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Poética da Relacgao Edouard Glissant Nao Ficgéo SEXTANTE EDITORA Eal Poética da Relagao Edouard Glissant Publicado em Portugal por Sextante Editora Titulo original: Poctique de la Relation © Editions Gallimard, 1990 © Porto Editora, 2001 bro de 2001 1" edigao: ou Tradugio: Manucla Mendonga Revisio técnica: Manuela Ribeiro Sanches Revisio tipogréfica: Helder Guégués Design e imagens da capa: © Arne Kaiser Organizagao CAMARA MUNICIPAL DE LISBOA, Vereadora da Cultura e do Turismo Catarina Vaz Pinto Diretor Municipal da Cultura Francisco Motta Veiga AFRICA.CONT-CML José Anténio Fernandes Dias Coordenagao Editorial e Produgao Sextante Editora AFRICA.CONT-CML Joao G. Rapazote Reservados todos os direitos. Esta publica¢o nao pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo eletrdnico, mecinico, fotocépia, gravagio ou outros, sem prévia autorizacdo escrita da Editora. Detriig0 Porto Editora, Lda, Rua daRestaurag30, 365, 4099-073 Porta | Portugal ‘SEJA ORIGINALL, DIGA NAO A COPIA asrere on iron 8 ATOR wu portoeditora 1 rio atc co Gc Lda Uniden. dsoa veh LEGA Ss8e07m A copia ilegal viola os direitos dos autores (Os prejudicados somos todos nés. SSaN378-972-0-0785-8 Indice OBarulhamento do Mundo 7 Prefacio de José Anténio Fernandes Dias Imagindrio 13 ABORDAGENS Abarcaaberta 17 Aerrancia, 0 exilio 21 Poéticas 31 Umaerranciaenraizada 43 ELEMENTOS Repetigoes 51 Aextensao ea filiagdo 53 Lugar fechado, palavraaberta 67 De um barroco mundializado 79 Da informacao do poema 83 CAMINHOS Crioulizagdes 89 Ditar, decretar 91 Construir atorre 101 Transparéncia e opacidade 107 Apraianegra 117 | TEORIAS _ CRelagao 127) ORelativoeo Caos 129 Os desvios determinantes 137 Oqueoque 153 Religado (revezado), retransmitido 161 POETICA Generalizagdo 173 O que sendo ente nao é ser Pela opacidade 179 Circulo aberto, Relagao vivida 185 Apraiaardente 193 175 Notas em lugares comuns 199 Fontes 209 Iv TEORIAS A teoria é auséncia, obscura e ‘Propicia ve Relagao As ressondncias das culturas, em simbic a ose ou em conflito — poder-se-ta dizer: em polka ou em laghia ~ na dominasde a na jibertacao, que abrem & nossa frente um desconhecido inc mente proximo € diferido, cujas linhas de forca por vezes a adivinhar, para logo se furtarem. Deixando-nos a imagine (jogo, que simultaneamente desenhamos — para sonhar ou agir. A desconstrugao de todo o contacto ideal que pretendéssemos definir nesse Jogo € de onde subitamente ressurgissem os vampiros do totalitdrio. A posigao de cada uma das partes nesse todo: isto é, a validade reconhecida de cada Plantagdao particular; mas também a urgéncia de conceber a ordem oculta do todo — para ai errarmos sem nos perdermos. Arecusa de toda a generalizagao de absoluto, mesmo, e sobre- tudo, quando segregada nesse imagindrio da Relagao: isto é, a possi- bilidade para cada um de ai se encontrar, a qualquer momento, solidério e solitério, ORELATIVO £0 CAOS Andavamos em torno do pensamento do Caos, que ele mesmo circula em sentido contrario a aceitagio vulgar do «cadtico» e se abre sobre um dado inédito: a Relacao, ou totalidade em movimento, cuja ordem flui incessantemente e cuja desordem é para sempre imaginavel. pressentindo Ha uma correspondéncia significativa entre as filosofias ela- boradas pelas ciéncias no Ocidente e as concegées que geralmente ai se tém, ou que ai sao impostas, das culturas e das suas relagées. Na era do positivismo triunfante, a concegao da cultura (e nao ainda das culturas) é monolitica: ha cultura em toda a parte sem- pre que o requinte civilizacional conduziu ao humanismo’. Assim concebida, a cultura apresenta-se como o puro abstrato, a esséncia desse movimento em diregdo a um ideal. Aqueles que a ela acedem so os pilotos e os garantes do movimento. Ensinam ao resto do mundo. Esquecido, obliterado, abafado por mais de trés séculos, 0 relativismo de Montaigne. Sera necessario que a ideia do relativo seja ilustrada na teoria cientifica da relatividade para que preva- leca o sentimento do relativismo das culturas'. Aquilo que geralmente apreendemos do pensamento de Eins- tein é essa ligacao simples da relatividade com 0 principio do rela- tivo. O resto esta dissimulado no bastiio dos teoremas. Por substituiciio ou compensagao, 0 publico mitificou a pessoa do sdbio, por nao poder aceder diretamente aquilo que ele diz. Essa © positivismo eo humanismo tém isto em comum ~ acabam por impor como realidade um «objeto ideal que definiram & partida como valor. PDLRELAT.o9 SD Edouard Glissant ae da forga do relativo em nds, A tay Fcomum (ou lugar. s razées, isto é pela sua carga sim. cartoza de se ter captado 0 seu contenido, essa Teoria, no que toca a nossa m as nossas insuficiéncias de nag Capecilistas? Que no hd pensamento do absoluto, mas também que a Relagio de incerteza pressuposta por Heis enberg talvez nag funde um probabilismo irreversivel. (Estarao as particulas «ele. mentares» submetidas ao acaso?) Para Einstein, a Relatividade nao se apresenta como puro relativo. O universo tem um «sentido» que nao é acaso nem necessidade: um deus geometra (0 de Newton?), em todo 0 caso uma «razio poderosa e misteriosa», prop6e-nos um enigma a decifrar; como em Descartes, nao é, pois, um génio. O enigma (essa coisa qualquer a adivinhar por intuigao, averificar por experimentagao) «garante» a dinamica interativa do universo e do conhecimento que temos dele. O pensamento experimental baseia-se nessa interagéo e por seu turno, que 0 enigma nao sera transformado em qualquer coisa dele) nem em Seng: se tornou Ty alday ula E=me utiliza com be ao 60s fo ese mitificag ponto qv -comum), qu bélica, sem se fer Que retemos nos d ando nao estumos limitados pe qu «garante», impossivel (poder-se-4 sempre captar absoluto (haver4 sempre algo a captar). ‘A totalidade em que a Relatividade se exerce, e a que ~ por acio do espirito—ela se aplica, nao é, pois, totalitaria: nao se impoe a priori, nao se imobiliza num absoluto. E para o espirito, por conseguinte: nem dogmatismo constrangedor, nem ceticismo probabilista. A aceitacao do relativismo cultural («as culturas humanas valem, cada uma no seu meio, equivalendo-se no seu conjunto») acompanhou a adesao ou pelo menos a habituagao das conscién- cias a ideia da Relatividade. Esse relativismo cultural nem sempre esteve a salvo de uma coloragao essencialista, que impregnou os conceitos que contribu- iram para contestar a dominagio das culturas conquistadoras. A ideia de uma Africa, concebida como indivisa, e a teoria da Negritude (no meio francéfono) fornecem duas ilustragées, muitas vezes, e por isso mesmo, controversas. Por outro lado, considerou-se que esse relativismo provinha, por seu turno, do «meio-termo». Ha diversidade das culturas, mas 130 Pottica da Relagao, ela ndo impede que se constituam hicrarguis slo menos UMA ASCENSAO (regular ou den’ ; Fade um mundo —ou de um modelo~ universe) 8 transpar cia para 0 espirito: nem etnocentrisma totalitdrig Por consequén- ge tibua rasa. A preciosa ideia de Montai, itério, nem anarquia ramerrao tendencioso dessa nova ras Ag acomodara-se ao ivismo no era do dominio do relative, © NUmanismo. Esse Tal como a Relatividade pressupunha fina monia do universo, 0 relativismo cultur: ae nao audacioso e balbuciante) assegi mundo, uma transparéncia global e dade-das-Nagées» do cultural nao re: As de civil relati i nte uma Har- ‘al (que fora o seu reflexo urava, na sua percecio do afinal redutora. Essa «Socie- d sistiu ao turbilhio. Mas, ao sentimento dogmiatico de superioridade, a manobra maligna do falso relativismo, Sucedeu-se entao o desencantamento refinado, o sentido agudo da inutilidade de tudo. Se, de facto, tudo equivalia no turbilhdo, se a realizagio da totalidade-Terra a cava num caos ~ tudo isso servia para qué? A entrada na totalidade, que deveria ter sido exaltante, ressumava um gosto a decadéncia de império, reforgado talvez, depois da Segunda Guerra Mundial, pela presenga antagénica dos dois impérios romanos do nosso tempo, os Estados Unidos e a Unido Soviética, ambos movidos pela mesma crenga ingénua, por vezes verificada no real, da sua superioridade sobre os outros povos. Poder-se-ia pensar que ambos, que dispu- nham de bens suficientes para nao se afligirem, iriam murmurar para consigo: «Esta noite, Liiculo janta em casa de Liculo.» Entretanto, os povos pobres tinham permitido, com a sua irrupcio, a eclosdo de ideias novas — a alteridade, a diferenga, o direito das minorias, 0 direito dos povos. Contudo, parecia que essas ideias mais nao eram que poeira a superficie do magma. Nao se via como conceber 0 desamparo global das humanidades que se encontravam e se defrontavam nos espacos ¢ tempos do planeta. Entdo, vinda das intuigdes cientificas, propagou'se essa ideia de que era possivel estudar 0 Caos sem sucumbir A vertigem desen- cantada das suas incessantes transformacoes. es em que se exercem, OU se Arrisquemos duas das dire¢o exasperam, os poderes das ciéncias. 