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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

O DEVIR ESTÉTICO DO CAPITALISMO COGNITIVO 1


Ivana Bentes2

Resumo: Que modelos teóricos são produtivos para problematizar as “estéticas da


comunicação”, tornadas campo conceitual? O capitalismo cognitivo, as teorias do
dispositivo, o modelo das redes colaborativas são alguns dos campos e conceitos
apresentados e mapeados aqui. Aspectos biopolíticos e estéticos do capitalismno
contemporâneo que apontam para a co-evolução entre dispositivos, produção de
subjetividades e estéticas comunicacionais. Se a estética e o artístico já foram
considerados uma “exceção” hoje vêm se tornando a regra e a base do capitalismo
comunicacional erigindo a criação como modelo da produção. O “artista” torna-
se paradigma na constituição do precariado cognitivo, o produtor simbólico.

Palavras-Chave: Capitalismo Cognitivo. Midia-Arte. Teorias dos Dispositivos.

1. Aspectos biopolíticos do capitalismo comunicacional

Pensar a produção artística e cultural como fenômeno comunicacional e detectar


estéticas potenciais no campo da comunicação significa apontar para um contexto de
transição de modelos no campo da comunicação e da arte que nos parece indissociável da
conceituação em torno do chamado Capitalismo Cognitivo ou ainda “capitalismo cultural”
ou “capitalismo estético” (LAZARATTO. 2006. NEGRI. 2001. 2002. 2005) que implica na
idéia de co-evolução entre os dispositivos comunicacionais, a produção da subjetividade e o
chamado trabalho imaterial. Sem problematizar esse devir estético do próprio capitalismo,
tornado cultural, numa hipertrofia do estético, as estéticas da comunicação surgem como
epifenômenos e “exceção” quando, ao contrário, o estético e o cultural, é o que vamos
problematizar aqui, são a própria base do capitalismo contemporâneo.

Podemos dizer que a "chamada" economia "material" depende cada vez mais dos
elementos "imateriais" (NEGRI. 2001. 2002. 2005) que a ela se agregam e a qualificam: ou
seja, da produção de conteúdos simbólicos, afetivos, linguísticos, estéticos, educacionais etc.

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Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Estéticas da Comunicação”, do XVI Encontro da Compós, na
UTP, em Curitiba, PR, em junho de 2007.
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Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Nesse sentido, a "duração" dos ciclos de crescimento no capitalismo está cada vez mais
ligada ao fato da produção cultural e estética tornar-se (ou não) a própria base de sustentação
da mobilização produtiva. Eis, portanto, toda a dimensão da cultura/estética como
componente estratégico do desenvolvimento capitalista.

A produção/criação cultural e estética não é mais uma exceção, mas a regra, o


próprio paradigma da produção em geral. Não são apenas os conteúdos imateriais
(comunicacionais, lingüísticos, informacionais) próprios da cultura que se constituem em
base de sustentação do crescimento, mas também os seus processos de produção típicos: o
trabalho da cultura se apresenta como uma atividade que não é mais padronizável na forma
do emprego (assalariado); da mesma maneira, a atividade criativa foge à racionalidade
instrumental da firma; a relação entre o "produto" do trabalho da cultura e o "público"
implica em uma circulação desses dois momentos que tende a tornar produtivas as próprias
redes sociais de produção e ao mesmo tempo os consumos culturais:.
A produção e a criação culturais não são padronizáveis, nem dentro da racionalidade
instrumental da firma (da forma empresa), nem dentro da redução do trabalho ao estatuto
subordinado do emprego assalariado. O trabalho da cultura e a produção estética é o fato de
uma atividade de criação livre e ao mesmo tempo altamente socializada. É a própria vida
mobilizada na sua totalidade.
Uma invenção (criação) de linguagens que não saberia se tornar inovação (por
exemplo: modas e estilos de vida, expressões estéticas) sem a validação social que toda
linguagem precisa e alimenta ao mesmo tempo. O declínio das formas disciplinares de
mobilização produtiva de grandes massas de trabalhadores baseadas na hegemonia do chão
de fábrica é uma condição essencial para a singularização do trabalho, sua integração social
(entre produção e consumo-circulação) e a atualização de seu enorme potencial produtivo e
criativo. Assim como sua captura pelo biopoder, poder sobre a vida que se utiliza da mesma
malha comunicacional/cognitiva.

