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Centro de
Humanidades
Universidade Federal de Campina Grande. n. 1 (2016). Campina Grande: CH /
UFCG, 2016-Trienal
ISSN 2237-3217
1. História I. Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Humanidades.
Programa de Pós-Graduação em História
CDD 900
Equipe de Realização:
Edição de Texto: Noemia Dayana de Oliveira
Arte: Lays Anorina Barbosa de Carvalho
MNEMOSINE REVISTA
Volume 6 – Número 4 – Set/Dez 2015
DEPARTMENTO DE HISTÓRIA
Coordenadora Administrativa: Profª. Drª. Marinalva Vilar de Lima
COMITÊ EDITORIAL
Prof. Dr. João Marcos Leitão Santos – Editor
Prof. Dr. José Otávio Aguiar – Editor Adjunto
CONSELHO EDITORIAL
Dr. Antônio Gomes Ferreira,
Faculdade de Educação, Universidade de Coimbra, PORTUGAL
Jean-Frédéric Schaub,
L’Ecole Des Hautes Etudes en Sciences Sociales
Alarcon Agra do Ó,
Professor de História, Universidade Federal de Campina Grande, BRASIL
André Figueiredo Rodrigues,
Professor de História, Universidade Estadual Paulista/Assis, São Paulo, BRASIL
Ângela Maria Vieira Domingues,
Professora de História na Universidade Nova de Lisboa, PORTUGAL
Antonio Carlos Jucá de Sampaio,
Professor de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, BRASIL
Antônio Clarindo Barbosa de Souza,
Professor de História, Universidade Federal de Campina Grande, BRASIL
Antônio Torres Montenegro,
Professor de História, Universidade Federal de Pernambuco, BRASIL
Carla Mary S. Oliveira,
Professora de História, Universidade Federal da Paraíba, BRASIL
Dilton Cândido Santos Maynard,
Professor de História, Universidade Federal de Sergipe, BRASIL
Durval Muniz de Albuquerque Junior,
Professor de História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, BRASIL
Edson Silva,
Professor de História, Universidade Federal de Pernambuco, BRASIL
Eduardo França Paiva,
Professor de História, Universidade Federal de Minas Gerais, BRASIL
Elizabeth Christina de Andrade Lima,
Professor de História, Universidade Federal de Campina Grande, BRASIL
Geraldo Silva Filho,
Professor de História, Universidade Federal de Tocantins, BRASIL
Marcos Fábio Freire Montysuma,
Professor do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade
Federal de Santa Catarina, BRASIL
Marinalva Vilar de Lima,
Professora de História, Universidade Federal de Campina Grande, BRASIL
Mary Catherine Karasch,
Teacher of History, Oakland University, Rochester/MI UNITED STATES
Patrícia Cristina Aragão Araújo,
Professora de História, Universidade Estadual da Paraíba, BRASIL
Regina Célia Gonçalves,
Professora de História, Universidade Federal da Paraíba, BRASIL
Regina Coelli Gomes Nascimento,
Professora de História, Universidade Federal de Campina Grande, BRASIL
Rodrigo Ceballos,
Professor de História, Universidade Federal de Campina Grande, BRASIL
Severino Cabral Filho,
Professor de História, Universidade Federal de Campina Grande, BRASIL
Silvia Hunold Lara,
Professor de História, Universidade Estadual de Campinas, BRASIL
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ........................................................................................5
ARTIGOS DO DOSSIÊ
ARTIGOS DE FLUXO
10
licenciatura, embora ao final todos Resta desejar boas leituras, reflexões
sejam de alguma forma e em algum e discussões.
nível docentes, requer o
(re)conhecimento sobre os povos Dr. Edson Silva
indígenascomo sujeitos sociopolíticos Professor da Universidade Federal de
na História do Brasil e a superação de Pernambuco/CA
desinformações, equívocos e e da Pós-Graduação em História da
preconceitos sobre o tema. E os Universidade federal de Campina
textos ora publicados em muito Grande
contribuirão para que isso ocorra.
11
A EXPERIÊNCIA DE of June 24, 1845, which regulated the
TRABALHADORES TUTELADOS: A catechetical mission and civilization of the
PRESENÇA DE INDÍGENAS EM Indians. In this process, the 1
Este artigo resulta das
institutionalized power forward on pesquisas realizadas para
OBRAS PÚBLICAS DA PROVÍNCIA a construção da tese, em
indigenous workers forcing them to public
DE ALAGOAS1 andamento, no Programa
service by intensifying the use of de Pós-Graduação em
indigenous labor, especially in public História Social da
Aldemir Barros da Silva Júnior works. In contrast, the Indians have Universidade Federal da
Bahia.
Professor Assistente da Universidade developed strategies to deal with the
Estadual de Alagoas constant forced recruitments in the
aldemirbarrosjr@gmail.com settlements , whose main was apart from
village.
Resumo Keywords: indigenous; job; public
Este artigo analisa as relações de works.
trabalho estabelecidas entre o Governo
provincial e povos indígenas habitantes O Século XIX permite
na região Nordeste, na segunda metade observar um mosaico de formas de
do Século XIX, observando a presença relações de trabalho que extrapolam
dos indígenas em obras públicas
as categorias generalizantes de livre
enquanto trabalhadores tutelados. Para
e escravo, inclusive coexistentes na
isso, utiliza como baliza temporal o
período de atuação da Diretoria Geral dos
mesma atividade, no mesmo espaço
Índios na Província de Alagoas (1845- e, em alguns casos, vivenciadas
1872), instituída pelo Decreto Imperial nº pelos mesmos sujeitos. Esse mosaico
426 de 24 de junho de 1845, que convida a pensar nessas categorias
regulamentava as missões de catequese como um conhecimento em
e civilização dos índios. Neste processo, o desenvolvimento que, na
poder institucionalizado avançou sobre os operacionalização da lógica histórica,
trabalhadores indígenas obrigando-os ao
precisam ser confrontadas com as
serviço público intensificando a utilização
evidências encontradas sobre o
da mão de obra indígena, sobretudo, em
obras públicas. Em contrapartida, os processo observado. Ao aproximar-se
indígenas elaboraram estratégias para de tais categorias percebe-se uma
lidar com os constantes recrutamentos multiplicidade de formas de relações
forçados nos aldeamentos, cuja principal de trabalho, para o momento,
foi o desaldear. destacam-se aquelas tuteladas pelo
Palavras-chave: indígenas; trabalho; governo imperial e provincial;
obras públicas. africanos livres e indígenas.
As experiências dos sujeitos
Abstract
que vivenciaram a tutela são regidas
This article analyzes the working
relationship established between the por uma legislação específica que
provincial government and indigenous respalda o Estado na condução
inhabitants in the Northeast, in the coercitiva desses trabalhadores ao
second half of the nineteenth century, serviço público. No caso dos
noting the presence of Indians in public trabalhadores indígenas tutelados, a
works as protected workers. For this, use lei não representava espaço onde as
as temporal marks the period of relações de trabalho poderiam ser
operation of the General Directorate of
negociadas a partir de uma
Indians in Alagoas Province (1845- 1872)
reivindicação organizada pelos
, established by Imperial Decree No. 426
12
trabalhadores em determinado evidenciando alguns problemas
momento, ou situação. Assim, é quanto à disponibilidade de mão de
possível a hipótese de que a obra local. O governo provincial
experiência dos indígenas com a encontrou dificuldades para mobilizar
exploração da sua força de trabalho, trabalhadores para o serviço público,
a partir do regime tutelar, tinha como sobretudo, obras que buscavam
principal via de confronto – talvez a ampliar e “modernizar” as vias de
única –apresentar-se na condição de transporte, promovendo melhorias na
não tutelado. Neste caso, destaca-se forma de escoamento da produção.
o desaldear como estratégia possível Assim, o caminho que conduzia os
para se livrarem dos recrutados indígenas ao aldeamento levava,
realizados pelo governo provincial. também, à pretensa – muitas vezes
As experiências dos indígenas eficaz – exploração da sua força de
com o trabalho compulsório estão trabalho.
situadas em uma sociedade Na província de Alagoas,
historicamente determinada. Em segunda metade do século XIX,
meados do Século XIX, com a praticamente metade da população
autonomia tributária das províncias indígena desfrutava da segurança
garantida pela manutenção dos dos aldeamentos, o que permite uma
“avanços” do Ato Adicional de 1834 – leitura inversa, destacando que
mesmo com a revisão conservadora metade da população indígena
na década de 1840 – diversos vivenciava a sua etnicidade fora dos
governos provinciais desenvolveram aldeamentos. Isto pode ser
uma política econômica voltada para observado nos resultados divulgados
exportação. No caso da Província de nos censos e mapas da população da
Alagoas, Tenório, ao analisar dados província, onde há o registro da
sobre as finanças, observou que a população indígena aldeada e
partir de 1845 o orçamento começou desaldeada. O Mapa (ANTUNES,
a apresentar saldo “um avanço 1973, p.17) realizado em 1849
auspicioso da arrecadação contabiliza esta população indígena –
proporcionou excelente média da aldeada e desaldeada – e apresenta
receita provincial durante todo um total de 6.603 habitantes em 20
segundo reinado” (TENÓRIO,1996, p. freguesias, dos quais 1.212 índios
84). O autor ressaltou que nesse estavam na freguesia de Porto Calvo
período “o açúcar, o algodão, as e Palmeira dos Índios. Já os dados
madeiras, carnes, cocos e outros produzidos pelo órgão responsável
produtos alagoanos eram enviados a por tratar diretamente com os grupos
vários portos do império inglês”, o indígenas – Direção Geral dos Índios
exigiu adequação da província para – revela um total de 8 aldeamentos,
atender as necessidades desse sendo 644 índios aldeados em Porto
desenvolvimento econômico. Calvo e Palmeira.
Essa adequação da província
ao momento econômico acabou
14
A Diretoria Geral de Obras alagoana e observaram que “na 2
Cf. Folhas: 16-36.
Públicas segunda metade do Século XIX, Assunto: Relatório das
Em meados da década de comerciantes de todos os pontos do Obras Gerais da Província de
Alagoas, obras como o
1850 a Província de Alagoas passou Estado vinham se estabelecer na Quartel do 8º Batalhão de
por um processo de intensificação Vila; houve uma febre de caçadores (folha 18) ;
Deposito das madeiras do
dos trabalhos nas obras públicas, construção”. Nesse momento, a estado, casa de morada e
sobretudo em sua capital Maceió2. economia estava montada a partir de Secretaria do Capitão do
Porto (folha 19); Estrada do
Essa busca por reformas que iniciativas particulares que absorvia Morro do Farol (folha 19);
permitissem aperfeiçoar o parte da mão de obra disponível na Necessidade da construção
de um porto para defesa do
escoamento da produção, além de província, em um contexto de
Porto da capital da Província
melhorias quanto à salubridade, possibilidades de vida para além do (folha 20); Matriz da Capital
encontrou algumas barreiras como, trabalho remunerado em uma (folha 20); Cemitério Público
(folha 21); Hospital da
por exemplo, braços dispostos a economia de mercado ou em obras Caridade (folha 22); Ponte
enfrentar as condições de trabalho públicas. do Poço (folha 22); Ponte da
Satuba (folha 22); Estrada
por jornal apresentadas pelo Governo Quanto à questão social, do Bebedouro (folha 23);
Provincial. Naquele momento, os diante da epidemia de cólera que Estradas e Pontes que não
tem recebido auxilio dos
trabalhadores pareciam estar mais envolvia diversas províncias do cofres gerais: Estrada de
inclinados a trabalhar para Império, Almeida (ALMEIDA, 1996)3 Jaraguá (folha 23); Ponte
particulares, havia a possibilidade de observou que na Província de sobre o Riacho Maceió (folha
24); Estrada do Norte entre
negociar a prestação de serviço Alagoas “a capital era considerada Maceió e Porto Calvo (folha
diretamente com o contratante, além como ponto de extremo risco por 24); Primeira Estrada do
Centro entre a capital e a
das vantagens inerentes a condição situar-se nas vizinhanças de Comarca da Imperatriz
de trabalhador agregado em alguma pântanos e mangues. Assim, foram (folha 25); Mata do Rolo
(folha 27); Oitero (a ferque)
fazenda. tomadas cautelas de asseio, (folha 27); Segunda Estrada
Apesar desse cenário de chegando-se à remoção do do Centro em Direção a
Atalaia, Assembleia,
escassez de mão de obra, havia a matadouro”. Conforme ilustração no
Quebrangulo e Palmeira
necessidade de reformas estruturais mapa a seguir, o Matadouro foi (folha 28); Serra dos Dois
em Maceió em virtude da localização instalado próximo ao Trapiche da Irmãos (folha 29); Terceira
Estrada do Centro em
estratégica para o escoamento da Barra, lugar o que exigiu direção á Cidade das
produção, via porto do Jaraguá, em melhoramentos na estrada de Alagoas, São Miguel, Anadia
e Palmeira (folha 31);
momento de prosperidade econômica acesso. Para que se tenha dimensão Estrada do Centro em
vivenciada pela província. De outra do problema o autor chamou a direção a Villa do Poxim,
Coruripe e Cidade de
forma, pode-se supor que a “invasão atenção para as péssimas condições Penedo (folha 31); Outras
do Cólera Morbus” (ALMEIDA, 1996), de higiene da Cidade de Maceió no Obras da Província. Cadeia
em 1855 e, talvez os preparativos ano de 1856. Tais condições devem desta Cidade (Maceió) (folha
32); Abertura do Rio São
para a visita do casal imperial e sua ter levado à consciência a Miguel (folha 33); Abertura
comitiva, entre 1859/ 1860 necessidade de realizar obras em do Rio Coruripe (folha 33);
Abertura do Canal da Ponta
(DUARTE, 2010), também tenham Maceió, mas lembrando que o Grossa (folha 34);
contribuído para ampliar o canteiro problema esteve presente em toda Matadouro Público (folha
34); Muralha do Palacete
de obras que a cidade se província motivando diversas obras (folha 35); Deposito de
transformou. em outras localidades. materiais das Obras Publicas
(folha 35). APA. Caixa 816.
Sobre o desenvolvimento Em janeiro de 1857 o
Documentos: Obras
econômico Tenório e Lessa, Presidente da Província Antônio Públicas. Ano: 1857-1859.
(TENÓRIO e LESSA, 2013, p. 35) Coelho Sá e Albuquerque iniciou as Quantidade: 01 Volume.
identificar a função exercida por eles revelam a mão de obra utilizada, Manoel do Nascimento
Prado e Guilherme José da
– engenheiros, gerente de obra, abordando apenas a importância do Graça ao Secretario da
mestre de obra, contador – sabe-se serviço prestado à sociedade Presidência da Província
Jose Alexandrino Dias de
que foram empossados pela alagoana e listando os nomes dos Moura. Maceió 17 de
Presidência da Província e que se funcionários responsáveis pelas outubro de 1859. APA.
obras. No entanto, a mão de obra Caixa 816. Documentos:
reportavam à secretaria da Obras Públicas. Ano: 1857-
presidência por ofícios. Eles devem indígena, recrutada nos aldeamentos, 1859. Quantidade: 01
foi utilizada nessas obras, mas Volume. Folha:73-74.
ter passado alguns anos nesses
serviços, pois, em outubro de 1859, parecia não atender a demanda 6
FALLA dirigida á
Manoel do Nascimento Prado enviou imposta pela necessidade do Assembleia Legislativa da
Província das Alagoas na
um extrato com documentos desenvolvimento econômico abertura da sessão
comprovando as despesas e a folha provincial. Em fevereiro de 1857, ordinária do ano de 1856,
pelo excelentíssimo
dos trabalhadores da obra de diante das ordens da Presidência da
presidente da mesma
nivelamento das ruas de Maceió para Província para que fossem Província, Antônio Coelho
apresentados vinte e quatro índios à de Sá e Albuquerque.
liberação dos pagamentos. O extrato Recife, Typ. de Santos &
foi encaminhado à Tesouraria pela comissão encarregada pelo aterro e Companhia, 1856.
18
A abertura do Canal da Levada 18
COSTA, Craveiro.
Maceió. Op. Cit. p. 17.
Ao findar o regime colonial, a povoação de Maceió já era um grande centro
comercial de alguma importância, servindo de empório a uma vasta zona
agrícola, que se desenvolvia pelo vale Mundaú e do Paraíba, cortada por dois
grandes caminhos abertos ao acaso da penetração sertaneja, com diversos
centros açucareiros marginais18.
19
Segundo Almeida (ALMEIDA, destinou orçamento à obra do
2011, p. 32), Maceió teria “duas “prosseguimento da levada”, desta
19
grandes bocas de entrada”, uma em vez utilizando mão de obra indígena. DIAS CABRAL, João
Francisco. A utilidade da
Bebedouro e outra na Estrada do Ressalta-se que neste período ainda geografia. RIHGAL. v. I, Nº 9.
Norte que seguia em direção à não existia oficialmente Diretoria Dezembro de 1876. 240-
247. p. 245.
Mangabeira. Uma terceira via foi o Geral dos Índios, no entanto, tem-se
Canal da Levada por estar situado um registro da Presidência da 20
OFÍCIO enviado pelo
em lugar estratégico, sendo uma Província solicitando20 ao Diretor dos Diretor dos Índios da Vila da
Palmeira Manoel Pereira
opção para a entrada e saída de Índios da vila da Palmeira, Manoel Camelo ao Presidente da
mercadorias produzidas nos vales. Pereira Camelo, que encaminhasse Província de Alagoas
Agostinho da Silva Neves,
De outra forma, também cumpriria a de 20 a 25 índios para o serviço da datado de 29 de dezembro de
função de interligar o porto do obra do canal da Ponta Grossa. 1839. APA. Diretor dos
Índios, M: 37, E:11, 1820-
Jaraguá à capital Alagoas, situada às Na oportunidade, o diretor 1864. In: ANTUNES, Clóvis.
margens da lagoa Manguaba. informou: “tenho dado as primeiras Documentário. Op. Cit.
Segundo Dias Cabral (DIAS ordens, para reunirem-se os mesmos 21
LISTA dos índios que
CABRAL, 1878, p 245) a “gênese do índios e à frente deles fazer ler e marcharam para a obra do
Canal da Levada foi a abertura do propor o objeto que trata o mesmo canal da Ponta Grossa.
OFÍCIO enviado pelo Diretor
canal do Trapiche da Barra da Ponta ofício e comunicarei brevemente à V. dos Índios da Vila da
Grossa”, um projeto de 1828 que não Exc. o resultado”. Consultar os Palmeira Manoel Pereira
Camelo ao Presidente da
foi concluído por falta de recursos. O indígenas sobre a solicitação do Província de Alagoas João
autor explicou que “sendo o Trapiche Governo Provincial para o trabalho Lins Vieira Cansanção de
Sinimbu, datado de 10 de
da Barra o ponto central das em obras públicas não ser prática janeiro de 1840. Arquivo
comunicações de Maceió com os comum, de acordo com a Público de Alagoas, Diretor
povoados às margens das lagoas, foi documentação consultada. No mês dos Índios, M: 37, E:11,
1820-1864. In: ANTUNES,
àquele local escolhido para o trajeto seguinte, em acordo com os Clóvis. Documentário. Op.
do canal que aproximasse relações”. indígenas aldeados, foram listados 16 Cit.
21
manutenção e reformas deste canal tudo indica, os trabalhadores
25
OFÍCIO do Presidente da
envolveram indígenas de diversos indígenas sob o comando do Major Província das Alagoas
aldeamentos em períodos diferentes. retornaram para seu aldeamento com Rodrigo de Souza da Silva
Por se tratar da principal via de recursos próprios, ou seja, em Pontes enviado ao Diretor
dos aldeamentos de Atalaia
abastecimento da capital da condições precárias que não e Santo Amaro. Casa do
província, pode ilustrar a importância estimulavam outros indígenas a Governo das Alagoas.
Maceió, 5 de Novembro de
da força de trabalho indígena para a seguirem pelo caminho de levava às 1836. APA. Diversas
economia local, sendo o canal da obras públicas da cidade de Maceió. autoridades provinciais.
Correspondência ativa. Maço
Ponta Grossa emblemático para a 149, Estante 20. 1836-
utilização de mão de obra indígena. O trabalho por obrigação: 1837. In: ANTUNES, Clóvis.
Documentário. Op. Cit.
A presidência da província, já recrutamento e conflito
na Década de 1830, orientou as A obrigatoriedade de 26
CARTA enviada pelo Major
condições de trabalho dos indígenas indígenas trabalharem em obras Comandante dos índios do
aldeamento do Cocal Antônio
no Canal da Levada: públicas foi utilizada como José de Souza Salazar à
justificativa para os constantes Presidência da provincial.
APA. Secção de Documentos.
Dê as providencias para que sejam recrutamentos realizados por Diretorias Parciais dos
ocupados nisso continuadamente
cincoenta índios. Eles vencerão a diversas autoridades locais nos Índios. M.39. E.11. 1820-
872. In: ANTUNES, Clóvis.
quatrocentos e oitenta réis diários, aldeamentos. Diante dos Documentário. Op. Cit.
descontando-se deste valor o preço
de uma libra de carne seca, e de um
recrutamentos arbitrários, a opção
décimo de farinha, ou de libra e meia dos indígenas pelo trabalho para
de carne fresca, e de um décimo de particulares ou mesmo a busca por
farinha, que se lhes dará, quando V.
Mce, e o referido julguem mais outras formas de vida fora dos
acertado sustentá-los a custa da aldeamentos refletiu no quantitativo
subscrição. Também se distribuirá no
fim do dia, uma garrafa de da população aldeada acarretando a
aguardente por cada dez homens. Os redução da população, sobretudo no
primeiros índios, que vierem, serão
logo aplicados a levantar uma palhoça
número de homens. De fato, já não
para seu abrigo, e dos que lhe havia braços indígenas suficientes
sucederem, pois que de mês em mês
para desenvolver uma economia de
devem ser mudados, recebendo nessa
ocasião o salário vencido. Não serão, aldeamento, pois muitos
porém mudados os primeiros sem que abandonavam os aldeamentos
cheguem os segundos, e assim por
diante, conservando-se sempre o quando recebiam a notícia de que os
mesmo número.25 recrutamentos seriam realizados.
As solicitações de mão de obra
Em janeiro de 1860 o Major indígena pela Presidência da
Comandante do Aldeamento do Cocal Província encontravam nos diretores
Antônio José de Souza Salazar dos índios apenas desculpas por não
solicitou26 à Presidência da Província poderem atender aos pedidos,
que autorizasse a dispensa dos seus enquanto que, por outro lado,
subordinados para que pudessem autoridades policiais prendiam os
retornar as suas aldeias. Eles já poucos indígenas aldeados e os
teriam cumprido o tempo que eram remetiam para as obras públicas sob
obrigados nas obras da cidade, mas a justificativa de estarem cumprindo
estavam sem alimentos para ordens do governo provincial. Dessa
seguirem viagem, o que acabava forma, os indígenas estavam sujeitos
segurando os indígenas em Maceió, ao recrutamento que ocorria tanto
nas obras, por mais tempo. Ao que dentro do que se pode identificar
22
como legalidade quanto ilegalidade. essa lista com os nomes dos índios
Esses recrutamentos eram realizados dispensados do recrutamento para 27
OFÍCIO enviado pelo
tanto através do órgão responsável consideração do Delegado de Polícia. Diretor Geral dos Índios
José Rodrigues Leite
pela administração dos aldeamentos, O diretor dos índios não Pitanga ao Vice-Presidente
quanto por funcionários cuja função apresentou os critérios que ele da Província de Alagoas
Roberto Calheiros de
não previa tal atividade. No entanto, utilizou para isentar esses indígenas
Mello. Maceió, 1 de
não se tem registro de qualquer do recrutamento, mas o envio da outubro de 1856. APA.
punição às autoridades que lista pode ser entendido como uma Documentos avulsos.
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31
HISTÓRIA E MEMÓRIAS DE Palavras-chave: índios Xukuru do
MIGRAÇÕES NO NORDESTE Ororubá; migrações; Zona da Mata e São
INDÍGENA Paulo.
O “vaivém” dos Xukuru do
ABSTRACT:
Ororubá (Pesqueira/PE)
“Era um vaivém!” Thus exclaimed a
Xukuru indian to recall the seasonal shifts
Edmundo Monte of their relatives and other indigenous -
Doutorando em História Social during periods of cutting and harvesting
(UFBA) of sugar cane - towards the sugarcane
Bolsista CAPES region of Pernambuco and Alagoas.
edmundomonte@hotmail.com Inhabitants in the Serra do Ororubá in
the municipalities of Pesqueira/PE and
RESUMO: Poção/PE, the indians migrated from the
“Era um vaivém!” Assim exclamou um semiarid region in search of work in the
índio Xukuru ao rememorar os Northeast itself and in more distant
deslocamentos sazonais de parentes seus areas, such as the Brazilian Southeast.
e outros indígenas – nos períodos de The dichotomy between periodic droughts
corte e colheita da cana de açúcar –, and plots of failure for the indians,
rumo à região canavieira de Pernambuco limited, or even made impossible the
e Alagoas. Habitantes na Serra do clearings subsistence. This article seeks
Ororubá, nos municípios de Pesqueira/PE to analyze the intrinsic elements that
e Poção/PE, os indígenas emigravam da motivated these migrations. Roughly, yet
região semiárida em busca de trabalho no we list the land conflicts between indians,
próprio Nordeste e em áreas mais settlers, farmers and state agents. In the
distantes, como o Sudeste brasileiro. A oral memories of the Xukuru do Ororubá
dicotomia entre as secas periódicas e a indians, we realize that among the target
insuficiência de glebas para os índios, regions mentioned by migrant indians,
limitavam, ou mesmo impossibilitavam os the “Grande São Paulo” stood out from
roçados de subsistência. O presente the others in the category "more
artigo busca analisar os elementos immigrants" indigenous. Historicizing the
intrínsecos que motivavam essas daily life of these subjects in the new
migrações. Grosso modo, elencamos social areas, including the ways and the
ainda os conflitos fundiários entre índios, different experiences of work
posseiros, fazendeiros e agentes estatais. exercised/occupied by Xukuru in the
Nas memórias orais dos Xukuru do metropolis that complement the
Ororubá, percebemos que, entre as objectives of the article.
regiões de destino mencionadas pelos Keywords: Xukuru do Ororubá indians;
índios migrantes, a Grande São Paulo migrations; Zona da Mata and São Paulo.
destacava-se das demais no quesito
“maior número de imigrantes” indígenas.
Historicizar o cotidiano destes sujeitos Os processos históricos e a
nos novos espaços de sociabilidade, gama de especificidades temáticas
incluindo os modos e as diversas nos estudos e pesquisas sobre a
experiências de trabalhos História do Brasil, em diferentes
exercidos/ocupados pelos Xukuru naquela
temporalidades, geralmente
metrópole, complementam os objetivos
mencionam os movimentos
do artigo.
migratórios de distintos sujeitos
históricos. Com exceção de uns
32
poucos (e importantes) estudos Neste artigo, daremos ênfase
sobre migrações indígenas no país no à mobilidade espacial de índios 1
Na Associação Brasileira
campo da História (LUZ, 1988; Xukuru do Ororubá, moradores na de Estudos Populacionais
SILVA, 2007; SILVA, 2009; MONTE, faixa de transição entre o Agreste e o (ABEP), destaco o Grupo
de Trabalho (GT)
2012), é notória a crescente Sertão pernambucano, para o
“Demografia dos Povos
produção acadêmica sobre o tema, trabalho nos canaviais e engenhos na Indígenas do Brasil”, com
desenvolvida por colegas geógrafos, região produtora (Zona da Mata) em inúmeras publicações
sobre o tema. Outros
demógrafos, antropólogos, sociólogos Pernambuco e Alagoas, ao longo dos estudos sobre migrações
etc.1 três primeiros quarteis do século XX. estão disponíveis para
download no site da
ABEP:
http://www.abep.org
Localização geográfica dos municípios de Pesqueira e Poção, onde habitam os Xukuru do Ororubá.
Fonte: IBGE. Adaptações: Edmundo Monte
33
hipóteses. Dessa forma, Xukuru do Ororubá (Alberti, 2004:
(re)pensamos na importância de 15; Halbwachs, 1990). 2
Sobre índios do Nordeste
novas discussões, abordagens e que migraram para São
Paulo, consultar: LUZ, L. I.
estudos que evidenciem a presença A Serra do Ororubá: história e da. Os Pankararé de Brejo
de povos indígenas migrantes nestes memórias Xukuru sobre o lugar do Burgo na cidade de São
Paulo. In: Travessia
e em outros lugares, na condição de de origens Revista do Migrante, São
sujeitos que constroem suas próprias Um pesquisador destacou que Paulo, CEM, n. 01, 1988, p.
27-32; Albuquerque, M. A.
histórias.2 Ao longo do artigo, a menção mais antiga sobre a dos S. O regime imagético
observaremos também algumas presença dos índios Xukuru nos Pankararu (tradução
intercultural na cidade de
experiências de migrantes Xukuru, sertões do Norte remonta ao ano de
São Paulo). 2011. Tese
enquanto trabalhadores formais na 1599 (Hohenthal, 1954). Habitando e (Doutorado em
Grande São Paulo. se movimentando desde épocas pré- Antropologia Social),
Florianópolis: UFSC, 2011;
Os percursos teórico- coloniais na região da Serra do MONTE, E. Migrações
metodológicos do artigo privilegiam Ororubá e áreas adjacentes, cerca de Xukuru do Ororubá:
memórias e História (1950-
os diálogos entre fontes orais – 10 mil indígenas vivem atualmente 1990). Dissertação
através das memórias Xukuru –, em 24 aldeias, distribuídas nos (Mestrado em História).
Recife: UFPE, 2012.
subsídios documentais e produções 27.555 hectares da terra indígena
bibliográficas analisadas e estudadas Xukuru do Ororubá, nos municípios
ao longo dos últimos seis anos. No pernambucanos de Pesqueira e
tratamento das fontes históricas, Poção. (Monte, 2012: 88).
etapa que envolve confrontos e/ou Conforme os relatórios finais
ideias em comum, bem como do Censo do IBGE (2010), o órgão
complementações dos dados oficial divulgou que 9.434 indivíduos
coletados, a produção deste artigo se se autodeclararam indígenas, sendo
apoia nos estudos e considerações de 9.335 residentes nas zonas rural e
E. P. Thompson (2001, p. 185) a urbana de Pesqueira/PE e outros 99
respeito dos trabalhadores e outras habitando no município de Poção/PE.
pessoas consideradas comuns. A Esses dados são contestados pelos
“história vista de baixo”, passa aqui a Xukuru. Como parâmetro, citamos os
ser concebida e compreendida a números fornecidos pelo antigo
partir das experiências vividas e SIASI-FUNASA referentes ao mês de
rememoradas pelos próprios sujeitos. julho de 2010. Segundo o órgão de
De maneira resumida, a memória saúde, a população indígena
coletiva construída nos espaços em cadastrada para receber atendimento
movimento (CERTEAU, 1998), onde no município de Pesqueira
indivíduos compartilham situações correspondia a 12.005 indivíduos,
em comum, são aqui expressadas sendo 6025 homens e 5980
nos relatos orais dos/as índios/as mulheres. (Ibidem).
34
Mapa da área indígena demarcada e homologada, com localização das aldeias e estradas de terra.
