisse,
o homem médio e, portanto, o povo, não seria capaz de
reconhecê-lo” (Ibid., p. 141). Assim, o povo não teria uma
vontade uniforme, sendo apenas o indivíduo o detentor da
vontade real, sendo o bem comum uma retórica.
O “governo pelo povo”, segundo Kelsen (2000), pode
ser determinado, então, por um governo no qual o povo
participa direta ou indiretamente, ou seja, um governo
exercido pelas decisões majoritárias de uma assembleia
popular, ou por um corpo ou corpos de indivíduos, ou até
mesmo por um único indivíduo eleito pelo povo.
Eleições democráticas são aquelas que se fundamentam
no sufrágio universal, igualitário, livre e secreto. Dependendo
do grau de satisfação desses requisitos, sobretudo da
universalidade do sufrágio, o princípio democrático pode
concretizar-se em diferentes graus. Para Kelsen (2000, p. 142):

esse princípio foi consideravelmente expandido


no século XX, graças ao fato de que o direito ao
voto, que no século XIX era um privilégio exclusivo
dos indivíduos do sexo masculino que pagavam
impostos, foi também estendido aos assalariados
não contribuintes e às mulheres.
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Sob essa ótica, a democracia torna-se uma democracia


de massa. Portanto, a participação pelo povo no governo no
sentido de criar e aplicar normas atinentes à ordem social, seja
direta ou indiretamente, consubstancia-se em um processo,
típico do que aqui é chamado de “sistema democrático”.
De acordo com a doutrina de Kelsen, não é um conteúdo
específico da ordem social que designa o que é democracia,
na medida em que o processo democrático é o fator que é
regido pela ordem jurídica, uma vez que é característico do
Direito, ele próprio reger sua criação e aplicação.
Nesse sentido, o elemento procedimental fica
em primeiro plano, enquanto o valor liberal revela-se
consequência de uma ordem jurídica democraticamente (e
procedimentalmente) definida, restando em segundo. Por
outro lado, pondera Kelsen que:

Enquanto sistema ou processo, a democracia é uma


“forma” de governo. Pois o processo através do qual
uma ordem social é criada e aplicada é visto como
formal, em contraste com o conteúdo da ordem
enquanto elemento material ou substancial. Se, no
entanto, a democracia é fundamentalmente uma
forma de Estado ou de governo, é preciso ter em
mente que o antagonismo entre forma e substância,
ou entre forma e conteúdo, é apenas relativo e
que, de um determinado ponto de vista, a mesma
coisa pode aparecer como forma e, de outro, como
substância ou conteúdo. Não há, em particular,
nenhum princípio objetivo que estabeleça uma
diferença entre o valor de uma e de outra. Em alguns
aspectos a forma pode ter mais importância, e, em
outros, o conteúdo ou a substância. (KELSEN, 2000,
p. 144-145).

Assim, de certo ponto de vista, valor e forma se


confundem, ressalvando que argumentar acerca da
preponderância de um formalismo excessivo, no sentido de
desacreditar por completo o viés procedimental do regime,
pode ser utilizado para ocultar interesses antagônicos ao
próprio regime. O procedimentalismo, definitivamente,
não pode ser esquecido ou abandonado. Ora, retornou-se
ao procedimento quando, após a tomada do parlamento
italiano, o partido fascista, em eleições gerais, conquista
a maioria. Mas e a substância democrática? Verifica-se a
necessidade de uma conceituação “siamesa”. Mesmo que
o governo se autointitule “para o povo”, o procedimento
não pode ter importância secundária. Se um governo é
para o povo, isto é, se age em seu interesse, concretiza a
vontade popular, consequentemente é também um governo
pelo povo? Se interesse do autocrator é aquilo que todos
desejam e atende ao interesse popular, é a vontade do
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povo, e portanto o próprio povo que governa, mesmo que


esse governo não tenha sido eleito com base no sufrágio
universal, igualitário, livre e secreto? Para Kelsen:

A objeção de que, nesse caso, o interesse que o


governo busca atender pode não corresponder
àquilo que o próprio povo vê como seu interesse é
rejeitado pelo argumento de que o povo pode estar
equivocado quanto a seu “verdadeiro” interesse e
que seu governo atende ao verdadeiro interesse
do povo, representa também a verdadeira vontade
do mesmo e deve, portanto, ser considerado
uma “verdadeira” democracia - em oposição a
uma democracia meramente formal, ou falsa.
Em tal democracia “verdadeira”, o povo pode ser
“representado” por uma elite, uma vanguarda ou
mesmo por um líder carismático. Basta apenas
desviar, na definição de democracia, a ênfase de
“governo pelo povo” [“governo do povo”] para
“governo para o povo” (KELSEN, 2000, p. 146).