Quais as novas formas de organização das atividades de produção, criação e difusão e


o tipo de dinâmicas e de trabalho que as caracterizam? Como essas formas têm impacto
sobre a produção estética? Trata-se de articular as esferas da economia da cultura com as
configurações, por um lado, das dinâmicas empresariais (grandes empresas, pequenas
unidades produtivas, produção independente, trabalho autônomo etc.) e, por outro, com as

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formas de trabalho (seja ele um emprego que precisa de uma determinada


formação/qualificação, seja ele uma atividade precária, independente da relação de emprego)
e com a emergência das estéticas comunicacionais.

Isso significa mapear o objeto do ponto de vista de um trabalho caracterizado como


sendo descontinuo, precário, variável e altamente móvel e/ou flexível. Um trabalho e uma
atividade que “transitam” dentro de uma multiplicidade de experiências e projetos (uma
“organização por projetos”) e marcado por várias temporalidades: tempos de atividade e/ou
emprego; tempos de desemprego e/ou não atividade; tempos de formação, tempos de vida.

Uma atividade e/ou trabalho marcados enfim pelas representações sociais das
“ocupações” culturais que destituem a separação entre o trabalho “técnico” e a atividade
criativa e/ou artística. Destituem o tempo do trabalho e o tempo “livre”, o trabalho mecânico
e o trabalho “vivo”. É a vida mesmo que é mobilizada na produção
cognitiva/afetiva/expressiva.

2. O artista universal como modelo de subjetividade e as teorias do dispositivo

Segundo Jean-Louis Weissberg (1999) as tecnologias intelectuais de multimídia erigem


o amador individual ou coletivo (nem o consumidor tradicional nem o especialista) em figura
chave da mídia. Nessas tecnologias do consumo produtivo, o ato de consumo torna-se uma
parte decisiva da produção, numa reconfiguração e singularização no massivo. A “home-
midia” ou o escritório e o quarto de dormir doméstico, a rua, tornados ateliê e central de
produção, cria formas distintas de cooperação produtiva: cooperação na escritura de
softwares livres, formas intermediárias entre recepção e expressão, idéias recicladas e
recombinatórias, apropriação, zapping, alterações e autorações de uso e percursos, como
novas formas de autoria coletivas ou co-autoria.
O capitalismo midiático, cultural ou capitalismo estético é produtor e potencializador
de mudanças subjetivas e tem que gerir bens altamente perecíveis, a informação, a notícia,
mas também bens simbólicos e imateriais altamente valorizados, como a expressão e a
produção estética. No eterno presente das medições e interfaces, o amador e o artista
universais surgem como modelos de uma subjetividade pós-industrial, numa hipertrofia do
campo da produção estética na esfera da Comunicação.