Fonte: Projeto de Capacitação e Assessoria Técnica/PCAT-Xukuru, 2007. (Monte, 2012: 89)
37
quando era pequena. Depois que a indivíduos (posseiros) habitantes no
gente cresceu, foi todo mundo
trabalhar [para fazendeiro]. Mas meu Sertão do Cariri migravam para a 4
Na “Representação à
pai dizia assim, quando a gente criava Serra do Ororubá, onde instalavam Assembleia Geral
uns bodes... A gente num podia soltar Constituinte e Legislativa
[os bodes] porque o dono da terra
fazendas de gado:
do Império do Brasil sobre
não deixava. Aí meu pai dizia: deixe a Escravatura”, elaborada
tá, porque essa terra ainda vai ser Os abaixo assinados ocupam-se por José Bonifácio e que
toda nossa. Porque essa terra foi exclusivamente do trabalho da não chegou a ser
tomada [de nós]! Mas essa terra era agricultura, de onde tiram meios para apresentada “por motivos,
nossa, e nós ainda vamos ser donos se manterem, mas Excelentíssimo cuja relação pertence a
dessa terra. Um dia nós vamos ser. senhor acontece, que indivíduos sem outro lugar, ela foi
Meu pai falava isso, né? (Maria de título algum, entre eles, José dissolvida, e seu autor,
Jesus, índia Xukuru, outubro de Alexandre Correa de Mello, que vindo entre outros Deputados,
2010)(grifo nosso). dos lados do Cariri pela seca, preso e deportado”,
apossou-se de um dos melhores sítios sugeria uma nova lei
do extinto aldeamento, e ali tem “para promover a
Outro depoimento corrobora
fundado, por assim dizer, uma civilização geral dos índios
as memórias da índia sobre as fazenda de gado, que cotidianamente do Brasil, que farão, com
precárias condições de vida de destrói as lavouras dos suplicantes, o andar do tempo, inúteis
que recorrendo à proteção legal, os escravos.” (D’Andrada
muitos Xukuru, cujas terras eram recorrendo às autoridades policiais e Silva, 1825: 5)(grifo
invadidas por fazendeiros e não são atendidos, porque são nosso).
desvalidos, são índios miseráveis, e
posseiros: como tais sujeitos a trabalharem
como escravos para os ricos e
O meu pai falava que aqui já existia poderosos! Essa é a linguagem
os índios, né? Essa área, já era uma dos tais criadores da Serra, que
área demarcada. Só que os índios entendem levar os suplicantes a ferro
eram pouquinhos. Os fazendeiros e fogo. (MONTE, 2014: 109)(grifo
começaram a invadir essas terras. Aí nosso).
ficou a moradia deles [dos índios]
pouquinhas terras. E daí foi quando Sinteticamente, salientamos
eles passaram a partir, se deslocar,
buscando outros meios de vida. De que tais experiências e estratégias de
sobrevivência. O meu avó, o terreno sobrevivência dos Xukuru ocorreram
dele era muito pequeno. [Aí] os
posseiros começaram a atacar os desde a época da presença
terrenos, enganando eles. E eles [os missionária na colônia, com a
índios] iam trocando aqui e ali pra
sobreviver. Só fazia compra num
implantação dos aldeamentos
barraco de algum camarada que era indígenas (século XVII). Perpassaram
posseiro. E, dali, não tinha o dinheiro o período da legislação pombalina em
pra pagar. E os posseiros diziam:
não?! [Então] nós vamos tirar num meados do século XVIII, com a
pedaço de terra. Aí iam tomando as situação se agravando a partir da Lei
terras, tomando as terras... A dívida
era paga com a terra, né? Porque eles de Terras de 1850. Nas últimas
não tinham o dinheiro pra pagar. Meu décadas do Oitocentos, as ideias
avô deu fim a meio mundo de terra
pra ir sobrevivendo. (Cecílio Santana
românticas do período e os debates e
Feitosa, índio Xukuru, outubro de ações em nome do progresso da
2011)(grifos nossos).
nação, culminaram com a extinção
dos aldeamentos no Brasil. Apesar de
Para avigorar os relatos de
alguns políticos4, estudiosos e
memórias Xukuru, destacamos um
literatos intercederem e advogarem
abaixo assinado de 1885, destinado
sobre a presença indígena no
ao Presidente da Província, através
controverso processo de
do qual os índios denunciavam a
miscigenação (ROMERO, 1980: 120-
continuidade de invasões em suas
121) do povo brasileiro, o discurso
terras. De acordo com o documento,
38
imperial oficial e os documentos da 87) Na prática, a atuação do SPI se
época reafirmavam que os índios, resumia ao caráter assistencialista,
àquela altura, estavam confundidos com distribuição de ferramentas para
com a massa da população nacional agricultura e alguns medicamentos:
(ALMEIDA, 2010; SILVA, 2008;
MONTE, 2014: 110). Cabe aqui uma Depois passou algum tempo, mas já
tinha aquele posto [do SPI na atual
observação: agindo e tomando Aldeia] São José. Nesses tempos já
decisões de acordo com os próprios tinham feito lá em São José. O posto
indígena. O primeiro chefe de posto
interesses, os Xukuru e os povos se chamava Geraldo. Chamava 'Seu'
indígenas no Brasil permaneceram Geraldo. Ele ainda dava um milho,
reafirmando suas identidades étnicas, dava uma enxadinha, dava uma foice,
dava umas sementes pra gente
como apontam os novos estudos e plantar, e os índios viviam tudo lá. Ele
abordagens sobre a História Indígena sempre agradava assim. Mas pra
outra coisa? Não! Um remédio ele
no Brasil. dava se o índio tivesse doente...
Em sentido oposto ao (“Seu” Cassiano, índio Xukuru,
outubro de 2011).
tendencioso discurso imperial sobre o
“desaparecimento” dos índios no
Nascido e vivendo na
século XIX, foquemos, por exemplo,
localidade que muitos ainda chamam
na criação do Serviço de Proteção
de "Canabraba", atualmente Aldeia
aos Índios (SPI), em 1910. Os
Cana-Brava, "Seu" Cassiano, com a
Xukuru, após muito pleitearem,
sua fala mansa e a sabedoria
chegando inclusive a enviar uma
acumulada ao longo de oito décadas
comitiva de índios ao Rio de Janeiro,
de vivências e experiências, é
conseguiram, mais de três décadas
daquelas pessoas que adoram uma
depois, a instalação de um posto do
boa conversa. Ainda mais quando os
órgão indigenista oficial na Serra do
temas instigam suas memórias sobre
Ororubá, em meados de 1940.
a presença indígena e as justas
Todavia, os conflitos agrários
reivindicações históricas em torno
envolvendo, de um lado, os Xukuru
dos direitos originários de posse
e, do outro, os posseiros e
sobre as terras na Serra do Ororubá
fazendeiros invasores de terras,
(Pesqueira/PE).
perduraram até o início dos anos
Pai de família, assim como
2000. (SILVA, 2008; SANTOS, 2009;
outros Xukuru, teve que trabalhar
MONTE, 2014: 110).
desde pequeno na agricultura de
Na teoria, o SPI foi “instituído
subsistência com os pais e irmãos.
para gerir a relação entre os povos
Ele nos contou que por diversas
indígenas, distintos grupos sociais e
vezes presenciou o pai e outros
demais aparelhos de poder” (LIMA,
índios migrando sazonalmente, entre
1992: 155). Entretanto, nas
os meses de agosto e setembro, para
atividades cotidianas deste órgão,
trabalharem no corte e colheita da
não era de interesse dos agentes e
cana-de-açúcar na Zona da Mata Sul
inspetores interferir nas disputas e
de Pernambuco e na Mata Norte de
conflitos por terras, entre outros
Alagoas. O próprio entrevistado
imbróglios “com ocupantes não-
passou por essa experiência como
indígenas” na região. (PERES, 2004:
veremos adiante.
39
"Seu" Cassiano também ela deu, a mulher que veio entregar a
área pros índios, já houve pessoas
conheceu a cidade de "São Paulo, brancas com ela. [Foram se
porque eu tenho um menino que apossando] um num canto, outro num
outro, e ficou o índio só naquele canto
mora lá, né?" (Idem) A estratégia que já vivia. Aqui em Cana-brava, em
familiar de mandar os filhos maiores Brejinho, São José, esses lugares
de idade para os núcleos urbanos das assim... Couro Dantas, Vila de
Cimbres, onde nós habitava. Aí
grandes cidades do Nordeste e do ficaram [os índios] naqueles
Sudeste é, de acordo com Marilda cantinhos. Mas outros caras já vieram
com ela e tomaram conta [de tudo].
Menezes, uma forma de reprodução Eram muitos! (“Seu” Cassiano, índio
social das famílias camponesas e Xukuru, outubro de 2011).
indígenas fora dos lugares de origem.
(MENEZES, 2002; MONTE, 2012). As memórias sobre a Guerra
Igualmente, dependendo do tipo de do Paraguai foram endossadas por
emprego conseguido nessas cidades “Seu” Agripino, em entrevista
e das redes sociais que auxiliam em realizada no dia 20 de outubro de
todas as etapas do processo 2011. Naquela data, o indígena tinha
migratório, os filhos ou parentes 87 anos:
podem enviar pequenas quantias em
No tempo dos meus avós, [eles]
dinheiro, como auxílio providencial foram pra lá [pra guerra]. E o que foi
para aqueles que permaneceram na que a Rainha prometeu? A área
indígena. [...] Um dia sai! Vai sair a
região de origem. (FONTES, 2008:
área indígena dos índios, porque eles
54-55; MENEZES, 2002). foram vencedores. [Eles] que
Perguntado sobre a infância venceram a Guerra do Paraguai.
Porque venceram! Lutaram, lutaram,
na Serra do Ororubá, o indígena lutaram... Brigaram e venceram a
relatou que: "Sofri muito! Meu pai e Guerra do Paraguai. A Rainha deu a
mão, que essa terra tinha que ser
o povo daqui era tudo fraco. O índio demarcada pros índios. (“Seu”
antigamente não tinha liberdade. Agripino, índio Xukuru, outubro de
2011).
Teve de uns tempos desse pra cá."
(“Seu” Cassiano, índio Xukuru,
Segundo a historiadora
outubro de 2011). Ao falar em
Verena Alberti, a vivacidade
liberdade, o entrevistado se referiu
expressada numa entrevista de
ao período posterior à demarcação e
História Oral “faz do homem um
homologação da Terra Indígena (TI)
indivíduo único e singular [...] e, por
Xukuru do Ororubá, em 2001.
isso dá vida as conjunturas e
Ele rememorou ainda o
estruturas que de outro modo
compromisso assumido pela Princesa
parecem tão distantes” (ALBERTI,
Isabel, cuja promessa era de doar
2003: 1). Apesar de não terem
aquelas terras para os Xukuru, desde
vivenciado o período em que ocorreu
que os mesmos fossem lutar na
a Guerra do Paraguai, os dois
condição de "Voluntários da Pátria",
indígenas recordaram de maneira
na Guerra do Paraguai:
efusiva os momentos de sociabilidade
com seus pais e avós.
Mas o índio, desde que a Rainha deu
essa área dos índios que foram brigar De tanto ouvir falar a respeito
lá na Guerra do Paraguai, depois foi de determinado acontecimento, o
que ela deu, né? Bom, mas quando
indivíduo ou o grupo tem a
40
impressão de que vivenciou tudo assassinatos de lideranças indígenas,
5
aquilo. É o que Pollak (1992: 202) serenamente, pontuou: "Porque o Referimo-nos ao “Sertão”
ou “Sertões” como os
classifica de acontecimentos "vividos 'caba' que for cobrar esses direito espaços habitados por
por tabela". E um dos nossos [sobre a terra]... O 'caba' cobra, mas povos nativos no interior da
província, a oeste da costa
entrevistados corrobora tal conceito: morre!" (Idem). litorânea. O termo
“Agreste”, cunhado pelo
Meu pai dizia, meu avô dizia tudo, né? povo, ainda não era
O “vaivém” do trabalho:
Não é do meu tempo, mas eles utilizado na época.
passaram por isso, né? Mas eu ainda migrações sazonais Xukuru para
vi, com essa pouca idade que eu a Zona da Mata
tenho, eu vi ainda o primeiro Cacique.
Chamava-se Romão da Hora. Ele
O que atualmente
morreu velho, mas eu ainda vi ele. conhecemos como Zona da Mata,
Depois chegou outro. Outro chamado próxima à faixa litorânea,
Romão. De novo. Mas também
morreu. Depois chegou Jardelino historicamente também se configura
Pereira... Mas depois foi o tempo que em um espaço de imigração sazonal
apareceu esse rapaz chamado
Francisco Pereira de Araújo, o apelido ou definitiva. A mobilidade espacial
era Xicão. Sempre foi um homem que de povos nativos habitantes nos
trabalhou pelo índio. (“Seu” Cassiano,
índio Xukuru, outubro de 2011).
Sertões5 em direção à região natural
canavieira é apontada e estudada
Em sua narrativa, ao destacar desde meados do século XVI. Na
as presenças dos antigos caciques do obra Tratados da terra e gente do
povo Xukuru, citando inclusive o Brasil, o jesuíta Fernão Cardim
reconhecido empenho do finado alertava sobre os efeitos provocados
Cacique Xicão na luta pela pela falta de chuvas na Capitania de
demarcação da atual terra indígena, Pernambuco, motivando a migração
"Seu" Cassiano continuou o relato de índios habitantes no interior da
observando outros detalhes na província para os espaços
questão das terras "doadas" pela canavieiros:
princesa em exercício:
O ano de [15]83 houve tão grande
seca e esterilidade nesta província
As Aldeias tudo dava 20 léguas e [...]. As fazendas de canaviais e
quadras. As Aldeias que a Rainha mandioca muitos se secaram, por
assinou. Tá assinado! Tá no Museu do onde houve grande fome,
Rio de Janeiro. Tá lá os papel. Tá lá a principalmente no sertão de
espada. Tá lá, tudo no Museu do Rio Pernambuco, pelo que desceram do
de Janeiro. Xicão andou lá, [ficou sertão apertados pela fome,
sabendo da história] por esse velho socorrendo-se aos brancos quatro ou
aqui. Porque os outros num sabia. Eu cinco mil índios. Porém passado
já sabia e contei pra ele. Aí ele foi. aquele trabalho da fome, os que
Chegou lá, achou! Mas depois puderam se tornaram ao sertão,
mataram ele [Xicão] lá em Pesqueira. exceto os que ficaram em casa dos
Eu sou um homem velho, [por isso] brancos ou por sua, ou sem sua
eu só posso dizer o que é certo. O que vontade. (CARDIM, 1939: 292)(grifo
é errado, eu não posso dizer pra nosso).
ninguém, né? (“Seu” Cassiano, índio
Xukuru, outubro de 2011).
Estudos apontaram que essas
Pensativo, ao rememorar os migrações, grosso modo,
momentos de tensões e dificuldades perpassaram o século XIX e
na vida cotidiana do povo Xukuru do continuaram até meados das décadas
Ororubá, como os que resultaram em de 1980-90, em consequência dos
41
desmandos políticos/estatais com a ralava milho, fazia comida pros
[índios] trabalhador, pro meu avô e,
problemática das secas periódicas no quando era de nove pra dez horas,
Agreste e no Sertão, agravados pela era que eu ia escrever uma
liçãozinha. Porque eu tinha que
situação fundiária no Nordeste trabalhar pra ganhar meia garrafa de
brasileiro. (BARROS, 1953; SUAREZ, leite. [Era] pra um irmão meu, que
1977; ANDRADE, 2005; MONTE, ele era pequenininho, sabe? E meu
vô, que trabalhava lá com dona Alba,
2012). coitado... [Ele] comia aquela aguinha
Em um estudo anterior de xerém. Morreu mais de fraqueza,
quando vinha e descia aquela Serra,
(MONTE, 2012), durante a fase da com fome. [Porque] pra gente num
pesquisa de campo na Terra Indígena tinha nada. E assim foi a vida dele,
até quando ele morreu. Depois, meu
(TI) Xukuru do Ororubá, realizei pai e o filho dele, nós botava roça
cerca de 30 entrevistas de história aqui na matinha [...] detrás da minha
casa. Meu pai plantava uma rocinha.
oral. Priorizei entrevistar índios/as
Botava um roçadinho de milho, de
Xukuru idosos/as, bem como os/as fava. Quando era o tempo que a
de meia idade que tenham passado faveira já dava pra comer, seu Rafael
[fazendeiro] tacava o gado dentro. Aí
ou vivenciado no seio familiar nós ia apanhar aquela fava com o
experiências de caráter migratório. gado dentro, e botar em casa aquele
monte de fava verde, pra o gado não
Algumas delas, ou pequenos trechos, comer tudo, entende? Essa é a
estão aqui publicados em primeira verdade, não tem outra! Quando não
era isso, meu pai plantava uma
mão. rocinha aqui por detrás e nós ficava
Anualmente, entre os meses com aquele pouquinho de farinha. Às
de agosto e setembro, acentua-se a vezes dava pra passar a semana, às
vezes num dava. (Bernadete Marinho,
preocupação dos Xukuru em relação índia Xukuru, julho de 2009)(Grifos
à escassez de gêneros alimentícios nossos).
43
índio Xukuru, outubro de 2011) (grifo
nosso).
Os índios velhos, a metade era
trabalhador, e a outra metade às
vezes num trabalhava porque não No mapa abaixo, destacamos
tinha as posses [de terra] pra
a região de origem dos indígenas
trabalhar. Aí, o finado meu pai
contava aquelas histórias que, quando (Pesqueira/PE e Poção/PE), e os
era nas épocas [do corte e colheita da municípios de destino mais citados
cana], aí se juntava um grupão de
índio velho e novo. Aí, botavam o pelos Xukuru na Zona da Mata Sul de
matulãozinho nas costas e desciam Pernambuco e Zona da Mata Norte de
por aqui pro Sul [de Pernambuco].
Porque nessa época num existia Alagoas:
carro, né? Aí descia tudo de pés pra
trabalhar. (“Seu” Saturnino Feitosa,
46
“Eu vou procurar minha vida Antigamente o pai é que levava pra
tirar reservista. [Quando ele]
em São Paulo.” Angustiado por ter completou 18 anos eu disse: ‘bora
que se afastar do pai e da mãe, mas meu filho!’ Depois de seis meses ele
foi lá buscar o documento. Aí eu
esperançoso graças às informações disse: ‘você hoje é um cidadão!’ Eu
repassadas pelos irmãos que já sou seu pai, mas não posso mandar
viviam na capital paulista, “Seu” mais em você, viu? Você hoje tem
outro pai na terra: primeiramente
Antônio Pequeno, provavelmente em Deus e segundo, o governo. Nem eu
1952, deixou a Serra do Ororubá e sou mais! Quem é agora, é o governo.
Faça por viver meu filho, faça por
seguiu para São Paulo. Graças às viver. Eu posso lhe dar um conselho,
redes sociais, logo arrumou um mas não domino mais você. Quem
domina é o governo, e se você errar...
emprego (FONTES, 2008: 47-48). (“Seu” Cassiano, índio Xukuru,
Trabalhou por quase 40 anos no outubro de 2011).
Jockey Club de Pinheiros. (MONTE,
2012: 107-108). Antes, porém, fez A continuidade nos conselhos
questão de relatar as dificuldades e ensinamentos, bem como o suporte
enfrentadas na década de 1950, até na expedição de documentos se
desembarcar no destino final: reproduziu aos demais. Dos nove
filhos que criou, dois migraram para
O transporte foi ônibus de [empresa, São Paulo ao atingirem a maioridade:
da] Itapemirim. Não! Foi da
[empresa] Princesa do Agreste. Passei
nove dias! Nove dias no caminho. Aqui [na área indígena] o serviço era
Nove dias... Foi de fome, foi de tudo! grosseiro. Era pesado, na enxada. Aí,
Naquele tempo num era fácil. Era sete um disse assim: ‘meu pai, eu quero ir
dias, oito dias, nove dias, daqui pra embora pra São Paulo!’ Ele calado
São Paulo. Era só na pedra daqui pra estava, calado ele ficou! [Quando] foi
São Paulo. Num tinha asfalto, não. no outro ano, o outro menino
Olha, a gente chegava, olhava assim, completou [dezoito anos] também e
e dizia: que diabo é isso? Só o barro foi tirar os documentos. Foi do mesmo
vermelho, só o barro! Não é jeito do outro! (“Seu” Cassiano, índio
brincadeira, daqui pra São Paulo. E a Xukuru, outubro de 2011).
estrada não ajudava, era só pedra.
Mas graças a Deus se venceu tudo. Para comprar a passagem até
(Antônio Bezerra Vasconcelos, índios
Xukuru, julho de 2009). São Paulo, “Seu” Cassiano vendeu
“uma burra por dois contos e
“Seu” Cassiano, ao contrário quatrocentos. Peguei os dois contos e
do Xukuru Antônio Pequeno, não dei a ele: tome, vá! Aí ele foi
migrou para o Sudeste brasileiro. embora.” (Idem). As redes sociais,
Porém, na condição de pai de família, na época mantida por meio de cartas
o experiente índio estava prestes a ou quando um parente visitava os
testemunhar, novamente, o demais na região de origem em
fenômeno migratório no seio familiar. períodos de férias, foram
Completada a maioridade do fundamentais para a inserção dos
primogênito, “Seu” Cassiano levou o seus filhos no mercado de trabalho
filho para dar entrada nos (Monte, 2012: 88-89). O primeiro
documentos pessoais e, empregando deles hospedou-se na casa de um
sua maturidade e experiência, o tio:
aconselhou:
Já tinha um irmão meu lá. Ele [o
filho] disse: ‘vou pra onde tá tio
47
Mané!’ Ele foi trabalhar com meu sazonais aos definitivos –, nos
irmão, na firma que meu irmão
trabalhava. Ele trabalhou numa processos históricos vividos pelos 7
De acordo com a
fábrica de detergentes. (“Seu” Xukuru, com ênfase na manutenção qualificação e os critérios
Cassiano, índio Xukuru, outubro de adotados por Roberto
2011).
biológica dos indígenas e, em muitos
Cardoso de Oliveira durante
casos, atuando como condição básica um congresso no México,
para a sobrevivência das suas havia similaridades entre os
Completados três anos de camponeses e os indígenas
moradia em São Paulo, o primogênito famílias (MENEZES, 2009: 274-275; no Nordeste. Na época, o
de “Seu” Cassiano deparou-se com MONTE, 2012: 70). autor propôs a linha de
pesquisa “campesinato
uma situação inesperada, gerando Um estudo sobre migrações indígena”. (OLIVEIRA,
consequências na vida cotidiana e no de camponeses7 para os núcleos 1976, p. 67-68).
48
(“Seu” Cassiano, índio Xukuru, marido] Xicão fez, foi essa curiosidade
outubro de 2011). de conhecer São Paulo. Como meu
8
filho, Marcos, também já foi um Cabe salientar que muitas
migrante pra São Paulo. Passou três entrevistas foram utilizadas
Analisando um interessante artigo da anos. Por incrível que pareça, a em outros textos e
historiadora Maria de Lourdes Janotti mesma data que o pai dele ficou lá, publicações. Todavia,
ele também ficou. Então quando ele alguns trechos de
sobre “A incorporação do testemunho voltou, ele disse: ‘a minha experiência entrevistas de história oral,
oral na escrita historiográfica”, a com São Paulo não deu certo.’ Porque bem como transcrições
o pouco que ele ganhava, só dava pra completas, permanecem
autora destacou que em recentes inéditas e serão
ele se manter. E, para trás, ele tinha
publicações, “se vislumbram, de deixado uma mulher com filho, né? incorporadas nos próximos
Então, eu acho que São Paulo é uma trabalhos.
forma nítida”, um maior cuidado dos
ilusão. Quem já tá lá há muitos anos,
pesquisadores com a escrita da que construiu algo, que hoje dar pra
9
Idealizado e criado em
História Oral. Entre as observações e viver bem, [aí] tudo bem. Agora, pra 2012, o website Índios no
mim, hoje, São Paulo é uma ilusão. Nordeste tornou-se
recomendações, ela enfatizou a Desde a época passada. Porque quem referência para estudantes,
questão do “entrelaçamento dos chegava ali em São Paulo, que não professores e
sabia ler, que não tinha uma pesquisadores interessados
conteúdos de um conjunto de ou que discutem a temática
profissão, só ia pro [serviço] pesado.
narrativas” (JANOTTI, 2010: 19). Na Pesado por pesado, vamos pra indígena. De caráter
agricultura que é melhor. Pelo menos multidisciplinar, o “canal
medida do possível – e de ouvidos virtual de informações
trabalha pra si próprio. (“Dona”
abertos às futuras críticas –, procurei Zenilda, índia Xukuru, outubro de sobre os povos indígenas”
neste texto apoiar-se, também, nos 2011)(grifo nosso). tem espaço para notícias,
subsídios para professores,
caminhos apontados por Janotti. vídeos e filmes temáticos,
O próximo relato, baseando- Neste breve, mas específico além de uma BIBLIOTECA
artigo sobre a História das migrações VIRTUAL com centenas de
se nas diversas entrevistas8 que publicações disponíveis
realizei com os/as índios/as Xukuru Xukuru do Ororubá, as vivências e legalmente para download
do Ororubá, incluindo as transcrições experiências expressadas nas gratuitamente São
documentos históricos,
e análises das mesmas, expõe memórias orais do/s índios/as livros, revistas,
importantes reflexões e, grosso migrantes, “encorpadas” através do dissertações e teses (em
todas as áreas do
modo, sintetiza o arcabouço de diálogo com outras fontes, além de
conhecimento). Acesse:
dúvidas, os sonhos e o cotidiano dos evidenciar os indígenas na condição http://www.indiosnonordes
de sujeitos históricos, o texto vem te.com.br
migrantes indígenas que optaram
pela Grande São Paulo. “Dona” somar-se à diversidade temática de
Zenilda, liderança indígena, viúva do (novos) estudos no campo da
cacique Xicão, e mãe de Marcos História Indígena no Brasil.9
(“Marquinho”), o atual cacique do Reafirmando, portanto, aquilo que
povo Xukuru do Ororubá, rememorou vem sendo discutido e publicado por
as experiências de ambos na maior colegas historiadores, através de
cidade do Brasil: pesquisas minuciosas sobre os povos
indígenas habitantes nas regiões que
Bom, eu acho que era o sonho. E o perfazem o país. Não nos restam
sonho de quase todo mundo é São dúvidas que estes sujeitos estiveram
Paulo. São Paulo é um sonho para o
povo. Eu já fui lá. Não achei muito presentes e atuantes em todos os
bom. E eu acho que o que [o meu momentos na História do Brasil.
FONTES
Entrevistas
49
Agripino Rodrigues do Nascimento, 87 anos. Aldeia Cana-Brava, Serra do
Ororubá, Pesqueira/PE, em 20/10/2011.
Antônio Bezerra Vasconcelos, “Antônio Pequeno”, 75 anos. (Falecido). Aldeia
Cajueiro, Serra do Ororubá, Pesqueira/PE, em 30/07/2009.
Bernadete Marinho, 62 anos. Aldeia Cajueiro, Serra do Ororubá, Pesqueira/PE, em
30/07/2009.
Cassiano Dias de Souza, “Seu Cassiano”, 81 anos. Aldeia Cana-Brava, Serra do
Ororubá, Pesqueira/PE, em 20/10/2011.
Cecílio Santana Feitosa, 44 anos. Aldeia Cana-Brava, Serra do Ororubá,
Pesqueira/PE, em 20/10/2011.
Maria de Jesus, 82 anos. Aldeia Pão-de-açúcar, Serra do Ororubá, Poção/PE, em
23/10/2010.
Maria José Martins da Silva, “Dona Lica”, 58 anos. Aldeia São José, Serra do
Ororubá, Pesqueira/PE, em 19/10/2011.
Saturnino Alves Feitosa, 67 anos. Aldeia Cana-Brava, Serra do Ororubá,
Pesqueira/PE, em 20/10/2011.
Zenilda Maria de Araújo, 61 anos. Aldeia São José, Serra do Ororubá,
Pesqueira/PE, em 19/10/2011.
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RECEBIDO EM 03/01/2016
APROVADO EM 31/01/2016
52
ÍNDIOS TUPINAMBÁ/BA:
“O MANTO FOI ROUBADO”! O PALAVRAS -CHAVE : Tupinambá,
DESPERTAR identidade, Encantados.
PELOS ENCANTADOS DE UMA
“IDENTIDADE ADORMECIDA”1 ABSTRACT : This paper analyzes the 1
Optamos pela expressão
“identidade adormecida”
consents, reelaborations,
utilizada pelo Tupinambá
Edson Hely Silva negotiations and social tensions in Cláudio Magalhães no livro
Doutor em HistóriUNICAMP the context of identity reframing Índios na visão dos índios:
Tupinambá (GERLIC,
CA/Universidade Federal de by/the Tupinambá of Olivença 2001: 07- 08), em
Pernambuco (Ilhéus/BA). Understanding the referência ao período em
que os/as Tupinambá
edson.eddsilva@gmail.com relationships involving such ethnic eram identificados/as
reframing Tupinambá requires the como caboclos/as.
Segundo os/as indígenas,
Tamires Batista Andrade Veloso de establishment of dialogue of teriam os Encantados
Brito historical sources with the history despertado a identidade
Mestranda em História and the theoretical and Tupinambá. O processo do
despertar desta identidade
Universidade Federal de Campina methodological assumptions, trying equivale à expressão
Grande to understand the political “emergência étnica”, nem
sempre bem aceita entre
Bolsista CAPES. dimensions of the situations pesquisadores/as e
tamiemflor@gmail.com experienced. The objective of this indígenas (ANDRADE,
2002: 27).
paper is to help to highlight the
RESUMO : O presente texto analisa os socio-political mobilizations of the
consentimentos, reelaborações, Tupinambá, since the Tupinambá
negociações e tensões sociais no identity remains questioned even in
contexto da ressignificação identitária the academic environment, by
pelos/as Tupinambá de Olivença invading the lands claimed by
(Ilhéus/BA). Compreender as indigenous cited, as well as in the
relações que envolvem tal common sense of other residents as
ressignificação étnica Tupinambá in the region as confrontational.
requer o estabelecimento do diálogo KEYWORDS : Tupinambá, identity,
das fontes históricas com a Delighted.
historiografia e com os pressupostos
teórico-metodológicos, buscando Em janeiro de 2015,
entender as dimensões políticas das entrevistamos Dona Nivalda Amaral
situações vivenciadas. Objetivamos, de Jesus. 83 anos, Tupinambá
por meio deste artigo, contribuir para nascida e moradora de Olivença
evidenciar as mobilizações (Ihéus/BA), cujo nome indígena é
sociopolíticas dos/as Tupinambá, Amotara (que significa “amar a
uma vez que a identidade Tupinambá todos”), uma importante liderança
continua sendo questionada mesmo Tupinambá que marcou a história de
no ambiente acadêmico, pelos seu povo na afirmação da identidade
invasores das terras reivindicadas enquanto um povo indígena. Nesta
pelos citados indígenas, como entrevista, Amotara falou com
também no senso comum dos/as tristeza, mas também com
demais moradores/as naquela região esperança, sobre uma viagem à
tão conflituosa. Brasília realizada em 2012, segundo
53
a narradora, para conversar com o Resumo do Relatório Circunstanciado
2
Presidente Lula. de Delimitação da Terra Indígena Demarcações nos últimos
seis governos. Disponível
No entanto, sabemos que Tupinambá de Olivença, delimitando em:
desde 2011 a Presidente da a TI (2009), ainda que entre 2008 e <http://pib.socioambiental.o
rg/pt/c/0/1/2/demarcacoes-
República é Dilma Rousseff. 2010 o povo Tupinambá tenha sido nos-ultimos-governos>.
Compreendemos a confusão com gravemente violentado pelo Estado, a Acesso em 16/02/2016.
relação aos nomes, pois como partir das ações da Polícia Federal
discorreu Halbwachs a respeito das (2008) e alguns/as de seus caciques
lembranças reconstruídas: “À medida presos/as, Valdelice Jamopoty (2009)
em que os acontecimentos se e Babau (2008 e 2010).
distanciam, temos o hábito de Os/as indígenas realizaram
lembrá-los sob a forma de conjuntos, viagens à Brasília, a exemplo de
sobre os quais se destacam alguns Dona Nivalda (2012), com a
dentre eles, mas que abrangem intensificação dos conflitos
muitos outros elementos, sem que vivenciados sob o mandato da
possamos distinguir um do outro, Presidenta Dilma. Em 2012 a
nem jamais fazer deles uma consultoria jurídica do Ministério da
enumeração completa” Justiça declarou a aprovação dos
(HALBWACHS, 2006: 77). estudos elaborados que concluíram a
É importante ressaltar a tradicionalidade da ocupação do
possibilidade que o Presidente Luís território Tupinambá, contudo, a
Inácio Lula da Silva tenha se tornado portaria declaratória da TI,até o
uma referência política de destaque momento da elaboração desse artigo,
para Dona Nivalda, em comparação não foi assinada. Os conflitos
com a representatividade de Dilma agravaram-se em 2013, culminando
Rousseff, em razãoda expressividade na última prisão do cacique Rosivaldo
do ex-Presidente com relação a Ferreira da Silva, conhecido
temática indígena no Brasil e, nacionalmente como “Babau”, em
particularmente, com relação à TI 2014.