131 Edouard Glissane o imediatamente tecnologica, que tende a Mt alincar projetantes © prepara, se nao a chegada aay fandor da, 7 : (pode que nunca consiga chegar), pelo menos fee © pensamento tecnoldgico sabe que nunca sowona ie d do do universo, mas nao se assusta com isso, Pelg contr Naroneea no mistério do infinitamente pequeno (do «ele. mento primordial»), temendo encontrar ai um limite dentro de um Primeiro. a apl contece esgotard limite infinito. ; / ; ‘A teoria do campo unificado construida por Einstein tentava fazer uma ponte entre essas duas dimensoes do universo e definir a sua unidade indiferenciada. Mas parece que 0 pensamento cientific «dominante» tera renunciado momentaneamente a sustentar ou a aprofundar essa teoria e que, regressando a um empirismo confor- tavel, portador de um enorme poder tecnol6gico, tera decidido prin- cipalmente «explora», de preferéncia, no infinitamente grande. Alias, esta propensao esta cada vez mais ligada a tentativas de imaginar ou provar uma «criagio do mundo» (0 Big Bang) que tivesse «fundado» de uma vez por todas 0 projeto cientifico. A velha obsessao da filiagdo adquire novas roupagens. O linear liga. A ideia de Deus esta presente. Ressurge a ideia de legitimidade. Ciéncia de vencedores, que desprezam ou temem o limite; ciéncia da conquista. A outra diregao, que nao é uma diregdo, poe completamente de parte o pensamento da conquista; é uma meditacio experimen- tal (uma observagaio) dos processos de relacéo, que operam no real, entre elementos (primordiais ou nao) que tecem as suas com- binagGes. Ciéncia de investigacao. Essa «orientacao» conduz, pois, a observacao das dinamicas, do relacional, do cadtico — daquilo que, sendo fluido e variavel, é também incerto (isto é, inacessivel), mas absolutamente fundamental e, provavelmente, pleno de invariancias, E certo que estas duas tendéncias se revezam e se reforgam mutuamente. Mas a primeira perpetua a projecio em flecha, enquanto a segunda talvez recrie os Procedimentos do nomadismo circular. Também é certo que os lugares de privagao, os paises em vias de pobreza absoluta, siio afastados desta partilha. Mas se eles 132 Pogtica da Relagio s as), A SUA presenga é c a matérin que perc constit dessa outra materia que percorre a cidncia investigadora. C tae. ‘mundo é um dos modos do Caos, objeto de wvestigadara, ) caos- . ssa ciéncia. Esta convergéneia no 6 passividade. Nao ha lugar para a pas- contesta o universal zeners ret ee s especilicidades. Mas € dificil de equiliiy ‘ar’, F Muito as especiticidades comunitarias? ~ Para evitar 0 risco de um atolamento, de uma diluigao ou de uma «paragem» em aglomerg, evera enigene Praag este paradoxo, na Relagio, de ter de abordar de orqué este pari perto indiferenciados. Alem disso, os conjuntos geoculturais, agregados através dg encontros e parentescos, mudam no mundo a uma relativa veloci- dade. Ha, por exemplo, uma comunidade real de situagio entre crioulizantes das Caraibas e os do oceano Indico (da Reuniao e dag Seychelles), mas nada garante que uma evolugao acelerada nao venha a provocar em breve encontros tao fortes e determinantes entre as Caraibas e o Brasil, ou entre as pequenas Antilhas francé- fonas e anglofonas, conduzindo a criagao de novas zonas de comu- nidade relacional. Nao é possivel fundar um pensamento ontoldgico sobre a existéncia de tais conjuntos, cuja natureza é variar Prodi- giosamente na Relagao. Essa variacao €, pelo contrario, 0 testemu- nho de que o pensamento ontolégico ja nao «funciona», ja nao proporciona certeza fundadora, enraizada de uma vez Por todas num territério constrangedor. Num tal movimento, podemos defender o seguinte principio: «A Relacao é, na medida em que os particulares, que a constituem em interdependéncia, se emanciparam primeiro de toda a aproxi- magao de dependéncia.» As ideologias de independéncia nacional, que conduziram as lutas da descolonizagao, foram sendo Pouco a pouco substituidas pelos pressentimentos de uma interdependéncia que hoje opera no mundo. Mas esta pressupde absolutamente que as interdepen- déncias sejam definidas 0 mais de perto possivel e efetivamente dos i Da etnopoética a geopottica e A cosmopoética, a tendéncia reforgou-se, nas estéticas ocidentais, com uma tcorizagao que pretenderia ul ea identidade. 138 Poética da Relacdo conquistadas ou apoiadas. Poig cla s6 ser pretexto ou ardil) quando rege, , mas desvios deter aprovei NAO i ae 3 todos (deixa de ninantes, Maistingdes amalgamada Uma das consequéncias Mais dramiti d cias diz respeito aos acasos das CMigragdes, A j d emi enn raiz condena 0 emigrante (sobretudo na fase Fe enquanto goes) au dilema devastador, Rejeitado a ae ara das wera: res de iu nos lugares da sua Nova ancoragem, é obrigado ees siveis de conciliagao entre a Sua antiga ea sua ho va pon osimpos- condicio na ova pertenca, Essa condig Fe Poupou, apesar da sua cidadans fi a maior parte dos antilhanos que vivem em Fr: cans oh 5 ‘anga pam no movimento geral do surto de emigraga a pais (magrebinos, Portugueses, pees Senegaleses, etc.), E é i ; » €tc.). E através di uma reversio bastante 'mpressionante da historia que os co cidadania. Se resumissemos 0 que sabemos das variantes da identidade, obteriamos 0 seguinte: A identidade-raiz - é longinquamente fundada numa visdo, num mito, da cria- ¢ao do mundo; -é santificada pela violéncia oculta de uma filiagio que decorre rigorosamente desse episddio fundador; -é ratificada pela pretensao 4 legitimidade, que permite a uma comunidade proclamar o seu direito 4 posse de uma terra, que se torna assim territério; a. - € preservada, através da projecao noutros territorios que se torna legitimo conquistar — e pelo projeto de um saber. ; A identidade-raiz enraizou, assim, 0 pensamento de si ¢ ao) territério, mobilizou o pensamento do outro e da viagem. A identidade-relagao do, ~esta ligada, nao a uma criagao do mun me Consciente e contraditéria dos contactos entre cul 3 mas a vivéncia 139 Edouare™ Alo ¢ nao na violéy _ édada na trama caotica da Rel seis oul da fili be nenhur timidade como garantia ‘antia do eu nao conce yuma nova ext % direito, mas cireula como um territério, de onde se jo pensa uma nao per oe bron para outros cerrit6rios, mas como unt Ingar onde as pessoas ae dao» em ver de se scomprecndereny, A identidade-relagao exulta no pensamento da errancia ¢ q la totalidade. © choque relacional repercute-se, pois, a varios niveig Quando culturas seculares se tocam através das suas intolerin. cias, as violéncias dai decorrentes desencadeiam exclusdes mutuas, de carater sagrado, nao sendo facil entrever uma conciliacag futura. Quando uma cultura expressamente compésita, como a da Martinica, é tocada por outra (a francesa) que «entrava» na sua composigao e continua a determiné-la, nao com radicalidade mas através de uma erosao assimiladora, a violéncia da reacao é des- continua, incerta em si mesma. Para um martinicano, ela nao se enraiza no sagrado do territério e da filiagdo. E nesse caso que é necessario definir com exatidao a severa exigéncia da especiali- dade. Porque 0 compésito é eminentemente fragil, no contacto desgastante com uma colonizacao dissimulada. Nao seria melhor, desde logo, aceité-la simplesmente? Nao seria vidvel dourar a alienacao, persistir num estado confortavel de beneficidrio, com todas as garantias aparentes dessa tomada de decisao? E disso que as elites, formadas na gestao de uma situagio de logro, tentam persuadir-se antes de tentarem convencer 0 povo da Martinica. A tarefa parece tanto menos dificil, quanto se se dio ares de conciliacao, de humanismo participativo, de realismo pre- ocupado com o melhoramento das situagdes — sem contar com 0s prazeres do consumo permissivo -, sem contar com as reais van- tagens de uma posigéo de excegio, em que os fundos puiblicos (franceses ou europeus) servem (mas em beneficio de companhias francesas ou curopeias, cada vez mais ostensivamente implant das no pais, ou de castas de békés reconvertidos ao setor tercidrio € assim conquistados para as idcias dessa elite) para satisfazer 140 Pottica da Relagao muita gente e para alimentar ainda’. E certo que num tal conte: sagrada, que nao tem limites, ¢ aS esper Neas de muito mais gente Xto se ‘ne we za economia da violénci SC evita a violencia da miséria Iminante sobre metade absoluta, que alastra com uma rapidez ful do planeta. Fica apenas essa violéne;: mal-est participar, sem dele ter sequer outra coisa que n&o seja uma y; zante. Mal-estar privilegiado, Contudo, a reacao traumatica na unica forma de resisténcia. Numa soci consagraram-se trés