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Como base teórica convergente das diferentes questões e hipóteses levantadas aqui,
nomeamos em especial as teorias dos dispositivos, como base para o desenvolvimento das
potencialidades estéticas no capitalismo cognitivo.
Obras-dispositivos que evidenciam a relação dos personagens e do próprio espectador
com a simulação, com a performance, com o espaço circundante, e com a experiência do
tempo real monitorado .
O exemplo da câmera de vigilância surge nesse contexto como um dos dispositivos-
modelos da percepção contemporânea. A explicitação dos dispositivos em certo cinema e arte
contemporâneos é o que explica a obra e ao mesmo tempo é o que deve ser explicado e
evidenciado.
Nos objetivos específicos desta pesquisa vamos propomos analisar obras cuja estrutura
narrativa é baseada (ou se assemelha) a percepção de um olho vigilante, um olho sem olhar,
olho mecânico, aberto num continum espaço-temporal. E ao mesmo tempo, fazem um
esforço para introduzir ai nesse olho-esvaziado uma singularidade. Fabulação,
ficcionalização, auto-performance são algumas das figuras dessas propostas que vamos
mapear, investigar e analisar e que estão presentes nas exposições de arte contemporânea, no
cinema, nos sistemas de vigilância, em dispositivos os mais distintos.
Pensar as obras e filmes-dispositivos é pensar as condições de possibilidade da
narrativa. O lugar de onde os personagens se expressam, se afastando do modelo clássico de
análise fílmica que pressupõe certa autonomia da narrativa, encerrada nela mesma. A análise
fílmica clássica se torna insuficiente para pensar essas obras e filmes que não saberiam se
encaixar em questões de gênero, ou ser lidos apenas pela psicologia dos personagens ou
análise dos conteúdos.
Se na arte conceitual “a idéia é o motor da obra”, em algumas obras e
proposições contemporâneas, o dispositivo é o disparador ou o condicionador de narrativas e
sensações.
A todo instante somos demandados como performers e atores. Que personagem
viver? Somos demandados a observar e cuidar de nossa performance social, privada, a viver
identidades prontas mas também experimentar que “eu sou um outro”, oscilações e
demandas paradoxais que denunciam o lugar vazio do sujeito, a preencher. Quem sou eu, não
está dado, estou me performando.

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Ao confrontarmos, por exemplo, programas-dispositivos como os reallity shows,


“zoológicos humanos’, programas sobre comportamentos, com dispositivos sociais atuantes,
podemos encontrar outras subjetividades-modelo. O espectador onipotente que exclui e
elimina participantes, que o tempo todo é instigado a exercer uma intervenção baseada em
valores, participar de lógicas de rivalidade, punir e premiar. Capaz de mudar os rumos da
história, esse espectador-participador onipotente é adulado e colocado no lugar da “direção”,
mas também na função de juiz, executor, avaliador. Os dispositivos explicitando
configurações sociais e relações assimétricas.

Para problematizar a emergência do campo denominado “Estéticas da Comunicação”


parece-nos produtivo a retomada da teoria dos dispositivos, formulada nos anos 70, e revista
hoje a partir de novos termos e contexto, por diferentes autores. Teorias e conceitos que
podem ser utilizados na análise de inúmeras obras que vêm problematizar a projeção e a
percepção clássicas, criando outra relação com o espectador interator e com distintas
experiências de espaço e tempo.

No campo da arte, foi Jean Louis Baudry (1975) um teórico do cinema, quem
disseminou o conceito de dispositivo, no ensaio intitulado Le Dispositif (o Dispositivo) que
tratava da teoria do espectador cinematográfico. Pensar o cinema como dispositivo
significava apontar as características que regulam a relação do espectador com a obra,
relações mentais, relações espaciais, temporais.
O dispositivo não se reduzindo ao aparato técnico e colocando em operação um
modelo mental. A sala de projeção cinematográfica, segundo Baudry funcionou a partir do
mesmo modelo da Câmara Escura, origem da fotografia, dispositivo que evitava que o
observador percebesse sua posição como parte da representação.
Para Jonhatan Crary (1996), esse tipo de dispositivo separa o ato da visão do corpo
físico do observador, as sensações do observador sendo desqualificadas diante de verdades
pré-estabelecidas, certezas da razão e um mundo verdadeiro. Como na alegoria da Caverna de
Platão, a câmara escura e depois a sala de cinema configurou a experiência do espectador
clássico, introspectivo, distanciado e com autonomia frente ao mundo exterior 3 Dispositivo a

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Tema desenvolvido por BENTES. 1994