Tupinambá de Olivença. Nos Dona Nivalda carrega,
governos do Presidente Lula (2003- portanto, impressões e vestígios de
2010) 81 terras indígenas foram lembranças com as quais reconstruiu
declaradas e 87 homologadas. o quadro de sua viagem. As
Enquanto que sob os governos da lembranças, nesse sentido, podem
Presidenta Dilma Rousseff (iniciado ser entendidas como “uma
em 2011), apenas 13 terras reconstrução do passado com a ajuda
indígenas foram declaradas e 18 de dados tomados de empréstimo ao
homologadas2. presente e preparados por outras
Com relação às reconstruções feitas em épocas
peculiaridades Tupinambá em anteriores”, da qual “a imagem de
Olivença, sob o governo do outrora já saiu bastante alterada”
Presidente Lula, foram iniciados os (HALBWACHS, 2006: 91). As novas
procedimentos de identificação, imagens do passado recobrem,
delimitação e demarcação da TI assim, as antigas, tratando-se de
(2004), tendo sido aprovado e uma atualização de uma memória
publicado no Diário Oficial da União o não linear.
54
A partir da citada entrevista, (ANTENORE, 2000). Ao retornar à
Amotara denunciou a ausência do Holanda, em 1644, Maurício de
manto Tupinambá no território Nassau, governante de enclave da
indígena: Companhia Neerlandesa das Índias
Ocidentais no território brasileiro
Com Lula. Conversei sim. Eu queria entre 1630 e 1660, após a assinatura
que ele trouxesse, até hoje nós temos
esperança... O manto. O manto que do Tratado de Haia pelo qual a
foi feito pelo um... Um... Um primeiro Holanda reconheceu a soberania
cacique, chamava-se Fulgêncio. Meu
tio Fulgêncio foi quem fez o manto
portuguesa sobre Pernambuco, levou
tupinambá, tudo de pena vermelha de consigo um manto de plumas
guará, pena de guará. vermelhas.
[...] E já foi baixo assinado, já foi
tanta coisa, mas eu acredito que se No entanto, Dona Nivalda
ele, se Lula tivesse assim uma afirma ter reconhecido o Manto
firmezazinha nesse, podia ter
mandado só os índio, nera? Com Tupinambá, guiada pelo espírito de
firmeza, trazia. Muito disse que lá é sua avó, não podendo levá-lo
rei, né? Chegou e disse assim: “É... É
bom que apareceu o dono!”
consigo, apesar de desde o momento
Foi roubado! Porque vivia numa arca do reconhecimento ter manifestado o
de couro, dentro da igreja debaixo do
desejo, segundo a Folha. Sonhando
subterrâneo. Então foi roubado. Os
portugueses quando chegaram por com o dia em que os/as
aqui, que foi quando os jesuíta tava guerreiros/as Tupinambá de Olivença
fazendo a igreja, ficou à vontade...
Não tinha ninguém pra olhar uma resgatarão na Dinamarca o
obra e tudo e roubaram. Acharam que importante símbolo da identidade e
era de valor, levaram (NIVALDA
AMARAL DE JESUS, 2015). ancestralidade destes/as indígenas.
Um dos símbolos culturais entre
Amotara Tupinambá afirmou tantos outros roubados dos/as
ter recordado, a partir das histórias Tupinambá:
contadas por sua avó Ester, as
características do manto feito por seu Disse que até hoje, até hoje tem!
Porque eu fui, eu fui ver se era ele
tio/avô Fulgêncio: vermelho, feito mesmo. Não fui em Brasília, mas fui
com penas de guará. Ironicamente, a em São Paulo. No Parque de
Berapoera. Aí teve uma exposição que
narradora foi convidada pela Folha de teve mais de quinhentos,
São Paulo a reconhecê-lo numa quinhentos... Amostra indígena.
Incrusive ele estava também. Eles
exposição num Museu do Parque levaram, pessoa já representou já, ele
Ibirapuera/São Paulo, a “Exposição tupinambá. E eu fui. [...] Nunca
Brasil +500 Mostra do cheguei assim pra pegar, pra ver, pra
pôr assim de perto assim não! Sabia
Redescobrimento”. porque minha vó contava tudo, né?
De acordo com o citado [...] Ele me soltou, me soltou assim lá
e eu fui guiada pelo espírito de minha
jornal, o “manto tupinambá de penas véa Ester, minha vó, eu fui guiada por
vermelhas”, um dos destaques da ela. Eu via ela assim... [...] Quando
eu cheguei assim uns cinco metro,
exposição, foi levado pelos cinco metro – mediram, deu cinco
holandeses, em 1644, de metro mermo –, antes de chegar de
junto do manto, eu reconheci, e me
Pernambuco para a Dinamarca,
deu um frio minha fia, um frio, me
encontrando-se atualmente no veio um frio assim por debaixo de
acervo “Nationalmuseet”, em meus pés assim... Aquele frio assim
que me tomou toda assim! [...] Fui
Copenhague, sendo por este Museu chegando perto, quando cheguei
conservado e restaurado assim, eu disse: “É esse aqui!” Botei a
55
mão nele assim... “É esse aqui! Ô morte do “cativo”. Aquele que o
meu Deus! Primeira vez que tô
pegando no manto que meu avô fez! autor percebeu como “carrasco”
O manto tupinambá!” [...] Nós nunca vestia-se com o manto de penas e
que queria desapartar desse manto!
Toda vez, era caminhada, era reunião
imitava uma ave de rapina ao matar.
na praça, então, toda vez que tinha “É esse passado vivido, bem
uma coisa assim, feita assim pelos mais do que o passado apreendido
espírito tupinambá, ele tava ali
presente, e pronto!”[...] Dinamarca. pela história escrita” relevante para
É... Dinamarca. Mas eu tô dizendo nós, pois é “nesse sentido que a
que se se juntasse, se esses índio
fosse tudo unido, juntasse! Porque história vivida se distingue da história
abaixo assinada já foi, e tudo... Já foi escrita: ela tem tudo o que é preciso
até de outras pessoas, quer dizer, e
não deu... E ele não entregou, então,
para construir um quadro vivo e
quer uma força mais forte, né? natural em que um pensamento pode
(NIVALDA AMARAL DE JESUS, 2015).
se apoiar, para conservar e
reencontrar a imagem e seu
Ainda de acordo com a Folha
passado” (HALBWACHS, 2006: 75).
de São Paulo, a liderança Núbia
Foi importante para Amotara
Batista da Silva afirmou que os/as
Tupinambá recordar e expressar
Tupinambá vivenciam “um processo
oralmente suas memórias, que
de resgate cultural. Recuperar o
denunciaram a ausência do manto
manto significa trazer a memória de
Tupinambá, assim como parte do
nossos ancestrais para mais perto”
processo histórico violento (por parte
(ANTENORE, 2000). O manto é um
dos não indígenas) e criativo
símbolo antigo da identidade
(pelos/as indígenas) de
Tupinambá, remontando ao Século
transformações identitárias e
XVII. Carlos Fausto (2009: 391 e
territorial que a própria narradora
392) se referiu ao manto como
vivenciou.
indumentária utilizada pelo
“carrasco” no ritual antropofágico de
56
Dona Nivalda reconhecendo o manto Tupinambá na Mostra do
Descobrimento em São Paulo/SP
Fonte: Folha de São Paulo, 01/06/2000.
60
Chamava “os caboco”, mas não podia aparência física e da frequência com
falar que era índio. [...] O que é ser
indígena? É nós saber de nossa que são realizados rituais.E assim
história, auto se denominar o que que colocando sob suspeita os critérios
nós é, porque é a gente que tem que
dizer o que é, e aprovar pro Governo,
utilizados pelas agências indigenistas
pro noticiário o que que nós somos. E estatais para o reconhecimento de
nós temos estudo e temos o território, indígenas, que ocorriam, sobretudo,
que nós nunca foi de outro lugar, meu
marido, meus avô, a avó de meu pela comprovação daquelas pessoas
marido, aqui da Aldeia Tupinambá e de terem o domínio do ritual, com
nunca foi de outro canto. [...] Intoce
nós tem prova e nós sabe o que que seus cantos e danças.
nós é! E nós que diz o que que nós é, A negação da etnicidade
não é o Governo que vai dizer! [...]
Temos nossas história, temos os
dos/as Tupinambá de Olivença está
antepassado, temos as mata, temos relacionada ao “jogo de poder entre a
conhecimento do que é ser índio e
heteroidentificação e a
somos índio e não saímos daqui mais
não! Cansemo de negar o que nós é autoidentificação na construção das
pra satisfazer fazendeiro que tomou identidades coletivas envolvidas na
as terra tudo, matou muito índio e
hoje quer cantar de galo em nossa formulação das relações entre os que
Aldeia! E a gente sabe que um dia definem aos outros e os feitos
tem que morrer, então vamos morrer
dizendo o que que nós é! (MARIA DA outros” (MEJÍA LARA, 2012: 38-39).
GLÓRIA DE JESUS, 2015). Cronistas portugueses do
século XVI descreveram a “acentuada
A antropóloga Manuela disparidade cultural entre os
Carneiro da Cunha (1979:46) Tupinambá e os europeus”
reforçou esta ideia, além de (ALMEIDA; PROFICE; SANTOS, 2014:
antropólogos/as interacionistas, ao 62). No entanto, o projeto colonial
definir: “assim, é índio quem se português era o de superar tal
considera e é considerado índio”. disparidade, intervindo nos alicerces
Reafirmando o Estatuto do Índio (Lei socioculturais deste e de outros
nº 6001, de 19 de dezembro de povos indígenas.
1973), no Art. 3, sobre a definição Para o livro Cultura viva:
“Índio”: “É todo indivíduo de origem esperança da Terra, Aracy
e ascendência pré-colombiana que se Tupinambá trouxe afirmações
identifica e é identificado como essenciais para a compreensão da
pertencente a um grupo étnico cujas atual e salientada dúvida sobre a
características culturais o distinguem identidade dos/as Tupinambá de
da sociedade nacional”. Olivença,expressada pela maioria dos
Esclarecendo, portanto, que o não índios que habitam a região Sul
fenótipo não é relevante para o da Bahia, tanto no senso comum
reconhecimento étnico de povos quanto no ambiente acadêmico: a
indígenas. comparação dos/as Tupinambá do
No texto “Morte e vida no século XXI com aqueles/as
Nordeste indígena: a emergência encontrados/as pelos europeus aqui
étnica como fenômeno regional”,José no Brasil no século XVI ou com povos
Maurício Andion Arruti (1995) indígenas que habitam a floresta
apresentou argumentos questionando amazônica. Para Aracy, não somente
as possibilidades de avaliar a o modo de vida dos/as Tupinambá foi
identidade indígena a partir da
61
alterado, como também a cultura cultura”. Atualmente, os/as
europeia: Tupinambá vivenciam processos de 4
O Porancim é o ritual
sagrado dos/as Tupinambá
retomadas, não somente de seu
de Olivença. Uma liderança
A realidade indígena nos dias atuais é território considerado sagrado, como inicia a dança circular e o
bem diferente do passado, da mesma entoar dos cânticos
forma que os tataranetos dos também de sua língua e da prática
sagrados que tratam da
portugueses que chegaram com suas do Porancim4. Natureza, das mobilizações
caravelas nesse solo não se vestem contra os preconceitos
hoje da mesma maneira que seus
O citado pesquisador Arruti
difundidos a respeito do
avós. Nós povos indígenas possuímos denominou de “reencantamento do povo indígena Tupinambá
vestimentas tradicionais próprias e mundo” as possibilidades de de Olivença e pela
grafismos com os quais fazemos demarcação territorial.
pinturas corporais, mas nossa nudez recuperar e constantemente Os/as demais acompanham
ou não nudez, não define ser indígena (re)construir e intervir nos aspectos a liderança, ao mesmo
ou não indígena. Toda cultura é tempo em que dançam,
dinâmica, está sempre em constante simbólicos e socioculturais, tais como
batendo os pés no chão com
movimento... (GERLIC, 2012: 24). o ritual (ARRUTI, 1995: 76). O ritual firmeza e balançando o
Porancim não somente acontece maracá, instrumento
Aracy Tupinambá referiu-se musical sagrado, o círculo
enquanto um dos meios de expressão que compõem, gira.
às indumentárias e grafismos feitos das mobilizações pelo
nas peles dos/as indígenas reconhecimento identitário e pela
Tupinambá em momentos de posse da terra, como também com a
reivindicações e celebrações, isto sua realização torna visível e acentua
porque é corrente na região Sul da os laços coletivos e místicos que são
Bahia as afirmações que os/as as bases para a conquista e
Tupinambá de Olivença deveriam consolidação dos direitos, pois
andar nus para a comprovação de motivam o prosseguimento com
sua autêntica identidade indígena aos outras mobilizações Tupinambá.
não indígenas. Concordamos com O Porancim é celebrado nos
Aracy quando afirmou que na cultura, momentos de reuniões para
ou no modo de ser e viver dos/as discussões, em outras ações em
indígenas, assim como a dos/as não defesa da demarcação da TI e em
indígenas, ocorreram transformações retomadas,para o fortalecimento
por movimentos históricos, dinâmicos espiritual e da identidade coletiva, a
e fluídos. “comunicação dos participantes do
Ainda para o mesmo livro, ritual com os encantados”, no
Kaluanã Tupinambá escreveu o texo processo de reivindicação por seus
intitulado “A história do povo direitos (COUTO, 2003: 74-75). A
Tupinambá de Olivença que não está garantia do território indígena se
nos livros”(GERLIC, 2012: 28), no constitui essencial para a
qual expôs quais aspectos continuidade desta prática “político-
socioculturais foram forçosamente religiosa” E os Encantados são
excluídos temporariamente do “entidades não humanas que
cotidiano Tupinambá: “Para os povos dispõem de domínios territoriais
que não morreram, os portugueses específicos e, conforme a cosmologia
forçaram muita coisa: não falar mais Tupinambá, são os verdadeiros donos
nossa língua materna, vestir roupas e da terra” (UBINGER, 2012: 107).
não fazer mais nosso ritual sagrado, Para os/as Tupinambá, toda
ou seja, queriam descaracterizar um a Natureza contém os Encantados: as
povo que sempre teve sua própria águas e as matas. Numa conversa
62
informal, Célia Tupinambá explicou à No livro Índios na visão dos
pesquisadora Helen Ubinger (2012: índios: Tupinambá (GERLIC, 2001: 5
Em referência ao povo
indígena Tupinambá,
72): “Existem também os encantados 07-08),Cláudio Magalhães falou de escrevemos com a inicial
das estrelas – tipo anjos, um mundo uma “identidade adormecida” por um maiúscula, usando a letra
“T” e no singular, quando
no céu de estrelas encantadas. Tudo período de negação identitária vivida
nos referirmos a
vem de Tupã, é como se fosse um por seus antepassados. Afirmou coletividade indígena. E
sonho”. Em suas vivências junto ainda, uma ideia frequente entre os grafamos “tupinambás” em
minúsculo e no plural,
aos/às Tupinambá, essa não indígenas preocupados com a quando citarmos indivíduos
pesquisadora constatou que tais ascensão constante do Capitalismo: a indígenas. Regra essa de
acordo com a “Convenção
indígenas “mantêm uma cosmologia de que os/as indígenas são para a grafia dos nomes
propriamente Tupinambá”. empecilhos ao progresso do país. tribais”, estabelecida pela
Associação Brasileira de
Obras de Alfred Métraux Sobre isto, pensamos que “cada
Antropologia/ABA em
(1979) e Florestan Fernandes (1970) sistema social utiliza suas energias 14/11/1953, publicada na
indicavam esta relação com os intelectuais dentro dos limites de seu Revista de Antropologia
(vol. 2, nº 2, São Paulo,
“espíritos das matas” entre os horizonte cultural [...]. Não podemos 1954, p. 150-152) e
indígenas Tupinambá (apudUBINGER, mensurar ou classificar esta forma de utilizada nos estudos
acadêmicos sobre a
2012: 46). Segundo os/as indígenas organização a partir de uma escala temática indígena.
em Olivença, foram os Encantados civilizatória ou primitivista...”
que despertaram a identidade (ALMEIDA; PROFICE; SANTOS, 2014:
adormecida, pois “vêm sendo parte 66).
dessa reestruturação coletiva” De acordo com o narrador,
(UBINGER, 2012: 53). É na atualidade existem tupinambás5
fortalecedora a comunicação com os que não assumem sua identidade
Encantados, que por vezes são indígena por conta da interpretação
também seus antepassados, “com os distorcida sobre esta identidade
quais mantêm um laço vivo entre o predominante entre os não
passado e o presente, mediante indígenas, com os quais estes/as
sonhos, intuições, sentimentos, indígenas têm contato. Tal
sensações, decisões e também interpretação incorre em preconceito
lembranças” (MEJÍA, 2012: 38). que marginaliza os/as Tupinambá:
É ainda frequente que os/as
indígenas “escutem” os Encantados Nós não tivemos descanso, são 500
anos de confronto, e sempre
quando estão dormindo, por meio de preservando, reconstruindo. Muito de
sonhos relacionados ao movimento nossos parentes não falam da história
porque foram muito humilhados, hoje
indígena, sobre acontecimentos estão com a identidade adormecida.
previstos (MEJÍA, 2012: 105; 114). Os índios daqui sempre foram muito
Os indígenas afirmam que esta reprimidos, perseguidos. Nós fomos
cercados ideologicamente, sempre
espiritualidade diferenciada os/as nos dizendo que não somos índios,
distingue de outros povos indígenas e que não temos direitos, que somos
selvagens, brutais, que não queremos
dos não indígenas. Em outras que o país desenvolva, mas nós índios
palavras, a diferença identitária somos solidários, libertários, sempre
buscando a igualdade.
Tupinambá está diretamente ligada à Alguns índios não se assumem como
espiritualidade. índios, mas não por uma questão de
covardia, e sim, de sobrevivência
(GERLIC, 2001: 07-08).
Uma “identidade adormecida”
63
Quando em janeiro de 2015 Possivelmente os/as
entrevistamos Dona Nivalda, a tupinambás que não assumem a 6
Integrante da Oca
Digital, um dos
mesma também falou a respeito da identidade indígena, como afirmaram laboratórios ativos da
constante negação da identidade Dona Nivalda e Cláudio Magalhães, ONG Thydêwá de
tecnologias e artes para a
indígena por parte de alguns/as não o fazem por conta das impostas
ampliação da
tupinambás. No entendimento da interpretações preconceituosas pelos comunicação a favor
narradora, para ser Tupinambá, é habitantes não indígenas na região dos/as Tupinambá.
65
Outdoor na entrada da cidade de Buerarema num período de
conflitos armados entre fazendeiros e os/as Tupinambá.
Foto: Tamires de Brito, 09/2013.
66
Eu busco fortalecer os rituais e os
traços culturais do meu povo, da
As evidências indicam que mesma forma que nossos
os/as Tupinambá de Olivença foram antepassados faziam.
É um ritual religioso e festivo que é
inicialmente estimulados/as por Dona nossa forma de celebrar a vida, a
Nivalda, Pedrísia Damásio e Núbia natureza. Nossos antepassados
Batista a pesquisarem e refletirem faziam e vem passando de geração
em geração. Apesar de todos os
sobre a temática indígena, para massacres, das opressões sofridas,
assumir a identidade Tupinambá e a enfim... Hoje vivenciamos ainda nosso
ritual, por isso o Porancim é um
reivindicação de direitos territoriais. grande Patrimônio do Povo
Contudo, nas memórias narradas de Tupinambá de Olivença (GERLIC,
2011: 36).
anciões/ãs e lideranças, registradas
no livro Memória viva dos Tupinambá Ensinado pelos antepassados
de Olivença (2007:12), organizado e pelos/as anciões/ãs, o Porancim
por professores/as Tupinambá, foi aproximou e aproxima crianças de
apresentada uma Carta Indígena diferentes idades, adolescentes,
Tupinambá de Olivença à Sociedade adultos/as e idosos/as. Em conversa
Brasileira.Elaborada em janeiro de informal com Dona Nivalda,
2000, na qual os/as Tupinambá de conhecida como Amotara Tupinambá,
Olivença afirmaram que estavam contou que quando criança, assim
“excluídos do direito à existência como outras da mesma idade,
como povo Tupinambá de Olivença”. percebia o Porancim como uma
A carta deixou evidente que existe grande ciranda, uma brincadeira
ainda um quadro recente de não importante. A partir de tal atividade
reconhecimento da identidade lúdica, foram e são ensinados
Tupinambá pelos não índios, conhecimentos acerca das relações
especialmente no Sul da Bahia. sociais e com os espaços naturais e a
A prática do ritual Porancim importância deste aspecto identitário
é ainda outra forma de resistência à para os/as Tupinambá.
violação da identidade Tupinambá, Desde cedo, a partir da
que fortalece os/as indígenas em posição que cada um/a ocupa na
suas mobilizações diárias. O grande roda (quem a lidera e em que
Porancim compõe a afirmação da ordem os demais se posicionam),
atual identidade Tupinambá, assim como observando quem inicia
considerado pelos/as indígenas como cada canção entoada durante o
um patrimônio sociocultural do povo ritual, aprende-se sobre as relações
Tupinambá de Olivença. A esse sociais estabelecidas no território. O
respeito, Jaguatey Tupinambá, no estudo dos aspectos que compõem o
livro Índios na visão dos índios: Patrimônio Cultural Tupinambá exige
somos patrimônio, enfatizou que a uma abordagem interdisciplinar,
partir da prática ritual, os/as especificamente entre áreas do
Tupinambá perpetuam o modo de ser conhecimento que dialogam mais
de seus antepassados: constantemente como a História, a
Antropologia e a Sociologia.
67
Ilustração 03– Ritual Porancim Tupinambá de Olivença.
Os indígenas cantam e dançam, vestindo vestes específicas.
Fonte: Índios na visão dos índios: somos patrimônio (GERLIC, 2011: 36).
68
possibilidade da intervenção criativa uma das expressões socioculturais
pelos/as Tupinambá. De modo que o Tupinambá em Olivença, a Festa da
processo do despertar da identidade Puxada do Mastro de São Sebastião,
ou “renovação étnica” é marcado cuja realização anual é também um
pela inventividade e dinâmica “e não meio de afirmar e atualizar
o resgate de tradições congeladas” memórias, um “documento vivo” que
(ANDRADE, 2002: 36-44). “comemora a memória” (COSTA,
Em janeiro de 2015, também 2013: 106). Assim também, a Festa,
entrevistamos Dona Maria de Lourdes enquanto processo histórico de
(80 anos), que ensinou de que e festejar reafirmando a identidade do
como é feita a giróba. Por vezes, é povo indígena Tupinambá de
ainda acrescentado o açúcar à bebida Olivença.
feita de “mandioca mansa (Mandioca Segundo a narradora, roupas
Caravela, Olho Roxo)”. Há também contaminadas por varíola foram
quem deixe a bebida fermentar por doadas aos indígenas de Olivença
dois dias. Importante destacar que a enquanto mais uma violência contra
mandioca, também utilizada para a este povo.Foi então que São
produção de farinha, é o principal Sebastião impediu que os/as
alimento dos/as Tupinambá de indígenas continuassem a morrer,
Olivença (COSTA, 2013: 103; segundo a crença dos/as Tupinambá
VEIGAS, 2007: 160). de Olivença:
71
Balneário Tororomba em Olivença, Ilhéus/BA
Foto: Tamires de Brito, 01/2015.
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Entrevistas:
Delfina Ferreira Barbosa, 81 anos. Aldeia Mãe, Olivença, Ilhéus/BA, em
22/01/2015.
Maria da Glória de Jesus, 60 anos. Aldeia Serra do Padeiro, Buerarema-Una/BA,
em 04/07/2015.
Maria de Lourdes (Dona Dedé), 80 anos. Aldeia Mãe, Olivença, Ilhéus/BA, em
22/01/2015.
Nivalda Amaral de Jesus (Amotara Tupinambá), 83 anos. Aldeia Mãe, Olivença,
Ilhéus/BA, em 22/01/2015.
Periódico eletrônico:
ANTENORE, Armando. Índios de Ilhéus dizem pertencer à etnia considerada
extinta e reivindicam peça do século 17 – “Somos tupinambás, queremos o manto
de volta”. Folha de São Paulo, São Paulo, 01 jun. 2000. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0106200006.htm>. Acesso em
15/01/2015.
RECEBIDO EM 02/01/2016
APROVADO em 21/01/2016
75
INTERPRETAÇÕES DO KANAIMÎ take an interpretive way to verify that
NO CONTEXTO RELIGIOSO these attitudes toward Kanaimî if present 1
Os Macuxi é um povo
MACUXI in the identity of Macuxi. It is possible indígena de origem
that these identity characteristics can linguística Karib localizadas
explain addition to behavior, their ao longo do Rio Branco no
Manoel Gomes Rabelo Filho Estado de Roraima –Região
religiosity. conhecida como Circum-
Doutorando em Ciências da Keywords: Kanaimî, Religion, Macuxi, Roraima – na fronteira
Religião/UNICAP Violence, Identity. entre Brasil, Guiana e
Professor de Sociologia na Educação Venezuela – e seus
afluentes, sobretudo dos
Básica no Estado de Roraima Introdução campos no Estado, em uma
mgrabelo@bol.com.br área com a vegetação de
Este texto parte do princípio cerrado.
de que os Macuxi1 compreendem o
Resumo: Este texto expõe Kanaimî2 como um ser terrível,
2
O Kanimî – em língua
interpretações sobre o Kanaimî dentro do Macuxi – é traduzido para a
destruidor da vida e dos sonhos, que língua portuguesa como
contexto religioso dos índios Macuxi. A
alimenta o medo nas malocas3 Kanaimé ou Canaimé. Esta
metodologia usada perpassa pelas expressão aparece na
concepções de representações sociais,
através das histórias contadas pelos literatura
aplicadas às ciências sociais e as ideias mais velhos. Esse povo vê na relação socioantropológica de
língua francesa como
de interpretação, aplicadas ao contexto entre os integrantes da tribo e os Canáemés e de inglesa e
religioso dos Macuxi. As referências, além Kanaimî um problema existencial e espanhola como Kanaima.
da literatura socioantropológica, são uma fonte da estrutura identitária do 3
Expressão da região
entrevistas de dois indígenas que povo Macuxi. Neste sentido, há um Circum-Roraima para
relataram ter sido atacados pelo Kanaimî paradigma que frequenta a indicar a Aldeia.
em dois diferentes contextos. No primeiro
elaboração de suas representações. 4
Além dos Macuxi, exiete
há uma atitude de coragem diante dele, e os Taurepang, os Arekuna,
Os limites entre ser ou não Macuxi ou
no outro de medo. A partir destas os Kamarakoto e os
representações tomamos um caminho
Kanaimî, do ponto de vista Ingarikó que fazem parte
interpretativo para verificar se estas interpretativo, são mínimos. Às do mesmo tronco
linguístico Karib. No
atitudes diante do Kanaimî estão vezes, os Macuxi informam que há entanto na Região ocorre
presentes na identidade do povo Macuxi. Kanaimî entre entre eles e até pode grande influência mútua
É possível que estas características entre os Macuxi e os
ser um Macuxi ou mesmo da própria
Wapixana do tronco
identitárias possam explicar, além dos família. linguístico Aruak.
comportamentos, a sua religiosidade. Tais interpretações (SANTILLI, 2016).
Palavras-Chave: Kanaimî, Religião,
configuram como são pensados os
Macuxi, Violência, Identidade.
espíritos que influenciam a cultura
Abstract: This article presents
Macuxi. O Kanaimî se apresenta
interpretations of Kanaimî within the como um deles e fornece modificação
religious context of Macuxi Indians. The em diversos comportamentos,
methodology used pervades the orientando o cotidiano ao longo do
conceptions of social representations, Rio Branco e seus afluentes no
applied to the social sciences and the Estado de Roraima, incluindo tribos
interpretation of ideas, applied to the próximas, que possuem fronteira
religious context of Macuxi. References
étnica muito tênue, diferenciadas por
beyond the anthropological literature, are
formas de residências que formam
the testimonies of two Indians who
reported being attacked by Kanaimî in descendências de diferentes
two different contexts. At first there is a procedências, em especial nas zonas
brave attitude before him, and the other de intercessão entre as etnias.44
with fear. From these representations (SANTILLI, 2016).
76
As representações se uma das possibilidades de “organizar
constituem de dois depoimentos o mundo do sentido” (PADEN, 2001,
coletados durante a pesquisa de p. 10).
campo do Mestrado em Ciências da O delineamento que
Religião da Universidade Católica de pretendemos encaminhar ao
Pernambuco concluída em 2012 no contexto religioso Macuxi será
Recife. O imaginário dos Macuxi a apoiado pela representação e pela
respeito do Kanaimî explica grande interpretação como apresentadas por
parte das doenças e dos problemas Paden. Focaremos nas visões dos
ocorridos nas malocas indígenas. depoimentos, com a intenção de
Nosso objetivo é elaborar uma aproximar a realidade vivida da
interpretação a respeito desse ser. religião desse povo, buscando dar
Muitos acontecimentos são sentido às interpretações dos
explicados a partir dele. A vida do informantes. Medo e coragem fazem
Kanaimî é como vivência em outra esse povo orientar o mundo do
dimensão e que pode influenciar no sentido, mostrando sua identidade e
cotidiano dos Macuxi. Coragem e suas relações com os espíritos.
medo diante do Kanaimî são A interpretação conta o que
comportamentos determinados pela uma coisa é e as abordagens sobre a
violência, sobretudo se os ataques religião podem ser conflitantes,
terminam em morte. contraditórias, fragmentadas e
incongruentes. No entanto, embora
A concepção de interpretação e desarticuladas podemos ampliar a
representação da religião e o perspectiva, manter um
contexto religioso Macuxi distanciamento para que tenhamos
No que se refere à um olhar sobre os conceitos e as
interpretação William E. Paden nos ideias sobre a religião Macuxi. A
informa que só se pode chegar à intenção é superar as questões
religião por meio de um ponto de internas de qualquer religião para ter
vista e será necessário distanciar-se como objeto “a questão dos
das diversas visões para tomar contextos em que é observada e
consciência delas. Uma perspectiva explicada” (Ibid., p. 14).
pode revelar muito sobre uma teoria Ao abordar a religião
religiosa, mas o conjunto de diversas indígena refletiremos sobre o seu
noções sobre ela pode apresentar significado, mesmo que este
uma interpretação multifacetada nos apresente perspectiva fragmentada e
contextos mais diversificados. A contraditória. Estes aspectos não
concepção do mundo depende da invalidam os valores nela presentes.
forma como o vemos, dos óculos do O olhar sobre ela indicará o
observador, do conhecimento e das diferente, o diverso e a interpretação
lentes da cultura. As visões de ampliada a partir de seus contextos
mundo são apenas visões e a vivenciais.
maneira de abordar um assunto, uma A trama interpretativa de
religião ou de se aproximar de um pensar a religião tem horizonte
tema qualquer, são apenas canais, limitado. Isto quer dizer que cada
77
qual – podendo ser as posições do O estudo dos diversos
fiel, do cientista ou do sem religião – esquemas interpretativos nos faz ver
apresenta o tema a partir de sua que a nossa própria visão de mundo
própria perspectiva e as outras é apenas uma visão. Com esta
visões permanecem obscurecidas. consciência é possível visualizar a
Desta forma há uma perspectiva pluralidade de perspectivas e
monoposicionada das teorias entender que a própria interpretação
religiosas e uma interpretação é situada, e a forma como
condicionada por posições e conhecemos o mundo está se
territórios advindos do campo tornando pluralista (Ibid., 2001).
linguístico a qual só é acessível aos Estes conceitos ajudarão a
que as compartilham. “As culturas e melhor compreender o ponto de vista
religiões tradicionais naturalmente do povo Macuxi. A sua visão de
assumiram seus próprios pontos de mundo se constitui de diversos
vista como absolutos” (Ibid., p. 15). espíritos que agem sobre a realidade
A visão do Macuxi pode ser em diversos momentos. Ora agem
monoposicionada, no sentido de para realizar coisas boas – a
ocultar as outras, mas sua produção agrícola e a produção de
interpretação pode não apresentar frutas – ou coisas ruins – as doenças
exclusivismo ou absolutismo, devido e desavenças comunitárias e a
a ausência de dogmas. O contexto da violência.
tradição Macuxi possibilita abertura a Em relação às
outras interpretações. O fato deste representações a serem analisadas
povo abandonar sua religião advém de entrevistas que revelam a
tradicional sem interferir totalmente visão do Macuxi. O Kanaimî é
em sua tradição pode indicar que simbolizado como a estrutura do mal
possui identidade clara em relação a que se manifesta pela doença e pela
outras visões. violência do cotidiano deste povo.