4 A SIGNIFICAÇÃO DE “DEMOCRACIA” SEGUNDO OBER

Em sua origem grega, “democracia” é um composto de


demos e kratos, podendo-se traduzir demos como “o povo”,
considerando-se aqui como “homens adultos residentes em
uma polis” e kratos como “poder”, em que se tem, a priori,
uma significação correspondente a “poder pelo povo”.
Esse sentido de “poder” está relacionado, pelo senso
comum, a uma regra de votação para determinar a vontade
da maioria; tradução reducionista que se destina a designar
um sistema político no qual a decisão da maioria se apoia
numa regra de voto.
Nesse passo, é importante considerar que o vocábulo
grego para regimes políticos se designava tendenciosamente
a quem possui o poder, podendo ser uma única pessoa (um),
um número limitado (poucos - alguns em relação ao todo)
ou mesmo um largo corpo (muitos), ou seja, monarchia,
oligarchia, e demokratia. Conforme considera Ober:

Diferentemente de monarchia e oligarchia,


demokratia não responde, portanto, à pergunta:
“quantos têm o poder?” O termo grego padrão
para “os muitos” é hoi polloi e, no entanto, não há
nenhum regime grego com o nome pollokratia ou
pollarchia. Segundo, os nomes gregos de regime
dividem-se em termos com um sufixo -arche, e
2
OBER (2008) Tabela: terminologia
termos com um sufixo -kratos. Aristokratia (de
hoi aristoi: o excelente), isokratia (de isos: igual)
grega (e neo-grega) para tipos de
e anarchia são nomes clássicos de regime que se
regime. Formas anteriores (atestadas
encontram fora do esquema “um/poucos/muitos”
no século quinto) em negrito, embora caiam no grupo -arche/-kratos. (OBER,
invenções posteriores (século quarto) 2008, p. 4).2
em fonte normal, invenções pós-
clássicas/modernas em itálico.
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Não obstante o vocabulário grego para regimes


políticos cair, por vezes, em lacunas já verificadas por
Josiah Ober, boa parte é designada por dois grupos sufixais
já apontados, onde se pode concluir razoavelmente que
o sufixo kratos significava algo bem diferente de arche,
indicando conscientemente uma concepção diferente de
“poder”. Isto se verifica na seguinte tabela produzida pelo
autor no ensaio já citado, em que se pode verificar um mapa
aproximado do terreno terminológico, concentrado nos seis
termos - demokratia, isokratia e aristokratia (raiz em kratos)
e monarchia, oligarchia e anarchia (raiz em arche). Ober
(2008) orienta que a tabela apresenta um mapa aproximado
do terreno terminológico. O autor foca em primeira
instância os seis termos em negrito nas segunda e terceira
colunas da Tabela: demokratia, isokratia e aristokratia
entre [os termos que têm] as raízes –kratos, e  monarchia,
oligarchia, e anarchia entre [os que têm] as raízes - arche.
Cada um destes termos é atestado no século quinto, embora
oligarchia e aristokratia são, provavelmente, um pouco
posteriores a demokratia, isokratia e monarchia. Dada a
tendência grega para neologismo criativo, até mesmo no
domínio da política, é notável que alguns termos “faltam”
- Ober já notou a ausência dos derivativos-polloi. E nem
monokratia, oligokratia, ou anakratia foram algumas vezes
atestados. Demarchia refere-se não a um tipo de regime,
mas a um cargo local relativamente menor (ho demarchos,
significando algo como “o prefeito”).

