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Antonio Gerson Bezerra de Medeiros

“Objetos-pessoas

ou

Pessoas-objetos”

Prof. Dr. Frederico Coelho

Trabalho da disciplina “Estudos da Narrativa-

o que falta e o que excede”

do curso de Pós-Graduação em Literatura, Cultura

e Contemporaneidade do Departamento de Letras.

Rio de Janeiro

Julho de 2018

1
“Quando olho para mim não me percebo.

Tenho tanto a mania de sentir

Que me extravio às vezes ao sair

Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo

Pertencem ao meu modo de existir,

E eu nunca sei como hei-de concluir

As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei

Se na verdade sinto o que sinto. Eu

Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?

Mesmo ante às sensações sou um pouco ateu,

Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.”

(Álvaro de Campos / Fernando Pessoa - Quando olho para mim não me


percebo)

2
A) Val é uma empregada doméstica que presenteia a patroa com um
conjunto de xícaras, travessa e garrafa térmica, que lhe foi sugerido em uma
loja como moderno e o mais vendido. A patroa finge que gostou do presente,
porém não o utiliza com a desculpa de que prefere deixar para usá-lo em
uma ocasião especial.

Quando essa ocasião se apresenta, uma festa em casa, Val decide


estrear o conjunto servindo o café às visitas. No entanto, mal ela entra na
sala, a patroa a empurra de volta para a cozinha e a manda trocar o conjunto,
com a ordem de que o café é para ser servido no de madeira branca
comprado na Suécia. Objeto que para a patroa é um símbolo de status e,
portanto, de representação de sua classe e mais adequado para aquela
ocasião do que um conjunto encontrado em lojas populares que qualquer
classe pode comprar.

Essa cena do filme Que horas ela volta? de Anna Muylaert de forma
bastante delicada e simbólica apresenta uma necessidade de demarcar e
externalizar as separações de classe, já tão visíveis, na realidade brasileira.

Esse filme se destaca ainda por ter como protagonista uma


empregada (papel de Regina Casé) como foco principal da narrativa. Logo,
ela deixa de ser vista apenas de um ponto de vista funcional, ou seja, como a
representação de sua existência limitada ao seu trabalho (objeto de utilidade
prática) e passa a ser um indivíduo pluridimensional com suas paixões,
medos e sonhos.

Esse é o ponto em comum entre o filme e as duas obras literárias que


serão tangenciadas na parte “A” deste ensaio: A hora da estrela de Clarice
Lispector e Um coração simples de Gustave Flaubert.

B) Originalmente publicado na revista Senhor como Objeto: anticonto e


depois com o título de O relatório da coisa no Jornal do Brasil, esse conto, ou
anticonto geométrico como Clarice mesma o definiu, tem como tema um
objeto, um relógio da marca Sveglia. No transcorrer do “relatório”, esse
relógio é cada vez menos coisa para ir adquirindo uma personificação,
causando um estranhamento no leitor. “Seu mecanismo é muito simples. Não
tem a complexidade de uma pessoa mas é mais gente do que a gente.”
(LISPECTOR, 2017, p.492).1

1
Para nã o atrapalhar a fluência da leitura, as citaçõ es dos textos principais deste
estudo comparativo ocorrerã o apenas em suas primeiras apariçõ es, apó s isso
indicaremos apenas o nú mero da pá gina entre parênteses.

3
Esse mesmo efeito acontece com Odradek em A preocupação do pai
de família de Kafka, cuja construção desde o início o apresenta “como um
ser”, com o “aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela”.
Esse estranhamento vai num crescendo, do carretel “sai uma varetinha (...) o
conjunto é capaz de permanecer em pé como se estivesse sobre duas
pernas.” O objeto agora consegue ficar de pé sobre as duas pernas, cada vez
mais próximo do humano, quando chegamos ao trecho em que lhe é
perguntado seu nome e ele responde, aceitamos o fato como uma fábula, no
entanto, quando responde à segunda pergunta “E onde você mora?”:
“Domicílio incerto” e ri ao responder, “mas é um riso como se pode emitir sem
pulmões. Soa talvez como o farfalhar de folhas caídas.”, (KAFKA, 1999,
p.73), levamos um susto ao “ouvir” essa risada tão humana-deshumana-
macabra:

Segundo Anders ( apud CARONE, 2011, p.58): “Em Kafka, o inquietante


não são os objetos nem as ocorrências como tais, mas o fato de que seus
personagens reagem a eles descontraidamente, como se estivessem diante
de objetos e acontecimentos normais – a trivialidade do grotesco – outra
modalidade da banalidade do mal- que torna a leitura tão aterrorizante.”