Os esquemas usados pelas Representar o Kanaimî dá ao Macuxi
culturas passam a ser concebidos a chance de interagir com os
como explicação da própria espíritos do seu contexto social.
realidade, colocando-os como o Retirada do senso comum a
centro do universo, criando noção de representação significa a
calendários e ordenando o espaço e o interpretação e simbolização de um
tempo a partir de seus absolutos dado objeto. Refere-se ao
sagrados. Pode-se afirmar com Paden conhecimento prático da vida social
que: “O que não se podia perceber – de sujeitos originados nas relações
tão coesas e autoritárias eram essas comuns da vida cotidiana. As
visões tradicionais do mundo, e tão representações sociais são estruturas
inocentes de uma genuína cognitivo-afetivas que se apresentam
perspectiva transcultural – era que em alguns contextos nas interações
esse esquema 'linguagem/realidade' sociais. Constituem a expressão da
constituía uma interpretação do realidade intraindividual, na qual são
mundo entre centenas de outras exteriorizados os afetos (SPINK,
diferentes” (Ibid., p. 16). 2011).
78
A partir de elementos conteúdo dos depoimentos indica
afetivos, mentais, sociais as algo novo referente aos 5
Os Taurepang
representações sociais integram a comportamentos contraditórios – (Taulipang) são indígenas
do grupo Pemon, e os
cognição, a linguagem e a coragem e medo – dos indivíduos e Ingaricós (Ingarikó)
comunicação dessas relações, da relação destes com a religião pertencem ao grupo
Kapon; ambos da família
intervindo na realidade material, indígena. linguística karib, mesma
social e ideativa. A elaboração das família linguística da qual
pertencem os Macuxi
representações devem ser O Kanaimî na literatura
(AMODIO, et al.,1989).
compreendidas em seus contextos, socioantropológica
pois são eles que as engendram. A O Kanaimî, para a cultura
elaboração das representações dos índios Macuxi da região Raposa
sociais requer uma série de Serra do Sol, situada no Nordeste do
reinterpretações no espaço de Estado de Roraima, é um ente que
interação. Este é o objeto de estudo age para praticar o mal através da
das representações sociais, o qual violência física e da violência
possui seus tempos históricos e “espiritual”. Estas formas violentas se
findam na construção dos caracteriza pelo conjunto de orações
significados sociais. Essa elaboração que o Kanaimî faz para realizar os
se dá pelos conteúdos circulantes na seus atos e a ação violenta. Tal ente
sociedade, pelas forças originadas no pode ser um animal ou um homem,
processo de interação social e as ou que tem o poder de se
pressões para definir as identidades transformar em animal ou homem.
coletivas. O contexto é intertextual Ao se referir aos indígenas
no sentido de possuir um texto Macuxi, Taurepang e Maiongong5,
sociohistórico, advindo da Theodor Koch-Grünberg destacou
subjetividade e um texto que é parte que
das relações sociais. Os conteúdos
das representações sociais podem o conceito de kanaimé desempenha
um papel muito importante na vida
ser remotas, locais e atuais. Nelas há desses índios. Designa de certo modo
o tempo curto, o tempo vivido e o o princípio do mau, tudo o que é
sinistro e prejudica o homem e de que
tempo longo (Ibid.). ele mal consegue se proteger. O
Neste texto interessará o vingador da morte, que persegue o
tempo vivido, visto que o imaginário inimigo anos a fio até matá-lo
traiçoeiramente, esse “faz kanaimé”.
social dos indivíduos entrevistados Quase toda morte é atribuída ao
referem-se ao “processo de kanaimé. Tribos inteiras tem a má
fama de ser kanaimé. Kanaimé,
socialização […] das disposições porém, é sempre inimigo oculto, algo
adquiridas em função da pertença a inexplicável, algo sinistro. “Kanaimé
não é um homem”, diz o índio. Ele
determinados grupos sociais” (Ibid., anda por aí a noite e mata gente, não
2011, p. 99). Ainda que raro com a maça curta e pesada,
como a que se leva ao ombro durante
reconheçamos que o aqui e agora da
a dança. Com ela, parte “em dois
interação pode demandar a todos os ossos” da pessoa que ele
diversidade e a criação, afastando a encontra; só que a pessoa não morre
imediatamente, mas “vai para casa. À
possibilidade da demonstração das noite, porém, fica com febre e, depois
representações mais estáveis e das de quatro ou cinco dias morre”
(KOCH-GRÜNBERG, 2006, p. 70).
permanências no imaginário social, o
79
A importância referida pelo interpretativo do Kanaimî:
antropólogo é uma delimitação da
6
identidade de cada povo em relação Quem experimentou no próprio corpo No entender de Koch-
as agudas febres da Guiana, Grünberg (2006) os
ao Kanaimî. Parece um ser invisível, especialmente a malária com os seus Serengóng teriam se
quando esse autor informa ser o sintomas, entende essa crença dos misturado com os
índios. Taurepang. Provavelmente
princípio do mau. O fato de não “Matar é uma boa ação, e não aqueles foram integrados a
conseguir se proteger em relação a acontece nada com o homem que faz esses, formando uma
isso.” mesma tribo.
ele, o índio desenvolveu uma espécie
Às vezes, o kanaimé veste a pele de
de alerta constante. Delega ao uma onça ou um veado e assusta as
Kanaimî uma série de ações da vida pessoas com ela. Os Seregóng6 e os
Ingarikó no alto Cotingo e a nordeste
cotidiana, o que faz com que haja do Roraima são considerados aqui
uma série de comportamentos entre kanaimé muito maus. Diz-se que
alguns Seregóng se estabeleceram
os Macuxi que se justificam por esse outrora na Maloca Bonita junto à
entendimento. Por exemplo: evita-se Serra do Mairari, que é habitada por
índios Taulipang e Makuschí. Mas que
sair durante noites escuras;
então na condição de kanaimé,
costuma-se ter cuidado maior em mataram várias pessoas sem motivo.
épocas de colheitas, porque nessa Por isso Pitá não quer gente dessas
tribos em sua aldeia (KOCH-
época o Kanaimî pode aparecer em GRÜNBERG, 2006, p. 70).
festas e realizar atos violentos. O
vingador de morte comentado por Numa conversa com os
Koch-Grünberg o caracteriza como xamãs Maiongong (Majonggóng)
uma pessoa e, na frase seguinte, sobre o Kanaimî Koch-Grünberg nos
indica que toda morte é a ele informa ser um chefe Taurepang
atribuída, é configurado como uma (Taulipáng):
doença. A indicação de que Tribos
inteiras possam ser de Kanaimî é Dizem que o pior kanaimé de toda a
região é Dxilawó, chefe de uma aldeia
uma alusão às guerras ocorridas no Taulipáng próxima da missão do alto
passado entre elas e que Surumu, o homem mais odiado
também entre os companheiros da
provavelmente teriam sido tribo. No fundo ele é um homem
comentadas pelos informantes do bastante bom, Manduca acha, mas
antropólogo. A caracterização de sua mão não presta. Ela se separa do
corpo quando ele dorme e encarrega
inimigo oculto dada pelo autor parece todos os maus espíritos possíveis, na
ser referência a um tipo de ser que forma de onça, cobras gigantescas
etc., de fazer mal às pessoas. A
ataca com um pedaço de madeira epidemia de febre que grassou aqui e
quando as pessoas estão sós e nos arredores durante a época das
chuvas é atribuída a esse pobre
andam a noite. O fato de quebrar os diabo, assim como a doença da
ossos, não matar imediatamente e a encantadora filhinha de Pirokaí. Se a
criança morresse, diz o pai, ele
vítima sentir febre antes de morrer,
mataria Dxilawó. Mas isso é coisa
aparecem na grande maioria dos remota, pois meu Pirokaí não é
depoimentos entre os indígenas da nenhum herói (KOCH-GRÜNBERG,
2006, p. 79).
região.
A respeito de alguns destes A questão da mão como uma
aspectos o próprio Koch-Grunberg força separada do resto do corpo é
também faz algumas observações um aspecto diferente, mas pode
importantes para o processo explicar o fato de muitos Kanaimî
80
serem pessoas comuns e conhecidas O Majonggóng, de novo, está
terrivelmente fanfarrão: diz que, em 7
e que subitamente se transformam sua terra, não há piuns, nem
Um indígena informante
de Koch-Grünberg.
em outra pessoa, tanto na forma da carapanãs, nem kanaimé. Que os
Arekuná do Caroni “fazem kanaimé”,
ação moral quanto no que ela fazia assim como os Ingarikó e os
costumeiramente e deixou de fazer. Serengóng e os Pischaukó. Que os
Quando se transformam em animais, Ingarikó-kanaimé também
envenenaram o inglês. Diz que em
os Kanaimî nos revelam suas sua terra tudo é muito melhor.
possibilidades e são considerados (KOCH-GRÜNBERG, 2006, p. 111)
82
Do relato de José entende-se visto que os fatos relatados
que o Kanaimî é uma espécie de ocorreram em caminho habitual 10
Tradução nossa de: Les
animal fantástico, semelhante a um frequentado pelo depoente. Como tribus mansas ont une peur
terrible de se bêtes fauves,
cachorro, mas que corre de pé como José se sentiu seguro na presença do avec lesquelles elles
um ser humano. Esta característica Kanaimî? Possivelmente pelo fato n'entretiennent aucune
relation, si ce n'est celle de
de ter um poder de se transformar dele conhecer muito bem a região e victime à assassin.
em animais e homens aparecem nas já ter ouvido falar de muitas histórias
11
Refiro-me ao universo de
interpretações de Koch-Grünberg: Às e que diante dele, ter medo seria
21 indivíduos entrevistados,
vezes o Kanaimî vestia-se na pele de muito pior. do total de cerca de 300
jaguar para assustar a vítima que se Maria relatou que na sua moradores das Malocas
Cantagalo e Maturuca, que
desesperava, ficava doente e morria experiência de ter visto a Kanaimî se representam o Kanaimî
rapidamente (apud CIRINO, 2008). sentiu mal: “porque ele me assustou. como um ser extremamente
perigoso do qual a maioria
Henri A. Coudreau afirma que “as Me senti mal. Nunca me espantei sente muito medo. Apenas
tribos mansas possuem um terrível com o Kanaimî, aí passei mal José e outros dois
entrevistados afirmaram ter
medo dos animais selvagens, com os mesmo. Daí fiquei com medo desse enfrentado o Kanaimî por
quais há relação [com os canaemés], Kanaimî, de andar de noite.” Ela alguns instantes.
de se tornarem vítima do assassino” contou que o seu pai foi quem a
(COUDREAU, 1886, p. 8).10 A curou e que o fato já fazia muito
interpretação de Edson Soares Diniz tempo. Ela passou um mês doente e
informa que “os canaimés podiam que sentia “fraqueza no corpo”. Ela
chegar no recinto em forma de destacou ainda o fato de o Kanaimî
onças, veados, macacos, pássaros, ter apenas a espantado, mas que
tartarugas, cobras e índios de alguma tem “Kanaimé que deixa morto”
outra tribo” (DINIZ, 1971, p. 69). (RABELO FILHO, 2012, p. 179).
A atitude de José, em A maneira como Maria
destacar que o seu filho viu, serve discorreu sobre os fatos, sendo o
para tentar provar a sua afirmação. Kanaimî extremamente mal.
No entanto, a maioria dos casos de Podemos interpretá-lo como o ser
pessoas que encontraram o Kanaimî que age por suas habilidades
estava só e nunca comunicavam aos espirituais. Quando ela afirma se
outros o que havia ocorrido. As sentir mal com a sua presença. O
histórias dos Kanaimî, às vezes, são “susto” caracteriza o tipo de ação
ouvidas pelos Macuxi com que o Kanaimî usou para atacá-la. É
desconfiança, a não ser que a pessoa uma ação considerada violenta, mas
consiga provar o fato ocorrido. com sua força e seu poder
Quando alguém morre por doença demandados pela suposta
desconhecida, esta é atribuída ao superioridade espiritual que ele
Kanaimî. possui e que a usa para o mal.
A coragem de José não é Outro fato importante é o
comum, pois a atitude de enfrentar o fato de ter ocorrido à noite. Sabe-se
Kanaimî, em diversos casos que o Kanaimî realiza os seus males
analisados, aparecem poucas durante à noite, pois se ocorresse
vezes.11 Esta representação indica durante o dia seria reconhecido. O
um ser estranho que invade o espaço medo provocado pelo “susto” do
geográfico conhecido pela vítima, Kanaimî e a sua prática de violência
83
leva os Macuxi a saírem pouco de provocar a violência física ou
casa, especialmente nas noites muito espiritual nos integrantes das 12
Neste período ocorrem
escuras e na época das frutas e da comunidades indígenas Macuxi e festas frequentes, pois o
povo Macuxi tem o hábito
colheita da mandioca, em geral entre povos vizinhos. A sua ação é de produzir as bebidas
novembro e janeiro.12 identificada quando o indivíduo típicas e convidar a todas
as malocas vizinhas.
Maria contou que obteve a adoece sem explicações e quando
sua cura com muitas dificuldades. O sofre ataques de violência física, no
seu pai era um rezador e teve seu qual o Kanaimî realiza certos rituais,
atendimento com rapidez, o que podendo a pessoa chegar à morte. As
explica o fato de ela ter sido salva. vítimas de seus ataques quase
Caso o ataque do Kanaimî ocorra em sempre estão sós, de passagem em
lugar distante, onde não haja pajé ou lugares ermos, ou lugares habituais
rezador, dificilmente a pessoa escapa isolados, mas sempre em locais
da morte. No caso, Maria ficou escuros e à noite.
doente e sentiu fraqueza. Tal fato O Kanaimî também pode ser
revela que os poderes espirituais do visitante de lugares distantes, o qual
Kanaimî agiram apenas através do possui uma linguagem estranha, que
“espanto”, do “susto”. Se o Kanaimî fala o idioma Macuxi, mas com
quisesse ou pudesse, poderia ter sotaques. Os índios Macuxi de
provocado sua morte, ou ainda ter Roraima afirmam que eles podem ser
usado de violência física. moradores da Guiana, lugar que
O Kanaimî neste caso possui grande quantidade de plantas,
funcionou “como o bandido dos as quais são atribuídos diversos
brancos” (ARAÚJO, 2006, p. 138). poderes de que os Kanaimî são os
Ele teve o propósito de causar males seus controladores. Eles podem ser o
à saúde de Maria. Tal medo causado indígena de outra tribo, que
pelas perseguições levam os querendo se vingar dos Macuxi
Macuxi a saírem sempre invadem suas casas, se aproveitam
acompanhados. No momento em que de suas roças e fogem para as
Maria foi atacada estava só, fato que montanhas e florestas deixando para
revela a atitude considerada mais trás rastros de seus malfeitos. Podem
comum em relação aos ataque dos ser o próprio Macuxi que conquista a
Kanaimî. confiança de suas vítimas, indivíduos
das comunidades, e que aos poucos
Considerações finais vai se revelando uma pessoa
O contexto religioso do violenta, chegando a matar com o
Kanaimî refere-se também aos seus intuito de realizar ritual sarcófago
aspectos culturais, sociais e próximo ao cemitério onde sua vítima
antropológicos, visto que seria é enterrada.
impossível separar as suas Existem representações que
interpretações destes aspectos. indicam o Kanaimî como seres de
O Kanaimî pode ser um ente tribos desconhecidas e isoladas que
espiritual que age nas pessoas ou se rebelam contra a forma de viver
nos animais – em especial no dos outros, porque tiveram seus
Tamanduá – com o intuito de familiares mortos ou doentes, e que
84
acreditam que suas ações maldosas diante do Kanaimî sejam
poderiam salvar os seus parentes. orientadores diretos dos ritos e
Outra ainda afirmam ser um animal, manifestações religiosas deste povo,
ou gente que se autotransforma em no entanto, isto pareça ser possível.
animal para fugir pelos campos e Interpretamos que o Kanaimî,
encontrar locais de festas para se representado em seu contexto, pode
divertirem bebendo caxiri e causando influenciar nos comportamentos dos
confusões, brigas e discórdias entre indivíduos. A relação entre o Kanaimî
os indivíduos das comunidades e os medos provocados por ele
Macuxi. projetam à cultura Macuxi diversos
Quanto à questão identitária comportamentos – não andar sós à
dos Macuxi, o Kanaimî integra o noite, não pescar só, evitar sair em
conjunto de seres existentes na sua noites escura – e estes podem ou
cultura. A manifestação religiosa não vincularem-se aos ritos de
deste povo indica que o Kanaimî pajelança. Isto significa que a
simboliza a morte em potencial, representação dos Macuxi, acerca do
representa o perigo que a vida lhes Kanaimî, delineia diversos sentidos à
impõe. Não está em nosso objetivo sua existência.
defender que o medo e a coragem
Referências
AMÓDIO, Emanuele, et al., Índios de Roraima: Macuxi, Turepang, Ingarikó,
Wapixana. Coleção Histórico-antropológica n. 1, CIDR – Centro de Informação
Diocese de Roraima, Brasília: Coronário, 1989.
ARAÚJO. Melvina. Do corpo à alma: missionários da consolata e índios Macuxi em
Roraima. São Paulo: Humanitas, 2006.
COUDREAU, Henri Anatole. Voyage au Rio Branco, aux Montagnes de la Lune, au
haut Trombetta (mai 1884—avril 1885). Rouen: Imprimerie de Espérance
Cagniard, 1886.
DINIZ, Edson Soares. O xamanismo dos índios Makuxí. In: Journal de la Société
des Américanistes. Tome 60, 1971, p. 65-73.
GUARESCHI, Pedrinho. JOVCHELOVITCH, Sandra. Textos em representações
sociais. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
KOCH-GRÜNBERG. Theodor. De Roraima ao Orinoco: v. I Observações de uma
viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos 1911 a 1913.
Tradução Cristina Alberts-Franco. São Paulo: UNESP, 2006.
SANTILLI, Paulo. Povos indígenas no Brasil. 2004 Disponível em:
<http://pib.socioambiental.org>, Acesso em 30/03/2016.
RABELO FILHO, Manoel Gomes. A representação social do Kanaimî, do Piya'san e
do Tarenpokon nas Malocas Canta Galo e Maturuca, 2012. Dissertação
(Mestrado). Universidade Católica de Pernambuco. Programa de Mestrado em
Ciências da Religião, Recife, 2012.
SPINK, Mary Jane. Desvendando as teorias implícitas: uma metodologia de análise
das representações sociais. In: GUARESCHI, Pedrinho. JOVCHELOVITCH, Sandra.
Textos em representações sociais. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
85
RECEBIDO EM 07/01/2016
APROVADO EM 02/02/2016
86
O ESTADO NOVO E OS POVOS context as well as the approach of some 1
Antropologicamente a
INDÍGENAS: O SILÊNCIO DAS of them with government policies.
noção de “Terra Indígena”
PALAVRAS Demonstrated even as the newspaper A diz respeito ao processo
Manhn informed its readers about the jurídico-político conduzido
March to the West. Government policies pelo Estado. Já a de
Zeneide Rios de Jesus “território Indígena”
have impacts on indigenous peoples, remete à construção e a
Professora da Universidade Estadual such raids and taken from their vivência, culturalmente
de Feira de Santana/UEFS. territories. Also showed silencing that still variável, da relação entre
zeneiderios@hotmail.com uma dada sociedade e sua
prevails in Brazilian history and teaching base territorial, Cf.: Gallois
of history in relation to indigenous issues (2011).
Resumo: relating to periods beyond the colonial
Esse texto tem por objetivo apresentar context. It was concluded that the
alguns aspectos da política de colonização Brazilian government used the press to
denominada de Marcha para o Oeste, legitimize the colonization policy and
efetivada durante o Estado Novo, e seus silence about the violent advance on
impactos sobre as populações indígenas. indigenous lands.
Pesquisa qualitativa de caráter Keywords: Indigenous; Estado Novo;
bibliográfico e documental. Os resultados Silencing.
apontaram as condições que favoreceram
uma atuação expressiva dos intelectuais
nesse contexto, bem como a INTRODUÇÃO
aproximação de alguns deles com as No início da década de 1940,
políticas governamentais. Demonstraram
o Estado brasileiro, sob a presidência
ainda como o jornal A Manhã informava
de Getúlio Vargas, formulou uma
aos seus leitores sobre a Marcha para o
Oeste. As políticas governamentais
política de colonização que visava
tiveram impactos para as populações povoar e desenvolver a região
indígenas, a exemplo de invasões e Centro-Oeste. Esse projeto foi
tomadas de seus territórios. Também denominado de Marcha para o Oeste
mostraram o silenciamento que ainda e contou com uma ampla divulgação
prevalece na historiografia brasileira e no da imprensa, por intermédio do
ensino de história, em relação às jornal A Manhã, que criou uma
temáticas indígenas referentes aos
coluna diária para tratar desse tema.
períodos para além do contexto colonial.
Por intermédio de
Concluiu-se que o governo brasileiro
utilizou a imprensa para legitimar a
intervenções políticas, legais e
política de colonização e silenciar acerca ideológicas, o Estado brasileiro
do avanço violento sobre as terras adentrou vários territórios indígenas,
indígenas. subjugando muitas etnias que até
Palavras-Chave: Indígenas; Estado aquele momento haviam se mantido
Novo; Silenciamento. longe do alcance dele. Órgãos
responsáveis pela formulação e
Abstract:
aplicação das políticas indigenistas, a
This text aims to present some aspects of
exemplo do SPI foram fundamentais
settlement policy called March to the
West, carried out during the Estado Novo,
para facilitar o acesso do Estado às
and their impact on indigenous peoples. terras indígenas1.
Qualitative research of bibliographic and Com a Marcha para o Oeste o,
documentary character. The results Estado Novo não só lançava um
showed the conditions that favored a projeto político, mas também um
significant acting of intellectuals in this discurso cultural sustentado por
87
intelectuais como Cassiano Ricardo e o silenciamento que o jornal
muitos outros. Esse discurso promoveu em relação à presença das
promovia uma invisibilidade dos populações indígenas nos territórios
grupos indígenas, legitimando um devassados pela Marcha, largamente
projeto que resultou na intervenção referidos no jornal como “espaços
direta sobre as comunidades vazios”.
indígenas que tiveram seus modos de Por meio do exemplo dos
vida devassados e suas terras Xavante, povo alcançado pelo projeto
espoliadas. de colonização do Estado Novo,
Este texto explora as relações analisamos os efeitos dessa política
entre o Estado Novo e os povos para as comunidades cujos territórios
indígenas, por meio da Marcha para o encontravam-se na região Centro-
Oeste. Seus objetivos são orientados Oeste. Apontamos a atuação de
pela busca de uma compreensão em órgãos relacionados com a questão
torno de aspectos fundamentais indígena, como o SPI, para a
nesse processo, a exemplo das efetivação dos objetivos propostos
formas de participação da imprensa, pela Marcha para o Oeste, e
dos intelectuais e dos órgãos avaliamos a forma como as
responsáveis pela política indigenista, comunidades atingidas posicionaram-
bem como os impactos dessa política se frente ao projeto e demonstraram
para os povos indígenas. Nesse os limites dessa política de Estado.
sentido, apresentamos considerações Neste texto, a questão do
respaldadas em uma breve pesquisa silêncio nos motivou a fazer uma
realizada no jornal A Manhã e numa avaliação tanto no que se refere ao
bibliografia sobre esse tema. silenciamento promovido no contexto
Consideramos a atuação dos da política aqui examinada quanto o
intelectuais junto ao governo, como silêncio que ainda impera na
forma de identificar a colaboração historiografia e no ensino de História,
dessa categoria para difundir e mantendo temas como esse restritos
legitimar esse projeto por meio da às lacunas que caracterizam, em boa
imprensa e de um debate sobre o parte, as questões indígenas. Ao
Brasil que ganhou força no pós 1930, incluir considerações nesse sentido, o
conferindo a esse grupo um lugar de texto pretende contribuir com as
destaque na sociedade brasileira, reflexões que nos últimos anos têm
comportando, em muitos casos, uma se voltado para pensar os desafios da
atuação direta no governo, História Indígena e para propor
especialmente após 1937, com a escritas e leituras que resultem em
criação do Estado Novo. novas interpretações sobre esses
Analisamos algumas edições povos, desmontando o projeto de
do jornal A Manhã, sobretudo as que apagamento da presença indígena
circularam no ano de 1941, quando que perpassou a historiografia
esse periódico enfatizou a Marcha brasileira desde o século XIX até os
para o Oeste, fazendo uma ampla anos setenta do século XX, mas que
propaganda desse projeto e ainda hoje mantém alguns dos seus
legitimando as ações ideológicas do efeitos.
Estado. Nessas análises, apontamos
88
O BRASIL NOS ANOS 1930: muito tempo fossem reelaborados no 2
Essa década apresenta
INTELECTUAIS EM AÇÃO E período entre guerras de forma a se desafios, na medida em que
APROXIMAÇÕES COM O ESTADO tornarem politicamente úteis e temos, por um lado, um
movimento tido como
As falas a seguir foram servirem às necessidades do período, “revolução”, que alterou
publicadas na obra Introdução à a exemplo do nazismo e do fascismo significativamente o cenário
político brasileiro e, por
Realidade Brasileira, lançada no ano (BERTONHA, 2000). outro, a constituição de um
de 1933, de autoria de Afonso Arinos Nesse contexto marcado por Estado autoritário com uma
forte ampliação do caráter
de Melo Franco (1905-1990), com o incertezas, crises, mudanças e uma
intervencionista sobre a
objetivo de indicar o papel dos intensa polarização ideológica, os sociedade. Trata-se de um
intelectuais brasileiros no conturbado intelectuais brasileiros tiveram período de modernização
econômica e social, mas há
contexto dos anos 1930: grande expressividade e os estudos também uma convivência
sobre o Brasil ganharam uma nova com o que podemos chamar
de “tradicional”, como a
Donde se conclui que a dinâmica. Trata-se de um período em permanência de práticas
responsabilidade dos intelectuais
cresce na proporção da facilidade da que foram criadas políticas públicas, clientelistas, ainda que estas
não tenham permanecido
sua ação [...] Os povos atrasados sobretudo durante o Estado Novo, com o mesmo vigor e
como o nosso, sem capacidade de
defesa ou de reação, sem livre
com vistas a regulamentar as prestígio que possuíam
relações de trabalho, a educação, a antes. Tem que se
arbítrio, tomam o destino que lhes
acrescentar ainda a violência
indicam aqueles que possuem a única saúde pública, a questão agrária, a física e simbólica exercida
força ativa da sociedade que é a força
questão indígena e a cultura. Com pelo Estado.
espiritual. (FRANCO, 1933, p. 6).
esta última, buscou-se privilegiar a 3
Listamos, nas referências
A década de 19302 tem sido “identidade nacional brasileira”. deste texto, uma literatura
na qual o leitor pode
apontada como um período singular, Nesse caso, uma das medidas encontrar um panorama
cuja característica mais significativa adotadas foi a criação de uma política desse Mercado Editorial, que
seria a ambiguidade. Marcada por nos fornece informações
cultural que resultou em grande
importantes sobre as
crises e mudanças, ela se caracteriza destaque para os intelectuais editoras e seus respectivos
também por uma significativa ênfase (GOMES, 2007). editores, bem como das
publicações, a exemplo das
na circulação de ideias por meio de Esse cenário nacional e várias Coleções publicadas
intelectuais e de um mercado internacional aguçou os na época. Cf.: Chaves
(2011), Dutra (2004),
editorial crescente e renovado3. questionamentos e incentivou ainda Franzini (2006), Pontes
A crise do capitalismo que mais as produções dos intelectuais (1988).
assolou o mundo nas primeiras brasileiros que, aliás, desde décadas
décadas do século XX foi vivida e anteriores, com destaque para as
sentida de formas diferenciadas nos primeiras do século XX e a atuação
diversos países. No Brasil, essa crise dos Modernistas, eram instados a
impactou e condicionou as opções de pensar o país. A produção ensaística
governo durante vários anos. Seus destinada, na maioria das vezes, a
reflexos somaram-se aos impactos refletir sobre problemas cruciais do
advindos do Movimento de 1930 e Brasil, a exemplo do “atraso
deram o tom das profundas econômico e social”, ganhou maior
transformações que marcariam o país robustez a partir da década de 1930
em diversas áreas. De múltiplas (GOMES, 2012), quando se observou
dimensões, pois atingia aspectos não só maior interesse por esses
econômicos, políticos, sociais e estudos, mas também condições
culturais, a crise do capitalismo favoráveis ao seu desenvolvimento,
permitiu que ideias, conceitos e além de propiciarem a criação de
problemas existentes na Europa há Universidades (FÁVERO, 2006) e o
89
crescimento significativo do mercado intelectuais brasileiros. Dividindo
editorial (HALLEWELL, 1985). espaços nas páginas da imprensa
Esse contexto complexo e escrita, intelectuais de direita e de
multifacetado, que exigiu dos esquerda escreviam sobre seus
intelectuais brasileiros um interesse projetos para o Brasil. Colaborando
crescente pela realidade e pela em periódicos modernistas, revistas
formação do Brasil, requeria, de cultura, publicações oficiais ou
entretanto, uma potencialização nas não, a intelectualidade que girava em
formas de circulação dos saberes torno do governo ou não, encontrava
produzidos. O incremento do espaço para fazer coro aos projetos e
mercado editorial foi fundamental ideias que acreditavam ser o melhor
nesse sentido, resultando, na década para o país e para seus interesses,
de 1930, em um momento fossem eles pessoais ou de classe.
expressivo, especialmente no tocante Encontraram também meios
às publicações que visavam entender de expressarem o que pensavam em
e explicar o país, com ênfase em sua tempos difíceis, marcados por uma
formação e em seu povo. conjuntura de guerras e crescimento
Nesse período, a imprensa das soluções autoritárias. Alguns,
manteve seu papel fundamental, valendo-se de formas “dissimuladas”,
possibilitando aos intelectuais ousaram discordar, ainda que
brasileiros posicionarem-se acerca indiretamente, do pensamento
dos grandes debates sobre o país, autoritário instalado no pós 1937
fazendo, com isso, circularem suas (LUCCA, 2011); outros utilizaram
ideias. Essa imprensa, entendida aqui esses espaços para legitimar as
como divulgação sistemática de políticas do governo ou os projetos
notícias geralmente veiculadas por que conceberam como primazia do
jornais e revistas, destacou-se como grupo ao qual pertenciam. Dentre os
espaço de agregação, que instituía veículos de comunicação que
redes específicas entre os permitiram essa cooperação entre
intelectuais. Os vários jornais e intelectuais e governo, o Dossiê Era
revistas, alguns com vida breve, Vargas, publicado no site da
outros dotados de longevidade, Fundação Getúlio Vargas (ca. 2016),
constituíram-se em espaços tanto de elenca as revistas Ciência Política,
circulação das ideias e produções dos Estudos e Conferências, Dos Jornais,
intelectuais, dos projetos Brasil Novo, Planalto e a Revista
governamentais, quanto de embates Cultura Política. Esta última destaca-
em torno dos projetos políticos e se pelo objetivo de explicar e
questões artístico-literárias da época divulgar as transformações operadas
(LUCCA, 2011). no país via Estado Novo.