centros de as: natural, as Caraibas; a defesa da lingua popular, 0 crioulo; a rote- cao da terra, através da mobilizagio de todos, Trés modos de. exis- téncia contestataria, trés reflexos culturais, eles mesmos nao desprovidos de ambiguidade, que ligam a severa exigéncia da especificidade no a intolerancia da raiz mas a uma visdo ecolégica da Relagao. Além das preocupagées que se prendem com aquilo a que chamamos meio ambiente, a ecologia surge-nos como a pulsao através da qual os homens estendem ao planeta Terra o antigo pensamento sagrado do Territério. A ecologia tem, assim, uma dupla orientagéo: ou sera concebida como uma derivagio desse sagrado, sendo vivida, nesse caso, como uma mistica; ou essa extensdo trara em germe a critica desse pensamento do territério (do seu sagrado, do seu exclusivo), e entao a ecologia agira como uma politica. A politica da ecologia diz respeito aos povos dizimados, ou ameagados de extingéo enquanto povos. Pois, longe de consentir na intolerancia sagrada, anima a solidariedade relacional de todas . is 1om 40% de desempregados, consumiu este ano 1,3 rena spewing tnt ands de Franga, 40 mites de francs de champanhes tem 173 000 viaturas registadas para 320 000 habitantes. Como dizia a apresentadora de televisio que comentava, feliz, estes niimeros: «Faremos melhor no Proximo Ano® 14 Edouard Glissant as terras, de toda a terra, O que aqui instaura o dircito &a propria slidariedade, As outras consideragdes tornam-se caducas, propésito das Antilhas, a lesitim). Discute-se, por exemplo, dade da «posse» da terra, Segundo as leis misteriosas da raiz (da filiagao), os tinicos «possuidores» do arquipélago seriam 08 caribe. nhos ou os seus antecessores, que foram exterminados. A forca coatora do sagrado leva sempre a tentar saber quem eram os pri- meiros ocupantes de um territério (os mais préximos de uma scriagdo» original). Sucedera 0 mesmo com as terras caribenhas: os caribes e os arawaks, ou outras populagées mais antigas e, Por consequéncia, mais legitimas e «determinantes»? Esta procura va foi ja anulada pelo massacre dos indios, que desenraizou o Sagrado, A partir dai, a terra das Antilhas nao podia tornar-se territério, mas sim terra rizomada. Sim, enquanto absoluto enraizado, a terra da Martinica nao pertence nem aos descendentes dos africanos deportados, nem aos békés, nem aos hindus, nem aos mulatos. Mas aquilo que era uma consequéncia da expansao europeia (0 exter- minio dos pré-colombianos, a importacao de populagdes Novas) é precisamente aquilo que funda uma nova relagao com a terra: ndo o absoluto sacralizado de uma posse ontoldgica, mas a cumplici- dade relacional. Aqueles que sofreram o constrangimento da terra, que talvez tenham desconfiado dela, e tentado porventura fugir dela para esquecer a escravidao, comegaram também a estabele- cer com ela novos lagos, em que a intolerancia sagrada da raiz,com o seu exclusivo sectario, ja nao tinha lugar. A mistica da ecologia apoia-se nessa intolerancia. Maneira reacionaria, isto é, infértil, de pensar a terra; que quase se asseme- Iharia ao «regresso a terra» de Pétain, cujo instinto era apenas o de reativar os poderes da tradigdo e da abdicagio, fazendo apelo ao reflexo de enclausuramento. Nos paises ocidentais, essas duas opgoes ecoldgicas (a politica € a mistica) unem-se todavia na acao. Mas nao se pode ignorar as diferengas que as animam. Nao apreciar essas diferengas é predispormo-nos, nos nossos Paises, a praticas miméticas pura € simplesmente deportadas pela pressio da opiniaio publica ociden- tal, ou veiculadas pela padronizagao das modas, como o jogging € a caminhada, 142 Poética da Relagao fineste axioma ~ nao dado @ priori ri — pret nao oe pronunciar a especificidadan, desembocamos sem- 40 mortal das assimilagée: € preciso, aries €scapar A indis m specificidade, antes de consentir nag i me dlisso, fazer agin essa umequilibrio precdrio entre conhecimento d¢ dificil de apt ge é preciso renunciar As intolerdncias, porque my te2 H0 outro n uma vez por todas a0s consentimentos? E se é fim» da sua liberdade, porque nao ter 9 di numa negacao radical do Outro? ‘relto de a confirmar Estes dilemas regem os seus campos 40. Dai a necessidade, para os paises pobre Pa uma autossuficiéncia, alimentar e econdmica’D, i é tio das independéncias, vividas ou desejadas, Dal. aie tica de uma etnotécnica, instrumento da RSet ce as obrigagoes foram tao aleatérias no real. sieieneia. Nunca nciais de aplica- de terem de praticar Contra a padronizacao perturbante do afeto dos povos, des- viado pelos processos e pelos produtos do comércio internacional, consentido ou imposto, ha motivo para renovar as visdes e as esté- ticas da relagdo com a terra. Mas, com as sensibilidades jé amplamente desviadas por esses processos de troca, nao sera facil que os produtos com carga relacional intensa, como a Coca-Cola, 0 pao de trigo ou a manteiga sejam (aqui) substituidos pelo inhame, pela fruta-pao ou por uma producio renovada de madou, de mabi ou de qualquer outro pro- duto «local». Tanto mais que esses produtos, cuja exceléncia deriva da sua fragilidade, nao se prestam & conservagao, que é um dos segredos do comércio a larga escala. A padronizagao do gosto é «gerida» pelas poténcias industriais. Muitos martinicanos confessarao que, na sua infancia, detes- tavam a fruta-pao (legume de base ¢, por isso mesmo, estreita- mente associado a ideia de pobreza, a realidade da peniiria), mas que, pelo contrario, e sobretudo para aqueles que oe a tempo longe do pais, passaram com a idade a aprecié-la se orca duradoura. Qualquer pesquisa mostraria qu® ° anne 7 hip! hoje com a maior parte das criangas da Martinica. Cor 143 Edouard Glissant ama ideia da fruta-pao, a importacao, a ngas rejeit s onde re desdenhoso nos libios, essas cr ich: meira deport fo criticar os romancistas martini. pretendendo oral na postica de uma lingua- He akguém falou desdenhosamente u couve-chinesa, outro legume sim para sancionar toda a pro- acional ou que nao saboreanda infineia &ap Sublinhei que, anos que exprimem a sua Vi gem pela lingua crioul de dachinismo (da palavra dachine, 0 dio pais). O mesmo negativo serve assim part dugao que nao consinta na padronizagao in i i lizante. se sacrifique ao universal general Oe Nos paises ricos, onde a importagao é mais ou menos dificil- mente contrabalangada por uma exportacao, © onde, La conse- guinte, os bens exdgenos propostos a0 consumo sao troca jos mais ou menos longinquamente por uma produgao local, os planos sao mais faceis de equilibrar. O produto internacional nao tem ai um impacto tao imediato sobre as sensibilidades, o seu «desejo» nao é tao implacavel. a. , Nos paises pobres, os apelos & autossuficiéncia alimentar estdo votados ao fracasso, se forem colocados apenas no plano eco- némico e no do bom senso. O bom senso nao desempenha qual- quer papel no emaranhado da Relagio mundial. A contaminacao das sensibilidades é, na maior parte dos casos, demasiado pro- funda, 0 habito do conforto das coisas esta demasiado arreigado, mesmo na maior miséria, para que as prescrigdes ou as proclama- Ges politicas bastem para os evitar. Ai, como noutros lados, sera preciso calcular o que é necessdrio autorizar no movimento plane- tario de tipificagio dos produtos de consumo (atual vetor, na Mar- tinica, da importagao generalizada dos produtos franceses) e 0 que é necessario sugerir em termos de invengio e de sensibilidade nova no convivio com produtos «nacionais». E ai que a imaginacdo e a expressao de uma estética da terra, liberta de ingenuidades folcléricas, mas rizomando no conheci- mento das nossas culturas, se tornam preciosas. ; E certo que ja nao se trabalha a terra, que jd nao se é campo- nés com a mesma paciéncia instintiva de outrora. Demasiados parametros internacionais intervieram nessa relagao. O homem 144 Poética da Relagao de agricultura é, diretamente, produair inocentemente, Os oficios da terra sio também dos m sabendo dia apés dia. A solidao tr; pada pelo pensamento conti um homem de culty : jf nao pode ais pe ‘adicional do 10 de que 0 se fos paises descmlies ou irrisério, nos pate-se contra rendimentos, taxas, Mercados, excede , entes; aqui, opd,aa i vontra 0 PS » 4s epidemias, a miséria. Aqui ps. a auséne sya amiséria, ali, a exibigdio das riquezas tecnolégicas confunde-o. Seria oso -0. odioso antregarmo-nos a um louvor di entregar disparatado do campesinato, quando ele declina por toda a parte. Ir4 Morrer, ou transformar: Au beni, , “se em reserva de mio de obra para técnicas de Ponta? iz-se — lugar-cot = 7 ; Diz-se a “ee mum ‘que disso depende o futuro da huma- nidade, a menos que essas técnicas permitam, antes da extingao, uma producgao em massa de alimentos artificiais, guardados pelos mais ricos. Imaginemos uma terra nao cultivada, quando as fabri- cas de sintéticos tiverem assim abastecido os estémagos dos privi- legiados. Ela 86 serviria para o lazer, para uma espécie de Viagem em que a pesquisa € 0 conhecimento nao contariam para nada. Tornar-se-ia cenario. E 0 que sucederia aos nossos paises, visto que poderia acontecer também que as ditas fabricas nunca ai fos- sem implantadas (a menos que fizessem demasiados residuos). Seriamos os habitantes de Museus de nao Historia Natural. Reati- var uma estética da terra talvez seja contribuir para diferir esse pesadelo, climatizado ou nao. ; Nao se invertera a tendéncia para a padronizagao internacio- nal do consumo se nao se agitar as diferentes sensibilidades comu- nitérias, propondo a perspetiva ou, pelo menos, a oportunidade dessa ligacdo estética renovada a terra. | Sti idade deriva Como reanimar uma tal poética, quando 3 menalida Sau Scti i A lerisao da mistica retardataria que observamos na pl > A estética da terra parece, como que por toda a parte se perfila? A estetica ail sempre, anacronica ou ingénua: a aso que se produz. 