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ANPOF-2010

Sobre Estruturas e o Realismo Estrutural:


Estruturas como Representação

Décio Krause
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Departamento de Filosofia
Universidade Federal de Santa Catarina
GT-Lógica
www.cfh.ufsc.br/∼dkrause

10 de Setembro de 2010

Abstract

We begin by recalling two versions of structural realism (SR), the epistemological


(ESR) and the ontic, or ontological (OSR) ones. These versions focus on the notion
of (mathematical) structures, and consider that these entities play different roles,
namely, either concentrate what we know (ESR), or stand for what there is (OSR).
By recalling also some aspects of van Fraassen’s empiricist structuralism, I focus
on his slogan to propose a modified version of his view, so enlighten a third role
structures should play within SR, namely, their role in the representation of concepts
and knowledge. Assuming that our scientific knowledge is a conceptual knowledge,
I propose a view about the growing of knowledge based on this third aspect of
structures, and emphasize the needs of considering the mathematics used to build
them.
Keywords: structural realism, structural empiricism, structures as representation,
scientific knowledge.

Resumo

Iniciamos recordando duas versões do realismo estrutural (RE), o epistemológico


(REE) e o ôntico, ou ontológico (REO). Essas versões focam na noção de estrutura
(matemática), e consideram-nas como desempenhando papéis distintos, a saber,
concentrando aquilo que conhecemos (REE) ou aquilo que há (REO). Recordando
também aspectos do empirismo estrutural de van Fraassen, dou atenção ao seu slo-
gan para propor um terceiro papel que as estruturas deveriam desempenhar dentro
do RE, a saber, seu papel na representação dos conceitos e do conhecimento. Assu-
mindo que o conhecimento cientı́fico é conhecimento conceitual, proponho uma visão
acerca do progresso do conhecimento baseado nesse terceiro papel desempenhado
pelas estruturas, e enfatizo a necessidade de considerar a matemática utilizada para
elaborá-las.
Palavras-chave: realismo estrutural, empirismo estrutural, estruturas como repre-
sentação, conhecimento cientı́fico.

1
2 Krause - ANPOF 2010

1 Introdução
Há presentemente várias versões do chamado realismo estrutural (RE), como se
pode notar por exemplo em vários artigos em Rickles et al. [2006] (ver também
Ladyman [1998], [2009], French [2001], French [a aparecer], French & Ladyman [a
aparecer], dentre várias outras fontes disponı́veis na literatura). O realismo estrutu-
ral (RE) (ou realismo sintático) é uma forma de realismo cientı́fico que foi proposto
por John Worrall [1989] para dar conta das controversias entre aqueles que pro-
curam sustentar o realismo cientı́fico com base no argumento do não-milagre, e
anti-realistas, que o criticam com base no argumento da meta-indução pessimista.1
O realismo cientı́fico, em resumo, sustenta que a ciência nos conta a verdade sobre o
mundo, pelo menos parcialmente. Assim, as teorias nos contam o que são de fato as
correntes elétricas, com o que os átomos de parecem, como a matéria de distribui no
espaço, etc., e também que devemos acreditar nas entidades inobserváveis postula-
das por nossas melhores teorias, assim como que a natureza desses mesmos objetos,
os quais causam os fenômenos que observamos, é corretamente descrita por elas. O
argumento do não milagre diz que não pode ser um milagre que a ciência funcione;
ela deve fazer exatamente o que se disse acima. A meta-indução pessimista, por
outro lado, chama a atenção para o fato de que, tendo em vista que todas as teorias
cientı́ficas, mesmo as mais bem sucedidas, como a mecânica newtoniana, foram su-
plantadas, é de se esperar que as teorias presentes também irão se mostrar falsas.2
Como é fácil perceber, a saı́da de tal impasse é difı́cil, se não impossı́vel, mas Wor-
ral vai introduzir o realismo estrutural como sendo possivelmente ‘o melhor dentre
ambos esses dois mundos’.

Para Worrall, não necessitamos adotar o realismo cientı́fico, assim como não é pre-
ciso sermos anti-realistas acerca da ciência, pois podemos adotar o RE e ficarmos
comprometidos epistemicamente somente com o conteúdo matemático ou estrutu-
ral das nossas teorias. Na visão de Worrall, mesmo durante o cambio de teorias, a
estrutura matemática é preservada; em seu artigo [1989], ele fornece alguns exem-
plos, como da teoria da luz de Fresnel, que obteve relativo sucesso, mas acabou se
mostrando falsa (ela supunha que a luz era um fenômeno ondulatório propagando-
se no éter) e sendo suplantada pela teoria de Maxwell, que como se sabe trata a
luz como um fenômeno eletromagnético. No entanto, segundo Worrall, “houve um
importante elemento de continuidade”, uma continuidade não de conteúdo, mas
de forma, ou de estrutura (op.cit.). Com efeito, as equações de Fresnel podem ser
derivadas na teoria de Maxwell. Para Worrall, o RE não nos compele à crença na
descrição teórica correta da realidade, e nem compromete-nos com a afirmação de
que é a estrutura matemática de uma teoria que descreve o mundo. Assim, pelo
primeiro motivo, somos liberados da meta-indução pessimista e, pelo segundo, da
suposição de que o sucesso da ciência é um milagre.