Assim como Odradek, o objeto Sveglia também tem uma habilidade que
o distingue dos objetos comuns e o assemelha a um ser vivo, o fato de ficar
em pé: “Tem dois centímetros e fica de pé em cima da mesa” (p.494) Esses
objetos-pessoas serão o foco da parte “B” deste trabalho.

A) “São provavelmente as existências mais frágeis, próximas do nada,


que exigem com força tornarem-se mais reais. É preciso ser capaz de
percebê-las, de apreender seu valor e sua importância. Portanto, antes de
colocar a questão do ato criador que permite instaurá-las, é preciso se
perguntar o que é que permite percebê-las.” (LAPOUJADE, 2017, p.41)

Esse trecho de As existências mínimas põe em relevo a necessidade de


notar a importância das existências mais frágeis, de modos de existência
antes silenciados ou relegados ao eterno papel de coadjuvantes.

Ainda nesse livro, Lapoujade reitera o elevado interesse do filósofo


Souriau em salvar da destruição a variedade de formas de existência,
principalmente as mais frágeis. Feito um advogado, ele faz a defesa do
direito de existir dessas figuras: “Tornar ‘mais’ reais certas existências, dar a
elas uma posição ou um destaque particular, não é um meio de legitimar sua
maneira de ser, de lhes conferir o direito de existir sob determinada forma?”
(LAPOUJADE, 2017, p.23)

4
O direito de existir ficcionalmente, de forma plena, para classes mais
pobres foi conquistado de modo lento e árduo com avanços que causaram
polêmicas e rejeições.

Como a existência precisa ser legitimada para adquirir uma nova


realidade e já que a legitimidade vem de um figura como a de um filósofo ou
a de um escritor, ou de alguém que foi, formalmente educado e tem direito à
fala, então longo foi o caminho para que esses personagens ganhassem
representação, que surgisse um Flaubert disposto a defender uma Félicité e
mais ainda para que surgissem escritores como Carolina Maria de Jesus,
que legitima sua existência por si mesma.

Um pouco antes da data da primeira publicação de Um coração simples


em 1877, começava a surgir na pintura o interesse em retratar os
trabalhadores. Algumas das insurgências desse novo olhar foram
influenciadas pelo realismo social presente na obra A Taberna de Émile Zola.

Degas, que habitualmente retratava sua família e amigos, foi também um


pintor que se interessou pelo mundo dos trabalhadores. “As passadeiras” foi
tema para uma série de quadros de sua autoria, o que não era comum na
época em que Degas viveu. (Vide Anexo: imagem 1)

Apenas Daumier, antes dele, em 1863, com “La Blanchisseusse”, que


pode ser traduzido por lavadeira, havia se interessado em pintar uma
trabalhadora braçal. Para realizar tal intento, ele observava essas lavadeiras
retornando do dia de trabalho no rio Sena, seu interesse era em retratar a
força e a fadiga desses corpos após um dia de labuta.

Ambos artistas possuíam um olhar interessado pelos aspectos negativos


das realidades sociais, em denunciar a miséria das condições de vida e de
trabalho pesado do povo francês, mas sem abrir mão da humanidade e da
ternura desses personagens.

Para que haja a existência mínima de Macabéa em A hora da estrela,


Clarice forja um narrador Rodrigo S.M., pois precisa de um outro escritor,
“um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher
pode lacrimejar piegas” (LISPECTOR, 2017, p.49), no qual ela possa ser fria
e dolorosa.

Hélène Cixous, no ensaio “Extrema fidelidade” da edição especial de A


hora da estrela, conta que para ser o outro, Clarice precisou fazer “um
exercício sobre-humano de deslocamento de todo o seu ser, de
transformação, de afastamento de si mesma, para tentar aproximar-se desse
ser tão ínfimo e tão transparente.

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A +B) Rancière começa a palestra/texto O efeito de realidade e a política
da ficção retomando o conceito de “efeito do real” de Roland Barthes,
descrito no ensaio do livro O rumor da língua. Barthes retira um trecho do
conto Um coração simples para exemplificar o conceito: “um velho piano
sustentava, abaixo de um barômetro, uma pilha de caixas e estojos.” (p.13)

Esse trecho corresponde à descrição da sala de Madame Aubain patroa


de Felicité. Na análise estrutural de Barthes, um velho piano é um índice
burguês e a pilha de caixas e estojos um signo de desordem. No entanto, o
que dizer do barômetro? Esse objeto não se encaixa na análise estrutural.
Esse “detalhe inútil” teria uma “notação insignificante.” Mas já que para o
estruturalismo tudo no discurso narrativo é significante, ele questiona que o
barômetro precisa ter uma explicação estrutural para aparecer no texto.