5 7 e cons das comunidades, sobre o prazer de s NOSOS, como vamos campones é exa u trabalho é anacrénico, Paises de pobreza. Ali ele 145 POLRELAT0 Edouard Glissant essas desnaturagdes provocam desequilibrio O problema é que io da terra onde se vive esgotamento. Nesse pleno- um ato inaugural, a arriscal entido, a pai eternamente. Estética da terra? Na poeira famélica das Africas? Na lama das Asias inundadas? Nas epidemias, nas exploragées ocultas, nas moscas enxameando sobre a pele esquelética das criangas? No siléncio gelado dos Andes? Nas chuvas que fazem desabar favelas e bairros de lata? Nos pedregulhos e nos matagais dos bantustdes? Nas flores ao pescoco e nos uqueleles? Nas barracas de lama que coroam minas de ouro? Nos esgotos das cidades? No vento abori- gene devastado? Nas zonas de prostituigao? Na embriaguez dos consumos cegos? Nas prensas? A cabana? A noite sem lamparina? Sim. Mas estética do choque e da intrusao. Encontrar equiva- lentes de exaltacéo para a ideia de «ambiente» (a que chamo em redor) e para a ideia de «ecologia», que parecem ociosas nessas paisagens da desolacio. Imaginar forgas de tumulto e de mel para a ideia do amor & terra, que tao irriséria é ou que frequentemente da origem a intolerancias tao sectarias. Estética da rutura e da jungao. Pois tudo esta ai, e quase tudo esta dito, quando se observa que nao se trataria nunca de transformar de novo uma terra em territério. O territério é uma base para a conquista. O territério exige que se implante e legitime nele a filiagao. O territério define- -se pelos seus limites, que é necessario alargar. Uma terra é sem limites, a partir de agora. E por isso que vale a pena defendé-la contra toda a alienagao. Estética do continuo-variavel, do descontinuo-invariante. A autossuficiéncia é calculavel. Desde que nao colida com 0 exclusivo de um territério. Condicgéo necessaria, mas nao sufi- ciente para determinar as radicalidades que nos teriam protegido da ambiguidade, reunidas numa paisagem — que teriam reformado © nosso gesto sem termos de a isso nos forgar. Assim debatemos os nossos problemas, no panorama implaca- vel do mercado comercial mundial. Onde quer que estejas, qualquer que seja o regime que te retina em comunidade, os poderes desse 146 Postica da Relagso cado saberao sempre encontrarte mere rse-ao de ti, Nao se trata de forg: Se Werares com ocuP® céncia, sac reg sults Ss Ol MSCUFas que ada * sr ompuacencia, sao foreas ocultas, com uma gn ees MePtaras gnecessario responder com uma logica tog ee teversivel, a mento. Nao é possivel aceitares ser um benefit do teu comporta- mreopes- E preciso que escolhas a atitude, E Aa lo e fingir que te vo atras levantada, de nada serviria consenti mente: Senio acontradicao ata um né de impossi que m0 deixa de o ser) que desestabiliza Profundamen wis SC transforma numa Plantacao, que julga funcion te, Todo ° ae de decisao, mas que é submetido a imposigaes 4 com liber- ‘a troca de bens (neste caso, na Martinica, a troca de ae publico importado por um beneficio privado ex ire i } ‘ Portado) é a regr: ia agitacao comercial confirma o imobilismo e a ragmene mentalidades desgastam-se nesse conforto de aparéncia, pago ao preco da lavagem cerebral inconsciente e debilitante. Tal é o dilema a resolver. Aprendemos que as declaragoes perentorias, baseadas no antigo maniqueismo das libertages, de nada servem, s6 contribuem para o reforco de uma linguagem estereotipada, sem influéncia no real. Temos de, primeiro, realizar econtornar a dialética de todas estas obrigacées. Se considerarmos, por exemplo, que uma etnotécnica evitaria os excessos de importagGes, protegeria a vivacidade fisica do pais, equilibraria as pulsGes de consumo, cimentaria o laco entre pes- soas interessadas, todas, em produzir e criar — querera isso dizer que regressariamos a um estddio pré-técnico de artesanato, guin- dado & categoria de sistema, deixando a outros o cuidado de nos facultarem os dejetos das suas vertiginosas experimentagées, de nos fazerem admirar de longe as realizagées do seu saber, de nos alugarem — mas em que condigdes? — os frutos da sua industria? Ter algo para trocar, que ndo seja apenas arcia e coqueiros, mas ° resultado da nossa atividade criadora. Integrar esse ter, mesmo que ele seja feito de sol e de mar, na aventura de uma cultura que poderiamos partilhar e pela qual seriamos responsive’: adencia Nem a autossuficiéncia aplicada, nem 4 inter aa a consentida, nem uma etnotécnica dominada poderdo mena 30 forem simultaneamente desvio e acordo, com (e em re 147 Edouard Glissant de referente: 0 alhures multiforme, sempre apre. nes ern pais controlado, como uma necessidade monolitiea, Co ets nossos problemas, sem saber que cles estig eee cet mundo, Nao ha um lugar que nao tenha um onde 0 dilema nao se imponha, No ha cular exatamente essa dialetien ‘ou essa necessidade dificil das etnotéenicas, que Ihes serve generalizados no espago do alhures. Nao ha um lu: onde ni um lu; das interdependéne ‘A confluéncia em massa e difratada das culturas faz assim com que todo o desvio (em relagao a uma pré-norma sugerida oy imposta) seja determinante, mas também que toda a determinagiio (de si) seja criador. Tentemos recapitular 0 que ainda nao sabemos, 0 que nao temos atualmente qualquer forma de saber, acerca de todas as singu- laridades, de todos os percursos, de todas as historias, de todas as desnaturacées e de todas as sinteses atuantes ou resultantes das nos- sas confluéncias. Como vieram até nds as culturas chinesa ou basca, indiana ou inuite, polinésia ou alpina, e nds até elas? O que nos resta, e sob que formas, de todas as culturas desaparecidas, extintas ou exterminadas? Como vivemos, ainda hoje, a presséo das culturas dominantes? Através de que fantasticas acumulagGes de quantas existéncias, individuais e coletivas? Tentemos calcular a resultante de tudo isso. Nao o conseguiremos. O que experimentamos desta confluéncia é para sempre uma parte da sua totalidade. Por muito que acumulemos estudos e referéncias (embora seja nossa vocagio leva-los a cabo), nao conseguiremos dar conta de tal quantidade, pre- monigao que nos permite nela persistir. Nao saber essa totalidade nao constitui uma fraqueza. Mas nao desejar sabé-la, sim. Imaginemo- -la entao numa poética: esse imaginario da 0 pleno-sentido a todos esses desvios, sempre determinantes. A caréncia dessa pottica, a sua auséncia ou a sua negacdo, assinalariam uma falta’. Noto como esse imagindrio se me apresenta sob uma certa forma no espaco: falei da cir- cularidade (talvez como aquelas curvas do espago-tempo que Einstein inventou), do volume, da esfericidade dos conceitos, das poéticas e das realidades do caos-mundo: ‘econstituindo (para mim) a imagem do planeta-mae, de uma Terra que seria primordial. ne a maternal esté (pelo menos acredito que esta) excluido desta simbélica. mo a ideia (cara a Aristételes ¢ a Ptolemeu) de uma perfeicao da circularidade. 