O papel das estruturas no RE pode ser melhor compreendido se olharmos para a


distinção proposta por James Ladyman em seu artigo ‘What is structural realism?’
[1998]. Segundo ele, podemos diferenciar entre dois tipos de realismo estrutural:

1. Suas origens, no entanto, como reconhece o próprio Worrall, remontariam a Poincaré, Duhem
e outros —ver Worrall [1989], Ladyman [2009].
2. Este termo segue John Worral, para quem a fı́sica newtoniana, que apesar de ainda ser ampla-
mente utilizada, é falsa pois, como proposta, era para ser uma teoria universal que falava de todos
o corpos e de todas as velocidades, e não era (ou é) uma teoria acerca de um ‘referente pretendido’;
ver Worrall [op.cit.], nota 11). Trata-se de um tema interessante.
Estruturas como representação 3

o epistêmico (REE) e o ontológico, ou ôntico (REO). De acordo com o primeiro,


grosso modo, tudo o que conhecemos (acerca do mundo) são estruturas, estrutu-
ras matemáticas. Para a segunda versão, mais forte, tudo o que há são estruturas
(French [2001]). Dito de outra forma, para o REE, os objetos postulados por nossas
teorias cientı́ficas, como elétrons, genomas, etc., permanecem epistemologicamente
incessı́veis, e tudo o que conhecemos são os elementos estruturais (estruturas) de
nossas teorias sobre eles. Para o REO, por outro lado, esses objetos são simples-
mente eliminados, de forma que ficamos unicamente com as estruturas; elas são tudo
o que há. A proposta de Ladyman visa suplantar certas dificuldades com as quais o
REE se depara, como por exemplo a sub-determinação da metafı́sica pela fı́sica, ou
seja, a tese, aparentemente um fato, que uma teoria como a mecânica quântica não
relativista (na maioria de suas interpretações) é compatı́vel com pelo menos duas
metafı́sicas distintas, uma que considera os objetos fı́sicos como indivı́duos, ao par
com seus correspondentes da mecânica clássica, e outra que os vê como entidades
destituı́das de individualidade (não-indivı́duos); ou seja, a fı́sica (no caso, as versões
consideradas da mecânica quântica), não determinam a metafı́sica —para detalhes,
ver French [1998]; French & Krause [2006]). Porém não entraremos nesses detalhes
aqui.

O que nos importa é que para o REE, as estruturas descrevem aquilo que conhece-
mos, ou que podemos conhecer; este papel das estruturas reflete portanto aquilo que
sabemos. Já para o REO, as estruturas refletem aquilo que há. O que propomos é um
terceiro papel, o das estruturas como representação. Antes de prosseguir, devemos
salientar que nossa proposta independe de aderirmos seja a uma forma de realismo
ou de anti-realismo. Com efeito, podemos sustentar nosso ponto a partir da posição
anti-realista de Bas van Fraassen, denominada de empirismo construtivo ([1980)].
van Fraassen sustenta uma forma de estruturalismo, por ele chamada de estrutura-
lismo empiricista, ou empirismo estrutural (empiricist structuralism —van Fraassen
[2008], p.238). Segundo este autor, sua proposta diz respeito não ao que seja a na-
tureza, mas ao que seja a ciência, e refere-se ao fato de que toda a representação
cientı́fica é matemática (op.cit., p.239). Em sı́ntese, ele diz que sua tese pode ser
resumida no seguinte slogan: “tudo o que sabemos através da ciência são estrutu-
ras” (op.cit., p.238, ênfase no original). Este slogan será importante para nós mais
à frente. Mais especificamente, van Fraassen aponta para dois pontos essenciais:
”I. A ciência representa os fenômenos empı́ricos como mergulhados em certas
estruturas abstratas (modelos teóricos).
”II. Essas estruturas abstratas são descritı́veis a menos de um isomorfismo es-
trutural.”3 (idem, ibidem.)
Ainda que uma análise mais detalhada de sua proposta fosse necessária, vamos nos
restringir a essas poucas observações para dizer que concordamos com a tese geral
anti-realista de que seria pretensioso querermos dizer em que consiste a natureza,
e que devemos nos contentar em descrever os fenômenos, ainda que devamos fazer
várias qualificações a esse respeito (ver abaixo). Concordamos também com o item
I, mas temos considerações a fazer, como também veremos à frente. Porém, o item
II permanece (a meu ver) obscuro. Aliás, é recorrente entre os filósofos afirmações
como a de haver ‘isomorfismo’ entre entidades que não são estruturas matemáticas.
Em seu livro [2008], van Fraassen faz essa consideração, assumindo um mea culpa
por ter entrado nessa falácia em seu livro [1980] (cf. [2008], p.386, n.8). Presen-