Atendendo à heterogeneidade O jornal A Manhã compõe
que marcava o grupo de intelectuais, esse grupo de publicações que
os jornais e as revistas no pós 1930 divulgavam os projetos do Estado
também se configuraram como Novo, dando legitimidade aos atos
espaços diversos que refletiram a governamentais. Sob a direção do
complexidade do multifacetado jornalista, poeta e ensaísta Cassiano
cenário em que se moviam os Ricardo (1895-1974), um dos
90
intelectuais que colaborava com o de contribuírem para a formação de
Estado, esse periódico difundia a uma memória coletiva, na medida 4
Exemplo disso pode ser
ideologia do Estado Novo para toda a em que suas ideias circulavam em encontrado na Edição 13 do
jornal A Manhã, de 23 de
sociedade. variados espaços e passavam a ser agosto de 1941, quando foi
Na seção seguinte, apropriados de diversas maneiras, divulgado o Programa
Cultural do Ginásio Piedade
demonstraremos a forma como esse especialmente pela via da oralidade. transmitido pelo rádio. Esse
jornal divulgou a Marcha para o Conforme Schwarcz e Starling programa, organizado pelo
professor Gama Filho,
Oeste, política de colonização e (2015), a natureza do Estado Novo ficava a cargo dos alunos e
ocupação do interior do Brasil, era autoritária, modernizante e defendia a Marcha para o
Oeste seguindo a linha do
atendendo ao objetivo de divulgar os pragmática. Como qualquer governo
jornal. Outros exemplos
projetos do governo de Getúlio de força, dependia do consentimento são: “Movimento
Vargas, para promover, junto à da maioria da população. Para atingir Oesteano”, criado em São
Paulo, envolvendo
população brasileira, a aceitação e o esse objetivo, o governo investiu em estudantes e professores,
apoio aos referidos projetos. um aparato capaz de legitimar e em sua maioria, das
Faculdades de Direito e
difundir seu ideário político. O Medicina Veterinária da
A “MARCHA PARA O OESTE” NAS Departamento de Imprensa e Faculdade Mackenzie, e
“Cruzada Rumo ao Oeste”
PÁGINAS DO JORNAL “A MANHÔ Propaganda (DIP) constituía-se em
movimento sediado no Rio
A instituição de um governo uma máquina bem planejada, capaz de Janeiro.
autoritário, em 1937, trazia a de interferir em todas as áreas da
necessidade de criação de um cultura brasileira. Uma das ações do
aparato discursivo voltado para a DIP foi a exploração do potencial da
difusão de sua ideologia. A produção imprensa escrita, criando publicações
dos intelectuais foi fundamental para com o propósito de divulgar e
sustentar e legitimar as ideias que legitimar seus projetos.
embasavam a políticas Os jornais e revistas
governamentais desse momento. possibilitaram que essa imprensa
Jara (2011) analisou a estreita fosse utilizada para elaborar os
relação entre intelectuais e política, elementos fundamentais da ideologia
quando estudou o papel dos do Estado Novo, de modo a serem
discursos públicos na construção das compreendidos pelos leitores. Nas
identidades indígenas no México. matérias, simplificavam-se ideias e
Para essa autora, esse discurso as apresentavam de forma que os
público é conformado pela junção do leitores se sentissem atraídos por
discurso político e a produção elas. A apresentação visava a
intelectual, o que nos leva a refletir compreensão dos projetos políticos,
sobre essa produção e a formulação mas pretendia também suscitar
de projetos e políticas públicas, emoções capazes de envolver os
implicando na associação dos leitores de forma que se sentissem
intelectuais com o poder, mesmo que partes daqueles projetos4.
esses não ocupem cargos nas O Jornal A Manhã cumpria
instituições e nos órgãos essa função, ao divulgar o projeto da
governamentais. Marcha para o Oeste. Em 1941
No contexto aqui referido, os iniciava sua circulação no Rio de
intelectuais podiam, sim, influenciar Janeiro, exibindo a coluna intitulada
em decisões importantes que “Marcha para o Oeste”. Daquele ano
afetavam a vida da população, além até julho de 1945, esse periódico foi
91
dirigido por Cassiano Ricardo, autor país e o governo. Dentre elas,
5
da obra também intitulada de Marcha destacamos as referentes à Marcha Esse jornal diário
contava com
para o Oeste, publicada em 1940, na para o Oeste, cujas matérias eram
colaboradores famosos,
qual faz uma analogia entre a tratadas numa coluna exclusiva, entre eles Gilberto Freyre,
organização do bandeirantismo do geralmente acompanhada de uma Afonso Arinos de Melo
século XVI e a política de colonização sugestiva ilustração, que trazia o Franco, Vinicius de Morais,
Cecília Meireles, Ribeiro
formulada pelo Estado Novo. O jornal mapa do Brasil e representava
Couto, entre outros. Para
A Manhã era um órgão oficial do iconograficamente os elementos que maiores informações ver o
Estado destinado a divulgar as caracterizavam a referida marcha, link “A era Vargas dos
diretrizes propostas pelo regime para como podemos observar na anos 20 a 1945”, na
página da Fundação
um público diversificado.5 reprodução a seguir:
Getúlio Vargas ([ca.
Em sua primeira edição, A 2016]).
Manhã trazia várias notícias sobre o
101
consequentemente, na tomadas Garfield (2011) também
dessas áreas. chama a atenção para o fato de que
O Estado brasileiro, ao o encarregado do Posto precisava
instituir um mercado de terras recorrer a estratégias que
altamente valorizado nas regiões facilitassem o trato com os indígenas,
propagadas pela Marcha para o a exemplo de um tratamento
Oeste, permitiu que especuladores diferenciado com os chefes nativos e
fundiários experimentassem as seus parentes, por meio da oferta de
possibilidades de incorporar grandes “presentes”, acreditando que assim
áreas territoriais ao seu domínio. poderia acelerar o processo de
Nesse processo, a política omissa do integração indígena. Entretanto, o
SPI, cuja premissa baseada na SPI, com sua estrutura de Posto
proteção representou sérias Indígena de onde irradiava a política
ambiguidades, abriu espaço para que indigenista, não foi capaz de lidar
se instituísse um grande mercado de com a complexidade que implicava a
terras naquelas regiões antes chamada “pacificação” dos indígenas
ocupadas por muitas etnias e o caso dos Xavante é emblemático.
indígenas. Além de todas as dificuldades
Se tomarmos como referência apontadas no campo das estratégias
os estudos de Garfield (2011) sobre políticas de resistência e os
os Xavante, veremos que a política equívocos da conduta do SPI, as
do SPI junto a esse povo visava, rivalidades internas entre os Xavante
sobretudo, transformá-lo em recrudesceram as dificuldades do
trabalhador, política que felizmente órgão.
não pôde ser considerada exitosa. Lembramos que, na coluna
Conforme esse autor, as investidas Marcha para o Oeste, havia um
do SPI para “[...] ‘fixar’ os índios em grande investimento para incutir no
seus lotes, arregimentar trabalho ou brasileiro o amor pela terra e a tudo
conter comportamentos ‘antissociais’” que se relacionasse ao campo, ao
(GARFIELD, 2011, p. 347) não foram ponto de se propor um programa de
bem-sucedidas. O autor citado educação que disseminasse a
constatou que, na década de 1950, educação rural (O PROGRAMA,
os Xavante eram observados por 1941). No caso dos indígenas que
uma antropóloga do Museu Paulista, eram contatados nas investidas feitas
que relatou as dificuldades que o em seus territórios após a Marcha,
Posto do SPI enfrentava, entre elas esperava-se transformá-los em
as alegações de que os indígenas trabalhadores disciplinados,
realizavam suas tarefas de má verdadeiros agricultores. A mesma
vontade, nunca estavam dispostos a lógica foi direcionada para os
usar os instrumentos de metal para o Xavante, porém, todas as questões
trabalho agrícola, dormiam no que citamos com base em Garfield
trabalho, enquanto outros ficavam (2011) contribuíram para que os
em vigília, evitando que o guarda do esforços do governo federal não
posto os surpreendessem, além de tivessem resultado. Esse autor
abandonarem suas tarefas sempre conclui que “[...] os líderes indígenas
que o alarme de caça soava. haviam aceitado as mercadorias
102
oferecidas no processo de distinções étnicas e para manter ou
‘pacificação’, mas rejeitaram os retomar suas terras, coloca em
esforços para remodelar seus evidência as limitações de um projeto
padrões de subsistência” (GARFIELD, orquestrado pelo Estado brasileiro.
2011, p. 348). Apesar dos avanços para subordinar
A afirmação do Estado sobre a e esfacelar esses grupos, o Estado
existência de espaços vazios tornou- nunca deixou de ser desafiado e nem
se uma falácia. Quando, em 1940, pode colocar-se como amplamente
Getúlio Vargas declarou em Goiânia, vitorioso, na medida em que, apesar
no lançamento da Marcha para o de todas as perdas que podemos
Oeste, que “O Brasil é um apontar, as populações indígenas
arquipélago formado de algumas vêm crescendo. Cerca de 900 mil
ilhas entremeadas de espaços vazios” indígenas, pertencentes a 305 etnias
(O OESTE, 1941, p. 9), o governante, e falantes de 274 línguas, conforme
deliberadamente, não mencionou dados do Instituto Brasileiro de
que, nesses “espaços vazios”, estava Geografia e Estatística (2012),
uma presença indígena. Entretanto, continuam desafiando os projetos de
teve que verificar mais tarde que exclusão perpetrados pelo Estado e
essa população, apesar de pela sociedade brasileira.
atropelada, solapada, desrespeitada, Essa presença indígena
violentada, estava disposta a mostrar também deslegitima toda a produção
os limites do domínio do Estado intelectual que produziu, ao longo de
brasileiro. O fracasso das políticas do séculos, uma invisibilidade que lhes
SPI configurado no exemplo dos negou a condição de sujeitos,
Xavante reflete, como nos alerta relegando-os ao papel de meros
Garfield (2011), tanto os limites transmissores de uma herança ao
dessa política quanto a persistência povo brasileiro, como se esses povos
dos indígenas em defenderem suas tivessem o passado como seu lugar
formas tradicionais de vida. de direito. No contexto da Marcha
A Marcha para o Oeste, ao para o Oeste, intelectuais que se
propor uma política de colonização moviam nas redes de sociabilidades
em pleno século XX, já nos dava a que lhes emprestavam grande
certeza de que o processo de expressividade reforçaram essa
colonização empreendido nos séculos invisibilidade, por meio da
anteriores não tinha se encerrado. A participação direta nos quadros do
resistência dos vários grupos governo ou de produções veiculadas
indígenas dispostos em todo o em livros, jornais, revistas,
território nacional, independente do conferências e aulas. Ao legitimarem
alcance da Marcha, e a luta cotidiana o discurso dos espaços vazios e
desses povos implica numa noção de silenciarem sobre os indígenas
que o processo de colonização no dispostos por todo o território
Brasil é contínuo. nacional, elegeram o discurso da
A persistência dos povos mestiçagem como mito fundador da
indígenas, que hoje se mostram nossa nacionalidade e invisibilizaram
articulados politicamente e lutam a presença indígena.
cotidianamente para garantir suas
103
O DESAFIO PERMANENTE: ela ainda está presente na sociedade
QUEBRAR OS EFEITOS DO brasileira.
SILÊNCIO DA HISTORIOGRAFIA Se prosseguirmos com as
BRASILEIRA NO ENSINO DA perguntas e destiná-las aos milhares
HISTÓRIA de alunos que fizeram ou fazem seus
Hoje, decorridos quase oito cursos de licenciatura em História,
anos da promulgação da Lei no indagando-lhes quais aspectos
11.645/08 (BRASIL, 2008), que relativos às sociedades indígenas eles
tornou obrigatório o ensino da estudaram na História do Brasil, que
história e da cultura dos povos não se referem ao período colonial,
indígenas nas escolas brasileiras, se também não teremos grandes
fizermos um rápido levantamento na surpresas. Certamente, muitos deles
maioria dos programas de História do mostrarão total desconhecimento de
Brasil destinados aos cursos de qualquer referência aos indígenas em
licenciatura em História, não nos episódios que são incluídos em
surpreenderemos se não qualquer programa de disciplina, a
encontrarmos qualquer referência às exemplo do processo de construção
questões indígenas em período da nação, da Guerra do Paraguai e
posterior ao colonial. Podemos dos vários movimentos que
verificar situação semelhante na sacudiram o Império.
maior parte dos livros didáticos de Em relação à história da
História destinados ao ensino República, devem apontar o chamado
fundamental e médio, mesmo os que processo de modernização
foram publicados após 2008. Todas empreendido no governo Vargas,
as questões referidas neste texto mas, certamente, os indígenas não
permanecem, na sua maior parte, serão citados nele. Também
silenciadas. recordarão os processos
Se indagarmos aos milhares desencadeados durante o regime
de professores que hoje atuam nas militar, mas se mostrarão alheios aos
escolas de ensino fundamental e impactos tanto do regime quanto das
médio, e até mesmo entre políticas econômicas sobre as
professores do ensino superior, qual comunidades indígenas. Isso só para
história indígena embasou seu ficarmos nos temas mais usuais e
processo de formação, certamente constatarmos a imensa lacuna que
teremos respostas muito próximas. A ainda prevalece sobre a participação
maioria, certamente, recordará as indígena nesses episódios, apesar do
comemorações do dia do índio, crescimento dos estudos dessa
incluindo em suas lembranças o participação, mas que ainda não
cocar de papel que usou e o rosto chegaram ao âmbito do ensino
pintado. Lembrarão também do fundamental, do médio e, com
quanto conjugaram o verbo no algumas exceções, do superior.
pretérito ao se referirem aos Essa constatação, no entanto,
indígenas. Tais lembranças nos não é nova. Nos últimos anos, os
informam sobre qual memória foi estudos voltados para as histórias
construída sobre esses povos e como dos indígenas vêm apontando essas
lacunas e buscando tornar cada vez
104
mais ampla a compreensão de que as povos foram tratados como a-
histórias desses povos não se históricos e considerados atrasados e
restringem ao período colonial. inferiores. Ancorados nesses
Muitas são as pesquisas que pressupostos, eles estavam sempre
demonstram como o ensino de presentes na literatura desse
História tem reproduzido uma série período, fato que constituía uma
de pressupostos e estereótipos que presença invisível, uma vez que toda
congelaram os povos indígenas num a ênfase recaía sobre os indígenas
passado remoto. coloniais (ALMEIDA, 2010).
Apesar das mudanças em Adentramos o século XX e
curso, ainda convivemos com os vemos que, até finais da década de
efeitos de um ensino que, por várias setenta, poucas foram as mudanças
décadas, apresentou conteúdos que em relação às formas de se
se destinavam a trabalhar a presença interpretar e narrar as histórias dos
indígena com base em referências povos indígenas. Os debates sobre a
breves e vagas, presas ao passado. identidade nacional resultaram na
Um ensino cujos conteúdos eram construção de um país mestiço.
apresentados, geralmente, com base Nesse processo, os indígenas, que
em duas perspectivas: a denominada permaneciam como símbolo de
“pré-história”; e a introdução desses brasilidade, tiveram negadas suas
povos na História do Brasil do ponto identidades, ao serem incorporados
de vista dos colonizadores, com o ao mito das três raças, fundador de
advento da conquista. Esta última um novo tipo: o brasileiro.
situação prevalece ainda como Ao longo do século XX,
preponderante tanto nos programas sobretudo no pós 1930, muitos
dos cursos de história quanto nos intelectuais ressaltaram a
livros didáticos. importância dos povos nativos no
Essa forma de ensinar a contexto da colonização lusa na
história dos povos indígenas encontra América, como forma de explicar
seu referencial na historiografia do nossas origens e positivar a ideia de
século XIX, quando, em detrimento mestiçagem, distanciando-a das
de toda a diversidade existente na concepções anteriores que a via
sociedade brasileira, se optou por como fator de degeneração. Essa
construir a noção de um Brasil produção bastante diversa, centrada
homogêneo, que buscava compensar especialmente em ensaios, manteve
suas frustrações por não poder ser a perspectiva hierarquizante, na qual
considerado branco, com base no os feitos dos europeus eram
discurso da mestiçagem, valorizando, ressaltados e os indígenas
porém, as ações dos europeus e a apresentados como vítimas,
nossa porção branca e europeia. enredados em um sistema que não
A produção historiográfica do deixava qualquer possibilidade de
século XIX sob a égide do Instituto ação, por parte desses indivíduos,
Histórico e Geográfico Brasileiro que pudessem indicar sua condição
(IHGB) delegou aos indígenas o de sujeitos.
passado como lugar por excelência. Nessa historiografia, os
Presos nessa temporalidade, esses princípios da invisibilidade e do
105
silenciamento permaneceram. A que reproduziam as concepções
presença indígena, que podia ser presentes na historiografia. 8
A historiografia sobre esse
aspecto não se restringe a
encontrada por todo o território A disseminação de uma visão essas duas obras. Muitos
nacional, era desconsiderada, em diferente sobre a história indígena foram os autores que
escreveram sobre a
detrimento de uma visão que tem sido nosso grande desafio.
formação do Brasil e seu
buscava apontar as contribuições e Mesmo com um processo de povo com base na ideia de
as heranças que esses povos legaram mudanças em curso desde a década mestiçagem. Muitas dessas
obras referiram-se aos
ao Brasil e aos brasileiros, para o de 1980, boa parte das informações indígenas, reportando-se
bem ou para o mal, como podemos sobre os indígenas, que circulam ao passado colonial e
apontando as contribuições
verificar respectivamente, em obras ainda hoje, relacionam-se de forma deles para a formação do
como Casa Grande e Senzala, intensa às concepções que povo brasileiro. As obras
aqui citadas buscam
publicada em 1933 (FREYRE, 1989), apontamos, demonstrando a solidez apenas exemplificar o tipo
e Conceito de Civilização Brasileira, de um projeto de apagamento da de produção a que estamos
de 1936 (FRANCO, 1936)8. Por um presença indígena e os múltiplos nos referindo.
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RECEBIDO EM 01/12/2016
APROVADO EM 28/01/2016
110
RELIGIOSIDADE E necessário descrever os elementos que o
ENCANTAMENTO: compõem.
o pagamento de promessa no Palavras-chaves: Praiá. Encantado.
Cura.
ritual indígena Jiripankó
Foto 1-
Poró
Fonte:
Acervo dos
autores,
2015.
Fonte: Acervo dos autores, 2015 Fonte: Acervo dos autores, 2015
116
Foto 4 – Rodela e Penacho Foto 5 – Cinta
117
Foto 7 – Praiás no Terreiro
Penacho Rodela
Cinta Máscara
ou Tunã
Maracá
Saiote
Foto 8 –
Padrinhos no Terreiro
118
No Terreiro, os padrinhos têm As madrinhas, por sua vez
a função de disputar a posse do têm a função de acompanhar a
menino com os Praiás, mas um noiva. São escolhidas e convidadas
deles, diferentemente dos demais, duas mulheres, geralmente de casas
atua como protetor e orientador do diferentes, que se paramentam com
menino, chegando inclusive a ficar no uma espécie de coroa de tiras de
rancho com ele. O número de papel colorido e pintam as pernas, os
padrinhos supera o número de braços e o rosto com a tinta branca
praiás, não havendo equilíbrio ou extraída do tauá (barro branco),
proporção entre eles. Durante os conforme pode ser observado na
Torés, os padrinhos ocupam o fotografia 9.
Terreiro e participam de todo o
cortejo que antecede o ritual; assim
como os demais participantes, os
padrinhos dançam e correm com os
pés descalços.
Foto 9 – Madrinhas e
Noiva
Foto 10 - Cantadores
121
Os pais do menino o “entregam” reciprocidades de caráter
àquele praiá, inaugurando-se uma
relação perpétua de mútuos deveres: interpessoal. Este sistema, que se
o menino deverá desempenhar suas expande ou se retrai a partir de uma
obrigações para com o encantado e
este também deverá cuidar dele e
tríplice obrigação coletiva de doação,
servi-lo para o resto da vida. (MURA, de recebimento e devolução de bens
2013:326). simbólicos e materiais, é conhecido
como dom ou dádiva (MAUSS, 2008).
Essa relação descrita por
O pedido ou promessa, a cura e o
Cláudia Mura se materializou no caso
pagamento da promessa constituem
acima, pois o pedido foi atendido por
o tripé definido por Mauss como dar,
Andorinha e o menino, considerado
receber e retribuir.
desenganado pela medicina moderna
Na ótica do pagamento da
foi curado pela ação do encantado
promessa como reciprocidade, o
associada à pajelança que o restituiu
menino é levado ao rancho,
a vida. Após a cura, a família tem um
acompanhado dos demais
tempo para se preparar
personagens do evento. Um dia
financeiramente para realizar o
antes ele é entregue ao padrinho e é
pagamento da promessa e o ritual de
por este levado ao Terreiro no dia
entrega do menino, no rancho, ao
seguinte. Para esta cerimônia o
encantado.
menino é vestido com uma bermuda
O ritual indígena "o menino do
vermelha, abaixo dos joelhos, sem
rancho" acontece em períodos
camisa (substituída por uma espécie
distintos, não tem data fixa para sua
de colete comprido com alças
celebração cerimonial. Sua realização
encruzadas que se estende até perto
está condicionada a uma necessidade
do joelho). Essa peça, também
concreta de um membro do grupo. O
vermelha é ornada com várias cruzes
ritual aqui descrito foi realizado em
e alguns adornos brancos
20 e 21/06/2015 devido à cura de
pendurados na extremidade; o corpo
um jovem vitima de acidente
é pintado com barro branco (tauá),
motociclístico. O pagamento da
colocam-lhe na cabeça um capacete
promessa acontece após um período
artesanalmente confeccionado com a
de preparação, pois há a necessidade
palha do coqueiro ouricuri, e passam-
de convidar as madrinhas, os
lhe a tiracolo um rolo de fumo (o
padrinhos, os puxadores, preparar o
fumo tem imensa importância nos
Terreiro e organizar a estrutura para
cerimoniais em geral, pois acreditam
oferecer a garapa de rapadura aos
que tem o poder de afastar os maus
praiás e a alimentação aos
espíritos, além de servir para rezas e
convidados. Nesse caso, entre a
benzeduras). A foto 11 traduz essa
promessa e a cura existe um espaço
descrição, apresentando o menino e
indeterminado de tempo. É de certo
os demais personagens do ritual,
modo um evento ancorado no
com destaque para o praiá Andorinha
principio da reciprocidade, pois é
ao lado do jovem ritualizado.
possível observar a presença
constante de um sistema de
122
Foto 11 – O menino do Rancho
Fonte:
Acervo dos
autores,
2015.
A
cerimôni
a tem
início
O ritual é tido como um símbolo
quando o menino prometido é
de grande importância para o povo
colocado no Terreiro, cercado pelos
Jiripankó que o atribui um significado
protetores ou sacerdotes (praiás),
especial por representar um
que os disputam com outros homens
momento de transição cultural entre
não paramentados, apenas pintados
as diferentes gerações. É uma
com o tauá-branco (os padrinhos).
linguagem própria que ultrapassa a
Inicia-se uma série de disputas que
existência da geração, uma vez que
termina com a destruição total do
“a existência humana também está
rancho e a vitória de uma das partes,
assentada em símbolos que, por
após três corridas. Caso os praiás
meio da linguagem, atribuem
não consigam capturar o menino,
diferentes significados simbólicos à
este é entregue ao praiá responsável
vida humana, o que confere
pela cura ao final da terceira corrida.
diversidade às formas pelas quais a
Este dançando e cantando junto com
representamos” (DEBERT;
os demais membros do cortejo
GOLDSTEIN, 2000: 227). E aquele
conduzem o neófito ao centro do
povo do sertão alagoano usa o ritual
Terreiro. Com este rito de iniciação a
como um marco, uma linguagem
criança poderá tornar-se membro da
comunicacional do humano com o
sociedade dos Praiás e ao mesmo
sagrado que vem sendo transmitida
tempo fica imune aos males dos
ao longo de gerações, sofrendo
espíritos contrários. Esta é também
mudanças, assumindo novos
uma forma de preservação da etnia e
contextos, porém resistindo ao
consequentemente dos rituais e da
contato com o não índio, sem abrir
cultura indígena específica dos povos
mão das suas especificidades
do sertão alagoano, que por sua vez
enquanto grupo étnico. Assim,
receberam tal elemento do seu
tronco originário, os Pankararu de [...] as culturas são imperativamente
Brejo do Padre, em Pernambuco. transformadas no confronto de umas
com as outras. Especificamente no
123
caso dos povos indígenas com a aos membros do ritual e aos
civilização. Mas suas identificações
étnicas originais persistem, resistindo convidados.
a toda sorte de violência. Onde os O cortejo chegou ao Terreiro
pais podem criar os filhos dentro de
sua tradição, a comunidade indígena
na metade da manhã, composto por
sobrevive. Isso ocorre mesmo nas três pessoas que vinham à frente,
condições mais extremas de cantando as toantes, seguidos do
compressão, como sucedeu a alguns
grupos indígenas do vale do São menino, das madrinhas, dos
Francisco. Ali, eles foram desalojados padrinhos e do batalhão de praiás,
de suas terras e obrigados a
perambular por décadas como além de uma boa quantidade de
mendigos maltrapilhos, mas, ainda pessoas da aldeia e da região que
assim, continuaram sendo índios por
sua autoidentificação com uma
acompanhavam esse grupo principal.
comunidade que vem de tempos A partir da chegada, os
imemoriais e os reconhece como seus
cantadores se posicionaram à direita
membros. A transfiguração étnica
consiste precisamente nos modos de do rancho enquanto os demais se
transformação de toda a vida e distribuíram pelo Terreiro e passaram
cultura de um grupo para tornar
viável sua existência no contexto a executar um bailado circular ao
hostil, mantendo sua identificação. som dos maracás, das flautas e dos
(RIBEIRO, 2010:28-9).
cantos. O bailado denominado de
Toré consiste em uma dança, girando
O longo contato dos indígenas com a
sempre no sentido horário, com
sociedade dita civilizada resultou em
passos firmes que ecoam no solo,
um conjunto de transformações para
mas observando os pés dos moços,
ambos os lados, porém foi mais
dá a impressão que flutuam. O
intensa com os primeiros, pois esses
bailado é, grosso modo, um misto de
tiveram vários dos seus costumes
força e leveza difícil de ser explicado.
transfigurados. Isso resultou em um
Os semblantes são marcados
indivíduo novo, adaptado e integrado
pela emoção e esta contagia os
a sociedade nacional, porém com
observadores. Índios e visitantes se
uma marca particular que o
inebriam com o momento, observa-
identifica, a religião.
se uma linguagem gestual marcada
por grande carga de respeito e de
A festa do pagamento a
pertencimento. Cada membro do
Andorinha
ritual demonstra muita intimidade
Na aldeia, apesar das chuvas
com o evento e isso cria de certa
da véspera, o dia amanheceu com
forma, uma fronteira com o não
um movimento intenso, pois logo
índio.
cedo o batalhão de praiás e
Ao longo do ritual, observou-
padrinhos saíram em cortejo para
se uma movimentação de homens
buscar as madrinhas e o menino que
entrando e saindo do Poró, da
seria colocado no rancho. Enquanto o
mesma forma que os praiás iam e
grupo percorria a vizinhança, em
vinham de uma grande árvore
busca dos atores do ritual, as
localizada há uns 200 metros do
mulheres se ocupavam em volta dos
Terreiro, local que funcionava como
grandes caldeirões para preparar o
Poró naquele momento e que era,
almoço que seria oferecido logo mais
assim como o Poró do Terreiro,
124
interditado a visitantes e às paramento seu. O praiá que
mulheres. conseguir tal feito é bastante
Na festa o cortejo circula o festejado pelos seus pares e pelos
Terreiro três vezes, até que o praiá seus zeladores, porém a validade da
dono do menino, que não participa conquista é questionada pelos
da disputa, determina os momentos padrinhos. Entretanto, se em três
de trégua ou de corrida. Um dos corridas o menino não for capturado,
padrinhos, por sua vez orienta o os padrinhos o entregam no Terreiro
menino durante a fuga, auxilia-o a se ao seu dono.
esconder, a subir em árvores ou fica
com ele no rancho, enquanto os
demais padrinhos tentam impedir
que os praiás alcancem o menino. A
disputa é árdua e pode causar sérios
machucados. A foto 12 traduz um
dos momentos dessa disputa.
A disputa é composta de até
três corridas e encerra quando
alguém (praiá ou padrinho) consegue
capturar o menino ou pegar qualquer
Foto 12 –
Disputa e
entre Praiás
padrinhos
Referências
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modernidade. 3ª ed. São Paulo: EDUSP, 1997.
DEBERT, Guita Grin; GOLDSTEIN, Donna M. (Orgs). Políticas do corpo e o curso
da vida. São Paulo Editora Sumaré, 2000.
GIBERTI, Andrea Cadena. Nascendo, encantando e cuidando – uma etnografia do
processo de nascimento dos Pankararu de Pernambuco. São Paulo: USP, 2013
(Dissertação Mestrado em Saúde Pública)
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14ª ed. Rio de
Janeiro: Jorge “Zahar, 2001.
MATTA, Priscila. Dois elos da mesma corrente: uma etnografia da corrida do imbu
e da penitência entre os Pankararu. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005
(Dissertação Mestrado em Antropologia Social).
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2008.
MURA, Claudia. Todo mistério tem dono! Ritual, política e tradição de
conhecimento entre os Pankararu. Rio de Janeiro: Contra capa, 2013.
SANTOS, Cícero Pereira dos. Território e identidade: processo de formação do
povo indígena Jiripancó. Palmeira dos índios: UNEAL, 2015. (Trabalho de
Conclusão do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena em História).
RIBEIRO, Darcy. Falando de índios. (Apresentação Eric Nepomuceno). Rio de
Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília, DF: Editora UnB, 2010.
RECEBIDO EM 01/01/2016
APROVADO EM 28/01/2016
126
TRADIÇÕES ADORMECIDAS: intend to find out who are these women
PRÁTICAS CULTURAIS E and what role they represent the
NARRATIVAS NO COTIDIANO indigenous community; Understanding
how these cultural practices can create
DAS ÍNDIAS PARTEIRAS DA
discourses that disqualify such ways and
ALDEIA FORTE – BAÍA DA
ways of acting; Identify the facts that
TRAIÇÃO. contributed to a negative image of
midwives Indian women at the village.
Aline de Castro Key - Words: Indigenous Midwives. Oral
Licenciada em História/UEPB History. Traditions.