148 Pottica da Relagao Do mesmo modo, o Pensamento do ©, A ro do pensamento, ” Outro € estéril, sem o O pensamento do Outro éa iaaaceitar o principio de alteridade, a coneeha we Me {feito de um 86 bloco e que nao ha sé uma verde ee te nao pensamento do Outro pode habitar-me sem que me hee nese Pens que ele «me desvien sem uc ate ee fas alerar de mesmo. E um principio ético, que me bastaria nieve 0 Outro do pensamento é esse movimenn oe” de agir. Eo momento em que mudo o meu Pensamento, sem abdi- Fi , sem abdi- car do seu contributo. Mudo e permuto. Trata-se de uma estéti ’ da turbuléncia, cuja ética correspondente nao é di a Se admitirmos assim que uma esté: cere camer 'etica é uma arte de ci _ Sea s ‘onceber, de imaginar, de agir, o Outro do pensamento é a estética criada por mim, por voces, para nos associarmos a uma dinamica em que par- ticipamos. E a parte que me cabe da estética do caos, 0 trabalho a levar a cabo, 0 caminho a percorrer. O pensamento do Outro é por yezes pressuposto pelos dominadores, mas unilateralmente: ou proposto na dor por aqueles que sofrem e se libertam. O Outro do pensamento é sempre desencadeado pelo conjunto dos confluentes, onde cada um é mudado pelo outro, e o muda também. Out Rencrosidade mor: lade, ito mesmo. Ai, tenho O senso comum diz-nos que o mundo por onde passamos estd tao intensamente desregulado (quase todos dizem: louco) e que essa desregulagio se reflete tao diretamente em cada um de nés que somos obrigados, alguns de nds, a viver na desgraca abso- luta, outros numa espécie de suspensao generalizada. Avangamos dia apds dia, um dia apds outro, como se o mundo nao existisse, e, no entanto, cada dia interpela-nos com essa violéncia. Sim, faze- mos como se. Pois, se parassemos para pensar verdadeiramente nisso, desistiriamos de tudo. Lugar-comum que tantas vezes ouvi Pronunciar. Para suspender a suspensio ansiosa, recorremos a esse ima- ginario da totalidade, através do qual transmutamos essa loucura do mundo num caos que possamos aceitar. Imaginario reativado pelo Outro do pensamento. Desvio da norma previamente estabe- lecida, ou imposta, mas talvez também das normas ou crengas cuja 49 Edouard Glissant heranga recebemos passivamente, Como praticar esse desvio, g s antes, ¢ plenamente, aquilo que é nosso ¢& Parte de é si a Relac ae ede nds? As dependéncias da Relagio, obstaculos ao tra balho do seu entrelagamento, As independéncias, se bem que ou precar des. . valem sempre, pelas mesmas razies confortiveis O sofrimento dos povos nao nos encerra para sempre na atu- alidade muda, a tinica presenga dolorosamente fechada. Ele auto. riza por vezes essa auséncia que é alargamento e afloramento, pensamento erguendo-se de prismas de miséria, estendendo a sua prépria violencia opaca, que se adequa as violéncias do contacto das culturas. O pensamento mais tranquilo é assim, e por seu turno, violéncia, quando imagina processos arrojados da Relacado, mas evita a armadilha sempre confortavel da generalizagao. Essa vio- léncia antivioléncia nao é um nada, mas sim abertura e criagao, Acrescenta um pleno-sentido a violéncia operativa dos marginais, dos rebeldes, dos desviantes, todos eles especialistas do desvio, O marginal e o desviante pressentem 0 choque das culturas, e vivem o seu excesso por vir. O rebelde prepara esse choque, ou pelo menos a sua legibilidade, recusando o afundamento em qual- quer tradicdo; mesmo quando a sua rebeldia ganha forga na defesa de uma tradicdo, humilhada ou oprimida por outra tradigao pura e simplesmente mais poderosa em meios de agao. O rebelde defende 0 seu direito a praticar ele mesmo a sua superacao; 0 marginal eo desviante vivem esse direito no excesso. Ainda nao comegémos a imaginar nem a calcular as resultan- tes de todos os desvios determinantes, vindos de todo o lado, porta- dores de todas as tradigdes e de todas as suas superagées, e cuja confluéncia abole os trajetos (0s itinerarios) ao mesmo tempo que finalmente os realiza. Se os atuais contactos culturais sao vertiginosamente «ime- diatos», outro enorme lapso temporal surge, porém, diante de nds: € o que falta para equilibrar as situagées particulares, atenuar as opressées, reunir as poéticas. Esse tempo por vir apresenta-se tao infinito como os espagos galacticos. Entretanto, a violéncia contemporanea é uma das ldgicas - organicas — da turbuléncia do caos-mundo. Ela é aquilo que se 150 Podtica da Relacio tivamente a todo o pen: Mento que Pretende: ae instintivay eas, «compreendé-lon py oP olitico ess iti nol m0 Sse tornar ra 0 dirigir, ios SAO neces vios sid s des osd ios a Rel ira maritima o é dam, iveira ©. € Sao tribut ‘arios dela — ancenilheira, ono 0 151 OS QUE O QUE A forca poética (a energia) do mund. apoe-se Por frémitos frageis, fugazes, a divaga nas nossas profundezas. A violé distrai-nos de o saber. A obrigacao de ter jencia € muitas vezes de a combater afasta-nos dessa vivacidade. petrifica também o frémito, perturba a presciéncia, Mas a forca nunca se esgota, pois ela mesma é sempre turbuléncia’. A =a - mesmo sendo totalidade que se reforca — é animada por uma outra dimensao de poesia que cada um adivinha ou balbucia den- tro de si. E possivel que ela funde nessa relacao, tao-s6 de si con- sigo mesma, da espessura com a fugacidade, ou do todo com o individuo, o essencial das suas definigées. Essa forca do mundo nao comanda uma linha de forga, revela-a até ao infinito. Como uma paisagem, que nao saberiamos resumir. Ela obriga-nos a imagina-la, mesmo que ai permaneca- mos neutros e inertes. Arrastados por essa forga, ou desejosos de a controlar - nao tendo consentido na grandeza que adviria de a partilhar —, precisa- remos ainda de um longo tempo para a reconhecer como novidade do mundo, que nao se apresenta como novidade. Chamamos Relagao a expressao dessa forca, que é também o seu modo: o que se faz do mundo e o que dele se exprime. ‘©, mantida viva em nés, Presciéncia Poética que ncia que opera no real de «compreender» a vio- A ideia dessa energia engendra a sua irrisio: «a Forga» é 0 leitmotiv, metafisico- -~westerniano, de uma famosa sequéncia cinematografica. 153 Edouard Glissant untarmos 0 que a Relagio poe €m jogo, chegamos a decomponivel em elementos primordiais. Nao nos ro jogo na sua totalidade, tanto no que respcita aos ao como ao modo de retransmissao, que Se pers algo que nao é possivel abors nntos postos em re ade evoluir, eleme! nao ¢ Tranquilizamo-nos com essa ideia demasiado vaga: que a Relagio diversifica as humanidades segundo séries infinitas de modelos, infinitamente retransmitidos. Este ponto de partida nem sequer permite esbocar uma tipologia desses contactos, nem das interagdes assim desencadeadas. O seu unico mérito é propor que a Relagao tem a sua fonte nesses contactos, e nao em si mesma; que ela nao visa 0 ser, 2 entidade suficiente que encontraria em si o seu comego. ‘A Relacao é um produto, que, por seu turno, produz. Aquilo que ela produz nao éser. Por isso arriscamos aqui, porventura sem demasiada redugao antropomérfica, a individud-la como sistema, a fim de falar dela nominalmente. (Mas se tentassemos abordar a unica evidéncia do ser, contor- nariamos a questao, nao pensando em nenhum questionamento possivel — porque o ser tolera que se Ihe aponha interagao. Oseré suficiente, enquanto toda a questao é interativa.) primordiais na Relagao. Todo o ele- mento primordial convocaria a sombra do ser. A falta de critérios redutores, as realidades inapreensiveis das culturas humanas sur- giram aqui como constituintes, como ingredientes, sem que se possa afirmar que elas sejam, nesse caso, primordiais. Acabou por se encarar as culturas sob um Angulo nacional, étnico, genérico (civilizacional), como dados «naturais» do movimento de interagao que ordena ou dispersa 0 nosso mundo a partilhar. Esta forma de encarar as culturas generalizou-se pelo pro- prio jogo da Relagio. E a janela através da qual nos vemos reagir juntos. Antes de ser percebida como aquilo que nos anima em Nao intervém elementos 154 Poética da Relagao i , acultura evoca i comunidade par oc aquilo que NOs separ é iscriminante, sem di S Separa de tod, ade. Bum iminante, sem discriminagay sue oda aalteri- fica sem POF A parte. F por isso que as culturge woe Es ; f s jementos naturais da Relagio, sem que e: el nomeada, € sem que por isso elas constituam 0: ‘amente primordia is, cuja interay S seus clementos Fecomponivel. Paulatinamente Evocar os valores comparados das culturas seria que sustentar que os valores culturais sao estaveis, a aro tats, , reconhecidos oO contacto de culturas infere todavia uma relagio de i teza, na percecao que dela se tem, ou na vivéncia que del: incer- sente. O simples facto de as refletir em comum, numa sens ota planetiria, inflete a natureza ea «projecio» de a cultura parti cular observada. Dat resultam mutagées decisivas na qualidade dos contactos, cujas consequéncias espetaculares sio assim fre- quentemente «vividas» muito antes que o préprio fundo da mudanga tenha sido captado pela consciéncia coletiva. Por exemplo, a tradicional e pacifica crenga na superioridade das linguas escritas em relagao as linguas orais ha muito que come- cou a ser contestada. A escrita ja nao é, nem parece ser, garantia de transcendéncia. A consequéncia disso foi, antes de mais, um apetite generalizado pelas obras de carater folclorico, por vezes abusivamente consideradas como portadoras de verdade ou de autenticidade; mas seguiu-se um esforco dramatico da maior parte das linguas orais por se fixarem, isto é, por chegarem a escrita, no momento