Uma das hipóteses levantadas por Barthes é que a descrição serviria ao


autor para expor seu talento poético, sua capacidade de apresentar, mostrar,
representar algo. Então, serviria menos à história e mais à exibição da
virtuosidade do escritor.

Barthes diz que o barômetro está no texto para produzir no leitor o efeito
do real, o objeto está ali para provar a realidade, como na vida real em que
existem coisas inúteis e carentes de sentido, maior do que a própria coisa em
si. A falta de sentido do objeto para Barthes é explicado como proposital
para um efeito de realidade, então é também um artifício.

Para Rancière há uma questão política no efeito do real. O escritor


moderno, na verdade, desmonta essa hierarquia clássica e iguala os
elementos da história. Os romances focavam em figuras aristocráticas e as
classes baixas possuíam sempre papel secundário ou quase nulo, assim
como os objetos.

Ranciére aponta que o barômetro está ligado ao surgimento de outro


tipo de personagem, no caso uma empregada. E para esta pessoa o
barômetro tem fundamental importância, expressa a poética de vida dessa
pessoa, que vê nele se irá chover ou não, então outros objetos ganharam
destaque, porque temos outro tipo de personagem.

A conclusão de Rancière (2010,p.75) é que o efeito de realidade é um


efeito de igualdade, mas do que mero resultado de um exagero descritivo
“revela a abertura social do romance para uma nova sensibilidade, menos
aristocrática e mais democrática.” A democracia no romance é a capacidade
de qualquer um experenciar qualquer modo de vida. Rancière chama isso de
“redistribuição das capacidades sensoriais”.

Portanto, o excesso realista não está na ostentação burguesa da riqueza,


mas na confusão introduzida quando o excesso de paixão e os devaneios

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são apropriados pelas classes mais baixas. A entrada dos camponeses e
filhos dos artesãos num novo mundo da sensibilidade, o reino da paixão
selvagem e do ócio também.

O ócio como um dos grandes prazeres de Macabéa, seja suas idas ao


cinema, ou nos momentos em que ouve a Rádio Relógio e quando,
finalmente, pelo artifício da mentira, o uso da ficção pela própria personagem,
lhe possibilita um momento de prazer, ao mentir para o patrão que por ter
que arrancar um dente não podia trabalhar.

Esse é um dos momentos em que, na medida de suas possibilidades,


ela usufrui de um momento de lazer e de plenitude e até do luxo de ter tédio:
“Então dançou num ato de absoluta coragem (...)Dançava e rodopiava
porque ao estar sozinha se tornava l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente
conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da
vastidão do quarto sem as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco
de café solúvel com a dona dos quartos,e, ainda como favor, pediu-lhe água
fervendo, tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder de
si mesma.” (p.72).

(A+B) Flaubert ao descrever a fisionomia de Felicité apresenta o seu


envelhecimento precoce, resultado das suas condições de vida e de trabalho,
o que representa um viés de crítica social na descrição física dessa
personagem:

Seu rosto era magro, e a voz, aguda. Aos vinte e cinco anos,
davam-lhe quarenta; depois do cinquentenário, parou de
registrar a idade — e, sempre silenciosa, o porte ereto e os
gestos comedidos, parecia uma mulher de madeira,
funcionando de modo automático. (FLAUBERT, 2014, p.14)

A comparação da pessoa a um objeto se deve ao fato de sua imagem


estar tão presa a sua função laboral a ponto dela ser equiparada a um objeto
de madeira, uma vassoura, talvez, o que nos remete, imediatamente ao
Odradek que “muitas vezes ele se conserva mudo por muito tempo como a
madeira que parece ser.” (p.75)

Se retomamos à origem das personagens Félicité e Macabéa


perceberemos pontos em comum às duas como na infância, marcada em
ambas pelo abandono (elas se tornaram órfãs ainda menina e foram criadas,
em ambos os sentidos dessa palavra, pois foram tornadas criadas pela tia, no
caso de Macabéa, ou por um fazendeiro, no caso de Félicité. O trabalho
marcando a infância de Macabéa “sem bola nem boneca (p.48) e “que

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aprendera em pequena a cerzir” (p.59) e Felicité que foi encarregada “ainda
menina para tomar conta das vacas no pasto. (p.15)