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serviço da perspectiva clássica, marcado pelo voyerismo, pela pulsão escópica e pela
produção de um certo imaginário.
Essa teoria do dispositivo, formulada originalmente nos anos 70 no contexto da
discussão entre cinema e psicanálise e teorias do estruturalismo migrou para outros contextos
e recebeu diferentes formulações, como na teoria da “caixa preta” de Vilem Flusser (2002)
na descrição do filme-dispositivo proposto por Jean-Louis Comolli, dentro da conceituação
do cinema-verdade, na formulação de Anne Marie Duguet (1988) sobre os dispositivos na
videoarte (presente nas obras de artistas tão diversos quanto Nan June Paik, Bruce Naumann,
Bill Viola, Antoni Muntadas, etc.) e de forma mais ampla no pensamento de Michel
Foucault (1983. 1993) e Gilles Deleuze, além de outros autores de campos muito diversos.
Ao ultrapassar o plano dos significados e conteúdos, dando ênfase em aspectos
formais, técnicos, espaciais, que configuram o sentido, o conceito de dispositivo se tornou
decisivo para se pensar uma série de campos emergentes, como a videoarte, as vídeo-
instalações, a arte telemática, as estéticas e narrativas extraídas do campo da comunicação ou
os usos estéticos e sociais da internet, celular, GPS, web-câmeras, sensores e câmeras de
vigilância, programas, redes e sistemas de sociabilidade.
O pensamento em torno dos dispositivos dá visibilidade aos elementos estruturantes
das obras, sua relação com o espaço, a forma como mobiliza o corpo do participador, os
modelos mentais que conjura, tornando-se ao mesmo tempo objeto e discurso.
A arte contemporânea tem que enfrentar uma hiper-atividade estético-midiática que
não para de colocar a questão: “que é ou quem poderia ser um criador?” O artista
contemporâneo concorre com a mídia como poder de invenção, se alimenta dela e a subverte.
faz da cultura midiática uma nova pele. Para Derrick De Kerkove (1995), o ponto de vista
foi substituído pelo ponto de existência. O que significa que somos mobilizados pelo nosso
corpo e sentidos, posicionados nesse ambiente estético-midiático ampliado.
Nesse sentido, esta pesquisa vai investigar a notável a evolução dos dispositivos em
torno da projeção e desterritorizalização das imagens. Na arte contemporânea, as instalações
(de vídeo, fotográficas, cinematográficas) deslocaram as projeções para objetos
tridimensionais, sobre o corpo, em espaços públicos, conjuntos arquitetônicos, (colunas,
escadas, tetos), em materiais diversos, água, terra, óleo, fumaça, vídro, em ambientes de
estar, em percursos, ou projeções diretamente no olho.

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Numa cultura em que a meta-linguagem vai se tornando um aprendizado de massas e


que Alice atravessou o espelho, percebemos uma pedagogia dos dispositivos que vai
evidenciando a performance, os meios de construção da subjetividade, e explicitando a
imagem como construto. Onde somos “imagem entre imagens” se construindo,
experimentando o mundo de muitos lugares, tornados interfaces, mediadores ou ainda
figuras do controle..

Queremos investigar essas duas dinâmicas complementares na constituição das


estéticas da comunicação ou da chamada mídia-arte. De um lado o devir midiático das artes,
quando a arte contemporânea se apropria dos meios e dispositivos para extrair deles seu
potencial estético, incorporando ou subvertendo-os em proposições artísticas (instalações,
performações, ambientes multisensorias, etc). De outro, um devir estético das mídias., com a
desterritorialização e circulação das imagens, que migram para os mais diferentes suportes,
criando um cinema- mundo ou mídia-mundo.

Se os dispositivos são moduladores de tempo e de espaço, também são “tecnologias


do afeto”, de produção de contato e aquecimento das relações pessoais, sociais, de produção
de coletivo. O afeto torna-se (NEGRI. 2005) um valor diferencial no capitalismo midiático ou
cognitivo. Mercadorias, obras, produtos, imagens, signos, pessoas, discursos investidos de
afeto têm seu valor multiplicado e mais do que isso se tornam valor. O capital, investido de
afeto, torna-se biopoder, poder sobre a vida e sobre o corpo social, mas também convoca
uma bio-politica de resistência aos seus fluxos, através de redes de colaboração.