Professora na Rede Pública Estadual
e Municipal
alinedecastrots@gmail.com Ser tradicional tornou-se
sinônimo de “antigo”, fora de moda
RESUMO entre alguns (as) descendentes
O presente estudo cujo tema é Tradições potiguara. De acordo com Hobsbawm
Adormecidas: Práticas culturais e e Ranger (1997: 09), o termo
narrativas no cotidiano das índias tradição significa:
parteiras da Aldeia Forte – Baía da
Traição teve como objetivo, analisar a O termo “tradição” é utilizado num
importância do processo de visibilidade e sentido amplo, mas nunca indefinido.
historicidade à prática cultural das índias Inclui tanto as “tradições” realmente
inventadas, construídas e
parteiras, já que entendemos que
formalmente institucionalizadas,
preocupação com o resgate e a quanto as que surgiram de maneira
valorização dos saberes tradicionais, mais difícil de localizar num período
ainda é uma constante para nós limitado e determinado de tempo - às
vezes coisa de poucos anos apenas -
historiadores. Como objetivo pretendeu- e se estabeleceram com enorme
se verificar quem são essas mulheres e rapidez (HOBSBAWM E RANGER
que papel elas representam na 1997, p. 09).
comunidade indígena e compreender
como essas práticas culturais podem criar O que pude entender, em
discursos que desqualificam tais maneiras conversas com algumas indígenas
e modos de agir, além de identificar os
Potiguara - da Aldeia Forte, entende-
fatos que contribuíram para uma imagem
se que o preconceito existente entre
negativa das índias parteiras ante as
mulheres da Aldeia. os (as) próprios índios (as) em não
Palavras – Chave: Parteiras Indígenas. se “aceitarem” -, ou não se
História Oral. Tradições. importarem com o fato de serem
parte da história do país, estava
ABSTRACT transformando aquele povo em
This study whose theme is Sleeping fantoches da mídia -, uma vez que
Traditions: Cultural practices and em seu cotidiano eles (as) passam
narratives in the daily lives of Indian
por privações concernentes a
midwives Forte Village - Bay of Betrayal
questões financeiras, ao alcoolismo,
aims to analyze the importance of
visibility and historicity process to the ao desemprego, à falta de
cultural practice of midwives India, since atendimento especializado em
we understand that concern with the relação a hospitais (esse será o
rescue and recovery of traditional objetivo da pesquisa), à escassez de
knowledge, it is still a constant for us alimentos, etc., eles (as). Percebe-se
historians. As specific objectives we
127
que, em determinadas épocas do longo trajeto impediu que fosse
ano, transformam-se em objetos de possível salvar as crianças.
exploração da imprensa, ou de Diante de situações, como
representantes dos poderes públicos, essas, pergunta-se sobre qual
quando querem mostrar à sociedade valorização é dada as parteiras pelas
que aquela etnia resiste ao tempo e índias da Aldeia Potiguara? Que tipo
conservam as suas tradições. de relação elas têm com essas
Após anos de convívio com os mulheres que lhes trouxeram a vida?
povos da Aldeia Forte, o parto surge Questões como essas são suscitadas
como questão polêmica e incômoda principalmente pelo fato dessas
no que diz respeito às mulheres mulheres virem de uma geração de
indígenas que se veem entre os parteiras conhecidas em toda a
valores culturais tradicionais do parto comunidade potiguara.
e a intervenção do serviço social de O ofício de parteira é passado
saúde. Tradicionalmente, as parteiras de geração em geração. A primeira
existem, contrariando toda e que se tem notícia é conhecida como
qualquer rejeição dos serviços de “Mãe Grossa”, nascida na Aldeia São
saúde do local. Em depoimentos, Francisco em 1921, mas já falecida.
percebe-se que as indígenas se Em conversas, ela contava, enquanto
sentem criticadas, e entendem que a fumava seu cachimbo, que ia da
assistência de saúde não presta o Aldeia Forte até as aldeias onde era
atendimento adequado às mulheres chamada a pé ou a cavalo, fazer os
que procuram os PSF´s. Segundo partos. Enquanto ela estava
depoimentos, referem-se às parteiras ajudando a mãe, as outras índias
com desconfiança e não fornecem preparavam o pirão de galinha para
informações adicionais ou qualquer dar força à recém-parida. Era comum
apoio as mesmas. ver dezenas de pessoas passando em
Por sua vez, as mulheres frete a sua casa e pedindo a benção
indígenas, estão preferindo os a Mãe Grossa. Ela dizia sempre: “vi
hospitais aos cuidados das parteiras, tudo nascer, com a ajuda de Deus”.
velhas conhecidas delas. Para elas, Após a morte de Mãe Grossa,
os hospitais são mais paramentados sua filha “Tia Nancy”, assumiu o seu
e, as dores, já que optam por lugar. Ela fala do dom que Deus lhe
cesarianas, quase não existem. deu com muita emoção, diz que não
Apesar da distância entre a Aldeia entende porque tanta índia que ela
Forte e o hospital mais próximo (fica ajudou a nascer não quer mais os
na cidade de Rio Tinto, já que o de serviços dela. E, afirma que essa
Mamaguape não é equipado), elas geração tem medo de dor. Junto a
preferem correr o risco de perder o Tia Nancy, outras filhas, netas e
bebê, como é o caso de Eliene e sobrinhas de Mãe Grossa também
Vanessa que perderam os bebês aos exercem o ofício de parteiras.
nove meses de gestação porque o Recentemente participaram de um
parto demorou a acontecer. No caso curso dado pela FUNAI/SUS, no qual
dessas mulheres, elas foram da “aprenderam” o que já sabiam,
Aldeia Forte até a capital, João contam elas, mas, o curso, segundo
Pessoa, em trabalho de parto, o
128
elas, fez com que as mulheres parto eram ajudadas por outras
passassem a procurá-las. mulheres, que podiam ser do seu
A interculturalidade se refere ambiente mais próximo (parentes,
à ideia de uma interação entre as vizinhas ou amigas), ou mulheres
culturas de forma que respeite suas reconhecidas pela sua experiência ou
diversidades em um ambiente de competência para tal
interação e trocas. No contexto de acompanhamento – as parteiras.
encontro com o outro e suas Apesar de na prática da
diferenças podem surgir parteira tradicional estarem
intolerâncias, discriminações como presentes vários dos princípios
também supremacia de algumas atualmente preconizados para a
identidades sobre outras. humanização do parto e do
Se as narrativas enredam o nascimento – a formação de vínculos
escrevente, considera-se, em um solidários, o apoio emocional,
exercício primeiro de auto realização, práticas não intervencionistas, o
enxerga-se mais como alguém respeito à mulher e à fisiologia do
apaixonada pelo fazer histórico, tal parto – no pensamento
como o conhecimento resultado do predominante, essa prática tem sido
trabalho etnográfico, pelo ir à campo, associada às ideias da falta de
“estar lá”, buscando apreender as higiene, da ignorância e do
categorias “nativas” de entendimento subdesenvolvimento. Esse
do mundo. pensamento só legitima o
Em que pese o presente conhecimento produzido de acordo
estudo, ele esboçará uma perspectiva com a racionalidade científica,
histórica, por acreditar-se que ao desvalorizando o conhecimento
incorporar os saberes e práticas do tradicional (ABREU, 2005: 46).
campo das representações, Portanto, ao se resgatar
trilharemos um caminho mais seguro experiências exemplares voltadas
em seu desenvolvimento. para a qualificação e humanização do
parto e nascimento domiciliar
1.A ARTE DE PARTEJAR assistidos por parteiras, tem-se por
A arte de partejar é uma objeto induzir à reflexão junto aos
atividade que acompanha a história gestores e profissionais de saúde
da própria humanidade, por muito sobre a importância do
tempo, foi considerada uma atividade desenvolvimento de políticas públicas
eminentemente feminina, que busquem a valorização dessas
tradicionalmente realizada pelas detentoras de saberes e práticas
parteiras, que também cuidavam do tradicionais existentes nas Aldeias
corpo feminino e dos recém- trabalhadas, reconhecendo e
nascidos. As parteiras eram e ainda qualificando o seu trabalho, com
são depositárias de um saber vistas a potencializar e retomar essa
popular, que foi produzindo lendas e prática cultural, não apenas como um
crendices sobre o corpo gravídico, conjunto de relações articuladas num
associadas à natureza (BANDLER, determinado tempo e espaço.
1992: 23). Portanto, durante muito A presente pesquisa pode
tempo, as mulheres em trabalho de provocar o entendimento de como se
129
processa a socialização da identidade
étnica e a valorização da cultura ali Os estudos culturais têm dado
amostras de grandes reflexões acerca
existente, podendo, ainda possibilitar do conceito de cultura, pois tais
um leque de informações que investigações, durantes séculos,
ficaram sob a responsabilidade dos
complementarão a compreensão de folcloristas que concebiam essas
que existem formas de se manifestações culturais com olhares
desenvolver estudos que permitam pejorativos (THOMPSON, 2005: 28).
131
Desde o período colonial, No movimento histórico de
quando se encontravam as mesmas polarização do poder, as questões de
situações vivenciadas na Europa, a gênero foram expressas, e as
exceção das chacinas de feiticeiras, mulheres também perderam alguns
não ocorridas no Brasil, a prática da de seus direitos e poderes. É preciso
maternidade se caracteriza como sublinhar o fato de que o gênero
forma de se contrapor ao controle sempre se destacou como indicador
masculino, fosse resguardando as de centralização de poder e perda de
diferenças de gênero, fosse autonomias. As relações entre
conservando os papéis tradicionais Estados fortes e submissão feminina
das mulheres, no caso o de parteiras foi observada por Scott:
(DEL PRIORI, 2004, p. 43 ). Sendo
assim, a “medicalização” do parto foi A ligação entre os regimes
autoritários e o controle das mulheres
mais uma das formas de instaurar a tem sido bem observados, mas não
monitorização sobre as práticas de foi estudado a fundo. Num momento
crítico para a hegemonia jacobina na
cura até então sob o controle das Revolução Francesa, na hora em que
mulheres. Stálin tomou o controle da
No caso da Europa Moderna, autoridade, na época da
operacionalização da política nazista
além da subordinação das mulheres na Alemanha ou o triunfo do aiatolá
de um modo geral, havia uma Khomeiny no Irã, em todas essas
circunstâncias os dirigentes que se
preocupação muito grande com as afirmavam, legitimavam a dominação,
mulheres camponesas em particular a força, a autoridade central e o poder
soberano identificando-os ao
e, dentre estas, um cuidado ainda masculino (os inimigos, os
maior com aquelas que podiam “outsiders”, os subversivos e a
fraqueza eram identificados com o
escapar ao domínio masculino, aí se
feminino), e traduziram literalmente
inseria o caso das curandeiras e das este código em leis que colocam as
parteiras. mulheres no seu lugar (proibindo sua
participação na vida política, tornando
Davis (1990, p. 72) apontou o aborto ilegal, proibindo o trabalho
como as mulheres da Época moderna assalariado das mães, impondo código
de vestuário às mulheres) (SCOTT,
foram perdendo seus direitos à
1991, p. 16).
medida que o capitalismo e a família
patriarcal avançavam. É oportuno Em relação ao surgimento dos
lembrar que, neste período, estava novos procedimentos científicos, o
nascendo o que hoje conhecemos embate contra as parteiras se dotava
como a Ciência moderna, com seus da perspectiva da luta “da luz da
procedimentos experimentais, ciência contra as trevas da
técnicas “matematizadas” e avaliadas ignorância”, das novas técnicas, ditas
e sua nova relação com o corpo científicas, contra procedimentos
humano. A entrada dos homens havidos como supersticiosos:
médicos na cena do parto, portanto,
pertencia a este contexto. A luta Quando a história da medicina
suscitada por estes médicos contra começou a ser escrita no século XIX,
tratou-se as práticas médicas e
as parteiras obedecia, populares da Antiguidade e
fundamentalmente, a princípios de principalmente da Idade Média como
representativas da ignorância e do
gênero, de classe e de luta por um obscurantismo. Nesta interpretação
novo mercado profissional. evolutiva da história, há o
132
reconhecimento da ignorância dos tarefas domésticas, prestam, em
médicos antigos sobre os assuntos
relativos ao parto, mas a maior geral, uma assistência marcada pelo
reação crítica é aos leigos, afeto, pelo calor humano,
especialmente as parteiras das
classes populares. Com exceção das
companheirismo, infundindo
parteiras profissionais dos séculos confiança e segurança que
XVII e XVIII, os historiadores médicos contribuem para potencializar a força
viam as parteiras aldeãs como
responsáveis pelas imperícias que da mulher para conduzir o seu parto,
resultavam na morte da mãe e da criando um ambiente que favorece
criança ou pelas mutilações,
descrevendo-as como mulheres uma evolução positiva do trabalho de
ignorantes, supersticiosas, parto e uma recepção acolhedora
descuidadas e apressadas (DEL
PRIORI, 2004: 45).
para o recém-nascido (ABREU, 2005:
48).
Percebe-se que, o dano maior
à saúde da população não era
provocado pelos erros médicos, mas 2.2 O despertar de uma tradição
pela incapacidade das parteiras sob o olhar da História Oral
populares. Havia nesta alegação uma Tendo por base a análise das
imposição não somente de classe, práticas culturais e as narrativas no
pois além de menosprezar os saberes contexto de vida das índias parteiras
e práticas populares, esta da Aldeia Forte residentes no
estruturação científica intentava ao Município de Baía da Traição, este
controle masculino da cena do parto. projeto tem por preocupação central
Para esclarecer ainda mais esta colocar em evidência a preocupação
busca de controle, estes argumentos com o resgate e a valorização dos
não atingiam as parteiras saberes tradicionais, analisando
profissionais, porque estas estavam investigando a importância do
sob controle dos médicos. processo de visibilidade e
Se por um lado é fato que as historicidade à prática cultural dessas
parteiras tradicionais possuem mulheres ressaltando o protagonismo
limitados conhecimentos técnico- de suas vozes sobre este processo
científicos, principalmente por seu social, identificando semelhanças e
trabalho encontrar-se isolado do diferenças entre suas percepções
serviço de saúde local, realizando-se sobre esta experiência.
em meio a muitas dificuldades, é O presente estudo será feito
igualmente notório que, em sua principalmente com amparo em
grande maioria, as parteiras possuem entrevistas com as parteiras, assim
muitas habilidades, que lhes auxiliam como com as mulheres que
na resolução de partos difíceis e utilizaram os serviços delas. Portanto
recursos, principalmente no campo o recurso do instrumental
relacional, fundamentais para um metodológico da História Oral se faz
cuidado baseado no respeito e no imprescindível. Para tanto nos
empoderamento da mulher para remeteremos a uma das concepções
vivenciar o seu parto. de História Oral como afirma Amado:
As parteiras preocupam-se
Esses historiadores orais consideram
com o bem-estar e o conforto da a fonte oral em si mesma e não só
mulher que assistem, assumem as como mero apoio factual ou de
133
ilustração qualitativa. Na prática, eles sem a viabilidade do uso da História
colhem, ordenam, sistematizam e
criticam o processo de produção da Oral, seria impossível um estudo
fonte. Analisam, interpretam e situam sobre as índias parteiras da Aldeia
historicamente os depoimentos e as
evidências orais com as outras fontes
Forte, assim como o conhecimento
documentais tradicionais do trabalho de seus rituais. Por outro lado, as
historiográfico. Não se limitam a um entrevistas permitirão uma maior
único método e a uma única técnica,
mas a complementam e as tornam nitidez sobre a importância das
mais complexas. Explicitam sua parteiras na região estudada. Como
perspectiva teórico metodológica da
análise histórica e, sobretudo, estão sinalizado no início do projeto, a
abertos e dispostos ao contato com própria existência e eficácia delas é
outras disciplinas (AMADO, 1993, p.
23).
questionada, no entanto, na medida
em que o projeto for florescendo,
Neste aspecto, os relatos orais presume-se que essas mulheres
e a observação das participantes são tornem a ganhar corpo e significação
instrumentos centrais para o social e cultural. Nesta perspectiva, a
presente estudo, pois permite que se História Oral ajudará a trazer á tona
identifique em que momento na essa sublime tradição que passando
história de vida destas mulheres por um processo de desvalorização e
acontece sua inclusão no ofício de de esquecimento.
parteira, enquanto espaços de Para a coleta de dados,
interação e significação social nos inicialmente será utilizada a
quais as parteiras tradicionais metodologia de entrevista
reconstroem suas trajetórias de vida. semiestruturada devido a, sua
Investigar as articulações e flexibilidade dentro do processo da
tensões presentes nestes discursos pesquisa, ter como ponto de partida
faz parte das tarefas do (a) questões previamente formuladas,
pesquisador (a) na tentativa de porém, também serão consideradas
melhor perceber de que modo outras questões que poderão surgir
mediação do gênero está presente no decorrer do processo do
nesta dinâmica social. entrevistar.
Thompson confirma à Menezes (2002: 20) entende
importância trazida pela História Oral esse formato de entrevista
para o avanço destes estudos: semiestruturada menos como técnica
de pesquisa “trata-se, antes de tudo,
Em todos esses campos da História, de discursos construídos no processo
com a introdução de nova evidência
antes não disponível; com a mudança de interação social entre
do enfoque da investigação e com a pesquisadores e informante”
abertura de novas áreas para ela;
contestando alguns dos pressupostos
(MENEZES, 2002: 20).
dos historiadores e julgamentos por Realizaremos também
eles aceitos; reconhecendo grupos entrevistas em profundidade uma vez
importantes de pessoas que haviam
estado ignoradas, dá-se início a um que nos permite reconstituir a
processo cumulativo de trajetória de vida das indígenas
transformações (THOMPSON, 1992, p.
28). parteiras, identificando elementos
importantes do seu cotidiano,
Percebe-se que estes pontos especialmente no que diz respeito às
são muito pertinentes ao trabalho, relações de gênero vivenciadas por
134
elas no âmbito doméstico e no de obtenção dos dados, ou seja, o
espaço público através da olhar e o ouvir. Porém ainda segundo
identificação do seu ofício. E o autor, não devemos nos perder na
identificar também quando e de que subjetividade, pois o que está em
maneira ocorre a inserção destas no jogo seria a intersubjetividade, pela
ofício de parteira, quais seus qual se articulariam, no mesmo
significados para construção da horizonte teórico, os membros da
autonomia destas mulheres. comunidade profissional.
Outro aspecto importante Conforme Cardoso de Oliveira,
deste processo serão os registros
fotográficos com valoração Se o olhar e o ouvir constituem a
nossa percepção da realidade
documental e registros focalizada na pesquisa empírica, o
cinematográficos com formatação escrever passa a ser parte quase
indissociável do nosso pensamento,
documental, dentro de uma uma vez que o ato de escrever é
perspectiva etnográfica, uma vez que simultâneo ao ato de pensar
as narrativas visuais/audiovisuais nos (OLIVEIRA, 2000, pp. 31-32).
possibilitam tornar visíveis
socialmente práticas culturais Desta forma, o ato de
importantes como é o universo da escrever, encarnado na própria
Aldeia estudada com sua diversidade, etnografia, constituiria aquilo que
tendo por foco a presença feminina Geertz (1978) chamou de uma busca
neste espaço. Conforme pensa por uma “descrição densa”, uma
Oliveira (2000: 30) ao defender que interpretação, ou uma construção,
para se elaborar uma boa escrita que é uma leitura da leitura que os
etnográfica, deve-se pensar sua “nativos” fazem de sua própria
produção a partir das etapas inicias cultura.
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RECEBIDO EM 14/12/2015
APROVADO EM 10/01/2016
136
ITAPUCU E O REI: DIPLOMACIA the territory of the current states of
INDÍGENA NA CORTE FRANCESA Rio de Janeiro, in the period from 1
O artigo foi inspirado na
DO SÉCULO XVII1 1555 to 1578 and Maranhao in 1612- dissertação de Ana Paula
15 and collected and recorded these da Silva, intitulada
narratives, Andre Thevet, Jean de “Narradores Tupinambá e
Ana Paula da Silva Etnosaberes nas crônicas
Lery, Claude d 'Abbeville and Yves d'
Doutoranda em História em Memória francesas do Rio de Janeiro
Evreux. Thus, it is intended to give (1555-78) e Maranhão
Social/UNRIO
visibility to indigenous narrators and (1612-15)”, defendida em
anap_almex@yahoo.com.br 2011, no Programa de Pós-
discuss the role and the indigenous
Graduação em Memória
political activity in the dynamics of
José Ribamar Bessa Freire Social da UNIRIO (PPGMS-
conflicts and interests that marked UNIRIO), sob a orientação
Professor do Programa de Pós-Graduação the period historically known as do Prof. Dr. José Ribamar
em Memória Social/UNRIO Equinoctial France, notably the case Bessa Freire.
jrbfreire@yahoo.com.br of ambassadors Indians in France, 2
Sobre essa mudança de
especially Itapucu. Reflect on their perspectiva no campo da
participation in the production of historiografia brasileira,
Xe ybypóra nde remimbói amo "global networks of knowledge and ver, entre outros:
MONTEIRO, John M. Negros
secóu, apyába carayba atoaçaba power" their strategies in socio-
da Terra - Índios e
toroicó. (Itapucu, In: D’Abbeville, cultural contexts of interaction and Bandeirantes Origens de
politics, especially highlighting the São Paulo. São Paulo:
1614) Companhia das Letras,
role of mediators and articulators of
1994; MONTEIRO, John M.
some indigenous leaders that the
Este artigo procura identificar Tupis, Tapuias e
example of the Tupi ambassadors Historiadores Estudos de
prioritariamente em cinco crônicas de
were seeking an official response to História Indígena e do
autores franceses que conviveram com Indigenismo. Campinas.
os Tupinambá no território dos atuais your problems.
UNICAMP, 2001.
estados do Rio de Janeiro, no período de Keywords: Indigenous Narrators;
1555 a 1578 e o Maranhão em 1612-15 e Oral Traditions; Indian diplomacy;
que coletaram e registraram essas Itapucu
narrativas, André Thévet, Jean de Léry,
Claude d‟Abbeville e Yves d‟Evreux. Estudos atuais, no campo da
Dessa forma, se buscou dar visibilidade
aos narradores indígenas e discutir o chamada ‘Nova História Indígena’,
protagonismo e a atuação política como chamou John Monteiro (1999:
indígenas na dinâmica de conflitos e 238), que poderíamos colocar no
interesses que marcaram o período
plural tendo em vista a diversidade
historicamente conhecido como França
Equinocial, notadamente o caso dos de regimes históricos dos povos
índios embaixadores na França, ameríndios – ainda pouco
sobretudo Itapucu. Refletirmos sobre a evidenciados na historiografia
participação destes na produção de
“redes globais de conhecimento e poder”
brasileira – têm enfatizado os
suas estratégias em contextos de processos de agenciamentos
interação sociocultural e política, indígenas, destacando suas
destacando especialmente o papel de estratégias de recusa e de alianças
mediadores e articuladores de alguns
líderes indígenas que a exemplo dos em resposta aos problemas
embaixadores Tupi foram buscar uma vivenciados em seus territórios2.
resposta oficial para seus problemas. Diferentemente da abordagem
Palavras-chaves: Narradores indígenas;
historiográfica oficial, os povos
Tradições Orais; diplomacia indígena;
Itapucu indígenas, no contexto de suas
interações com o mundo não
ABSTRACT: This article seeks to indígena, colonial ou pós-colonial,
identify priority in five chronic French instrumentaram-se com os recursos
authors who knew the Tupinambá in
137
que possuíam para reivindicar seus estrangeira, mas outros não.
direitos. Nesse sentido, tais Monod-Becquelin assinala
pesquisas nos permitem balizar ainda aquelas informações sobre as
certas classificações coloniais, circunstâncias de narração,
desfazer estereótipos (Boccara, conversas ou gestual performático,
2002: 8) e escrever uma ‘nova bastante acentuado nas tradições
história’, considerando os pontos de orais indígenas. Essa comunicação,
vista dos índios e, por que não, os todavia é mais simbólica e
próprios historiadores indígenas. É o essencialmente não verbal, sendo
que se espera. pouco registrada na documentação
Registros da oralidade em questão.
indígena, em crônicas dos séculos Assim, o estudo das memórias
XVI e XVII, foram analisados por e identidades indígenas no contexto
Aurore Monod-Becquelin, no artigo colonial, com base na análise de seus
“La Parole et la tradition orale discursos, pode ser esclarecedor para
amérindiennes dans les récits des pensarmos o processo contínuo de
choniqueurs aux XVI e et XVII e inovação cultural, pois é reconhecido
siècles”, de 1984. Através da análise o caráter construído das formações e
de estilos e transcrições de cronistas identidades, bem como o dinamismo
que estiveram na América do Sul e das culturas e tradições indígenas. O
do Norte, a autora analisa a atitude caso dos índios embaixadores na
dos franceses acerca do registro da França, sobretudo Itapucu, é
“parole et la tradition orale bastante elucidativo. Não apenas
amérindiennes”. A partir de seus para refletirmos sobre aquilo que
estudos, podemos identificar, a Guilermo Wilde (2013: 5) chamou de
exemplo do discurso de Itapucu, “circulação atlântica de indígenas” e
vozes indígenas (filtradas, sua “forte participação na produção
traduzidas) nos discursos recolhidos de redes globais de conhecimento e
por cronistas, registrados de poder” – aspectos ainda pouco
diferentes maneiras: evidenciados pela historiografia
a) No primeiro caso estão os relatos brasileira –, mas também, as
registrados em língua fonte estratégias indígenas distintas,
(indígena), seguidos ou não de criadas em contextos de interação
tradução na língua do cronista; sociocultural e política, durante a
b) No segundo, o cronista faz, em colonização e pós-colonização.
estilo indireto e traduzido, o registro Destacamos especialmente o papel
dos enunciados como explicitamente de mediadores e articuladores de
ouvidos da boca indígena e alguns líderes indígenas que a
recolhidos no local. Neste caso, exemplo dos embaixadores Tupi
houve, portanto, um contato real foram buscar uma resposta oficial
entre índios e europeus; para seus problemas, seja na própria
c) O terceiro caso tem o idioma colônia, seja no além-mar (Europa).
europeu como língua fonte. Alguns Neste sentido, Itapucu foi um
termos da língua indígena são precursor. Por isso, a epígrafe desse
registrados, com tradução artigo.
correspondente na língua
138
A mudança de perspectiva e os portugueses, adiando o
histórico-antropológica, atual, em extermínio indígena (aliados 3
A questão dos etnônimos é
conceber os povos indígenas como franceses) e o sepultamento da bastante complexa e,
conforme Viveiros de Castro
agentes/protagonistas do processo França Equinocial por mais alguns
(1993: 32), é “fruto de uma
histórico, vem recebendo a atenção anos. incompreensão total da
de pesquisadores de diferentes áreas Neste artigo, pretendemos dinâmica étnica e política do
socius ameríndio”, bem
do conhecimento, tanto no Brasil discutir o protagonismo e a atuação como da “natureza relativa e
como na América do Sul. Essa política indígenas na dinâmica de relacional das categorias
étnicas, políticas e sociais
mudança de ponto de vista se dá em conflitos e interesses que marcaram indígenas”. O historiador
função, entre outros fatores, das o período historicamente conhecido John Monteiro (2007: 58)
diz que a projeção de
reivindicações dos próprios índios por como França Equinocial, ou seja, nas unidade sobre povos foi um
seus direitos. No bojo desses interações franco-tupis no aspecto fundamental na
formação de alianças e na
estudos, destacamos a relevância de Seiscentos. Para isso, analisaremos o
determinação das políticas
refletir sobre a atuação dos índios no discurso de Itapucu, proferido diante coloniais, servindo não
contexto das suas relações com os da Corte francesa, em 1614, apenas “como instrumento
de dominação, como
Estados nacionais, como sugere De presente na crônica do capuchinho também de parâmetro para
Jong (2011) ao analisar as relações francês Claude d’Abbeville. Trata-se a sobrevivência étnica de
grupos indígenas, balizando
diplomáticas entre agentes de um raro exemplo de registro da uma variedade de
governamentais e setores da fala de um chefe indígena em missão estratégias geralmente
enfeixadas num dos polos
população indígena na fronteira sul diplomática, reproduzido na língua
do inadequado binômio
da província argentina, entre o tupinambá, no século XVII – acomodação/resistência”.
Pampa e a Patagônia, sobretudo a linguístico-histórico ainda pouco Baseando-se na
documentação histórica,
atuação de lideranças/caciques investigado. Carlos Fausto (2000) chama
indígenas. a atenção para o fato dos
grupos Tupi da costa
No artigo “Funcionários de dos Indígenas e o discurso destinado brasileira, nos séculos XVI e
mundos en un espacio liminal: Los aos ‘outros’ XVII, constituírem
macroblocos populacionais e
“índios amigos” en la frontera de Em contextos de interação jamais um bloco
Buenos Aires (1856-1866)”, Ingrid cultural e política, no período colonial homogêneo. Para Renato
Sztutman (2012: 146), o
De Jong discute as estratégias, os e pós-colonial, atores indígenas
etnônimo Tupinambá –
horizontes e os limites de ação dos criaram diferentes estratégias de recorrente nas crônicas de
chamados “índios amigos” no denúncias contra abusos e violências, Thevet, Léry, d’Abbeville e
d’Évreux –, nesse sentido, é
processo de unificação e consolidação de reivindicação de direitos – vago ou problemático, uma
do Estado argentino, evidenciando o particularmente seus territórios vez que está relacionado à
multiplicidade de povos Tupi
lugar desses atores como mediadores invadidos, arrendados, usurpados por ocupantes da costa, além
e articuladores que construíram e diferentes atores, como sesmeiros, dos aliados dos franceses.
Por isso, empregamos aqui
reproduziram um espaço político colonos, fazendeiros – e, também o termo Tupi (em
particular, onde participavam tanto táticas de alianças políticas. Entre os detrimento ao etnônimo
dos dispositivos estatais quanto da mecanismos utilizados por eles estão Tupinambá, retomado
poucas vezes) – povos
rede de alianças políticas no campo a memória, a diplomacia e a habitantes na costa
indígena. De igual modo apropriação da tecnologia da escrita brasileira e falantes de uma
língua pertencente à família
compreendemos a atuação política e da retórica dos não indígenas, linguística Tupi-guarani.
dos Tupi do Maranhão, que atuando como fizeram os antigos Tupi3 na Ilha
como embaixadores/diplomatas de São Luís do Maranhão, aliados dos
indígenas viajaram à França para franceses no século XVII (Silva,
negociar com o rei Luís XIII apoio 2011).
bélico contra os seus inimigos índios Para Lienhard,
139
como explica Lienhard. Para comover
“(...) diante da necessidade de ‘falar’ ou convencer os representantes da 4
Martín Lienhard (1992)
a seus interlocutores europeus ou analisou as relações de
crioulos (América hispânica), as autoridade metropolitana ou colonial,
interação entre indígenas e
coletividades indígenas tiveram que os índios, conscientes ou não dos
criar um discurso distinto, capaz de autoridades da América
chegar aos ouvidos ou aos olhos dos
problemas de comunicação hispânica em diversos
‘estranhos’, adversários ou possíveis intercultural, adotaram distintos documentos que abarcam o
aliados: autoridades, personalidades, elementos – recursos e/ou códigos período colonial até o início
e funcionários metropolitanos ou do século XX –
coloniais (...)”(LIENHARD, 1992, p. expressivos, lógica argumentativa,
testemunhos, cartas e
XVIII). entre outros. – que faziam parte do manifestos indígenas.
horizonte de expectativas de seus
O autor sustenta que a interlocutores. Através do discurso
necessidade de “falar” com os destinado aos outros (europeus,
europeus ou autoridades criollas4, criollos), os indígenas diziam
obrigou os indígenas a criarem uma exatamente aquilo que as
interessante estratégia discursiva: o autoridades e representantes estatais
discurso destinado aos ‘extraños’. podiam ver, ouvir e entender.
Trata-se de um tipo de discurso Segundo Paula Montero
distinto, capaz de chegar aos ouvidos (2006), nas relações interculturais
ou aos olhos dos inimigos, além de entre missionários e indígenas,
possíveis aliados. Os índios não ambos os lados apropriaram
apenas aprenderam a caminhar no elementos disponíveis que
universo da escrita, mas se consideraram importantes nos
apropriaram e dominaram os códigos repertórios culturais em relação. Esse
da fala dos europeus. Nesse processo jogo de disputas simbólicas envolve
de interações, tal tipo de discurso uma dimensão política dos processos
funcionou como um instrumento de de significação, entendida como “o
negociação que, nem sempre, conjunto de motivações e interesses
ostentava traços marcadamente que orientam as escolhas dos
“diplomáticos”, como salienta agentes mediadores quando
Lienhard. Portanto, epistolar, privilegiam certas práticas e
historiográfico ou testemunhal, o significações em detrimento de
novo discurso indígena implica a outras” (p.34). Sugiro, portanto, que
prática de um diálogo intercultural o discurso produzido para os outros,
(Lienhard, 1992: XIII). de que nos fala Lienhard, pode ser
O pesquisador suíço descreve compreendido como estratégia de
o período colonial como um mundo apropriação indígena dos códigos
burocrático e dominado por ambições discursivos, retóricos, europeus.
pessoais. Nesse contexto, a colônia Assim sendo, os Tupi ‘dotados
era uma máquina de disputas por de fala’ – para usarmos uma
terras, títulos, dinheiro, poder, expressão da historiadora Daher
prestígios, entre outros. Cada (2007) –, nas crônicas francesas dos
contenda presumia uma informação padres capuchinhos Claude
com declarações de testemunhas. d’Abbeville e Yves d’Évreux, não
Assim, implicados ou interessados, apenas validavam os objetivos de
os indígenas foram solicitados a catequização e colonização dos
darem as suas versões dos fatos, capuchinhos, mas também seus
140
próprios interesses. No caso dos sobre os Tupi e a chamada França
5
embaixadores Tupi, a apropriação Equinocial6. Segundo Franz As palavras em língua
tupinambá desse artigo
dos códigos da retórica europeia Obermeier (2005), os franceses já foram restauradas com a
deveu-se, entre outros fatores, à dispunham de amplo conhecimento ajuda da linguista Ruth
Monserrat a partir do
necessidade de atuar dos Tupi quando tentaram colonizar o cotejo de documentos
discursivamente e dirigir-se a um Norte brasileiro. Esse saber históricos dos séculos XVI
e XVII, relacionados à
interlocutor (europeu) na busca por detalhado dos índios da costa língua tupinambá
alianças contra seus inimigos, fossem brasileira é resultante da história das (vocabulários, gramáticas,
manuscritos, catecismos,
eles grupos índios rivais ou relações franco-tupis, estabelecidas
etc.), com estudos
portugueses. desde as primeiras expedições linguísticos atuais.