3. No original, ”[t]hose abstract structures are describable only up to structural isomorphism”.


4 Krause - ANPOF 2010

temente, consciente desse lapso, questiona justamente o mesmo ponto, colocando


como questão fundamental a demanda seguinte: “Como pode uma entidade abs-
trata, como uma estrutura matemática, representar algo que não seja abstrato, algo
na natureza?” (van Fraassen [2008], p.240). Mesmo assim, e mesmo dadas as suas
explanações em [2008], o item II ainda nos parece demandar maiores discussões.
Porém, isso não nos cabe discutir aqui. (Somente para satisfazer o leitor curioso,
como se poderia definir uma função bijetiva entre os pontos de um quadrado e
os (os o quê?) da superfı́cie de uma mesa? Exceto se entendermos o conceito de
isomorfismo de forma distinta daquela que lhe confere a matemática atual, esse
linguajar deve ser entendido como um abuso de linguagem, mas a rigor não tem
sentido preciso nenhum).4 No entanto, de um ponto de vista intuitivo (e somente
deste ponto de vista) podemos procurar entender o item II como indicando a uni-
vocidade, a menos de um isomorfismo, das estruturas abstratas que subjazem às
teorias cientı́ficas. Ou seja, as estruturas abstratas que utilizamos para representar
os fenômenos empı́ricos (cf. item I) seriam tais que qualquer outra estrutura repre-
sentando os mesmos fenômenos lhe seria isomorfa (se não for assim, como entender
o item II?). Mas neste ponto é preciso qualificar o que se entende por estrutura. O
simples dizer de que se tratam de estruturas matemáticas abstratas é pouco, pois
pode nos levar a pensar que devem ser consideradas unicamente como estruturas
conjuntistas (ou coisas alternativas, como elaboradas em lógicas de ordem supe-
rior ou na teoria das categorias). Na seção seguinte, daremos uma definição precisa
de estrutura nesse sentido, e será a esse tipo de estrutura que daremos atenção.
Porém, podemos aceitar que estruturas podem ser entendidas de modo bem amplo,
surgindo como resultado de uma ‘estruturação’ de um domı́nio da realidade, e isso
pode acontecer mesmo em uma disciplina que não seja tratada matematicamente,
como a psicologia. Com efeito, um cientista desta área, como qualquer cientista de
qualquer outra área, elabora conceitos, introduz conjecturas, trabalha com algo que
se assemelhe a postulados e, enfim, organiza seu conhecimento de forma ‘estrutu-
rada’. Pelo menos em princı́pio, talvez possamos assumir que mesmo em uma área
como a psicologia o que vamos dizer mais à frente sobre o papel ‘representacional’
das estruturas (entendidas de modo amplo) pode se aplicar. Se entendermos por
estrutura algo assim tão amplo, fica ainda mais difı́cil dizer o que consiste um iso-
morfismo entre duas delas. Por isso, vamos nos restringir a estruturas conjuntistas
no sentido da seção seguinte. Antes, porém, vamos fechar nosso comentário sobre
o item II acima. Van Fraassen diz que as estruturas são ‘modelos teóricos’. Mas
modelos são modelos de algo; com efeito, não existem modelos pura e simplesmente
sem que se possa especificar o que modelam. Sem perda de generalidade, podemos
assumir que se tratam de modelos de um conjunto de axiomas ou de um predicado
conjuntista, como sugere P. Suppes —as duas alternativas são equivalentes. Mas
então, os modelos ficam dependentes de uma linguagem e de uma lógica e, ainda
que possamos dar ênfase aos modelos propriamente ditos, como faz a abordagem
semântica, não se pode olvidar que há (ou deve haver) uma axiomática subjacente.

Dado este fato, que não me parece poder ser facilmente contestado, ocorre o se-
guinte: se a teoria que estamos considerando for uma teoria de primeira ordem,

4. Um isomorfismo entre duas estruturas (ver a seção seguinte para as definições) A = hD1 , Ri i
e B = hD2 , Sj i de mesma assinatura é uma função bijetiva f : D1 7→ D2 tal que, para todos
x1 , . . . , xn ∈ D1 , Rk (x1 , . . . , xn ) se e somente se Sk (f (x1 ), . . . , f (xn )), para Rk e Sk relações n-
árias que se correspondem na ordem das relações de ambas as estruturas. Assim, um isomorfismo
é uma função entre conjuntos.
Estruturas como representação 5

como insiste (não sei qual o real motivo) a maioria dos filósofos, então, se ela tiver
um modelo infinito (e qualquer teoria das ciências empı́ricas mais avançadas irá
certamente utilizar coisas como os números reais), ela terá modelos de todas as car-
dinalidades infinitas, como resulta do célebre teorema de Löwenheim-Skolem. Ou
seja, a classe de modelos assim alcançada não será uma classe de modelos isomorfos
ou, como se diz, a teoria não será categórica. Ademais, invariavelmente aparecerão
modelos não-standard, o que complica bastante a sua classificação para os objeti-
vos da ciência empı́rica. Portanto, o item II não é claro, a meu ver. Um alternativa
(talvez seja isso que ele queira dizer) é a de que as estruturas consideradas devam se
fechadas por isomorfismos. Isso significa, por exemplo, que quando uma estrutura
modela, digamos, uma boa-ordem, toda estrutura a ela isomorfa é também uma
boa ordem.

No que segue, vamos modificar o slogan acima mencionado de van Fraassen (apre-
sentado justamente antes das condições I e II) a fim de destacar um outro papel
para o conceito de estrutura que não só complementa os seus já aludidos papéis no
REE e no REO, mas que também serve ao empirismo estrutural, pois permite dar
um sentido preciso para o item I acima. Para alcançar maior precisão, iniciamos
por uma revisão não detalhada do conceito de estrutura tal como usado em ciência
(e em matemática); para mais detalhes, ver da Costa & Rodrigues [2007], Krause
[2010], Arenhart & Moraes [a aparecer].

