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Ensaio
Publicado em
17/03/2020
O chamado à ação
Morto há 60 anos, Albert Camus deixou uma obra marcada por temas
que inquietaram a humanidade no século XX — e ainda hoje nos rondam
Gisele Barão
No romance A Peste, de 1947, que narra a história de uma cidade assolada por
uma epidemia — lido também como metáfora da ocupação nazista na França
durante a guerra —, a impressão é de que a doença pode voltar a qualquer
momento: “[…] o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar
dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos
quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada”. Para o jornalista e
crítico literário Manuel da Costa Pinto, tradutor e organizador de obras de Camus
no Brasil, esse e outros textos podem se encaixar em contextos diferentes,
apesar das demarcações históricas e geográficas. Mas não necessariamente
anteciparam os conflitos que vivenciamos hoje. “As polarizações ideológicas
atuais, marcadas pela xenofobia e pelo ódio à diferença, à alteridade, são
ditadas por um populismo fruto da precarização do trabalho e dos vícios do
sistema político democrático globalizado — algo bem distante do contexto em
que havia ideologias fortes, como fascismo, marxismo-leninismo ou mesmo o
liberalismo colonialista / imperialista do pós- -guerra. A obra de Camus não tem
relação com questões identitárias e religiosas que pareciam ultrapassadas à sua
época, e que retornaram de modo surpreendente em pleno século XXI”, explica.
Uma descoberta
Graças a uma pesquisa do historiador francês Vincent Duclert, um texto inédito
de Camus veio a público neste ano. Escrito em 1943 a pedido do Comitê Francês
de Libertação Nacional, o artigo datilografado em três páginas estava nos
arquivos do general Charles de Gaulle, líder da resistência francesa durante a
ocupação nazista. “De um Intelectual que Resiste” foi publicado pelo jornal
francês Le Figaro e incluído no livro Camus, des pays de liberté, lançado em
janeiro pela editora francesa Stock. Apesar de não ter assinatura, a autoria foi
confirmada por várias fontes, incluindo a filha do escritor, Catherine Camus, pois
tem características dos editoriais do jornal clandestino Combat, que Camus
editava.
A obra de Camus tem diferentes ciclos. Aos 30 anos de idade, época em que já
era militante na França e editava o jornal Combat, ele já havia publicado O Mito
de Sísifo (1941) e O Estrangeiro (1942), livros que representam suas reflexões no
plano subjetivo, sobre a falta de sentido da existência, a solidão, o suicídio. Já
A Peste (1947) e O Homem Revoltado (1951), por exemplo, são responsáveis por
estender o absurdo para uma dimensão coletiva e histórica, sinalizando que não
há sociedade sem contradição.
Ou seja, assim como nos revoltamos contra nossa condição absurda — origem da
metáfora de Sísifo, condenado a rolar eternamente montanha acima uma pedra
que acaba sempre caindo —, também nos revoltamos contra absurdos históricos,
mesmo conscientes de que jamais os eliminaremos totalmente, como explica
Costa Pinto. “Essa revolta sem ilusão é uma espécie de antídoto contra as
soluções radicais, contra a legitimação do assassinato político ou dos sistemas
totalitários em nome de uma eficácia que confia numa justiça terrena absoluta —
pois matar e oprimir em nome dessas ideologias utópicas consistiria numa
instauração do absurdo no plano da história”, explica.
Epidemia
O Brasil em Camus
GISELE BARÃO é jornalista, com passagens por veículos como Gazeta do Povo,
Rede Massa e Jornal da Manhã. Atualmente colabora com o jornal Rascunho.