Nesse sentido, os pedidos de coloniais, sobretudo a partir da 6
Como ficou conhecida a
batismo, os diálogos, conversas e malograda tentativa de colonizar o última tentativa de
discursos específicos, como as Rio de Janeiro, conhecida estabelecimento de uma
colônia francesa no Norte
harangue – tipo de discurso solene, historicamente como França do Brasil, atual estado do
proferido por chefes políticos nas Antártica. Maranhão. A França
Equinocial existiu entre os
assembleias ou diante de uma O capuchinho francês deixou anos de 1612 a 1615.
personagem importante (Daher, importantes informações a respeito
2004), tais como os discursos de dos Tupi no Maranhão, constituindo
líderes indígenas como Japí Guaçú, uma referência imprescindível para
Momboré Guaçú, Jaguára Abaété, os estudos desses povos no século
Ybyrápytáng, Acajuí, Pacamũ5, XVII. D’Abbeville, entre outros
presentes nas crônicas de D’Abbeville aspectos, apresenta uma preciosa
e D’Évreux –, podem ser entendidos cartografia das aldeias e seus
como discursos destinados aos morubixaba (chefes indígenas) da
outros. A título de análise, Ilha do Maranhão e terras
analisaremos o discurso de Itapucu, adjacentes. Ele registrou dados da
proferido diante da Corte francesa no organização sociocultural indígena
Palácio do Louvre, aqui também (enfatizando temas recorrentes nos
compreendido como um discurso manuscritos de época, como a
destinado aos ‘outros’, mais antropofagia e a poliginia) e o
especificamente, aos aliados manejo da fauna e flora, fornecendo
franceses. um pequeno tratado da
biodiversidade da região, dos saberes
O relato capuchinho tradicionais que circulavam na época.
O discurso solene de Itapucu O padre capuchinho recolheu ainda
está registrado na crônica “História importantes fragmentos da
da missão dos padres Capuchinhos cosmologia tupi, incluindo as
na Ilha do Maranhão e terras primeiras descrições dos saberes
circunvizinhas” do missionário astronômicos desses indígenas
francês Claude d’Abbeville, que (Silva: 2011), os primeiros dados a
esteve na Ilha de São Luís do respeito do movimento messiânico
Maranhão em 1612, ali dos chamados Tupinambás,
permanecendo por quatro meses. procedente, entre outras motivações,
Publicado em 1614, a crônica é um de uma tradição mitológica (Monod-
importante documento histórico- Becquelin, 1984).
etnológico, diria linguístico também,
141
Aurore Monod-Becquelin indígenas – para o envio de
destaca a originalidade de Claude representantes índios à França? 7
Além da categoria
d’Abbeville, sobretudo a qualidade do Esses são questionamentos que indígena morubixaba,
registro e o controle dos dados por buscaremos responder nas páginas encontramos na
documentação histórica,
ele coletados. Primeiro, porque a seguintes. com bastante recorrência,
coleta de informações, em seu livro, o termo
Principal/Principais para
tem o objetivo de fazer uma Itapucu: um mediador indígena denominar os chefes
‘verificação’ de tudo que ele lera na Corte francesa indígenas.
antes sobre os indígenas. Por outro Filho do morubixaba7 Guara- 8
Espécie de instrumento
lado, após sua viagem de regresso, o guaçu e de Guira-jará, Itapucu, era musical, chocalhos.
padre capuchinho verifica o que natural de Caiete (região próxima à
aprendeu com intérpretes e três Ilha do Maranhão), tinha por volta de
indígenas (Guaraju, Itapucu, Japuaí) trinta e oito anos quando embarcou,
que permaneceram um tempo com em 1613, para a França na viagem
ele na França. Além disso, o de regresso do padre D’Abbeville.
missionário, embora como Escolhidos por morubixabas da Ilha
autodidata, aprendeu a língua do Maranhão, Itapucu e cinco outros
tupinambá; aspecto importante, pois indígenas (Caripirá, Guaraju, Japuaí,
isso permitiu ao religioso o que a Manẽ e Patua) foram incumbidos,
autora chama de ‘um controle segundo D´Abbeville, de oferecer
adicional’ (Monod-Becquelin, 1984: seus serviços ao cristianíssimo rei
326) em seus registros. francês, além de solicitar a proteção
O relato do capuchinho do monarca aos súditos da nova
francês contém um número França Equinocial (D’Abbeville,1614:
considerável de discursos e diálogos 332v).
indígenas, registrados em estilo Os embaixadores indígenas
direto, aparentemente um pouco chegaram à Paris no dia 12 de abril
transformados, como explica Monod- de 1613 e tiveram uma calorosa
Becquelin. É o caso, por exemplo, do recepção. Sob os olhares atentos e
discurso de Itapucu, proferido diante curiosos de uma multidão, foram
da Corte francesa e escrito em conduzidos ao convento dos Frades
tupinambá por D’Abbeville. Com Menores, onde os receberam
relação a esse discurso, objeto de centenas de religiosos. Em seguida,
nossa análise nesse texto, algumas caminharam nas ruas da cidade, em
questões devem ser postas: Quem procissão, até a igreja no subúrbio de
foi Itapucu e o que realmente disse Saint-Honoré (D’Abbeville, 1614:
em Paris? Como se deu o processo 338). Conforme o padre capuchinho,
de escrita e de tradução de sua todos queriam vê-los com suas belas
“harangue”? Qual a relevância desse indumentárias de penas e seus
discurso na compreensão das ‘maracás’8 nas mãos. A estada dos
estratégias políticas indígenas representantes indígenas na Europa
(sobretudo a apropriação discursiva) foi marcada por cerimônias solenes,
criadas em contextos de interações ‘exóticas’ aos olhos dos franceses.
com o mundo não indígena no Entre elas estão o encontro dos Tupi
período colonial? Quais as com o rei Luís XIII, a rainha Maria de
motivações – indígenas e não Médicis (sua mãe) e todo seu
142
9
Os colchetes indicam
possibilidades outras de
interpretação e não constam
séquito, no palácio do Louvre, terra padres, filhos verdadeiros de no original.
Tupã, para cuidar de nós: faz
símbolo do poder real francês. bastante tempo já que eles foram 10
“Grand Monarque, tu as eu
Foi assim, em meio a para a nossa terra, não foram para lá agreable de nous envoyer des
em vão. É sabido que nossos chefes
personalidades político-religiosas da nos fizeram vir ao vosso país, para
grands personnages avec des
Prophetes pour nous
época que Itapucu discursou em sermos teus vassalos. Te pedimos enseigner la Loy de Dieu &
língua tupinambá. Segue abaixo o ainda que sejam fornecidos homens nous maintenir contre nos
santos para nossos conterrâneos [os ennemis. A iamais nous t’en
discurso, recuperado para o presente habitantes da nossa terra], que serons redevables: d’autant
artigo com o auxílio da linguista Ruth conheçam bem a Tupã e sejam que iusques à present nous
nossos professores. E valentes avons mené une vie
Monserrat. [guerreiros] também para nos miserable, sans loy & sans
proteger [salvar]. Todos os meus foy, nous entremangeans les
Ybý-iára, nde angaturám-eté erimbaé conterrâneos [os habitantes da minha uns les autres. I’admire ta
apyáva mborubixába kyrymbába terra] são teus servos, e oxalá sejam grandeur te voyant le
mondóbe xe-retama pupé paí ore s- compadres [aliados] dos Caraíbas. Monarque d’une telle nation
epiác ianondé ore-mboé-potár Tupan et d’un si grande païs. Et suis
nheengára ri re-pycyrõ apyá-memoã Se compararmos o discurso de honteux de me presenter icy
çuí. Oré oro-icó pe-rerecoár-eté-ramo devant toy, reconnoissant la
cuesé-nheým oro-icó iuruparí raýr- Itapucu com a tradução em francês difference qu’il y a entre les
amo, oro-io-ú racaé. Xe-putupab nde- de Claude d’Abbeville10, enfans de Dieu, que vous
yburuçú recé nde-repiác apyába opá- estes, et les enfants de
catú nde-remimboé cecó-reme yby
perceberemos uma diferença entre o Ieropary [diable], tel que
turuçú-baé nde iára cecó-reme. A-ie- que foi dito pelo indígena e a versão nous avons tousiour esté. Tu
momoryb-uçú nde-robaké ui-t-ú nde- as bien de l’honneur de nos
do capuchinho, nada acidental, diga- avoir envoyé de tels
repiác-potá Tupan raýra cuáb pe-
iabé-nhé cuesé-nheým iuruparí se de passagem. O mesmo foi prophetes & de si braves
raýra oro-icó. Nde angaturám-eté observado por Rodolfo Garcia (1923) hommes; & tu as fort bien
erimbaé apyába mondo-bé xe-retama fait, car ils n’ont pas esté
pupé paí Tupan raýr-eté ore-repiac em seu “Glossário das palavras e inutiles. En reconnoissance
ianondé: augé catú erimbaé i-xó-u frases em língua tupi...”. de quoy les principaux de
ore-retáma pupé n-o-só-i tenhé nostre païs nous ont icy
ebapó. I-ie-coapáb-amo ore-rubixaba Restaurando e traduzindo o discurso envoyé au nom de toute
ore-mboúr-ucár pe-retama pupé nde- indígena, Garcia diz que o texto em nostre nation pour faire
recé ieruré nde-remimboya ri t-oro- hommage à ta grandeur telle
icó-u. Oro-jeruré bé nde-recé t-o-
tupi não corresponde à tradução que nous devons, & te
nhe-meéng apyába angaturám ore- francesa que o acompanha. Para supplier de nous envoyer
retám-pora ri i-emboéçába Tupan nombre desdits Prophetes
Afonso Arinos de Melo Franco (2000:
recé ie-catú-baé ore-mboesára aé t- pour nous faire enfans de
o-icó. Kyrymbába abé ore-pysyrõ irã 100), a preocupação de D’Abbeville dieu & de grands guerriers
t-o-icó, opa-catú xe-yby-póra nde- foi “amoldar as palavras do selvagem pour nous maintenir,
remimbói-amo s-ecó-u, apyába protestants qu’à iamais nous
carayba atoaçaba t-oro-icó. aos interesses da sua Ordem” e seu demeurons tes subiects & tes
discurso “está longe de ser fiel ao serviteurs treshumbles &
[versão em português] Senhor da tresfideles, & fideles amis de
original”. Rodolfo Garcia, no entanto, tous les François”
terra, foste muito generoso por teres
mandado chefes valentes para a também faz algumas traduções (D’Abbeville, 1614: 341 f e
minha terra, e padres para, antes v).
indevidas, sobretudo quando ele diz
[mesmo]9 de nos ver, queriam nos
ensinar as palavras de Tupã e nos que Itapucu menciona a necessidade 11
De acordo com D’Abbeville
salvar dos homens maus. Nós somos do rei ir ao Maranhão. Essa fala (1614), David Migan era
vossos verdadeiros guardiões [os que natural de Dieppe e foi um
cuidam, zelam por alguém]. Outrora
inexiste no discurso transcrito por marinheiro que viveu desde
nós fomos filhos de jurupari (diabo), D’Abbeville em língua indígena. muito jovem no Brasil. Melhor
nos comíamos uns aos outros. Estou “truchement” da colônia, ele
O padre capuchinho conhecia voltou na viagem de regresso
maravilhado com tua grandeza
[poder], todos te olham [respeitam] e a língua tupinambá e contou com a do padre capuchinho à França
aos teus ensinamentos, por seres e acompanhou a estada dos
ajuda do “truchement” (tradutor) Tupi na Europa. Faleceu no
dono de uma terra tão grande. Eu me
regozijo muito vindo diante de ti, David Migan11 para escrever e Maranhão, em 1615, na
guerra entre franceses e
querendo te ver e conhecendo os traduzir a “harangue” de Itapucu. Na
filhos de Tupã, outrora éramos filhos portugueses pelo controle da
do jurupari. Foste muito generoso por
versão francesa, identificamos o região (Obermeier, 2005:
teres mandado de novo para a minha acréscimo de duas frases, 203). Era comum o envio de
crianças europeias ao Brasil
143 para aprenderem as línguas
indígenas, explica Franz
Obermeier (2005). Essa foi
uma prática recorrente dos
franceses.
inexistentes no manuscrito original, indígenas da costa brasileira,
que atribuem sentidos outros ao vulgarizada desde os primeiros 12
De acordo com Pero de
Magalhães Gândavo, “A
discurso. São elas: “(...) d’autant que séculos de colonização. Para Carneiro língua deste gentio toda pela
iusques à present nous avons mené da Cunha (2009: 186), trata-se da Costa he huma: carece de
une vie miserable, sans loy & sans forma canônica de Gândavo12, que no três letras –scilicet, não se
acha nella F, nem L, nem R,
foy, nous entremangeans les uns les século XVI torna-se lugar-comum e cousa digna de espanto,
autres”. Tradução: (especialmente será retomada posteriormente por porque assi não têm Fé,
nem Lei, nem Rei; e desta
porque até agora levamos uma vida Gabriel Soares de Souza. Não por maneira vivem sem justiça e
miserável, sem lei, nem fé, acaso docilidade e simplicidade, desordenadamente”.
(Gândavo [1570] 1980: 52).
devorando-nos uns aos outros) “& peculiaridades do indígena
tes serviteurs treshumbles & americano, garantem a constituição
tresfideles, & fideles amis de tous les do mito do “bom selvagem”,
François”. Tradução: (seus servos conforme apontou Adone Agnolin
humildes, muito fieis, fieis amigos de (2006).
todos os franceses). A partir da restauração do
Os trechos acrescidos estão discurso em língua tupinambá, no
associados às estratégias de Claude entanto, é possível afirmar que
d’Abbeville de apologia à empresa Itapucu, de forma simples e direta,
francesa de colonização e agradece ao rei francês o envio de
catequização no Maranhão. São Paí (padres) e kyrymbába (valentes,
procedimentos retóricos cujo efeito guerreiros) para ajudá-los a
esperado – no leitor, sobretudo no enfrentar os apoyämemoüa (homens
soberano francês – era de maus). É interessante notar que o
convencimento. Convencer, por um índio não usou a palavra
lado, da necessidade de manutenção motareymbára (de motár-eym ‘os
de uma política de colonização que não gostam, odeiam’, ou seja,
efetiva de terras em domínio ‘os inimigos’), como traduz
português, por outro, persuadir da D’Abbeville para o francês. Itapucu
essencial evangelização das almas diz apoyämemoüa (‘homens maus’).
indígenas (Daher, 2007: 277), tendo Habilidoso com as palavras –
em vista que os Tupi, no olhar atributo por vezes destacado pelo
capuchinho, eram fácil e missionário – Itapucu profere um
voluntariamente convertíveis. Apesar discurso marcado pela diplomacia
disso, a comparação do manuscrito indígena, evidente, por exemplo, no
com a tradução em francês nos uso de expressões indígenas, que ora
permite supor que o discurso foi destacavam a grandeza e
proferido realmente por Itapucu, se generosidade de Luis XIII, ora
não na íntegra, pelo menos em colocava os Tupi na condição de
parte. súditos reais. Ele emprega, por
A ausência de lei e fé, ‘na exemplo, o termo yvyîara, ‘senhor da
boca’ de Itapucu, potencializava a terra’, para qualificar o soberano e
imagem do indígena convertido e enfatizar seu poder, como na frase:
passível de ser convertido, construída Xe-putupab nde-yburuçú recé nde-
por D’Abbeville em seu livro. O repiác apyába opá-catú nde-
trecho diz respeito à caracterização remimboé cecó-reme yby turuçú-baé
depreciativa das sociedades nde iara – “Estou maravilhado com
144
tua grandeza (poder), todos os de ambos como “gênio mau das
homens te olham (respeitam), teus matas”. Nas mitologias indígenas, 13
Jurupari era um herói
súditos, porque és dono de uma terra contudo, anhanga e jurupary13 são civilizador (dos povos
indígenas da região Norte)
tão grande” (tradução de Ruth heróis civilizadores, pertencentes ao que foi considerado o
Monserrat). universo cultural e religioso desses diabo, durante três
séculos, por missionários e
Atribuir aos Tupi o lugar de povos. cronistas. Foi Stradelli, no
servos implicava não somente estar, Os documentos históricos são final do século XIX e início
aparentemente, sob o julgo francês, um procedimento de tradução duplo: do XX, quem desconstruiu
a imagem satanizada de
mas conseguir apoio bélico contra da língua indígena para uma língua Jurupari (Bessa Freire,
outros povos inimigos e a ameaça europeia e do registro oral para o 2004).
148
Priorizando a análise do papel possibilitaram conservar uma
ativo e criativo de atores indígenas, autonomia relativa diante das
procuramos demonstrar aqui, a partir imposições do novo contexto político-
de um diálogo interdisciplinar, a sociocultural. Foi o que fizeram os
dinâmica da vida social e da Tupi do Maranhão que enviaram uma
construção de identidades nas comitiva de embaixadores para, na
interações franco-tupis no França, falar diretamente com Luís
Setecentos. Longe de poderem ser XIII e reforçar a aliança franco-tupi.
compreendidos a partir de visões A análise do discurso de Itapucu,
estereotipadas, os indígenas foram e sobretudo no plano de sua estrutura
são agentes do processo histórico, linguística, revelou contradições
que dialogaram com os novos entre o dito e o traduzido, entre a
tempos, apropriando ou rejeitando preleção/arenga do chefe indígena e
elementos disponíveis no repertório a tradução do padre capuchinho.
cultural do invasor europeu. Entre as Ambos, embora com interesses
estratégias indígenas utilizadas está distintos, tinham um objetivo
a apropriação dos códigos discursivos comum: a manutenção da França
e retóricos, dos colonizadores, além Equinocial.
da diplomacia. Assim ‘dotados de O processo de reelaboração
fala’, os índios criaram um tipo de do discurso de Itapucu por Claude
discurso peculiar, sedutor: o discurso d’Abbeville tornou-se evidente no
destinado aos outros – aqui acréscimo de frases não ditas e na
compreendido como o resultado de tradução distorcida de algumas
disputas simbólicas, no contexto de palavras tupi, empregadas pelo
colonização, e não apenas como diplomata indígena. Essas
ferramenta de validação dos projetos constatações enfatizam a dificuldade
de conquista e catequização e a complexidade das traduções,
europeus. especialmente quando se trata de
Uma leitura possível é a de universos radicalmente distintos:
que os indígenas jamais deixaram de oralidade versus escrita, língua
atuar como sujeitos históricos frente tupinambá versus idioma francês,
ao sistema colonial; eles criaram além dos aspectos culturais.
estratégias de negociação que lhes
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RECEBIDO EM 12/12/2016
APROVADO EM 14/01/2016
151
QUANDO AS CHEFIAS INDÍGENAS
SE FORTALECEM ENQUANTO Abstract: This research aimed to know
PEQUENA NOBREZA NOS the process of incorporation of some
Indian chiefs in political logic of the
SERTÕES DAS CAPITANIAS DO
colonial administration that dug its
NORTE NA SEGUNDA METADE DO
tentacles in the northern hinterlands of
SÉCULO XVIII the captaincy and led to a slightly more
precise about the changes brought about
Drª. Juciene Ricarte Apolinário by indigenous legislation in boundaries
Universidade Federal de Campina between ethnic Indians and settlers,
Grande especially the introduction of the
apolinarioju@hotmail.com Directory of India in the second half of
the eighteenth century, and the
Resumo: A presente pesquisa teve o consequent creation of new indigenous
objetivo de conhecer o processo de elites. In the process of colonization of
incorporação de algumas chefias the northern hinterland of the captaincy
indígenas na lógica política da in the main brokers that were
administração colonial que fincou seus subsequently applied for patents officers
tentáculos nos sertões das capitanias do deployed to the villages from the
nortee nos conduziu a uma visão um directory. Characters who articulate the
pouco mais precisa sobre as demands of their ethnic origin brought
transformações trazidas pela legislação about by the new order, if installed. Thus,
indigenista nas fronteiras interétnicas the political practices of co-optation and
entre indígenas e colonizadores, exploitation of indigenous chiefs became
especialmente, pela introdução do monarchical tradition of the Portuguese
Diretório dos Índios na segunda metade State in dealing with the conquered
do século XVIII, e a consequente criação populations, aiming to control new
das novas elites indígenas. No processo populations. The more loyal and helpful
de colonização dos sertões das capitanias to the sovereign, more honor and
do norte os principais constituíam em privilege met the so-called "noble of the
intermediários políticos que, earth" that included the main indigenous,
posteriormente, solicitaram patentes de especially with the implementation of the
oficiais das vilas implantadas a partir do Directory of the Indians.
Diretório. Personagens que articulariam Keywords: indigenous leadership,
as demandas dos seus grupos étnicos de gentry, flagship of the North, political
origem às trazidas pela nova ordem que culture
se instalava. Destarte, as práticas
políticas de cooptação e valorização das Introdução
chefias indígenas tornaram-se tradição do A presente pesquisa teve o
Estado monárquico português no trato objetivo de conhecer o processo de
com as populações conquistadas, incorporação de algumas chefias
objetivando o controle de novas indígenas, na lógica política da
populações. Quanto mais leais e úteis ao
administração colonial que fincou
soberano, mais honra e privilégios
seus tentáculos nos sertões das
reuniam os chamados “nobres da terra”
que incluíam os principais indígenas,
capitanias do norte da América
especialmente, com a implantação do Portuguesa e nos conduziu a uma
Diretório dos Índios. visão um pouco mais precisa sobre
Palavras-chave: chefias indígenas, as transformações trazidas pela
pequena nobreza, capitanias do Norte, legislação indigenista nas fronteiras
cultura política
152
interétnicas entre indígenas e objetivando prover seus liderados. A
colonizadores, especialmente, na “nobreza” do líder indígena estava e
segunda metade do século XVIII e a ainda está na capacidade de
conseqüente criação das novas elites transformar relações de parentesco,
indígenas. No processo de de nominação, de construir caminhos
colonização dos sertões das adaptativos sejam culturais,
capitanias do norte, os indígenas religiosos e, principalmente, de novas
chamados de “principais” constituíam territorialidades. Como afirma
em intermediários políticos que, Manuela Carneiro da Cunha muitos
posteriormente, solicitaram patentes das chefias indígenas ao longo da
de oficiais das vilas implantadas a história acreditavam que tinham a
partir do Diretório dos Índios em missão de “pacificar o branco”
1758. arrogando para si a posição de
Personagens que articularam sujeito e não de vítima nos primeiros
as demandas dos seus grupos contatos com os colonizadores
étnicos, às trazidas pela nova ordem (CUNHA, 2002, p 7). Estas lideranças
que se instalava. Destarte, as se tornaram famosos e tiveram seus
práticas políticas de cooptação e nomes divulgados pelos seus feitos a
valorização das chefias indígenas favor ou contra os vassalos de Sua
tornaram-se tradição no Estado Majestade. Alguns citados, por
monárquico português, através da exemplo, em um curioso documento
administração colonial, objetivando o de meados do século XVIII,
controle de novas populações. Mas provavelmente escrito por um
não se pode deixar de dar visibilidade jesuíta, que elencou 25 exemplos de
aos papeis desempenhados pelas “Índios Famosos em Armas que neste
lideranças indígenas na trama de Estado do Brasil concorreram para
poderes da pequena nobreza nos sua conquista temporal e espiritual.”
espaços coloniais. Quanto mais leais John Monteiro destaca no referido
e úteis ao soberano, mais honra e documento o inesquecível Dom Filipe
privilégios reuniam os chamados Camarão, Pindobuçu índio
“nobres da terra” que incluíam os magnânimo intrépido e guerreiro, o
principais e oficiais indígenas, celebrado Tacaranha, Garcia de Sá,
especialmente, com a implantação do Arco Grande entre outros (FAUSTO &
Diretório dos Índios. MONTEIRO, 2007, p. 57).
Antes de tudo grande parte
dos líderes indígenas (Re) conhecimentos da “nobreza
eramrespeitados e, nobres diante de indígena” nos contatos
seu povo, como pessoas que interétnicos
conheciam as suas histórias fincadas As chefias indígenas e seus
nos mitos fundantes advindas as grupos étnicos buscavam
tradição oral dos seus velhos e “domesticar” o colonizador no
velhas. Para ser chefe precisava ter processo chamado pela antropologia
prestígio e para ter prestígio tinha de “cosmologias de contato”,
que ter liderança, carisma e, procurando entrar em novas relações
especialmente, generosidade para com os não-indígenas, recrutá-los em
com os membros do seu grupo suma para sua própria continuidade
153
(ALBERT, RAMOS, 2007, 07).Os contatos travados no cotidiano
primeiros contatos entre os grupos sertanejo tiveram que lidar com
étnicos que viviam nos sertões das situações de acomodação e conflito
capitanias do norte e os não- de grupos humanos que objetivavam
indígenas, apresentavam tomar posse do “outro”, do seu
circunstâncias de negociações e território, das suas práticas culturais
conflitos entre sujeitos com pautas e, notadamente, impor um modo de
culturais e historicidades distintas. vida fincado nos ditames impostos
Podemos exemplificar nomes de pelos “hábitos” da nobreza europeia.
chefias indígenas que se destacaram A adaptação à ordem
nas pelejas dos contatos e colonial também age em outros
negociações interétnicas como é o níveis, especialmente, no
caso do líder dos Janduí, denominado estabelecimento de relações de
Kanindé, envolto nas lutas travadas poder. A possibilidade da concessão
nos sertões das capitanias do Norte. de benefícios aos chefes indígenas no
Foi capturado e preso entre as processo pós-contato era um
fronteiras da Paraíba e Pernambuco, estímulo a inserção dos indivíduos a
reconhecido pelos próprios nova organização social em que eles
representantes da Coroa portuguesa teriam que se adaptar. Os títulos e
como “rei dos Janduí”, pois soube patentes, fornecidos as lideranças
criar mecanismos políticos de indígenas no processo de colonização
poder/saber ora conflituosos, ora de da América Portuguesa, serviam
alianças com os não-indígenas. como forma de garantir e reforçar as
Destacaram-se também o líder alianças estabelecidas, possibilitando
Cavalcante dos Ariú, o chefe Timbira a permanência e atuação indígena
Bruenk, este último era um através de cooptação à estrutura de
importante interlocutor político dos poder. “O imperativo do dar criava
Akroá Assú e Mirim que estiveram uma cadeia de obrigações recíprocas:
presentes nos territórios do sul do disponibilidade para o serviço régio;
Piauí até as paragens do rio São pedido de mercês ao rei em
Francisco nos sertões de Pernambuco retribuição aos serviços prestados;
e Bahia; os principais Mathias Peca e atribuição/doação de mercês por
Jenipapuassu articuladores dos parte do rei”(BICALHO, 2003, p. 47).
acordos de paz na capitania do Ceará A monarquia viria a se instituir como
e outros que não caberia citar nessas o elemento regulador fundamental no
poucas páginas. acesso aos diversos graus de nobreza
Revisitando o evento da o que valia para qualquer forma de
rendição dos índios Janduí, através mobilidade social.
de seu líder indígena Kanindé, ao A legislação portuguesa
contrário de diferentes acordos de procurou premiar as chefias
paz, a Coroa portuguesa havia “lhes indígenas ofertando os melhores
dado algo único na história do Brasil: lugares de poder (MONTEIRO, 2003,
reconhecimento como um reino p. 45). Sendo assim, eles passavam
autônomo e um tratado de paz com a ascender na hierarquia social como
Portugal” (PUNTONE, 2002, p 30). é o caso da premiação do líder
Chefias como Kanindé, na labuta dos indígena, André Vidal de Negreiros,
154
que na segunda metade do século importante “vassalo de Sua
1
Ofício do governado da
XVII foi recompensado por bons Majestade” que chamou sua atenção
capitania de Pernambuco,
serviços militares dedicados aos pela história heróica que perpassava José César de Meneses, ao
interesses dos luso-brasileiros nas as memórias de quem o conhecia nas marquês de Pombal,
Sebastião José de Carvalho
diferentes guerras contra outros lutas contra os “índios brabos”. Ações e Melo. 1775, março,
povos indígenas denominados de de um velho guerreiro a favor dos Recife. AHU_ACL_CU_015,
CX 118, D. 9057.
Tapuia. O referido indígena recebeu a luso-brasileiros que soube reinventar
patente de capitão e confirmação de as relações de poder diante do seu 2
Ofício do [governador da
sesmaria, passando a carregar o grupo e dos não-indígenas. O que capitania de Pernambuco],
José César de Meneses, ao
estigma de “leal e honrado” servidor chama a atenção do governador é a
[secretário de estado da
da monarquia. lucidez do oficial indígena de 124 Marinha e Ultramar],
O que chama atenção na anos, pois em 1773 ainda estava Martinho de Melo e Castro,
trajetória deste líder indígena, é que atuando como Juiz Ordinário na sua 1775, outubro, 10, Recife.
AHU_ACL_CU_015, Cx.
ao receber o sacramento do batismo localidade. Não economizando
120, D. 9199.
pelos missionários jesuítas, passou a palavras para descrever o perfil do
ser chamado de André Vidal de “nobre indígena” o governador
Negreiros, fazendo referência ao informa que ele era um homem
então governador da capitania do destacável por deixar uma
Maranhão que tinha o mesmo nome. descendência invejável, é neste
Este último conquistou seu espaço na aspecto que “... tem sido bom
hierarquia social participando das vassalo de Sua Majestade e fez
chamadas “guerras vivas de guerra aos gentios bravos, têm hoje
conquista e restauração de três filhos machos e cinco fêmeas,
Pernambuco”(BICALHO, 2003, p 33), trinta e três netos, cinqüenta e dois
sendo nomeado para três mandatos bisnetos, quarenta e três terceiros
como governador do Maranhão, netos e vinte e um quartos netos”.1
Pernambuco e Angola. No ano de 1775 o
Curioso é que no processo governador de Pernambuco solicita a
de escolhas das fontes para a coroa portuguesa ajuda de custo
estruturação da presente pesquisa, para a família do indígena André
tive a grata oportunidade de me Vidal de Negreiros, reafirmando a
deparar com o indígena, capitão nobreza dos feitos do aliado guerreiro
André Vidal de Negreiros no ano de contra outros grupos étnicos que
1775 aos 124 anos e fincado na viviam nas fronteiras do sertão.2 A
hierarquia social dos espaços família com dezenas de indivíduos,
cotidiano da capitania do Ceará aparentemente, representavam os
Grande. Naquele momento, o ideais da política pombalina de plena
referido indígena detinha o status de integração da população indígena aos
Capitão dos Reformados de Ceará ditames civilizacionais proposto na
Grande. segunda metade do século XVIII.
Era março de 1775, e o Claro que na pratica não se sabe as
governador de Pernambuco, José reais relações de etnicidade dos seus
César de Meneses envia uma descendentes com a sociedade
correspondência ao Marquês de colonial não-indígenas devido ao
Pombal e, entre outros assuntos, deu silenciamento da documentação.
maior destaque a longevidade de um
155
Em 30 de setembro de 1777, evidenciado que os “capitães” eram
o governador de Pernambuco indígenas escolhidos e colocados na 3
Ofício do [governador da
novamente envia uma direção de grupos e povoações capitania de
Pernambuco], José César
correspondência ao Secretário de indígenas pelas autoridades oficiais,
de Meneses, ao
Estado da Marinha e Ultramar missionários ou simples particulares, [secretário de estado da
expressando grande pesar nas suas como seus delegados. Geralmente, Marinha e Ultramar],
palavras, ao informar acerca do eram indicados aqueles mais Martinho de Melo e
Castro, 1777, setembro,
falecimento do líder indígena, André recíprocos aos interesses do
30, Recife.