2 Estruturas e o papel da (meta)matemática


Inicialmente, concedamos que, na atividade cientı́fica de ‘modelar’ um determinado
domı́nio do conhecimento,5 o cientista utiliza conceitos os mais variados, desde
aqueles que se supõe pertencem a vários ou a todos os domı́nios, como os de objeto,
relação e propriedade, até os especı́ficos do domı́nio em questão. Além do mais, o
cientista pode supor (ainda que implicitamente), um ou mais conjuntos de entida-
des que ele pretende modelar. Em um sentido mais preciso, podemos dizer que o
cientista elabora uma estrutura matemática, ou modelo informal do domı́nio que
está considerando, por meio da qual estabelece as demarcações e limitações que
acha importantes. Nessa estrutura, ele concentra os elementos relevantes de sua
análise, apontando para todos os elementos que serão utilizados, pelo menos para
uma primeira aproximação (veremos à página ?? uma citação de Heisenberg que
ilustra este ponto).

Uma estrutura, assim concebida, pode ser tomada como um par ordenado

A = hD, Ri ii∈I (1)

onde D é um conjunto não vazio (na verdade, pode haver vários conjuntos; neste
caso, D representa a união não vazia desses conjuntos) e as Ri formam um conjunto
ordenado de relações sobre os elementos desses conjuntos, ou sobre subconjuntos
desses conjuntos ou outras entidades ‘de ordem mais alta’ deles resultantes por

5. Importante salientar as aspas na palavra ‘modelar’; como é sabido, a palavra ‘modelo’ tem
várias acepções em filosofia da ciência, ainda que nem sempre destacadas.
6 Krause - ANPOF 2010

meio das operações conjuntistas básicas)6 sendo I um conjunto de indices. Cada


uma das relações em Ri tem uma determinada aridade (ou peso) nk . A lista or-
denada hn1 , n2 , . . .i, que indica as aridades das relações de A, chama-se assinatura
da estrutura (ou tipo de similaridade). Assim, uma estrutura que modela um corpo
ordenado (em álgebra) é algo do tipo C = hD, 0, 1, +, ×, <i, que tem assinatura
h0, 0, 3, 3, 2i.

Se as relações de uma estrutura foram unicamente relações envolvendo os elementos


de D, a estrutura é uma estrutura de primeira ordem, elementar ou de ordem-1
como preferimos chamar. Mas, a rigor, as estruturas que servem às ciências empı́ricas
não envolvem unicamente relações entre os elementos do domı́nio, ou seja, não são
estruturas de ordem-1, como são aquelas consideradas pela Teoria de Modelos usual
(Hodges [1997]). A estrutura de corpo ordenado exemplificada acima é de ordem-
1. Algums exemplos de estruturas que não são de ordem-1 ilustram o caso em
tela: a estrutrura de espaço topológico, que é da forma E = hX, τ i, onde X é um
conjunto não vazio e τ uma coleção de sub-conjuntos de X. Outros exemplos de
estruturas matemáticas que não são de ordem-1 são as seguintes, aqui somente
mencionadas (ver Kunen [2009], p.89): boas-ordens, corpos ordenados Dedekind-
completos, grupos cı́clicos. Como já dissemos acima, as estruturas relevantes para
a ciência não são tampouco de primeira ordem, como evidenciaremos a seguir.

Antes, cabe notar que, na nossa notação, as relações Ri encerram não somente as
relações e propriedades (relações de 1-árias) mas operações (relações de aridade
n + 1) e elementos distinguidos (operações de aridade zero). Tomemos um exemplo
conhecido. De acordo com McKinsey, Suppes e Sugar, uma estrutura que ‘modela’
uma mecânica clássica de partı́culas é, simplificadamente, uma sextupla ordenada
P = hP, T, m, f, g, si, (2)
onde P é um conjunto não vazio cujos elementos são denominados de partı́culas, T
é um conjunto de ‘instantes de tempo’ (pode ser um intervalo fechado da reta real),
m é uma função de P no conjunto dos reais não negativos, de modo que se p ∈ P ,
então m(p) representa a massa da partı́cula p, f é uma função de P × P × T em R3
(aqui, f (p, q, t) representa a força interna que a partı́cula p exerce sobre a partı́cula
q no tempo t), g é uma função de P × T no R3 (g(p, t) representa a somatória das
forças externas que a partı́cula p sobre no instante t), e s é uma função de P × T no
R3 que representa a posição da partı́cula p no instante t. Esses conceitos são sujeitos
a axiomas bem especı́ficos, que refletem a base da mecânica clássica de partı́culas,
e que não precisam ser lembrados aqui (ver Krause [2002], p.44). É patente que
esse tipo de estrutura não é de ordem-1, pois os elementos da estrutura não são
meramente relações (ou funções, ou elementos) entre os elementos do domı́nio.

Vê-se assim de que forma a dita mecânica pode ser ‘modelada’ estruturalmente.
Um outro exemplo pode ser útil. Tomemos um caso um pouco mais elaborado, ti-
rado das ciências biológicas, tratando a teoria sintética da evolução. Os detalhes
podem ser vistos em Magalhães & Krause [2001]. Os elementos básicos da estru-
tura que consideraremos são os seguintes: um conjunto não vazio B cujos elementos
denominaremos de entidades biológicas; um subconjunto não vazio G ⊆ B cujos
elementos chamaremos de genes; duas relações de equivalência sobre G, denotadas