A primeira frase do romance já marca a ideia de posse de Félicité pela


sra. Aubain, como um objeto que despertava a inveja das outras burguesas:
“Durante meio século, as burguesas de Pont-l`Évê invejaram a sra. Aubain
por sua criada Félicité.” (p.13)

Encerra-se este bloco com um trecho do ensaio de Nádia Gotlib da


edicão comemorativa de A hora da estrela, Quando o objeto, cultural, é a
mulher, em que o caráter Pessoa-objeto de Macabéa é enfatizado:

E neste mundo adverso, em que nada tem, quando alguma


coisa quer, frustra-se. Não há lugar para este ser existir como
sujeito da sua própria história. Cumpre-se a função de objeto
dejetado por uma sociedade que postula a posse como
critério de cidadania. (p. 186)

A) O narrador flaubertiano em Um coração simples, em geral não se


mostra ao leitor, aparentemente neutro, tende a uma objetividade como se a
história se contasse por si mesma. Flaubert descreve o minúsculo quarto,
“aposento, onde admitia pouca gente”, de Felicité nas minúcias de todos os
objetos que ela acumulou em vida, das velharias que ela deu novo uso e que
simbolizam a sua pobreza material (um vaso feito de coco) e o papagaio, que
ao ser empalhado, tornou-se mais um objeto.

No entanto, a empatia desse narrador se revela no uso dos pontos de


exclamação e nos comentários que acompanham a descrição dos objetos.
Por mais realista e objetivo, nesse momento ele deixa transparecer o que
sente. A hipótese mais preponderante é de que seja um recurso intencional
do autor, usado num momento escolhido para causar um efeito específico e
esperado de empatia no leitor: “A poltrona de madame, sua mesinha de
centro, seu braseiro de metal, as oito cadeiras, todos partiram! O lugar onde
ficavam as gravuras desenhava-se em quadrados amarelos no meio das
paredes. Tinham levado as duas caminhas, com seus colchões, e no armário
nada restara das coisas de Virgínie! Félicité desmontou as prateleiras,
embriaga de tristeza.” ( p.39)

A carência de Macabéa e de Félicité não se limitava aos meios


materiais. Era uma carência de afeto. Em Félicité esse afeto é externalizado
nos filhos da patroa, em seu sobrinho e por fim no papagaio. Sendo esse
último fruto do desejo dela que ela projeta na patroa: “Fazia muito que o

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papagaio ocupava a imaginação de Félicité, pois vinha da América,(...)Uma
vez, chegara a dizer: Minha patroa ficaria tão feliz com ele! (p.33)

Como se para ela só coubesse o que era sobra, sejam as sobras de


afeto ou dos objetos de sua patroa, que acumulavam-se no quarto, “Todas as
velharias que a sra. Aubain não queria mais, levava para seu quarto.” (p.39),
feito de um depósito: Só podia desejar o resto, o que já não tinha serventia
para os outros. “Encontraram um pequeno gorro de pelúcia, com fios longos,
de cor marrom. Mas estava todo comido pelas traças. Félicité pleiteou-o para
si.” ( p.32)

A única troca de afeto entre a patroa e a empregada acontece em um


momento de fragilidade da patroa: “finalmente, a patroa abriu os braços, a
criada atirou-se neles, e elas se abraçaram, aplacando sua dor num beijo que
as igualava.”

O mesmo ocorre com Macabéa que extasiada com o destino que a


cartomante previra para o seu futuro “dá um beijo na cartomante, ela que só
beijava a parede, porque não tinha a quem beijar.” (GOTLIB, 2010, p. 305)

O narrador em A hora da estrela, como dito anteriormente, tenta


manter-se frio e racional ao acontecimentos. Para tanto, ele usa da ironia e
até mesmo de certa acidez e crueldade: "O final foi bastante grandiloquente
para a vossa necessidade? (p. 104)", pergunta ao leitor o narrador, que Ítalo
Moriconi chama de um dos mais cínicos dos narradores jamais criados por
Clarice Lispector (MORICONI, 2003, p.726).

Esse distanciamento da personagem como proposta inicial do narrador


Rodrigo não será mantida, pois o criador se apaixona pela sua criatura e
desenvolve uma empatia pela personagem, que ele a chama carinhosamente
de Maca, que só ele entende e que guarda um tesouro existencial que só ele
consegue ver: “Estou procurando danadamente achar nessa existência pelo
menos um topázio de esplendor.” (p.70)

Segundo Moriconi (2003) é impossível escrever sobre um outro sem o


mínimo de empatia, sem o mínimo de projeção subjetiva.