Quadro 1: Mapa aproximado do terreno terminológico


I II III IV V
Termos políticos
Outros termos de
Corpo no poder raiz – kratos raiz –arche relacionados: pessoas,
nomes de regime
abstrações
tyrannia Tyrannos
A. Um Autocracia monarchia
basileia basileus (rei)
hoi oligoi (poucos)
B. Poucos Aistokratia oligarchia dynasteia
demokratia hoi polloi (muitos)
isonomia (lei)
isokratia poliarquia to plethos (maioria)
C. Muitos isegoria (fala)
ochlokratia to ochlos (plebe)
isopsephia (voto)
(plebe) isopsephos (votante)
isomoiria (partilhas)
dynamis (poder)
timokratia eunomia (lei)
ischus (força)
D. Outro (honra) politeia (mistura
bia (força vital)
(exempligratia) gynaikokratia anarchia de democracia
kurios (mestre)
(mulher) e oligarquia: tal
exousia (autoridade,
tecnocracia como utilizado por
licença)
Aristóteles)
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Segundo o autor, cada um dos três termos com


origem em –arche (coluna III) parecem relacionados com
“monopólio de ofício”. Assim, a palavra arche, em grego,
contém diversos significados correlacionados: início (ou
origem), império (ou controle hegemônico de um Estado
por outro), e ofício ou magistrado. Um magistrado grego era
um arche, e ofícios públicos enquanto corpo constitucional
eram archai (plural). Um archon era um magistrado sênior:
o titular de um cargo particular com deveres específicos (na
antiga Atenas, por exemplo, nove archons eram escolhidos
anualmente – juntamente com centenas de outros
magistrados) (OBER, 2008, p. 5).
Desta forma, cada um dos nomes com sufixo em arche
corresponde a um número de pessoas que exercem as funções
ou o ofício. Ao contrário, a terminologia kratos não é usada
para designar “ofício” ou “função”, tendo um significado raiz
em “poder”, variando o substantivo e suas formas verbais,
amplamente, podendo designar ‘dominação”, “governo” ou
“capacidade”. Assim, diferentemente das expressões com sufixo
arche, kratos não está designando um “número”, mas um tipo
de poder, no sentido de força, capacitação, ou “capacidade de
fazer coisas”; a capacidade do coletivo de fazer algo em âmbito
público. Nesse sentido, Ober (Ibid., p. 5) escreve:

A democracia não é somente “o poder do povo” no


sentido do “superior ou monopolístico poder do
povo comparado a outros potenciais detentores no
Estado.” Antes significa, de forma mais abrangente,
“o povo imbuído de poder” - eis o regime no qual
o povo adquire capacidade coletiva de efetuar
mudanças em domínio público. Tão logo não se trata
simplesmente de uma questão de controle de esfera
pública, mas de força coletiva e competência de agir
para com essa comunidade e, de fato, reconstituir
território público por meio da ação.

5 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DIANTE DE UMA


REALIDADE PLURALISTA

Retomando-se a constatação de que a Constituição


é o Estado enquanto realidade normativa, criado pelo
Direito para a realização de fins jurídicos e, de outro lado,
pautando-se na preconcepção de que aqueles fins jurídicos
devem estar voltados para o interesse público e o bem-
estar geral, deve-se verificar que a sociedade, destinatária
do comando constitucional é - e sempre será - intérprete da
Constituição, em que, dentro de uma concepção de Estado
de Direito (onde o valor democrático deve ser adicionado)
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garanta a participação do privado em conjunto com o


público no processo de superação dos desafios propostos
pela vida social contemporânea, por meio de uma realidade
verdadeiramente democrática.
Peter Häberle (1997) propõe a tese em que no processo
de interpretação constitucional estarão vinculados, além dos
órgãos estatais, todas as potências públicas, os cidadãos e
grupos sociais, não podendo se determinar numerus clausus
o elenco de intérpretes. Leciona que:

Interpretação constitucional tem sido, até agora,


conscientemente, coisa de uma sociedade fechada.
Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos
“vinculados às corporações” (zünftmässige Interpreten)
e aqueles participantes formais do processo
constitucional. A interpretação constitucional é, em
realidade, mais um elemento da sociedade aberta.
Todas as potências públicas, participantes materiais
do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela,
a um só tempo, elemento resultante da sociedade
aberta e um elemento formador ou constituinte dessa
sociedade (...weil Verfassungsinterpretation diese
offene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert
und von ihr konstituiert wird). Os critérios de
interpretação constitucional hão de ser tanto mais
abertos quanto mais pluralista for a sociedade.
(HÄBERLE , 1997, p. 13).