6. Essencialmente, tomar o conjunto das partes e efetuar produtos cartesianos. A definição, por-
tanto, cobre estruturas que não são unicamente de ordem-1 —ver à frente.
Estruturas como representação 7

pelos sı́mbolos ≡ e =loc , ditas indistinguibilidade genética e indistinguibilidade de


locus respectivamente. Uma coleção de relações binárias sobre B, denotadas por
%m , uma para cada natural m > 0. Se a, b ∈ B e a %m b, diremos que a é o
m-ésimo ancestral de b, e que b é o m-ésimo descendente de a. Ademais, nossa
estrutura comporta um conjunto não vazio E cujos elementos são chamados fatores
ambientais. Finalmente, uma função ϕ de B × E no conjunto R+ dos reais não
negativos, denominada de função adaptação (‘fitness’). O número real positivo as-
sociado por ϕ ao par hb, ei é dito valor adaptativo de b no ambiente e. Assim, temos
a 7-upla

S = hB, G, ≡, =loc , {%m }, E, ϕi, m ∈ {1, 2, 3, . . . , n}. (3)


Os objetos listados nessa estrutura estão sujeitos a postulados que, como dizia
Hilbert, os definem implicitamente. Como acima, não listaremos esses postulados
aqui.

As estruturas particulares desse tipo, obtidas quando se instanciam seus elementos


de forma que os axiomas selecionados para regê-los são verdadeiros, constituem
os modelos dos axiomas utilizados. Com respeito a eles, o filósofo tem muito a
fazer. Pode estudar esses modelos, procurar por um teorema de representação, ou
destacar aqueles que sejam ‘empiricamente adequados’, etc. O que nos importa
salientar é que um determinado domı́nio do conhecimento foi ‘modelado’ por uma
estrutura matemática. Posteriormente, encontramos (como indicado em da Costa
& Rodrigues [2007], Krause [2010]) uma linguagem adequada dessa estrutura, na
qual formulamos os axiomas que desejarmos, e os axiomas dessa estrutura (ou os
axiomas que têm essas estruturas como modelos) constituem a (ou uma) teoria
dessas estruturas, e portanto, do domı́nio considerado, por elas modelado. Em outras
palavras, representamos nosso conhecimento por meio de estruturas abstratas. Esse
‘conhecimento’, dependendo da ı́ndole filosófica do proponente, pode ser tomado
como abrangendo os fenômenos empı́ricos, como é o caso de van Fraassen, conforme
o item I da seção anterior. Intepretações adequadas das entidades básicas dessas
estruturas fornecem uma semântica à teoria e a sua ligação com a ‘realidade’ em
algum sentido. Porém, como estruturas abstratas que são, podem ter interpretações
as mais variadas, algumas das quais (ou talvez a maioria das quais) não tenha
qualquer relevância empı́rica, sendo meramente modelos da teoria. É sobre isso
que falaremos a seguir, quando enfatizarmos nossa visão. Antes, uma observação
importante.

As estruturas que estamos considerando são constructos conjuntistas, se admi-


tirmos, como podemos fazer no caso das estruturas adequadas para as ciências
empı́ricas (e para a maior parte das estruturas em matemáticas), e a representação
de conceitos depende da particular teoria de conjuntos que se está utilizando (o
mesmo se dá com conceitos como o de verdade).7 Surpreendentemente, este fato
nunca foi, pelo que sabemos, considerado pelos filósofos da ciência em geral. Vejamos
um exemplo: em mecânica quântica, um conceito importante é o de operador não
limitado, os quais são utilizados no formalismo padrão para representar, certos ob-
serváveis, como posição e momento. A teoria de conjuntos padrão, que se considera

7. Claro que ao invés de uma teoria de conjuntos, poderı́amos (dependendo da situação) utili-
zar uma lógica de ordem superior ou a teoria das categorias para erigir as estruturas. Porém, a
abordagem conjuntista é a mais comum e será sobre ela que faremos nossas considerações.
8 Krause - ANPOF 2010

quando se é pressionado para explicitá-la, é em geral a teoria ZFC (Zermelo-Fraenkel


com o axioma da escolha). Nessa teoria, pode-se provar que existem operadores não
limitados, sendo portanto, pelo menos nesse particular, adequada para representar
em uma adequada estrutura, operadores para posição e momento de um objeto
quântico.8 No entanto, Robert Solovay provou que em uma teoria de conjuntos que
difira de ZFC por não incorporar o axioma da escolha (que denotaremos por ZF),
mas uma forma mais fraca, denominada de axioma das escolhas dependentes (DC)
mais um axioma que chamaremos aqui de ‘axioma de Solovay’ (S),9 pode-se pro-
var que se ZF+DC+S (dita ‘teoria de conjuntos de Solovay’) for consistente, todo
operador é limitado. Isso indica que teremos problemas se usarmos como metama-
temática a teoria de Solovay para edificar estruturas que representem os conceitos
da mecânica quântica. Para mais detalhes e outros exemplos, ver da Costa et.al.
[2010], Krause [2010].