em que esta perdia 0 seu absoluto. O fundo da mudanga esta na ligacao oral-escrito; a consequéncia essencial e espetacu- lar, que nao indicava claramente esse jogo, foi o ressurgir dos folclores, Um dos indicadores menos incontestados de «civilizagao», a capacidade tecnoldgica, fundada no dominio das ciéncias e no con- trolo dos fatores econémicos, vé-se a partir de agora marcado por 155 rd Glissant Edous: negative (as catastrofes do aprendiz.de Feiticeiro) de que sinal neg endiz de feit um sinal Me oes ecoldgieas (elas mesnas preparadas pelas preg, Hein nericas da ciencia da ecologia) fizeram um eco descon. cupacoes § ae tinuo mas tanto mais estridente. As culturas evoluem num espago planctario e em «tempos, jiferentes, cuja verdadeira ordenagao cronolégica ou ordem hie. rarquica seria impossivel regular. _ Irantes da culturacao atual é a inquietude gene. Uma das resu! > ralizada que faz aumentar a preocupagao de um futuro a meditar em conjunto; 0 que por toda a parte s¢ traduz em necessidade de prospetiva. Nenhuma cultura especifica antes da época contempo- tinea conheceu uma obsessao semelhante com o futuro. A paixao da astrologia, das prédicas e das profecias, de proveniéncia assiria ou babilonica, e cuja época de propagacao ativa tera sido a Idade Média europeia, derivava muito mais do pensamento sintetizante ou magico do que da preocupa¢ao de preservar verdadeiramente o futuro. O mesmo se passava entre 0S maias e Os astecas, ou na China antiga. A nogao de progresso, tao cantada por Victor Hugo, ja nao era definida através de temas de antecipagao. Hoje, a pros- petiva é uma obsessao, que tenderia a constituir-se em ciéncia. Mas as suas leis eventuais seriam afetadas por esse mesmo princi- pio de incerteza que rege a mesticagem das culturas. A aventura planetaria nao nos permite adivinhar de onde surgi- rao as solucdes para os problemas nascidos do contacto precipitado das culturas. E por isso que nao se pode hierarquizar os «tempos» diferentes que se escoram nesse espaco global. Nada garante que o tempo cronolégico «triunfara» e que os tempos etnotécnicos, ainda nao decididos por culturas hoje em dia ameagadas, estejam votados ao fracasso. Nada garante que o tempo da Historia conduza a conflu- éncias, maior rapidez ou seguranga do que os tempos difratados em que as historias dos povos se expandem e se interpelam. Nesta problematica, ninguém sabe como as culturas reagirao umas perante as outras, nem quais dos seus elementos serao pre- ponderantes, ou considerados como tais, além das determinagoes do poder e da dominagao. Nesse pleno-sentido, todas as culturas sao iguais na Relagao. E todas juntas nao poderiam ser considera das como sendo os seus elementos primordiais. 156 Post tien da Retacao 4 pm «comtacto precipitado», as culty En tes indefiniveis. Poder: ras mites indefinivels. Poderemos salvagye oveRYSe até cus HMM or definigao? Poderemos pre Aguardae Me aos aS, isola-las, decadéncias NO? A tendén- nguindo entre Paises em vias ofl : Serva. <0 OU dominagio) de que elas ae las das 0 terr e r soforgad® pela constatagao das ices ci Vortec um Sul, entre paises industrializejeot de poorett absoluta, mal consegue disfarcar o ‘ js primeltos encaram os segundos, nem a a or “asensual que mantém e exacerba as cies or ates a incapacidade de os paises pobres ias mer nos, ou pelo esforco decisivo dos seus go: Prog: swacio ¢f facto, nao promete isolar em absoluto ee sentido. Como se a constatacao, a situacao de facto, ob ode Eee leis subterraneas, seguindo 0 seu caminho fixo, eeseat eemee 3 redor uma indiferensa de uma nova espécie, que nao é vecdninn ramente nem egoismo nem estupidez, e ainda menos en ladei- ou falta de coragem. Formas estafadas ou padrontzadar i ov ade propagam-se assim, mas dos dois lados da linha de sepa, racio demasiado visivel. ae S, nem, infeliz- redirem por si ntes, fora dessa sao dados a que a consciéncia planetaria em formagio, e em plena desculturagéo, tera de se habituar, confrontada com o magma indecifravel. Pseudolinhas de for¢ga sao profetizadas, como tantos outros tragos demasiado esclarecedores, nesse turbilhao. A consciéncia subterraneamente manipulada por quem dai tira lucro, ndindo, por exemplo, Estado e cultura, cresce aideia de que haveria Estados de direito (as democracias) a cujo nivel 0 progresso mais tarde conduzira os Estados de facto, assinalados como os lugares atuais da tirania e da violéncia bruta. Singular mentira, simultaneamente politica € cultural. A violéncia, que determinou o aparecimento das comunidades humanas, rege hoje a dificil procura de um equilibrio das suas relagoes. A questao planetaria, constrdi barragens. Confu 157 fidouard Glissant nar pouco a Ppouco os de fazer com que ao rte um Estado de facto, ser a de transfor a porventur: em Estados de direito, nao dever Estados de facto Estado de direito co! rresponda em toda a pa snte de direito ¢ uma cultura em aposigio a cal e deciséria, Uma cultura & aquilo que perma- ndo os Estados passaram, 0U aquilo que os precede neces- As culturas partilham-se, quando os Estados se jemos os limites — as fronteiras — de um Estado, alme O que & |S, perme out nece at sariamente. -ontam, Apreend mas nao de uma cultura. As pseudolinhas de forga escondem (ao mesmo tempo que autorizam) as verdadeiras, cuja enunciacao provoca na conscién- cia uma inaudita reacao de rejeigao. Esforcar-se por precisar 0 que se formaria na consciéncia planetaria é abordar uma das dimen- soes da Relacao sem nunca ser capaz de lhe definir os tragos — por- que as reagées de rejeigao, abafadas e dificilmente analisaveis, sao tao decisivas quanto os consentimentos publicos generalizados. Este mecanismo de rejeicao é tanto mais efetivo quanto as pseudo- linhas de forga se impdem noutros lugares através dos ecos multi- plicados das modas, que dao a ilusao da novidade fértil. A sucessao rapida das modas, avatar e logro da paixao do novo, apresenta-se como o tnico garante de um movimento em diregao ao real. Ela imprime aparente caducidade a todo o esforgo paciente de imagi- nar a Relacao. Como se viver a Relagao, nem que fosse de maneira caricatural, abusiva ou superficial, consumida ou delirante, bas- tasse para a manter. E tentar aborda-la de forma sustentada seria uma afetagéo pedante, absolutamente estranha 4 sua matéria exacerbada, de Aquilo que se designa por atualidade, em parte, mais nao é do que essa fugacidade das modas, levada a um grau extremo de exas- Peracao por uma infinidade de agentes-de-impacto. O , 7 temos re be acer cen Para perceber a questo, ai oleae as modalidades seculares da intera- aa a : pre que elas estiveram em contacto. Nao ape- uas disposigdes de atracdo ou repulsao, mas 0 158 5 constantemente alterado oe de similaridade ou de osmos feiX! se tecia, Se manifestay; e qe AS estry * dere. 8 inter amar avent a oe 2MUhava pop gn AE Fenaturaca geriamos chamar agentes de retransimpe AGHO daquilo ae Fansmissdo tinham outrora (¢ SMISSIO. Esses a pa relativa obscuridade, a que 'Bentes de como que ut ereectioldasire: vmente a percegio das resultantes deiramente. O agente de retr; ord —— Ww agde mais, era despercebido, @Nsmissgo antes gentes da interagdo ou, quase sempré precisa delas. Comandam esses dois srelagao: a moda e o lugar-comum. parecem tio evidentes, é Porque os impressionam sobretudo pela imediatez ( técnicas de comunicacao, Ai, a sua acao basta-se a si mesma; nao existe ideologia declarada da comunicacao, Aqueles que a contro- lam no mundo nem sequer tém de justificar esse controlo. Sancionam-no unicamente pelo simples facto de que a comunica- cdo flui permanentemente: é essa a sua «liberdade», legitimada pela sua atualidade, isto é, pela sua fugacidade. Agentes de retransmissao, hoje em dia transformados em agentes-de-impacto, tendem assim a rejeitar como inoperantes estes dois conceitos outrora ainda capitais: o de estrutura e 0 de ideologia. A mutagao da retransmissao em impacto ataca 0 ponto fraco dessas duas nogGes: as suas generalizagdes demasiado apoia- das no espago e no tempo. A ideia de estrutura, tal como a de ideo- logia, tinham, também elas, necessidade de um tempo de laténcia para esclarecer a sua matéria. A precipitagao dos tempos presen- tes coloca-Ihes um desafio. A moda deporta totalmente a andlise inferida pela ideologia, o lugar-comum dispersa a intengao preser- vada no pensamento da estrutura — pelo menos € 0 que eles preten- dem agressivamente. @ pura press) das suas 159 RELIGADO (REVEZADO), R ETRANSMITiD Nao se pode defender que cada elemento primordial entre todos aqueles gio, uma vez que esta define os element mesmo tempo que om afeta (os transforma); nem afirmar cultura particular sé pode ser conhecida na sua ns yma vez que nao se distingue o seu limite proprio na Rel an lade, Cada cultura