Por esse ângulo, todo aquele que vivencia o contexto


de regulação por uma norma é, direta ou indiretamente, um
intérprete dessa norma reguladora; o destinatário da norma
participa ativamente do processo hermenêutico, não detendo
os intérpretes institucionalmente estabelecidos tal monopólio.
Assim, numa sociedade plural, o intérprete
institucionalizado deve considerar, para estabelecer critérios
do que venha a ser a liberdade de expressão de pensamento
do indivíduo, fatores morais, culturais, religiosos etc.,
marcantes na sociedade. Ora, para que o indivíduo possa
expressar livremente seu pensamento, ou expressar-se
enquanto ser, deve-se considerar, antes, a liberdade de crença
religiosa, por exemplo; a liberdade de manifestação religiosa
como pressuposto da liberdade de expressão do indivíduo.
Aqui é que a sociedade não só influencia
decisivamente, como interpreta o texto constitucional,
uma vez que o vivencia. A interpretação dada pelos órgãos
institucionalmente responsáveis deve ser, portanto, reflexo
do caminhar social. Do contrário, se estaria diante de mera
imposição desconectada com a expectativa emanada pelo
ethos social. Poderia aqui ser considerada uma verdadeira
constitucionalização da sociedade.
Essa participação social no processo de interpretação
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pode se dar de diversas formas; discursos políticos produzidos


nas instâncias cidadã, midiática e dominante, manifestações
culturais, a palavra difusa. Porém, outros instrumentos de
participação direta do cidadão no atuar do Estado devem
ser considerados como fatores de determinação da vontade
e da expectativa social. O processo judicial é um deles.
Próprio da ideologia neoconstitucionalista recepcionada
pela Constituição da República de 1988, com objetivo de
tornar cada vez mais reais os direitos individuais e coletivos
assegurados, todas as garantias constitucionalmente
estabelecidas movem sua face para uma maior efetividade na
prestação jurisdicional, tomando-se por base uma importante
mudança substancial na forma de se encarar o Processo, ou
seja, uma “renúncia” ao devido processo legal, dando lugar
ao devido processo justo, devido processo constitucional.
Estes são os novos paradigmas constitucionais. No mesmo
sentido, Daniel Sarmento:

O segundo momento importante é o da chegada


ao Brasil das teorias jurídicas ditas pós-positivistas.
Foram marcos relevantes a publicação da 5ª
edição do Curso de Direito Constitucional de Paulo
Bonavides, bem como do livro A Ordem Econômica
na Constituição de 1988, de Eros Roberto Grau,
que divulgaram entre nós a teoria dos princípios
de autores como Ronald Dworkin e Robert
Alexy, e fomentaram as discussões sobre temas
importantes, como a ponderação de interesses,
o princípio da proporcionalidade e eficácia dos
direitos fundamentais. Também deve ser salientada
a ampla penetração, no âmbito de algumas pós-
graduações em Direito, a partir de meados dos anos
90, do pensamento de filósofos que se voltaram
para o estudo da relação entre Direito, Moral e
Política, a partir de uma perspectiva pós-metafísica,
como John Raws e Jügen Habermas. E ainda merece
destaque o aprofundamento no País dos estudos de
hermenêutica jurídica, a partir de uma nova matriz
teórica inspirada pelo giro linguístico na Filosofia
que denunciou os equívocos do modelo positivista
de interpretação até então dominante, assentado na
separação cartesiana entre sujeito (o intérprete) e
objeto (o texto da norma). [...] E esta racionalidade
se espraia para diversos ramos do Direito. No
Direito Civil, Penal, Administrativo, por exemplo,
cada vez mais a doutrina emprega normas e valores
constitucionais para reler os institutos tradicionais,
colorindo-os com novas tintas. E trata-se não apenas
de aplicar diretamente as normas constitucionais
especificamente voltadas para cada uma dessas
áreas, como também de projetar sobre estes
campos a influência dos direitos fundamentais e dos
princípios mais gerais do nosso constitucionalismo,
muitas vezes superando antigos dogmas e definindo
novos paradigmas. (SARMENTO, 2009, p. 126-127).