As tecnologias de comunicação e produção de redes e mediação social (blog, fotologs,


vídeoblogs, Orkut, Multiply, Frienster e tantos outros) não param de crescer, programas de
sociabilidade exponenciais. Dispositivos que configuram, classificam e modificam as formas
de relacionamento. Dispositivos de organização espacial, temporal e mental, que trazem
potencialidades estéticas sociais e políticas, organização e controle.. Procuraremos mapear
essa dupla face dos dispositivos a serem analisados.

O capitalismo imaterial tem captadores instalados em todo o corpo social, corpo vivo
que monitora pela vigilância a céu aberto, rastreamento dos hábitos de consumo, através das

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senhas, códigos de barras, rastros deixados na internet, celulares etc. Entretanto os mesmos
dispositivos de controle são dispositivos que colocam os consumidores em contato, criam
redes, e mais do que isso, organizam os consumidores e os transformam em interatores e
performadores. De controle e consumo, os dipositivos midiáticos podem passar a ferramentas
de resistência. organização, mobilização, num corpo social que reage e interage, produz,
estimulado e excitado pelo próprio biopoder, mas capaz de criar biopoliticas.
A continuidade e extensão entre o tempo da vida, o tempo do trabalho, o tempo do
lazer, o consumo e a produção estética caracteriza o capitalismo pós-industrial (NEGRI
2002). As máquinas que servem à produção (computador, telefone, celular, TV, internet), são
interfaces lúdicas, que estreitam a convivência e servem a comunicação e a arte. A mídia-
arte se aproxima do game, da televisão quando aposta nos jogos de convivência como
simulações de uma certa vida social, lugar de fidelização, lealdades, criação de vínculos,
produção de narrativas .
Na busca de criar fatos midiáticos continuamente, capturar nossa atenção e comprar
nosso tempo, a televisão convoca o próprio espectador ou usuário a participar do processo de
produção da informação. As estéticas da comunicação também podem mobilizar esse
espectador-participador. Ele é o consumidor-produtor que Walter Benjamin anteviu nos
leitores que escreviam para os jornais, e que hoje recebem câmeras de vídeo para produzir
imagens que vão entrar no telejornal, no programa de variedades, numa denúncia política, no
"álbum" eletrônico coletivo ou em uma obra de arte. As tecnologias doméstico-industriais
transformam cada um de nós em unidades móveis de produção de imagens e informação que
alimentam o sistema de comunicação e o circuito de arte.

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3. Dramaturgias do Tempo Real e Tecnologias Colaborativas

É preciso estar atento nesse contexto que queremos investigar para as “dramaturgias”
do tempo real apontadas pelos reallity shows e performances em rede, que surgem entre a
encenação e o acontecimento, como experiência diferencial de tempo e espaço.
Os dispositivos de criação de co-presença e co-realidades, estou aqui e lá, propiciados
pelas web-cams e dispositivos de telepresença, abrem um campo vastíssimo para estéticas e
dramaturgias on-line, ou melhor cenas e situações virtuais, ambientes de co-presença que
provocam distúrbios perceptivos:
“Johannes Birringer nomeia novos espaços de performação, intensamente
alimentados por dados --em tempo real—que colocam os performers e a audiência
em espaços simulados de improviso e presentificação. As telas digitais, de cristal
líquido, os espaços da cave, os artistas plugados e sintonizados na rede , passam a
substituir os espaços materializados das Artes Plásticas. ” (COHEN. 2005)

As salas de instalações são amplificadas para se conectarem a espaços vivos


produzidos pela tele-presença, numa ficionalização do presente e do espaço, que produz o
tempo real da cena e da experiência compartilhada. Quais as qualidades desse “tempo real”?
Tempo produtor de experiências e imagens fluídas, que estão sempre passando, abertas ao
acaso e ao acontecimento, mas também passíveis de controle e monitoramento.
Temos uma percepção exacerbada da experiência da simultaneidade. A
possibilidade técnica da experiência de um continum espaço-temporal, por blocos de espaço e
tempo, que duplicam o aqui e agora. Eu estou aqui nesse quarto, mas posso me conectar,
posso consumir, posso me instalar com certa facilidade em outros ambientes. A câmera de
vigilância e web-cam são a forma mais simples de experimentar isso, o consumo de
ambientes simultâneos através de câmeras e canais abertos, não mais como simples janelas,
mas como espaços de visualização e ação nesse mundo ampliado, em um presente dilatado.