Assim, percebe-se que a matemática (e a lógica) que usamos na matamatemática se


afigura essencial nessa discussão. Sem levá-la em conta, como podemos nos assegurar
que os conceitos que estamos representando em uma determinada estrutura ‘exis-
tem’ ? Digamos que estejamos trabalhando com ZFC de primeira ordem. (Como
se sabe, podemos formalizar ZFC em segunda, terceira, . . . ordens, e as teorias
resultantes são essencialmente distintas.) Admita ainda que, em ZFC, desejamos
construir uma estrutura tal que um de seus elementos básicos seja algo que não
pode ser formalizado em ZFC, como um cardinal mensurável. Claro que não pode-
mos construir tal estrutura em ZFC. Ora, dirá você: troque de metateoria, e admita
que sempre que eu precisar de um conceito, a metamatemática deve ser tal que esse
conceito ‘exista’. Esta pode parecer ser uma boa saı́da, mas não é, pelo menos não
para um filósofo interessado em fundamentos. Com efeito, se fosse sempre assim
tão fácil requisitar que aquilo de que necessitamos esteja disponı́vel, os lógicos não
teriam dispendido tanto esforço para edificar lógicas não clássicas, os matemáticos
em edificar geometrias não-euclidianas e matemáticas não-cantorianas, dentre ou-
tras coisas.10 O filósofo com certeza não pode dar uma resposta deste tipo. Ele deve
como que por dever de ofı́cio considerar e refletir sobre o que está acontecendo. Mas
retornemos ao nosso ponto.

3 Conhecimento via estruturas


As estruturas que elaboramos são via de regra produto da experiência, do conhe-
cimento do campo considerado, da intuição, do que quer que seja e, como vimos,
podem depender da teoria metamatemática utilizada. Em geral, os conceitos não
vêm em sua forma definitiva, mas são elaborados e re-elaborados diversas vezes até
que se chegue a uma solução que consideremos ao menos parcialmente satisfatória
para darmos o passo seguinte. Esta situação é bem retratada na seguinte frase de
Werner Heisenberg, referindo-se a Max Planck e à sua própria visão da questão.
Disse Heisenberg:

8. Um operador A é limitado se existe um número natural n > 0 tal que, para todo vetor α,
tem-se que ||A(α)|| ≤ n.||α||; caso contrário, A é não-limitado.
9. Não importam aqui os detalhes.
10. Matemáticas não-cantorianas, como as denonimava Paul Cohen, grosso modo falando, resultam
quando adicionamos a ZF alguma forma de negação do axioma da escolha.
Estruturas como representação 9

“In one of his lectures on the development of physics Max Planck


said: ‘In the history of science a new concept never springs up in its
complete and final form as in the ancient Greek myth, Pallas Athene
sprang up from the head of Zeus’. The history of physics is not only
a sequence of experimental discoveries and observations, followed by
their mathematical description; it is also a history of concepts. For an
understanding of the phenomena the first condition is the introduction
of adequate concepts. Only with the help of correct concepts can we
really know what has been observed. When we enter a new field,
very often new concepts are needed. As a rule, new concepts come up
in a rather unclear and undeveloped form. Later they are modified,
sometimes they are almost completely abandoned and are replaced by
some better concepts which then, finally, are clear and well-defined.”
W. Heisenberg [1973], p.264.

A questão crucial é a forma pela qual organizamos esses conceitos, e a aborda-


gem estrutural é uma alternativa bem razoável para explicar como fazemos isso, e
ainda nos mostra tudo o que está sendo assumido. Retomemos o exemplo da teoria
sintética da evolução dado acima. Claro que diferentes cientistas podem ter diferen-
tes visões deste campo, o que orginaria estruturas alternativas. Mas, no caso citado,
os elementos conceituais escolhidos foram os de entidade biológica, gene, ambientes,
as relações de indistinguibilidade genética e de locus, a relação de ancestralidade,
e a função adaptação. Todos eles, como vimos, foram ‘estruturados’, e a estrutura
resultante exibe esses conceitos, o que poderia não ser claro o suficiente se fossemos
ler um livro usual de biologia, ou seja, possivelmente terı́amos dificuldade em desta-
car os elementos básicos e as ‘leis’ (axiomas) que os regem. Depois, esses conceitos
foram todos relacionados (definidos implicitamente) por postulados adequados. O
conhecimento fica, assim, organizado e de fácil acesso, pois sabe-se do que se está
falando, quais são os conceitos utilizados, que regras obedecem. Ademais, as estru-
turas assim consideradas podem ser tratadas com rigor e, ainda que não tenhamos
à disposição uma teoria de modelos de ordem superior, podemos falar muito a seu
respeito, provar teoremas sobre elas, o que indiretamente nos dá um maior conhe-
cimento o sobre o campo em estudo (ver alguns desses teorema em da Costa &
Rodrigues [2007]).

Mas, insistamos, as estruturas tı́picas das ciências empı́ricas, como as exemplifi-


cadas acima, não são estruturas elementares como aquelas cobertas pela área da
lógica denominada de Teoria dos Modelos. Por isso, o filósofo não deve supor que
a Teoria de Modelos responde qualquer demanda sobre essas estruturas, como a
grande maioria dos filósofos faz crer (ver por exemplo Przelecki [1969], que trabalha
somente com estruturas de ordem-1).

Este é, portanto, o papel das estruturas que desejamos ressaltar, de certo modo
concordando com a condição I de van Fraassen, mas com o adendo de que temos
um conceito perfeitamente claro de ‘estrutura’ (ou de ‘estrutura abstrata’, em seus
termos). Ou seja, em resumo, nosso conhecimento cientı́fico é inicialmente mapeado,
ou representado, por meio de estruturas matemáticas. Porém, dada a dependência
que essa suposição tem da (meta)matemática utilizada, ela está longe de ser trivial.
10 Krause - ANPOF 2010

4 Evolução do conhecimento
Do nosso ponto de vista, o papel das estruturas como representação pode ser su-
marizado no seguinte slogan: nosso conhecimento cientı́fico se organiza por meio
da elaboração de estruturas. Esta visão pode ser sumarizada pelo seguinte quadro
(para mais detalhes, ver Krause [2010]):

O cientista O lógico e o filósofo



Modelos
heurı́sticos (H)
(H) 
Realidade ‘velada’
# #  R #
@
@ #Modelos
 abstratos (A)
(1) (2) (3) 
(R) - (ER) - (MM) - (T) -

"! "! "! "!
R 
Realidade empı́rica (fenomênica) (ER)
@
@
Modelo matemático (teoria informal) (MM)

A teoria do MM (T)

Figura 1: Conhecimento por estruturas.