particular & animada pe —— particularidade, mas esse conhecimento ni mesmo modo, no se pode decompor cada cultura particular em elementos primordiais, visto que o seu limite é nao definido e que a Relagdo age simultaneamente nesse contacto interno (de cada cul- tura com 0s seus Componentes) e num contacto externo (dessa cul- tura com as outras culturas que Ihe interessam). Adefinicao do contacto interno é infinita, isto é, por seu turno nao reconhecivel, pois os constituintes de uma cultura, mesmo quando sao detetados, nao podem ser remetidos a indivisibilidade de elementos primordiais. Mas uma tal definicao é operativa. Ela permite-nos imaginar. A definigéo do contacto externo é, também ela, analisavel até ao infinito, visto que cada cultura particular, nao sendo unicamente composta por elementos primordiais — indivisiveis -, nao pode, por seu turno, ser considerada como um elemento primordial da Rela- sao. Regressamos assim as nossas proposicées iniciais, fechando o circulo ~ a roda - do nosso espaco-tempo. Paradoxalmente, todo o esforco de definicdo desse contacto externo (entre culturas) Permite-nos abordar melhor os constituintes de cada uma das cul- ‘uras particulares consideradas. Postos em ago ao POLRELAT 161 Edouard Glissant melhor; 0 imaginario, a captar 5) da nossa totalidade a sociologia, estu sas Componente: Jindmicos. Nenhuma delas concebe 9 avel sem o seu trabalho. Aanilise ajud: melhor os elementos (14 As ciéncias humanas, d daram, caso a caso ¢s ses CONLACLOS ¢ que é inabord estruturais € ¢s conjunto dos ritmos, indo esses dois movimentos (de um contacto interno acto externo) para pressupostos do pensamento, determina o primeiro se aparenta- eo percurso do segundo Transfer e de um cont: poderemos calcular que 0 que ria a uma fisicidade do ente, ao passo qu abordagem do ser. ao interna seria densa, diretamente operativa, ao passo que a retransmissao externa seria evasiva (dilatada), em todo o caso demasiado precipitada para que se pudesse captar as suas regras de operagéo no momento em que sao aplicadas. Abster-nos-emos de sugerir por parabola que o ente seria denso e o ser volatil, e que uma massa variavel de ente postularia, por oposi¢ao, a infinitude do ser. Temos antes de abandonar essa aposigao do ser e do ente: renunciar a maxima fecunda segundo a qual o ser é relagao, para considerar que s6 a Relagio é¢ relagao. equivaleria a uma A retransmiss: Mas a Relagao nao se confunde nem com as culturas de que fala- m com a economia dos seus contactos internos, nem com a mos, ne! nem mesmo com esses inapre- projecao dos seus contactos externos, ensiveis que nascem da imbricagao de todos os contactos internos com todos os contactos externos possiveis. Nem com o acidente maravilhoso que sobreviria fora de todo 0 contacto, conhecido desco- nhecido, cujo iman seria 0 acaso. Ela é tudo isso simultaneamente. A génese de uma cultura especifica poderia ser captada e a sua particularidade abordada sem que tivéssemos de as definir. A génese da Relagao nao pode ser abordada la onde a sua definigéo pode ser, se nao decidida, pelo menos imaginada. Se ignordssemos a intensidade da particularidade de uma cul tura, se pretendéssemos negar o valor particular de qualquer cul- tura, por exemplo, em nome de uma universalidade do Todo, 162 Pottica da Relacao famos assim, Ou que a Relagio tem gupori (cla seria 0 universal em si ¢ seria ee el aferentes, que se atribui ela su! jriam desse modo nao a t¢ duziria con ™ 0 seu Principio em si PNAS isso), oy entao que AMente refer "Mas ao totalitario, neia e 0 totalitario instaura-se como Telacio a partir de 5 no primordial @ violéncia, Por exemplo, ou a rac ao & sobredeterminada mas cujo conhecimento ¢, limites. Essa relacao totalitaria & por seu turno, qudos sua definigdo no pode ser imaginada. Pois Nao se mas a relacdo, aberta, entre elementos Cujo conhecii gary ras. A totalidade, pelo contrario, tal como a Rel; frome “mas a sua definicao é imaginavel, aor a le renga entre Relagao e totalidade vem alacdo age por si mesma, quando a totalidade, Relag’ da de imobilidade. A Relagao ¢ totalidade saaers so em repouso. A totalidade é virtual, seria ven mo — poderia ser valido ou totalmente oe aquilo que se realiza absolutamente. mel ment definis um ele- a) cuja fem, con- abordavel Pode ima- mento tem. lado, nao é do facto de que a No seu conceito, é aberta, a totalidade Mas s6 0 repouso — virtual. Ora, 0 movi- A Relagao é movimento. Nao sé ela nao funda os seus Principio por si mesma wa come és dos elementos cuja ligagéo ela conduz), mas ha ainda que otra’ ses principios mudam A medida que os elementos avangar qué e finem (incarnam) novas ligacées, e as transformam. ae dos lo caoticamente: a Relagio nao retransmite nem liga ae ils eis ou aparentiiveis no seu principio tinico, visto ee diferencia constantemente e os desvia do totalitério —pois a eee ae -e cada um dos elementos que a constituem, ‘: oe memente, pee que dai nasce e que os volta a mudar. consequente! , 2 ntos x bre os eleme! do niio age sol ia redu- ah inha a Relagao 4rio ficaria re 4 sublinhamos, mage contrarit pri sca separdveis ou redutiveis ~ caso rimol s eproduzida. tada ou reproduzi¢ m: i r desmon' petito i ani etivel de se m ona pri zida a uma mecAnica suse panes Nowe precede no seu ato, nem pressup' ier, BF 163 Edouard Gli ara que se realize em totalidade, pd ¢ do mundo: para av wrepouso, Nao se entra de imediato em iid. Nao se a concebe a priori, ie esforgo sem limit isto é para que ¢ p ent er 0 Se Relagao, como se como se quis cancel Aquilo que fa hecimento de cada cultura nao Aquilo a Fuga | tenha limites € precisamente o que nos permite imaginar a intera- i ito, sem O abordar. Magma em profu- das culturas até a0 infini e a evacuar todo o pensamento de ideologia, 0, que tende . le : considerado inaplicavel a uma tal amalgama. As pulsées coletivas Jevam antes ao totalitario literal (o peso tranquilizador dos resulta- dos concretos, elevados & dignidade de valor) ou ao providencial ideal (a decisao tranquilizadora de uma causa ou de um herdi que escolhem por nds). O literal e 0 ideal dao-se bem. Assim repelido, 0 pensamento ideoldgico (a necessidade de eender, de transformar) inventa para si novas analisar, de compr: formas, troca as voltas a profusao: projeta-se na prospetiva que, também ela, nao tem limites; tenta, por exemplo, a sintese das aplicagées provaveis das ciéncias: 0 que conduz paulatinamente as cio. Os modelos pretendem fundar em contac- teorias da modeliza tos a matéria da Relacao, isto é, surpreender-lhe 0 movimento, que traduziriam entéo em termos de estruturas dinamicas, ou z com que 0 con! dinamizadas. O pensamento da ideologia e 0 pensamento da estrutura unem-se, assim, contra a acdo diluente da amalgama, em manifes- tagdes de modelos. A modelizagao é uma tentativa (generalizante) de superar a atualidade fugaz da moda e a evidéncia falsamente definitiva do lugar-comum. 4 ° A Relagio religa (reveza), relata. Dominagiio e resisténcia, smose e encerramento, consentimento da linguagem e defesa 164 inguas- A sua totalizagio nag Prod. as ivel com certeza, O rele eM UM proce ff percetiv a 2a. O relipado (rever, Processo nitido, nse combinam Ee ma conclusiva, A syn!) € 0 relatade ‘ rofundidade) 1 stura e rena (ica da fe A supertiens ooh felador. A postica da Relag icie, com um car 0 jmaginario. O que m: clador, a0 soli cite 10 4pessemte © que dela se Do mesmo modo, sempre que turn, & enquanto tal, um ele se oa “star toda a nova proposicao a uma séri mente. Escolher um exemplo (trazé-lo a evidéncia, gemonstragao) € também privilegiar indevid campos: nao perceber a conexAo na Relacao. ‘A acumulagao dos exemplos tranquiliza-nos, se bem que a margem de toda a pretensaio Sistematica. A Relacao nao pode ser «provada», porque a sua totalidade nao é abordavel — mas sim ima- ginada, concebivel por escusa do pensamento. A acumulagdo de exemplos tenderia a completar uma descrigio nunca terminada dos processos de relagao e nao a circunscrever ou legitimar uma yerdade global, impossivel. Nesse sentido, a andlise mais bem ajus- tada 6 aquela que desenha poeticamente 0 voo ou o mergulho. A descrigéo nao prova, acrescenta simplesmente a Relagdo, na medida em que esta é sintese-génese nunca concluida. usa-lo para lamente um desses 5 ‘As culturas coincidem na precipitacéo historica Oe cia das historias), que se tornou lugar-comum. ae agregar temporais (regressemos a eles), que ae ie ja nao sio vali pouco a pouco sedimentagoes lentas e pr‘ a pe to mais decisi- das. Eles permitiam contactos despercebi Oe oe imediatamente Vos, cuja qualidade de inter-relagao na0 Pot sipitagao nos distrai ¢ adivinhada ou avaliada; tal como hoje @ Pre TT mecanismo dispersa aos nossos olhos 0s feixes de causali 165 Edouard Glissant teriamos