Uma outra referência decisiva na investigação de novos modelos teóricos para o


campo da Comunicação e mais especificamente para a questão que nos interessa investigar
das estéticas midiáticas ou comunicacionais é o modelo P2P (peer to peer, ponto a ponto) de
tecnologias colaborativas. Questão, da colaboração e do comum que aparece em muitos dos
dispositivos midiático que trabalham com a proposta de “interação” , “participação”, co-

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autoria, fronteiras entre o autor e seu devir “multidão” ou uma diluição da autoria em novas
formas de colaboração coletiva.
Segundo Michel Bauwens (2006) à medida que os sistemas sociais, econômicos e
políticos se transformam em redes distribuídas, surge uma nova dinâmica produtiva: o
modelo peer to peer (P2P), ponto a ponto. Mais que uma nova tecnologia de comunicação é
o modelo de funcionamento de novos processos sociais e faz surgir um terceiro modo de
produção, de autoridade e de propriedade. E poderíamos supor, novos modos de produção
estéticas.
Os processos P2P designam todos os processos que visam aumentar a participação
generalizada de participantes equipotenciais. Suas características mais importantes, segundo
Michel Bauwens, são:
a) produção de valor de uso através da cooperação livre entre produtores que têm acesso
a capital distribuído: diferente da produção com fins lucrativos e da produção pública,
detidas pelo estado. O seu produto não reside num valor de troca destinado ao
mercado mas num valor de uso dirigido a uma comunidade de utilizadores.
b) são administrados pela comunidade de produtores e não por mecanismos de alocação
do mercado ou por uma hierarquia empresarial. Este é o modo de autoridade P2P ou
'terceiro modo de autoridade'.
c) disponibilizam livremente o valor de uso segundo um princípio de universalidade,
através de novos regimes de propriedade comum. Este é o seu 'modo de propriedade
distribuída ou entre pares', diferente da propriedade privada ou da propriedade
pública, estatal

Mas, o que é necessário para facilitar a emergência de processos entre pares? Como
a emergência desse modelo altera os paradigmas das teorias da Comunicação? A Infra-
estrutura do P2P e Redes Sociais Colaborativas tem 5 condições básicas, propostas por
Bauwens, que nos interessa investigar, e está entre os objetivos gerais e contextos desta
pesquisa. São elas:

a) A existência de uma infra-estrutura tecnológica instalada. Os movimentos para a inclusão


digital, com a disseminação de computadores pessoais e coletivos, acesso público a internet e
das redes comunitárias sem fios e em defesa do espectro aberto, os sistemas televisivos de

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file-serving – TiVo - e as infra-estruturas alternativas de telecomunicação assentes em


meshworks são representativos desta tendência.

b) Sistemas alternativos de informação e comunicação que permitam a comunicação


autônoma entre agentes cooperantes. A Web (em particular, a Writable Web e a Web 2.0 que
estão em vias de ser estabelecidas) permitem a produção, disseminação e 'consumo' do
material escrito, assim como o podcasting e o webcasting criam uma infra-estrutura
alternativa de informação e comunicação' multimídia sem o intermédio dos meios de
comunicação clássicos (embora possam vir a surgir novas formas de mediação).

c) O terceiro requisito é a existência de uma infra-estrutura de software destinada à


cooperação autônoma global. Um número crescente de ferramentas de colaboração que se
inserem no software de redes sociais, como os blogs e as wikis, facilitam a criação de
confiança e capital social, permitindo a criação de grupos globais que conseguem criar valor
de uso sem o intermédio da produção ou distribuição efetuada por organizações com fins
lucrativos.

d) O quarto requisito é uma infra-estrutura legal que permita a criação de valor de uso e que o
proteja da apropriação privada. A General Public Licence (que proíbe a apropriação do
código de software), a análoga Open Source Initiative e certas versões da licença Creative
Commons desempenham esta função. Elas possibilitam a proteção do valor de uso comum e
empregam métodos virais para se disseminar. A GPL e outras licenças semelhantes só podem
ser utilizadas em projetos que, em troca, colocarem o seu código-fonte adaptado no domínio
público.

e) O requisito cultural. A difusão da intelectualidade de massa (isto é, a distribuição da


inteligência humana) e as transformações associadas nas formas de sentir (estética) e ser
(ontologia), formas de conhecer (epistemologia) e nas constelações de valores (ética) vtêm
contribuído para a criação do tipo de individualismo cooperativo necessário para manter um
ethos que torne possível as redes colaborativas.