Iniciamos pela teoria da ‘realidade velada, que foi proposta por Bernard d’Espagnat,
fı́sico e filósofo francês, em várias de suas obras, como Veiled Reality, The Reality
and the Physicist, e outras, algumas encontráveis na web. Por exemplo, vejamos a
frase com a qual ele inicia o Prefácio de seu livro Uma Incerta Realidade:
“Existem duas realidades . . . Ou, mais exatamente (mas é também
mais longo dizê-lo), a fı́sica atual convida-nos a separar bem duas
noções outrora designadas pela palavra ‘realidade’. Uma é a da reali-
dade independente. Pela própria definição, a noção em questão cobre
o conjunto daquilo que é (se Deus existe, ou se o mundo existe em
si, eles são iguais nesse sentido). Esta realidade —como nos indica a
fı́sica atual —é longı́nqua, até mesmo velada. A outra noção é a de
realidade empı́rica, ou conjunto dos fenômenos: o homem aborda-a
cada vez melhor.” (d’Espagnat [1995], p.9)
Em linhas gerais, d’Espagnat rejeita o realismo convencional como sendo incom-
patı́vel com a mecânica quântica, defendendo um ‘realismo velado’ (algo idealista),
aceitando que há uma realidade independente, mas cuja estrutura não pode ser
por nós conhecida. A realidade, para ele, pode ser descrita apenas ‘alegoricamente’
por meio de nossas teorias. Posição bastante semelhante foi defendida em tempos
recentes por vários pensadores, como Erwin Schrödinger, para quem é impossı́vel
descrever o mundo como ele é ‘objetivamente’, independentemente de observações
e interferências; porém, para ele, a experiência intersubjetiva é um dos mais sérios
problemas na elaboração das teorias, o que o faz rejeitar o relativismo e o subjeti-
vismo (Ben-Mehagem [1992]). De uma suposta Realidade (um domı́nio do conheci-
mento que desejamos investigar, sejam entidades abstratas, como na matemática,
seja no domı́nio das ciências empı́ricas ou sociais), obtemos (racionalmente, em-
piricamente, por intuição, não importa como) informações que chamamos de uma
Realidade Fenomênica, e que encerra aquilo que apreendemos do ‘Real’ de algum
Estruturas como representação 11

modo (d’Espagnat denomina-a de Realidade Empı́rica). Para muitos filósofos, como


se sabe, não existe a primeira parte, mas somente esta segunda; ela seria a nossa
‘realidade’ (não necessitamos discutir isso aqui). O que importa é que, usando a
intuição, conhecimentos prévios (background cientı́fico, sem o qual dificilmente o
cientista saberá o que fazer com os dados que recolhe) ou o que quer que seja, como
quando utilizamos dispositivos heurı́sticos como maquetes (um ‘modelo’ de aero-
plano em um túnel de vento, uma maquete da molécula de DNA, etc.), elaboramos
Modelos Matemáticos por meio de estruturas, via de regra usando a matemática
informalmente, descrevendo nosso mundo fenomênico (e, supostamente, o mundo
‘real’) por meio de equações diferenciais, variedades, geometria, ou o que quer que
seja relevante matematicamente (Einstein teve que aprender geometria riemanniana
e muitas outras coisas, como cálculo tensorial, para poder descrever adequadamente
suas intuições fı́sicas) —isso mostra que as estruturas interessantes estão mesmo
longe de serem estruturas elementares.

Em geral, o cientista pára quando alcança os modelos (ou estruturas) matemáticos.


Com efeito, a grande parte das teorias cientı́ficas não é apresentada axiomatica-
mente ou formalmente; de posse desse instrumental matemático, essa ‘modelização’
de uma suposta realidade (mas na verdade ele está modelando uma interpretação
fenomênica apenas), ele tira conclusões (como sobre o comportamento de um avião
em uma tempestade) e consegue re-interpretar esses dados, obtendo o que supõe
ser uma descrição da realidade (talvez apenas fenomênica). Se tudo der certo, ele
se contenta momentaneamente com seus ‘modelos’, ou teorias informais (reserva-
mos a palavra ‘teoria’ para algo mais nobre, como se verá). Se algo der errado, ele
revisa o que fez, procurando eliminar os erros e elaborar uma ‘teoria’ melhor, que
dê mais resultados positivos. Pode simplesmente ‘consertar’ a teoria (na verdade,
criado outra) ou partir para algo totalmente novo, descartando a antiga (a teoria
do flogisto, por exemplo, não é mais utilizada). Em geral, tudo isso é feito informal-
mente, isto é, sem que haja preocupação como a matemática ou a lógica utilizadas.
Isso quer dizer o seguinte: o cientista (no caso, o matemático) pode lançar mão de
entidades como a coleção de todos os espaços vetoriais, mas dependendo de onde ele
esteja trabalhando (qual seja o seu alicerce metamatemático), essa entidade pode
não existir. Já falamos anteriormente que a ‘existência’ de determinadas entidades
matemáticas depende da teoria que está sendo utilizada. Por exemplo, na teoria
de conjuntos ZFC, não ‘existe’ conjunto universal (um conjunto contento todos os
conjuntos), nem a coleção de todos os espaços vetoriais (dentre várias outras ‘to-
talidades’) existe. Em uma matemática sem o axioma da escolha, teremos outras
dificuldades bem conhecidas com determinados conceitos ‘clássicos’; por exemplo,
certos espaços vetoriais podem não ter base (Jech [1977]), e assim, como utilizar o
formalismo usual da mecânica quântica? Ou seja, a matemática pode nos limitar
na representação dos conceitos. Essa questão é interessante e importante e deveria
ser considerada mais detalhadamente em filosofia da ciência.