A outra razão que leva esse Rodrigo a continuar a escrever a história de


Macabéa e a certeza de que não lhe resta nada além da escrita: “Estou
absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se
ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero
a morte.” (p.96)

Isso é válido tanto para o narrador Rodrigo, quanto para a própria


Clarice, que como Kafka não se realizava plenamente apenas na sua

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existência e tinha necessidade da literatura para inventar os lugares onde ele
se sentia a vontade para existir: “ainda não existem lugares no mundo onde
eu possa fazer os meus passeios”, então essa existência não está se
realizando, se realiza apenas na literatura, na invenção do lugar onde possa
existir. (LAPOUJADE, 2017, p. 24)

A)

“Ou

Uma furtiva lacrima

Ou

Ao som de um morno blue”

Existiam duas outras possibilidades de títulos para A hora da estrela,


além dos 13 que constam na versão final. Eles estão presentes apenas na
versão manuscrita da novela, que teve parte desse material disponibilizado
na edição comemorativa dos 40 anos de publicação do livro. Supersticiosa
como era Clarice, a escolha do número 13 não poderia ser um mero acaso,
como mostra esse exemplo tirado de O relatório da coisa: “Eu queria chegar
à página 9 na máquina de escrever. O número nove é quase inatingível. O
número 13 é Deus.” (p. 501)

Os 13 títulos voltam a aparecer no desenrolar da narrativa: “Quando


penso que eu podia ter nascido ela- e por que não? – estremeço. E parece-
me covarde fuga de eu não ser, sinto culpa como disse num dos títulos.”
(p.70) e esses títulos são como possibilidades (primas) de leituras que se
abrem para o leitor como uma proposta de jogo, como ao seu modo
(explícito) foi feito por Julio Cortázar em O jogo da amarelinha :

A lista dos títulos de A hora da estrela, antecedendo o início


da história, funciona como uma espécie de guia de possíveis
leituras, como se fossem pontas de uma estrela que se
projetam em várias direções, fios de sentido que podem ser
puxados pelos leitor, ao escolher algum ou alguns desses
títulos, se quiser. (GOTLIB, 2010, p.313)

Esse pluralismo de títulos pode ser associado ao pluralismo existencial


do qual parte Souriau, citado por Lapoujade:

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Um ser não está predestinado a um único modo de
existência, ele pode existir segundo vários modos, e não
apenas como entidade física ou psíquica: pode existir como
entidade espiritual, como valor, como representação etc.
(LAPOUJADE, 2017 , p.14)

E prossegue:

Um ser pode ver sua existência se duplicar, se triplicar,


enfim, pode existir em vários planos distintos permanecendo
numericamente um. (...) Um indivíduo existe neste mundo;
ele existe como reflexo em um espelho, como tema, ideia ou
lembrança no espírito de outro, tantas maneiras de existir em
outros planos. Nesse sentido, os seres são realidades
plurimodais, e aquilo que chamamos de mundo é, de fato o
lugar de vários “intermundos” , de um emaranhado de planos.
(LAPOUJADE, 2017 , p.14)

É o que ocorre com Macabéa quando ela se emociona, e chora pela


primeira vez, ao ouvir Uma Furtiva Lacrima de Caruso na rádio:

Não chorava por causa da vida que levava: porque, não


tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela
era ‘assim”. Mas também creio que chorava porque, através
da música, adivinhava talvez que havia outros modos de
sentir, havia existências mais delicadas e até um certo luxo
de alma. (p.80)

B) Sveglia é nomeado pelo narrador como “uma coisa monstruosa: o


relógio” (p. 494 ) é o Objeto, é a Coisa, com letra maiúscula.” (p. 495) Da
mesma forma como ocorre os nomes próprios, a presença da letra maiúscula
em “a Coisa” é uma das características que tornam o Sveglia um objeto-
pessoa. Não falta nem mesmo alma a esse Objeto: “Mas apossei-me de sua
infernal alma tranquila.” (p. 494) e ainda mais traços humanos no relógio: “A
dona do relógio me disse hoje que ele é que é dono dela. Ela me disse que
ele tem uns furinhos pretos por onde sai o som macio como uma ausência de
palavras, som de cetim.” (p. 501)

Há um trecho ainda nesse conto de Clarice que guarda algo de germinal


do que viria a ser Macabéa. É uma hipótese plausível, já que o conto é
anterior à novela. Em ambos os personagens, seja no objeto-pessoa
(Sveglia) ou na pessoa-objeto (Macabéa) coexistem uma certa apatia:

Tive uma empregada por sete dias, chamada Severina, e que


tinha passado fome em criança. Perguntei-lhe se estava
triste. Disse que não era alegre nem triste: era assim mesmo.
Ela era Sveglia. Mas eu não era e não pude suportar a
ausência de sentimento. (p. 499)

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Em relação ao conto A preocupação do pai de família descobre-se que
a preocupação do título do pai consiste, dentre outras razões, em saber o
que vai acontecer com Odradek, “Será que pode morrer?” “ou será que sua
presença continuará nas gerações seguintes?” (p.75) A mesma indagação
sobre a morte do objeto se encontra no Relatório das coisas: “Se ele se
quebrar, pensam que morreu? Não, foi simplesmente embora de si mesmo.”
(p. 496)

Mais à frente no relatório é dito que Sveglia não morre. A certeza da


finitude humana se contrapondo a perseverança da existência dos objetos.
Em ambos os contos, ocorre a preocupação com a a incerteza do futuro:
“Qual vai ser o meu futuro passo na literatura? Desconfio que não escreverei
mais.” (p. 502)

Sveglia matou a narradora: “Adeus, Sveglia. Adeus para nunca


sempre. Parte de mim você já matou. Eu morri e estou apodrecendo. Morrer
é. E agora- agora adeus.” (p. 502) Macabéa também matou seu narrador:
“Macabéa me matou.” (p. 109) “E agora- agora só me resta acender um
cigarros ir para casa. Meus Deus, só agora me lembrei que a gente também
morre. Mas- mas eu também?! “ (p.110). E sua resposta para essa pergunta
é SIM.

Quando esse conto foi publicado em partes no Jornal do Brasil, Clarice


escreveu um prefácio em que contava que na época da publicação original
na revista Senhor, Nelson Coelho disse que Clarice tentou matar nela a
escritora. Sua resposta a essa afirmação foi ‘Acho que queria fazer um
anticonto, uma antiliteratura. Como se assim eu desmistificasse a ficção.” (p.
652-653)

Essa experiência será novamente retomada na escrita metalinguística


(metarromance, como afirma Nádia Gotlib) de A hora da estrela, em que o
processo de escrita, de criação de uma personagem é visto de dentro, com
todas as inseguranças, ansiedades, incertezas e maravilhas de experimentar
ser o outro.

O paradoxo é que esse afastamento do ficcional tenha levado Clarice


para dentro da ficção, que o seu fracasso tenha se revelado, na verdade,
ainda mais proveitoso; e que frente à certeza da morte, inclusive a da própria,
se apresente a possibilidade de uma existência enquanto se escreve. Sim,
“Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.”

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Referências Bibliográficas

ABDALA JÚNIOR, Benjamin e MOTA, Lourenço Dantas. Personae: grandes


personagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.

FLAUBERT, Gustave. “Um coração simples”. Tradução de Sergio Flaksman. Grua


Livros. São Paulo, 2014.

KAFKA, Franz. “Um médico rural”. Tradução de Modesto Carone. Companhia das
Letras, 1999

_____________ “Essencial Franz Kafka”. Tradução de Modesto Carone. Companhia


das Letras, 2011.

LAPOUJADE, David. “As existências mínimas”. Tradução de Hortencia santos


Lencastre. São Paulo, 1a ed, n-1 edições, 2017.

LISPECTOR, Clarice. “A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos.


1a edição. Rio de Janeiro, Rocco, 2017.

_________________ “Todos os contos” 1a edição. Rio de Janeiro, Rocco, 2017.

MORICONI, Italo. “A hora da estrela ou a hora do lixo de Clarice Lispector”. In:


Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks: Univer
Cidade: UERJ, 2003. p. 719-727.

PESSOA, Fernando. Álvaro de Campos. Livro de versos. 3.ed. Lisboa: Editorial


Estampa, 1997. Edição crítica organizada por Teresa Rita Lopes: introdução,
transcrição, organização e notas).

RANCIÈRE, Jacques. “O efeito de realidade e a política da ficção.” Tradução de


Carolina Santos. Novos Estudos. CEBRAP. 2000, p. 75-90.

Arquivo da Internet:

http://www.musee-orsay.fr/index.php?id=851&tx_commentaire_pi1%5BshowUid%5D=175

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ANEXO: IMAGEM I

(Edgar Degas, La repasseuse, 1869)

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