Pautado nessa nova ideologia político-jurídica, o


processo vem apresentando modificações substanciais no
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que concerne ao norte a ser adotado na descrição normativa


dos próprios códigos que o regem. A “contaminação”
constitucional, com a irradiação dos direitos e garantias
fundamentais para o processo, tem levado a crer que o
novo paradigma é a ideia de que o processo é mais e além
do que qualquer outro fenômeno, um instrumento de
desenvolvimento da pessoa humana. Seu objetivo é fazer o
ser humano mais feliz ou menos infeliz, sendo o processo um
verdadeiro instrumento para melhoria de qualidade de vida
das pessoas, pautado em um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, o próprio desenvolvimento
(Art. 3º, inciso II, CRFB/88).
Assim, deve-se ter em mente, em primeiro plano,
que em todas as ciências a quebra de paradigma de um
modelo ocorre, conforme Thomas Kuhn, por meio de um
conjunto de evoluções que desagua em uma revolução.
Conforme Matheus, Kuhn argumenta que os períodos de
acumulação gradativa de conhecimento pela comunidade
científica, denominados por ele de ciência normal, são
interrompidos e intercalados por períodos da chamada
ciência extraordinária, quando os “paradigmas” científicos
são questionados e revistos por meio das “revoluções
científicas”. Neste caso, a ciência evolui tanto de forma
acumulativa nos períodos de ciência normal, quanto aos
saltos, quando ocorrem as revoluções científicas (MATHEUS,
2005). Nesse sentido, uma nova ideologia resultante de uma
verdadeira revolução científica é consectário da constatação
humana, contaminada pelo meio. A contaminação da norma
pelo clamor de círculos sociais pela sua alteração.
Sendo assim e, para assim ser considerado, o processo
deve ser analisado sob duas naturezas jurídicas: social - como
instrumento que busca a pacificação social e instrumento
soberano de controle estatal; judicial - procedimento e
relação jurídico-processual. É nesse contexto que se insere a
discussão acerca de uma teoria democrática de participação
cidadã efetiva na formação da interpretação constitucional
por meio do processo. Nesse sentido, vale transcrever trecho
de José Rogério Cruz e Tucci, citando Cássio Scarpinella Bueno:
[...] a única forma de legitimar as decisões do
Supremo Tribunal Federal, sobretudo daquelas que
projetam eficácia sobre um número considerável
de jurisdicionados, é “reconhecer que ele deve,
previamente, dar ouvidos a pessoas ou entidades
representativas da sociedade civil – e, até mesmo,
a pessoas de direito público que desempenhem, de
alguma forma, esse mesmo papel, capturando os
próprios valores dispersos do Estado, suas diversas
opiniões e visões de políticas públicas a serem
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perseguidas também em juízo-, verificando em


que medida estão configurados adequadamente os
interesses, os direitos e os valores em jogo de lado
a lado [...] (BUENO, 1998 apud TUCCI, 2007, p. 14).

Nesse sentido, cumpre observar que o Supremo


Tribunal Federal consolidou entendimento (BRASIL, 2011)
no sentido de que o amicus curiae, nas ações de controle
concentrado de constitucionalidade, deve ser dotado
da chamada “representatividade adequada”, ou seja, a
pessoa, órgão ou autoridade que venha a se candidatar a
participação no processo nesta modalidade deve representar
efetivamente parcela da sociedade civil que será, direta ou
indiretamente, atingida pela decisão do Supremo Tribunal
Federal. Salvo melhor juízo, o conceito deve ser aplicado no
caso da repercussão geral, uma vez que, nos termos postos
pela própria Corte:

A intervenção do amicus curiae, para legitimar-se,


deve apoiar-se em razões que tornem desejável
e útil a sua atuação processual na causa, em
ordem a proporcionar meios que viabilizem uma
adequada resolução do litígio constitucional.
(BRASIL, 2011)

Mesmo que se considere impositiva a interpretação


constitucional em uma sociedade aberta, garantindo o
ordenamento meios formais para a participação democrática
da sociedade, pode-se esbarrar na questão da legitimidade.
Para Häberle (1997, p. 29), a questão da legitimação

coloca-se para todos aqueles que não


estão formal, oficial ou competencialmente
nomeados para exercer a função de intérpretes
da Constituição. Competências formais têm
apenas aqueles órgãos que estão vinculados
à Constituição e que atuam de acordo com um
procedimento pré-estabelecido.

Esse problema poderia ser superado quando se


considera que a integração dos grupos sociais com a
Constituição no processo interpretativo consubstancia-se no
princípio republicano, em que a intepretação é consequência
de uma Constituição que estrutura a própria sociedade, e
não só o Estado em sentido formal. Segundo Peter Häberle,
“limitar a hermenêutica constitucional aos intérpretes
‘corporativos’ ou autorizados jurídica ou funcionalmente
pelo Estado significaria um empobrecimento ou um
autoengodo” (Ibid., p. 34).
A questão da legitimação da sociedade como
intérprete, à luz de uma perspectiva democrática, baseia-
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se na conclusão de que democracia (como visto) não se


restringe a um procedimento de escolha de representantes
para composição de órgãos. Deve-se, portanto, considerar
que “povo” é elemento plural num contexto de democracia
liberal. Sobre o tema, Häberle propõe:

Não se deve esquecer que democracia é o


“domínio do cidadão” (Herrschaft des Bürgers),
no do Povo, no sentido de Rousseau. Não haverá
retorno a Rousseau. A democracia do cidadão é
mais realista do que a democracia popular (Die
Bürger-Demokratie ist realistischer als die Volks-
Demokratie). A democracia do cidadão está muito
próxima da ideia que concebe a democracia a
partir dos direitos fundamentais e não a partir
da concepção segundo a qual o Povo soberano
limita-se apenas a assumir o lugar do monarca.
Essa perspectiva é uma consequência da
relativização do conceito de Povo - termo sujeito
a entendimentos equívocos - a partir da ideia de
cidadão!3 Liberdade fundamental (pluralismo) e
não “Povo” converte-se em ponto de referência
para a Constituição democrática. Essa capitis
diminutio4 da concepção monárquica exacerbada
de povo situa-se sob o signo da liberdade do
cidadão e do pluralismo. Portanto, existem muitas
formas de legitimação democrática, desde que se
liberte de um modo de pensar linear e “eruptivo” a
respeito da concepção tradicional de democracia.
[...] A possibilidade e a realidade de uma livre
discussão do indivíduo e de grupos “sobre” e
“sob” as normas constitucionais e os efeitos
pluralistas sobre elas emprestam à atividade
de interpretação um caráter multifacetado.
(HÄBERLE, 1997, p. 38-39).

6 CONCLUSÃO

A “contaminação” constitucional, com a irradiação


dos direitos e garantias fundamentais para o Direito, tem
levado a crer que o novo paradigma é a ideia de que a
ordem jurídica é, além do que qualquer outro fenômeno,
um instrumento de desenvolvimento da pessoa humana,
por meio da instalação de um diálogo. A participação
democrática (procedimental ou substancial) é impositiva
3
Nota do autor: “Fortemente para que a intepretação constitucional seja feita pela própria
orientada pela ideia tradicional
de “povo” revela a tentativa de sociedade, como pressuposto da intepretação pelos órgãos
fortalecer a legitimação democrática oficiais. Numa sociedade aberta, plural, o intérprete oficial
da jurisdição mediante utilização
de pesquisas demoscópicas [...].
deve levar em conta as mutações, os anseios e expectavas
Contra uma orientação assente na sociais num processo dialético, que vai muito além dos
“vontade majoritária do povo” com métodos hermenêuticos tradicionais.
fundamento em reflexões teorético-
democráticas [...]”.

4 Perda ou diminuição da
capacidade.
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