Claro que a partir de um mesmo conjunto de dados fenomênicos, pode-se elabo-


rar mais de uma teoria informal ou modelo matemático. Isso depende do cien-
tista em particular, de seu conhecimento, suas crenças e convicções; algumas for-
mulações podem se mostrar mais férteis do que outras, ou elas podem se revelar
equivalentes em algum sentido (empı́rico, por exemplo). Por exemplo, no inı́cio dos
anos 1920, Werner Heisenberg desenvolveu uma Mecânica de Matrizes, depois cha-
mada de mecânica quântica; no ano seguinte, Erwin Schrödinger apresentou uma
12 Krause - ANPOF 2010

Mecânica de Ondas, e elas são consideradas equivalentes (fornecem as mesmas pre-


visões empı́ricas).

O filósofo, e o cientista interessado em fundamentos, no entanto, vão mais longe. Na


verdade, em geral não lhes compete a ebaloração de teorias, mas discutı́-las. Assim,
partem das teorias informais, ou modelos matemáticos, e as submetem à crı́tica.
Primeiramente, podem estar interessados em saber quais são os conceitos básicos
de uma dessas teorias informais (pensemos na teoria da evolução de Darwin), quais
são seus princı́pios básicos (postulados), etc. Ou seja, elabora uma teoria no sentido
em que empregaremos este termo, seja axiomática ou formal. Como no caso das
teorias informais, há em princı́pio uma infinidade de possibilidades de elaboração
de uma teoria a partir de um dado modelo matemático; pode-se por exemplo usar
conceitos primitivos distintos, ou postulados distintos, ou uma lógica mais forte, etc.
O importante é que há uma diferença fundamental entre essas teorias e as teorias
informais (ou modelos matemáticos, MM). Esses MMs, como o nome sugere, são
‘modelos’ de alguma coisa, modelam um certo domı́nio da realidade e, ainda que
possam se aplicar a outras situações, têm, por assim dizer, uma única interpretação
pretendida (ou, como os lógicos costumam dizer, modelo intensional ou pretendido).
Por outro lado, uma das caracterı́sticas de uma teoria axiomática ou formal é a
sua autonomia (no bom sentido popperiano de seu mundo 3 ). Uma teoria (neste
sentido) é algo abstrato, que ganhou independência do campo do conhecimento
que a originou; não fala de nada no mundo real ou fenomênico. Aos seus conceitos
básicos pode-se dar variadas interpretações, e cada uma delas, desde que se cumpram
determinados requisitos, é um modelo da teoria em questão. Note que modelo está
sendo usado agora em uma outra acepção, qual seja, no sentido da lógica, isto é,
como uma estrutura que satisfaz os postulados da teoria. Esses modelos abstratos
(haverá infinitos dele) são todos modelos de uma mesma teoria (ainda que todos
possam ser isomorfos, ou seja, diferirem somente quanto às entidades envolvidas,
mas sendo matematicamente equivalentes), e o cientista pode escolher um deles
para ser o modelo intensional, aquele que reflete o que inicialmente se desejava
espelhar, ou pode estudar qual seria o mais adequado empiricamente, no sentido de
van Fraassen, etc.

Uma vez alcançado este estágio, que basicamente se estabelece pela representação
via estruturas, tem-se não somente uma (ou várias) teoria informal do domı́nio em
apreço, mas também uma (ou várias) teoria sobre ele, e um (ou vários) modelo.
Alcança-se, assim, ao que tudo indica, um maior conhecimento do domı́nio em
questão, pois podemos (em princı́pio) explicá-lo por meio de conceitos e listar uma
coleção de postulados que fornecem uma descrição de suas leis básicas. O processo
então eventualmente reinicia; tendo uma nova visão do domı́nio, proporcionada pelo
avanço teórico, somos levados a reanalisar os dados fenomênicos, talvez destacando
coisas que não vı́amos antes, e tudo inicia novamente.

Segundo este esquema, nosso conhecimento é arquitetado (ou ‘representado’) por


meio da elaboração de estruturas matemáticas. O que é novidade nesse esquema é
que essas estruturas, e consquentemente o que nelas vamos representar, dependem
da metamatemática utilizada, assim (como pode ser de se esperar), nosso conhe-
cimento é histórico, dependente do presente estado do desenvolvimento não só da
ciência, como da matemática.
Estruturas como representação 13

Agradecimentos
Agradeço a Steven French por sugestões valiosas.

Referências
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fundamentos da abordagem semântica’, a aparecer em Principia.
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14 Krause - ANPOF 2010

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