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As estéticas da Comunicação têm no modelo P2P uma base importante de problematização


de dualidades clássicas: público e privado, diluídos no conceito de comum, autor tornado
co-autor ou dissolvido na perspectiva das estéticas multitudinárias e a própria fusão
arte/sociedade.

4. O Precariado Cognitivo e o Biopoder

“ As lutas eliminam a distinção tradicional entre conflitos econômicos e políticos.


As lutas são ao mesmo tempo econômicas, políticas e culturais – e, por
conseqüência, são lutas biopolíticas, valendo para decidir a forma da vida. São
lutas constituintes, que criam novos espaços públicos e novas formas de
comunidade. (NEGRI, HARDT 2005)

Interessa aqui apontar para as condições materiais da revolução


informacional/comunicacional que viemos problematizando, as novas liberdades, mas
também as novas formas de escravidão, incertezas e precariedade, para melhor configura o
contexto em que emergem as estéticas da Comunicação

Se dissemos que, no capitalismo cognitivo, a geração de renda (de riqueza) não está
mais indexada à geração de emprego (e vice-versa), logo as curvas de crescimento da
produção de riqueza não têm mais como mecanismo básico de distribuição de renda e
integração cidadã a dinâmica do emprego. Mas ocupações flexivéis, múltiplas e incertas.

Ser trabalhador/produtor cognitivo e ter acesso à cidadania material não são mais dois
momentos que coincidem, essa separação entre dinâmica da geração de renda e dinâmica do
emprego coloca desafios novos, pois se trata de uma das principais causas da amplificação
dos fenômenos de exclusão social (flexibilização dos direitos trabalhistas, amplificação da
informalidade, redução da proteção social etc.), de enfraquecimento das organizações
sindicais e, em última instância, de desmanche da própria dinâmica da representação. O
"emprego" não consegue mais ser a alavanca da distribuição da renda: seja porque ele
encolhe (não necessariamente de maneira absoluta, mas certamente com relação às taxas de
crescimento), seja porque ele é flexibilizado, fragmentado no tempo e no espaço.
A fenomenologia dessa separação entre geração de renda (de valor) e dinâmica do
emprego é exatamente a que aparece no processo geral de fragmentação social e o declínio

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dos tradicionais movimentos sociais (em particular dos sindicatos operários) e das formas de
representação clássicas.
Para a singularidade que coopera no âmbito da multiplicidade das redes sociais de
cooperação não ser reduzida a fragmento isolado em competição com os outros (e, portanto, à
mercê de ser capturado pelas lógicas mercadológicas e seus processos de unificação
padronizada), ela precisa de uma esfera que materialize e permita o exercício produtivo de
sua liberdade. Uma esfera do “comum”, a ser conceituada.
Na perspectiva desta pesquisa de se utilizar e apontar modelos teóricos produtivos
para problematizar as “estéticas da comunicação”, tornadas como campo teórico torna-se
necessário diluir cada vez mais as fronteiras entre arte erudita, popular e massiva,
desconstruir o dualismo experimental e comercial, fazer dialogar objetos de valor estético
com produtos culturais, reafirmar a co-evolução entre subjetividades e dispositivos
tecnológicos para além de qualquer visão instrumental da comunicação, colocando-a na
esfera da possibilidade de compartilhamento de experiência, produção expressiva e
potencialização das singularidades.

Referências
BAUWENS. Michel. The Political Economy of Peer Production in
http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=499 Consultado em dezembro de 2006

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