podido surpreender. As resultantes do contacto desper- cebido impunham-se A mancira de elementos originais, como se tivessem sido suscitados apenas pelo movimento interno de uma cultura particular, movimento infinito e nao definivel. A precipitagao é ha muito tempo cadenciada pelos paises industrializados que Ihe ritmam a velocidade e a orientagio, atra- vés do controlo que exercem sobre os modos de poder e sobre os meios de comunicagio. A situagéo mundial «compreende» cultu- ras que se esgotam nessa velocidade e outras que se atolam no a-parte. Estas tltimas sao mantidas em estado de recetividade pas- siva, penosa, em que os fantasmas de desenvolvimento espetacular e de consumo em massa permanecem. Um principio importante do processo de interagio é que podem ser assinaladas as suas linhas de forga sem que esse sinal produza efeito. Ha muito que os atuais agentes-de-impacto (radios, jornais, televisdes, filmes e seus derivados) deixaram de ser capa- zes de tais efeitos, mas isso sucede porque irradiam os seus pré- prios raios, que mais nao sao do que os reflexos de linhas de forca despercebidas. De resto, poderia acontecer que esse fosse 0 cami- nho mais curto para identificar — nao pela reflexao mas por essa espécie de provocagao difratada que é a marca desses agentes — as linhas de forga que assim se teriam furtado. O que parece ser uma regresso ao infinito (a acumulagao de lugares-comuns publicamente postos em comum e celebrados em rituais fugazes) sustenta assim a barbarie pressuposta da moda, mas ao mesmo tempo desenha a profundidade em movimento da Relacao. A eventual influéncia de um grupo de individuos ou de obras que fossem de uma «elite» ja nao pode ai ser detetada, a nao ser no estado limitado de uma especializacao, técnica ou cientifica, tacitamente reconhecida sem verificagao. A prova pela elite deixou de ser tida em conta. A enorme divagacdo que a substituiu nao deixa tempo para o recuo ou para a re-apropriagao. Uma tal anilise, que é desencadeada a partir do lugar em que os agentes-de-impacto sao gerados (de modo geral, os paises industrializados), vale em absoluto para aqueles que sofrem a sua imposigao (de modo geral, os paises em vias de pobreza absoluta). 166 seria impossivel assinalar ercutem na Relagao: 0 retomar de uma pos que em principio silo heterogéne, cal elementares, Mas imediatamente i ra ges-de-impacto de um dado de He todos os OxXA, OF parte di ; séneis . 0 que. Jos merguihou ee Porque erg reflexig ae Por outro lado, quspeitas jungoes barrocas de linhas de forca y . 0, Profundidade espagos inesperados, ete, que se desdobram em espa O lugar-comum, que definimos como a manj agente-de-impacto, de uma linha de f anifestacao, por um adquire desse modo um Poder neutro, cuja repe ns culo e fuga. A propria nogao de moda é ultrapassan ne? € espeta- dade. Trata-se de uma série de embri aca nessa veloci- poderia ser dado por nenhuma moda, Os lugares-co; A particulas efémeras em divagacao nesse nédulo frio a nicagio: todas as ideias estao no ar, mas importa sobre, sua manifestagéo publica, se possivel exagerada e ieee : (Olugar-comum €¢ assim, com este trago de uniao ent es mos que 0 articulam, que o constituem, dessa necessidade Poética, aberta e misteriosa, que é 0 lugar comum'.) E., pois, piblico aquilo que é antes de mais espetacular Aconclusao é dbvia: as culturas a-parte’, que recebem essa mani: festagio do espetacular mas nao a geram, nao tém Pensamento que conte. Uma cultura especifica pode aparentar funcionar em desvio (porque estaria cortada dos tracos de retransmissio, ou porque nao disporia de agentes-de-impacto, ou porque teria optado por desprezar esses tracos, organizando os seus préprios impactos), mas nem por isso deixa de intervir — pois nao pode deixar de o fazer - como retransmissor ativo da Relagao. A acao retransmissora das culturas nfo depende da vontade nem sequer do poder de retransmitir. As consequéncias da suces- sao dos retransmissores ultrapassam a ocasifio do primeiro Te os dois ter- @ encarnacao espetacular . er nao de O &-parte nao é 0 antigo periférico; remete para uma dependéncia de facto, ¢ ja direito, 167 Edouard Gliss primordial, que se pretenderia Hicléncia quando a série routro clelo, Por isso a 1 velocidade Ha ou do transmissor jo revela a sua it transmissor, fundador, Essa pretensi\ va non outro campo ou nu do mundo, precipita nt rio do seu corte) C para, ou se reali Relacao, que & novidade todas as modas possiveis. Ao cont como novidade: cla é-o indistintamente, fo se dé 6 de uma cultura parti- or ativo na Relagao. ‘oda a presenga — mesmo a ignorada ~ mesmo silenciosa, é um retransm|ss ‘Ao retransmissores passivos? Claro que nao, mas em todo o tros. E retransmissor neutro o fator cio de um Estado um modo Existir caso ha retransmissores neu! que se consome no seu préprio impacto: interve no territ6rio de um outro, genocidio, triunfo universal de de vida, generalizagio de um produto padronizado, ajuda humani- taria, instituigdo internacional, troca comercial a grande ou pequena escala, manifestagao ritual de agrupamento desportivo, grande concentragao planetaria da musica comocional... Trata-se, com efcito, de agentes diretos, mas cujo retransmissor nao é dire- tamente reconhecido, na medida em que o espetacular do agente se sobrep6e ao continuo do seu efeito, o mascara, pela propria organizacao do seu espeticulo. A dificil percegao dos efeitos da interagao é aquilo que permite diferenciar os agentes neutros dos ativos. Uma presenga cultural pode ser ativa e ignorada, uma inter- vencao, pelo contrario, espetacular e neutra. O neutro aqui nao éo0 ineficaz, mas o que se furta ao espetaculo. O ativo nao é preponde- rante, age no continuo. Os agentes-de-impacto transformam em retransmissor neu- tro (neutralizado no impacto das suas provas manifestas) mesmo aquilo que outrora funcionava como retransmissor ativo, nao ime- diatamente captado, mas longamente dinamizado por agentes de retransmissao. Sabemos. aaa es so esses agentes de retransmis- or gu am na matéria da Relagao. E pode- » Por oposigao, a maneira dos agentes-de-impacto: 168 reflexos literais dessa matéri, van giluminar nem mudar, para quem queira interv; uilibra-los, talvez modifi gada essa indeterminagdo dos etransmissores neutros, Por isso Sov 56 pode verdadeiramente ser fej intervencg mente fechado sobre as suas com go seu eco Nao se pode desenvoh ; jaacio na Relagio. A ideologia multipi atégia generalizavel das» para ultrapassar esse limite obstinado, preci, da generalizagao: papel final do proletariad, Cisamente através nente, missa0 civilizadora de uma nagio, defesn Tevolugao perma- dade, ou ainda, cruzada anticomunista (e poomeuees da liber- opressores de todos os quadrantes em breve fi cine que os texto), etc. Essas tentativas de controlo ou de nen sem esse pre- ram sempre contra as singularidades da globais esbar- : Relagao. Ela sé é unit dada a quantidade absoluta e definida das suas particularidntee E da natureza dos agentes-de-impacto manter a distancia, cavar 0 fosso entre culturas emergentes e culturas de intervengdo (essa é uma das formas «desreguladas» do universal generali- zante), assim esgotando o pensamento no aparato do seu logro. Desviam-no para a certeza de que o seu «fim» é aperfeigoar exata- mente aquilo que reforga 0 seu aparecimento como agentes-de- -impacto, mantendo o respetivo poder simultaneamente légico e desnaturante. Precisam do desvio/fosso (entre paises produtores e paises recetores) para manter a sua linha/orientacio”. fio si Aveis: ina- As aces realmente generalizadas esto ai ocultas, ndo s40 detetaveis: as das mul cionais e das conspiracées do poder. Pode parecer que a antiga partigéo entre com rigor uma atual repartigao entre paises dist Japao, Mas, insistamos, essa reparticao jé nao de direito, cla co oe de facto, nao fundada num privilégio de conhecimento nem nut absoluto, descobridores € descobertos corresponds ribuidores € paises receptores, NO wnsagra uma dominagio tensio de 169 Edouard Glissant ensar que as culturas que nao 40 mani 'Pul an Set ntes-de-impacto encontrariam, em compensag: 5 " sacio, rvam aprofundaments tee &pége to lento ¢ Pei ria utdpico P* age! agerieompenss contr ari Tae to que nao podemo: equi ree ver dadeiras SOIUGOeS», 5 nlemos avn smente ria também har ad - exempl de . tiga do devir. Presunes reemplo (a adequacao das necessidades «Uma eine es e dog pt Smet Cio ado lugar) nao tera suficiente aparato se impor: os seus agentes sao neutros, impotentes, «Natural -se, acaba por se desgastar, na difracao cintilante doe fim esg -impacto. Nao se escapa a precipitacao histériea, los agentes forga ou inclinacao, nos mantenhamos a aw que se m dos ca arranques. um determ™ > Dar 170

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