Vidal de Negreiros aos “130” anos.3 É colonizador, para servirem de contato AHU_ACL_CU_015, Cx.
perceptível que a legitimação ou intermediários entre seus 127, D. 9668.
conquistada por este “nobre” “parentes” e as autoridades coloniais 4
Requerimento do capitão
indígena foi institucionalizada aos (LOPES, 2005,p 35). Esses capitães dos índios da aldeia de
moldes do Antigo Regime: através da dirigiam as companhias de Jacoqua, João Ribeiro, ao
príncipe regente D. Pedro.
herança do status social (era um ordenações que foram criadas nas 6 de maio de 1676.
respeitado chefe indígena para o seu missões para agirem em favor da Paraíba.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 2,
grupo étnico) e pelos serviços Coroa, principalmente, contra outros
D. 98.
prestados ao rei “o que firmava a grupos indígenas que negavam os
5
reciprocidade instituída entre projetos colonizadores, mas também CARTA de Vicente
Ferreira Coelho, ao rei [D.
soberano e vassalo”. Não obstante, à catequização, ou mesmo contra José I], AHU, Paraíba, Cx.
tratava-se de cristalizar o poder dos povos estrangeiros (MONTEIRO, 18, D. 1435.
oficiais índios e seus descendentes a 2007,p 29).
partir da sua caracterização enquanto No entanto, é preciso
“nobreza colonial” (ROCHA, 2009, evidenciar que nem sempre as
p16). patentes repassadas às lideranças
Vejamos outro evento de indígenas eram prerrogativas para
negociação no tocante aos direitos e que estes fossem respeitados e
privilégios agenciados por João diferenciados pela sociedade colonial
Ribeiro capitão dos índios da Aldeia não-indígena. Esta assertiva é
Jacoqua, capitania da Paraíba. Este perceptível no evento ocorrido na
indígena escreveu uma carta ao capitania da Paraíba com o capitão
Conselheiro Ultramarino, pedindo que indígena Panatí e seu grupo étnico.
o rei de Portugal lhe confirmasse a Justificando “não saberem
patente do posto de capitão dos escrever” lideranças dos Panatí
Índios da Aldeia Jacoqua, conforme a solicitaram ao fidalgo, Vicente
jurisdição do Reino de Portugal 4. Ferreira Coelho que redigisse uma
Neste sentido, o requerimento de carta ao rei de Portugal, D. José I em
João Ribeiro representava aos olhos nome de todo o grupo. O dito fidalgo
dos colonizadores portugueses a narra, pormenorizadamente, as
conquista de um título de “nobreza”, violências sofridas pelos Panatí, na
vale ressaltar indígena, por se tratar pessoa do seu capitão, sendo
de um “bom vassalo ou súdito real”, retirada as suas terras pelos
o qual trouxe inúmeros benefícios moradores do sertão para criação de
para as políticas de colonização gado, com “o pretexto de que
portuguesa, principalmente atuando comiam e furtavam lhes os gados”.5
e comandando seus homens nos Os índios despejados não eram
regimentos militares. É preciso deixar aceitos nem pelos moradores do
156
Piancó e “menos os queriam no O documento acima revela
sertão das Piranhas, aonde foram que os Panatí souberam utilizar das
6
também corridos pelos moradores e práticas políticas dos colonizadores Idem, D. 1435.
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Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niteroi, 2009.
164
OS ESTUDOS INDÍGENAS E O etnohistoriadores e antropólogos
BRASILIANISMO ativos neste campo nos Estados 1
Tradução por Ricardo
Maciel dos Anjos.
CONTEMPORÂNEO Unidos é pequeno o suficiente para
NA AMÉRICA DO NORTE1 que possamos manter contato
constante, colaborar em vários
Dr. Hal Langfur
projetos e aprender muito com os
University of New York at Buffalo
trabalhos uns dos outros. Nossas
hlangfur@buffalo.edu
tradições historiográficas nacionais
Resumo: O presente texto reproduz implicam trabalharmos dentro de
a conferência de abertura ministrada certos contextos específicos, que
no III Seminário Internacional ajudam a explicar o motivo por
América Indígena: processos de escolhermos nossos assuntos de
mediação e mestiçagens realizado no pesquisa e como lidamos com eles.
Rio de janeiro em 2015. No campo da etnohistória, ocorre-
Apresentamos um recenseamento de me, em especial, o legado influente
pesquisas e debates sobre as do academicismo vigoroso focado
questões relacionadas as populações nos povos nativos da América do
indígenas, relacionando os estudos Norte e na história de regiões
realizados nos Estados Unidos e no fronteiriças. Mas, no final das
Brasil consideradas as suas contas, nossa genealogia liga
convergências e singularidades. brasilianistas aos brasileiros. Vocês
Palavras-Chave: Estudo indígenas,
são nossa família acadêmica,
Brasilianismo, América do Norte
nossos mentores e interlocutores.
Vocês, acima de tudo,
ABSTRACT: This text reproduces the
estabeleceram os padrões pelos
opening lecture given at the III
quais podemos nos comparar.
International Seminar Indigenous
America: mediation and
Neste sentido, vocês conhecem –
miscegenation held in Rio de janeiro provavelmente melhor do que nós
in 2015. We present a research – os dados genealógicos que nós,
registration and debates on issues pesquisadores estrangeiros,
indigenous populations, relating the contribuímos ao campo que vocês
studies in the United States and institucionalizaram e
Brazil considered its similarities and desenvolveram, questão por
singularities. questão, palestra por palestra, livro
Keywords: Indigenous Study, por livro.
Brasilianismo, North America O que pode não ser tão
óbvio, contudo, é a maneira com
Quando a Dra. Izabel que nosso treinamento e estrutura
Missagia me convidou para falar institucional afeta a maneira em
sobre o tema dos estudos indígenas que nós, brasilianistas nos Estados
e o brasilianismo contemporâneo Unidos envolvidos na área de
na América do Norte, eu logo decidi história indígena, formulamos
não o fazer partindo da genealogia. nossas pesquisas e transmitimos
O grupo de historiadores, nossas descobertas – junto das
165
suas descobertas – aos nossos Mas isso não é sempre algo
alunos. Somos, quase sempre, ruim. A amplitude de nossas 2
Robert B. Townsend, “The
Rise and Decline of History
contratados por departamentos de responsabilidades como professores Specializations over the
história, dentro dos quais somos os nos faz focar em conexões e Past 40 Years,” Perspectives
on History (Dec. 2015),
únicos pesquisadores estudando o comparações. Também temos que https://www.historians.org/
Brasil. Frequentemente, somos os nos comunicar com leitores de publications-and-
directories/perspectives-on-
únicos – ou um entre dois ou três, língua inglesa que enxergam o history/december-
em departamentos grandes – Brasil como uma parte da história 2015/the-rise-and-decline-
of-history-specializations-
estudando a América Latina por maior da América Latina, e cujos over-the-past-40-years.
inteiro. Recai sobre nós o ofício de fundamentos educacionais são os
ensinar sobre toda a longa história da história dos Estados Unidos.
dessa grande região. No meu caso Quando obtemos sucesso, esta
particular, na State Universityof visão mais ampla nos ajuda a guiar
New York at Buffalo, uma alunos pelos excessos e
instituição de pesquisa excepcionalismos de historiografias
relativamente grande, eu sou, nacionalistas, tanto brasileiras
como de costume, o único quanto norte-americanas. A
brasilianista no departamento de maioria de nós que trabalha com os
história, e tenho somente mais povos indígenas do Brasil colonial,
uma colega que trabalha com a por exemplo, inclui em algum grau,
América Latina. Suas áreas de em nossos artigos e livros,
ensino incluem as histórias do paralelos puxados das Américas
México, do Caribe e da América espanhola, britânica, e,
Latina contemporânea. As minhas frequentemente, também das
incluem o Brasil (sim, todo o Brasil, francesa e holandesa.
de 1500 até o presente), América Com estas considerações
Latina colonial e o mundo atlântico. iniciais, permitam-me propor uma
Sei que estas atribuições vão única questão. Esta é uma questão
parecer absurdamente amplas para que todos vocês já perguntaram. É
vocês, mas é esta a realidade das uma questão que tem energizado a
posições que ocupamos em uma expansão do interesse pelos
profissão no qual três quartos dos estudos indígenas aqui no Brasil
docentes em história nacional se durante os últimos 30 anos. Depois
especializam na história ou dos de vocês, nós também temos feito
Estados Unidos ou da Europa2. O essa pergunta – e o temos feito
um quarto restante se encarrega de dentro dos parâmetros intelectuais
ensinar sobre o resto do mundo, e institucionais que descrevi.
encargos os quais temos de Enquanto nossas respostas têm
convencer comitês de contratação muito em comum com as dos
de que estamos qualificados e acadêmicos brasileiros, espero
aptos a exercer. Os cursos que poder realçar também certas
ministramos e, inevitavelmente, os diferenças. A pergunta é esta:
auxílios que recebemos, são “Onde estão os índios?”
influenciados por esta realidade.
166
Onde Estão os Índios? tinha, então, estabelecido os
Na maioria dos cursos padrões de conquista, trabalho
introdutórios sobre o passado coercivo e colapso populacional que
colonial da América Latina assolaram o território dos EUA. As
ensinados nas faculdades dos EUA, densas populações, agriculturas
e na maioria dos livros didáticos intensivas, rotações de trabalho
utilizados nestes cursos, os índios forçado e sistemas tributários
dominam a cena. Digo, eles o estatais que anteriormente
fazem quando o tópico é a América apoiavam a realeza, o clero e
espanhola. Por que é que eles guerreiros, tornaram-se a base da
desaparecem tão rapidamente do riqueza colonial. Mas não obstante
nosso panorama histórico da o quão mortais as doenças, o quão
América portuguesa? cruel a opressão, ou o quão
Naturalmente, esta é uma questão determinados a coroa e a igreja
que preocupa a maioria de nós que estavam em transformar os
se propôs a fazer pesquisas no sobreviventes desta catástrofe em
campo da história indígena do cristãos desenraizados, os povos
Brasil. Achamos que é uma questão nativos persistiram e resistiram,
que diz respeito também aos impondo demandas sobre terras e
historiadores da América do Norte recursos, opondo-se a avanços na
colonial. Achamos que diz respeito depredação, negociando sua
aos nossos alunos. Achamos que introjeção na sociedade colonial, e
explorar esta questão pode nos assegurando suas práticas
ajudar a compreender o que norte- culturais.
americanos rotineiramente se O Brasil, como os alunos
esquecem de ensinar e não americanos frequentemente
aprendem sobre a vastidão do aprendem, foi um caso atípico. Os
hemisfério ocidental que existe portugueses tiveram que lidar com
além do território continental dos povos mais móveis e menos
Estados Unidos. hierárquicos, espalhados por uma
Ao que o típico curso extensa costa atlântica. Sem o
introdutório de história Latino- costume de produzir excedentes
Americana em uma de nossas agrícolas, organizados em famílias
faculdades ou universidades e tribos, ao invés de em Estados
prossegue, progredindo da poderosos e reunidos em vilas
conquista à consolidação da temporárias, ao invés de
sociedade colonial na América concentrados em cidades
espanhola, os índios estão por toda imponentes, como Tenochtitlan e
parte. É uma história que não se Cuzco, os povos brasileiros falantes
pode contar sem eles: Colombo de tupi, de acordo com as histórias
encontrou os taínos na Ilha de São convencionais, rapidamente
Domingos; Cortés, os maias e sucumbiram, ou desapareceram
astecas no México; Pizarro, os incas floresta adentro. Alguns
no Peru. O caldeirão do Caribe já missionários denunciaram os
167
abusos sofridos pelos índios, mas da desaparição dos índios
antes que uma conversão profunda brasileiros são históricas e
ao cristianismo pudesse acontecer, historiográficas. Elas podem ser
os índios desapareceram, atribuídas a desenvolvimentos na
substituídos por um influxo de disciplina acadêmica de história, e
escravos africanos. Relatos da a limites disciplinares tradicionais.
sociedade colonial brasileira Eles têm a ver com impedimentos à
amadurecida não mais afastavam permuta acadêmica que são
às periferias os atuantes de fora surpreendentemente teimosos,
das elites – como outrora fizeram – apesar do mundo globalizado.
mas a ênfase é nos escravos Algumas palavras acerca de cada
africanos e em seus descendentes. um destes motivos ajudará a
Os povos nativos quase nunca clarear a natureza do problema,
aparecem. Índios são para a assim como o vivenciamos nos
América espanhola, e não para a Estados Unidos.
portuguesa, e alunos norte-
americanos curiosos ficam se Apagando a História Indígena
perguntando por quê. Mais uma vez, quero lembra-
Como os pesquisadores los que estou levando em
neste congresso sabem (e consideração a perspectiva norte-
ajudaram a explicar), longe de americana, que tradicionalmente
desaparecerem rapidamente da enxerga a história do Brasil como
costa atlântica da colônia, os povos parte da história que engloba o
nativos formavam a mão-de-obra passado da América Latina. Neste
litorânea primária – tanto livre contexto, a ideia que os povos
quanto cativa – durante o primeiro nativos exerceram uma influência
século de colonização. Fora das modesta no começo da história do
mais lucrativas áreas produtoras de país vem, em parte, de dados
açúcar do nordeste, que tendia à demográficos. Populações indígenas
mais cara mão-de-obra de escravos pré-colombianas, cujos números
africanos a partir do início do século são, até hoje, incertos e
XVII, uma multiplicidade de nativos controversos, evidenciam
independentes e moradores de distinções-chave entre as principais
missões continuou a existir nos áreas de colonização durante o
litorais durante o período colonial. primeiro século de expansão
Se os índios nunca desapareceram, ultramarina portuguesa e
se eles continuaram a ser figuras espanhola. Estimativas
importantes em todas as regiões, conservativas da população do
por que é que os estudiosos México, logo antes do contato com
ignoraram esta presença por tanto os espanhóis, sugerem até 20
tempo? Esta é uma questão que milhões de nativos. A região andina
muitos de vocês já ponderaram. tinha até 12 milhões de habitantes.
Vocês sabem que a resposta é Em comparação, apesar do vasto
complexa. As origens intelectuais território, a região que se tornou o
168
Brasil era o lar de provavelmente era demasiado dispendioso. Dadas
três ou quatro – e talvez até seis estas características, não é
ou mais – milhões de habitantes. surpreendente que a história
Se assumirmos um colapso brasileira não tenha sua versão de
demográfico de até noventa por Cortés ou Pizarro – nenhum
cento durante o primeiro século protagonista europeu relevante,
após o contato, a situação não tomado como herói ou vilão, sobre
melhora muito. Graças aos simples quem se baseiam as primeiras
números de pessoas, os narrativas de encontro, resistência
sobreviventes dos impérios Inca e e subjugação indígena. Talvez seja
Asteca exerceriam uma influência o caso de nós, americanos, sermos
maior. Não há como estudiosos especialmente suscetíveis a
ignorarem a importância dos povos narrativas maniqueístas, o que
mesoamericanos e andinos na dificulta nossa compreensão da
sociedade pós-conquista. complexidade do começo da
Os menos-numerosos e não história brasileira.
sedentários índios, Tupis e não- Diferenças em densidades
Tupis, que viviam ao longo do populacionais, estratégias de
litoral brasileiro confundiram os subsistência e organização política
primeiros escritores dos primeiros e social só explicam parte do
relatos com sua diversidade problema, contudo. Também se
linguística e fragmentação política. deve levar em conta ideologias
Os povos interioranos e suas dúzias nacionais e tendências das elites
de famílias linguísticas aumentaram intelectuais. Aqui eu os convido a
enormemente esta situação reconhecerem comigo uma
desconcertante. Quão mais nômade cegueira há muito comum entre
o grupo, menores suas estudiosos brasileiros e
comunidades e menos articuladas americanos. Agora sabemos, por
suas hierarquias políticas. Porém, a exemplo, que agricultura e
organização social de grupos aquicultura intensivas criaram
familiares indígenas podia ser excedentes agrícolas na bacia
bastante complexa – algo que amazônica capazes de suportar
observadores ignoraram durante sociedades maiores e mais
vários séculos. A ausência de uma estratificadas do que se pensava.
liderança centralizada significou Mas suas conquistas culturais –
que grupos nativos na América cerâmicas maravilhosas, tradições
portuguesa não se rendiam em orais complexas e conhecimento
massa. Sem riquezas acumuladas inigualável da floresta –
oriundas de ouro ou excedentes permanecem pouco apreciados.
agrícolas e sem tradição de John Monteiro, nosso amigo e
trabalho forçado, conquistar estes ligação transnacional, cuja falta é
grupos apresentava poucas tão sentida, alertou aos estudiosos
vantagens, já que liga-los a brasileiros e americanos sobre
produção comercial visando lucro nossa visão limitada. Ele notou que
169
a primeira geração de intelectuais aos etnógrafos, cujas descobertas,
3
John M. Monteiro, "The
brasileiros, no século XIX, que se muitas vezes expressivas, Heathen Castes of
propuseram a escrever a história contribuíram para uma visão de Sixteenth-Century
Portuguese America: Unity,
de sua nação recentemente tornada que sociedades nativas seriam Diversity, and the Invention
independente, consagraram uma incapazes de se adaptar a of the Brazilian Indians,"
Hispanic American Historical
imagem de que os índios eram, mudanças históricas, ou sequer de Review 80, no. 4 (Nov.
cito: “nobres, valorosos e existir fora da história. 2000): 710, 717.
(especialmente) extintos (...) a Os historiadores hesitaram,
ideia de que o início da história em parte, em aventurar-se pelo
brasileira significava o fim dos território de história indígena
índios se tornou tão comum que porque as provas arquivadas,
poucos historiadores (...) se independente de sua quantidade,
preocuparam em levar em eram demasiado desconexas,
consideração a presença e tendenciosas e difíceis de
participação constantes dos povos decodificar. Escritas por
indígenas, que, até os dias de hoje, missionários, oficiais do governo,
continuam a tornar a história elites arrogantes e colonos
brasileira um enorme quebra- sedentos por terras e mão-de-obra,
cabeças a ser resolvido por futuros as primeiras fontes publicadas e
estudiosos.”3 Similarmente ao arquivadas simplesmente não
Brasil, antes de a geração atual de permitiam, ao que tudo indicava,
estudiosos ocupar suas posições fazer uma reconstrução fiel dos
acadêmicas nos Estados Unidos, pontos de vista dos nativos. Poucos
era raro que um brasilianista documentos sequer se referiam a
fizesse dos índios o foco de seus índios individuais por nome,
estudos. tampouco refletia seus
Estamos mais certos do que pensamentos ou sentimentos.
nunca que foi um grande erro Desde o começo, porém, havia
assumir que uma simples falta de certa dissimulação nestes
fontes explicava até que ponto os argumentos acerca das fontes:
índios tinham sido excluídos da afinal, os documentos que
história do Brasil. Escritores explicitavam as perspectivas dos
europeus, tanto religiosos quanto colonizadores também eram
laicos, deixaram extensas nebulosos. Elites letradas
descrições de grupos nativos no representavam os índios pré-
começo do século XVI. Tais literatos com preconceito. Mas eles
documentos podem, tempos atrás, também se descreviam de maneira
ter sido usados para explicar as complacente. Fontes que dizem
mudanças sofridas por estes grupos respeito aos índios não eram os
depois que mercadores, únicos documentos que mereciam
missionários e colonos do além-mar ceticismo. Restringir a análise
surgiram nos litorais brasileiros. somente ao que era representado
Mas, pelo contrário, historiadores de maneira imparcial nos arquivos
evitaram o assunto, relegando-o eliminaria a possibilidade de
170
escrever a história de qualquer pressupunha uma visão estática de
povo, seja ele colono ou índio. cultura, que tinha pouco a ver com
Mudanças aconteceram os turbilhões, alcances e
lentamente, mas acadêmicos nos ambiguidades da realidade
EUA, seguindo o exemplo de histórica. É aqui que o trabalho das
Manuela Carneiro da Cunha, John Dras. Maria Regina Celestino de
Monteiro, José Bessa Freire, e Almeida, Izabel Missagia e outros,
alguns outros, acabaram por fim a presentes nesse congresso, tem
aplicar essa e outras percepções a sido tão influente conosco na
fontes conhecidas, ignoradas e América do Norte. Ao insistir na
recém-descobertas. O relato integridade do índio supostamente
documental começou a sugerir puro e isolado, estudiosos tinham
novos temas e significados perante os condenado duplamente a um
as dificuldades analíticas em torno passado imutável. Em primeiro
de entidades históricas que eram, lugar, estudiosos ajudaram a criar
em sua maioria, iliteratas. Junto o mito do nativo primitivo, nobre
com nossos colegas brasileiros, nós ou selvagem, intocado pela
brasilianistas aprendemos a usar história, diferente de e anterior à
uma enorme quantidade de fontes sociedade moderna. Então, quando
arquivais mundanas, incluindo não conseguiam, na prática,
crônicas antigas, relatos de localizar tais distinções,
expedições, escritos de dispensaram os índios históricos
missionários, mapas manuscritos, como corrompidos pelo contato
estudos de propriedade, títulos de com o mundo colonial. Caricatos
posse de terra, dados censitários, dessa maneira, os índios eram ou
testamentos, inventários, casos de convertidos ou canibais – ambos de
inquisição, processos judiciais, interesse limitado a historiadores
petições em nome de colonos e acadêmicos. Foi somente quando
índios, remessas de vilas nativas, estudiosos mudaram seu foco para
documentos eclesiásticos e as conexões coloniais e relações
certidões de nascimento, batismo e interétnicas, para as sociedades
casamento. híbridas, mestiçagens e culturas
Por fim, inovações advindas fluidas, que ricas histórias
do estudo de escravos, começaram a surgir a partir do
camponeses, mulheres e outras encontro de povos nativos e não
pessoas cujas vozes os arquivos nativos, que interagiram uns com
silenciaram, incluindo as dos os outros ao longo dos séculos –
nativos norte-americanos, tanto de formas violentas quanto
ajudaram a atiçar mais interesse pacíficas.
sobre a história indígena do Brasil. Mesmo no Brasil, como
Assim como o reconhecimento de vocês sabem, não foi até o começo
que a busca por um ponto de vista dos anos 1990 que os estudiosos
nativo virgem, inalterado pelo que mencionei, munidos destas
contato com os intrusos, percepções e novas abordagens,
171
lançaram o que pode ser chamado nunca existiu de fato, exceto como
de um esforço coordenado para uma óbvia ausência.
lidar com algumas das mais De todos os historiadores
gritantes omissões e equívocos da nos EUA que pesquisam o período
história dos índios brasileiros. colonial brasileiro, há um número
Houve, é claro, contribuições surpreendente – a maioria, penso
individuais precedentes, mas elas eu – focado em história indígena.
não trouxeram consigo as amplas Antes que vocês se deixem
mudanças que ocorreram na área impressionar por este fato, deixe-
nos anos 1990. A intensificação da me esclarecer, não sem frustração
pesquisa continua, aqui e conosco, e embaraço, que há menos de uma
de diversas formas. Suas dúzia de estudiosos sobre o Brasil
descobertas continuam a nos colonial em grandes faculdades e
impulsionar na América do Norte. universidades em todo nosso país.
Tendo incorporado as Então, esta transformação, eu
ferramentas da antropologia, reitero, é uma transformação
geografia cultural, estudos culturais brasileira. Nós brasilianistas
e análise literária, os brasilianistas tivemos a sorte de ocupar nossos
estão revisitando fontes antigas e postos em uma época em que
descobrindo novas, assegurando pudemos nos beneficiar do seu
assim uma posição mais trabalho extraordinário.
proeminente aos povos nativos na Na esperança de
sociedade luso-brasileira e às suas proporcionar futuras trocas,
margens territoriais. Queremos deixarei na biblioteca da UFRRJ
contribuir, mesmo que de maneira uma cópia da coletânea que
pequena, a este esforço organizei recentemente, Native
colaborativo e transnacional de Brazil: Beyond the Convertand the
mudar as explicações convencionais Cannibal, 1500 – 1889
do passado do Brasil que (Universityof New Mexico Press,
diminuíram a contribuição histórica 2014), que inclui trabalhos da
de seus povos indígenas. Como maioria dos brasilianistas norte-
aconteceu aqui, há quem, nos EUA, americanos ativos na área de
tenha começado a classificar os estudos indígenas coloniais e
resultados deste esforço como a novecentistas. Tivemos a sorte de
“nova história indígena” do Brasil – ter, nesta coletânea, contribuições
o que apenas reforça a importância das Dras. Maria Regina Celestino de
das mudanças em curso. Stuart Almeida e Maria Leônia Chaves de
Schwartz outrora descreveu a Resende, da UFSJ. Todas as
mudança com uma referência ao contribuições neste livro visam
romance de Thomas Hardy, The desafiar a divisão acadêmica
Return of the Native(O Retorno do tradicional dos índios brasileiros em
Nativo). Estes dizeres, porém, dois grupos, que chamo de “os
sugerem a suplantação de uma convertidos e os canibais”, ou, em
“velha história indígena”, que outras palavras, os que aceitaram o
172
domínio colonial e os que o recentemente aposentados das
rejeitaram violentamente. Para vos universidades de Michigan e
dar uma prova da variedade Georgia, analisam as políticas e
presente neste trabalho, deixem- resistências em Goiás, durante os
me explicar que os ensaios podem séculos XVIII e XIX. Creio que
ser divididos em quatro grupos, de vocês verãono livro um panorama
acordo com as regiões que bastante útil do estado atual dos
discutem: Brasil costeiro nos estudos indígenas entre os
séculos XVI e XVII, a bacia brasilianistas nos Estados Unidos.
amazônica, Minas Gerais e Espírito É claro que há um público
Santo e, finalmente, Goiás. O muito maior aqui para um trabalho
capítulo escrito por Alida Meatcalf, de tal natureza. E o suporte
da Rice University, explora institucional – por mais que sempre
autoridade religiosa, estrutura seja um problema no Brasil – é,
política e resistência indígena nas não obstante, mais amplo aqui, o
aldeias da Bahia do século XVI. que encoraja que um maior número
Dra. Maria Regina compartilha com de historiadores profissionais
leitores de língua inglesa seu dedique suas carreiras ao campo.
extraordinário trabalho sobre Como qualquer estudioso
negociação e reconstituição étnica experiente da disciplina sabe,
nas aldeias do Rio de Janeiro. O contudo, muito do que parece
finado antropólogo Neil Whitehead natural não o é, no que diz respeito
examina a incursão de várias à escrita da história. Devido a
potências coloniais na região motivos particulares ao nosso
amazônica e as consequências passado nacional, em especial à
disso ao longo de três séculos. proximidade, a maioria dos norte-
Barbara Sommer, da Gettysburg americanos versados em história
College, discute o que ela descreve latino-americana foca nas regiões
como uma “nobreza nativa” nas colonizadas pela Espanha – em
aldeias do Amazonas durante a especial o México. Há muito mais
época do Diretório. Nos capítulos alunos de espanhol do que de
focados no Sudeste, Dra. Leônia e português nos EUA. Dos
eu documentamos o movimento, historiadores que focam no Brasil,
sob a pressão de uma invasão apenas uma minoria se especializa
violenta, dos botocudos e de outros no período colonial, onde o impulso
grupos da mata atlântica para as revisionista nos estudos indígenas
cidades e vilas de Minas Gerais. tem se concentrado. Enquanto isso,
Judy Bieber, da University of New um número alarmantemente
Mexico, relata a falha do governo pequeno de obras de pesquisadores
em transformar os botocudos em brasileiros é traduzido para o
trabalhadores agrícolas, após a inglês. Estas questões estruturais
declaração de guerra contra eles, contribuem para a permeação lenta
em 1808. Finalmente, Mary de novas ideias e pesquisas
Karasch e David McCreery, ambos acadêmicas em nossos livros e
173
salas de aula – que foi o ponto de centenas de grupos acabaram por
partida desta minha fala. Esta desaparecer como entidades
situação é particularmente distintas. Outros acharam maneiras
desafortunada neste momento, em de se adentrarem na sociedade
que historiadores americanos têm colonial, e depois nacional, fazendo
sugerido perspectivas mais importantes, se restritas, escolhas
inclusivas atlânticas, hemisféricas e ao longo de seu caminho. Seja
transnacionais mais inclusivas favorecendo os fundos remotos da
como antídotos para o selva, vivendo em reservas
paroquialismo e o excepcionalismo. indígenas, estudando e trabalhando
Dada a natureza de organização em áreas urbanas, ou pressionando
social nativa, faz sentido comparar legisladores federais em Brasília em
os povos não sedentários e busca de tratamento melhor, eles
semissedentários dos povos das continuam a reagir às
Américas do Norte e do Sul. Estes circunstâncias, e lutam para dar
grupos têm mais em comum uns forma a seus futuros. Hoje, os que
com os outros do que com as se auto identificam como povos
grandes sociedades sedentárias do indígenas formam oficialmente
México e do Peru. Dedicar mais menos de um por cento da
atenção a suas semelhanças e população do Brasil. Seu número
diferenças traria grandes benefícios reduzido torna fácil esquecer a que
às histórias comparativas indígenas ponto suas presenças foram
e coloniais das Américas. Devíamos importantes – e continuam a ser –
todos incentivar tais interesses muito depois de seu primeiro
comparativos entre nossos alunos. encontro com os europeus. Há
Por fim, permitam-me ainda muito a ser feito por todos
terminar enfatizando uma maneira nós para ajudar a reconstruir as
em que nós brasilianistas histórias de povos há muito
estudiosos dos povos nativos não reduzidos a estereótipos,
somos diferentes de vocês. Refiro- erroneamente considerados
me à nossa responsabilidade diminuídos ou erradicados, e
compartilhada. Passamos nossas considerados irrelevantes, mesmo
vidas profissionais estudando e quando alteraram a história de uma
ensinando sobre povos que, em parte enorme das Américas. Quero
vários casos, foram derrotados e estender minha profunda gratidão à
desterrados por um avanço colonial Dra. Izabel e a todos vocês, por
inexorável. Caçados e terem me convidado para vir aqui e
massacrados, forçados a trabalhar, participar deste comprometimento
ou adoentados por epidemias, conjunto.
RECEBIDO EM 12/12/2016
APROVADO EM 06/01/2016
174
LOS ALIADOS INDÍGENAS DE LOS skillful manipulation of the Spanish invader,
ESPAÑOLES EN EL TRÁNSITO DE a complex network of relations.
Keywords: Spanish domain, indigenous
LA SOBERANÍA IMPERIAL A LA autonomy, colonialism
NACIONAL: LOS MOQUINOS DE
SANDÍA Y ABIQUIÚ, NUEVO La conquista española de
MÉXICO América habría sido imposible sin la
participación activa de numerosos
Drª. Danna A. Levin Rojo indígenas que desde fechas muy
Universidad Autónoma Metropoitana, tempranas prestaron servicio como
Unidad Azcapotzalco/México guías, intérpretes, cargadores y
levinroj@yahoo.com guerreros en las expediciones de
exploración y las campañas militares
RESUMEN: A partir de las expandido emprendidas por los invasores.
documentación y contenidos en Relaciones,
Posteriormente también actuaron como
las letras, las ordenanzas y otros
documentos coloniales relacionados con la colonos para poblar zonas hostiles
organización y la burocracia del Estado lejos de su lugar de origen y consolidar
colonial, este trabajo se investiga la la ocupación de los nuevos territorios
relación entre este agente interviniente y
las poblaciones indígenas en los distintos que paulatinamente se fueron
espacios de vida en la que éstos ellos incorporando a la dominación colonial.
fueron asimilados como servidores de los La naturaleza de esta
colaboradores nativos y aparecen referidos
participación, a veces voluntaria y a
indistintamente como "indios amigos". Un
análisis comparativo de las experiencias en veces forzada varió tanto que no
los diversos territorios ocupados nos siempre es posible determinar hasta
permite reconocer que estas poblaciones qué punto fue impuesta con violencia
nativas a menudo actuaron como
arquitectos conscientes de su propio física o amenazas de otra índole. En el
destino y no como meros objetos de una caso de la campaña del capitán Jorge
hábil manipulación del invasor español, un Alvarado en Guatemala (1527-1530),
tejido complejo de relaciones.
por ejemplo, muchos de los nativos de
Palabras clave: dominio español, la
autonomía indígena, colonialismo Xochimilco y Quauquecholan
incorporados en sus huestes estaban
ABSTRACT: From the expanded bajo su custodia como residentes de
documentation and contained in relaciones,
sus encomiendas y probablemente no
letters, ordinances, and other colonial
documents associated with the organization tuvieron opción, así lo sugieren
and bureaucracy of the colonial state, this Schroeder (2007, p. 19) y Asselbergs,
paper investigates the relationship between (2007, p. 65-101) como quizás
this intervenor agent and indigenous
populations in the various living spaces in tampoco la tuvieron muchos de los
which these They were assimilated as indios que Nuño de Guzmán llevó alas
servers the native collaborators and appear conquistas de Pánuco y Nueva Galicia
indistinctly referred to as "friendly Indians".
en el virreinato de la Nueva España
A comparative analysis of experiences in
the various occupied territories allows us to (ALTMAN, 2010; CHIPMAN; 1967;
recognize that these native populations TAMAYO, 1992). No obstante, para
often acted as architects aware of their algunos grupos y periodos existen
own destiny and not as mere objects of
175
evidencias que documentan una derechos especiales de las
colaboración voluntaria, e incluso corporaciones, muchas comunidades
alianzas formales. de indios aliados, o sus descendientes,
En las relaciones, cartas, procuraron preservar algunas de las
ordenanzas, y otros documentos concesión es fruto de sus antiguas
coloniales asociados con la alianzas apelando a su condición
organización y la burocracia militar, ciudadana y los servicios que
estos servidores o colaboradores prestaban a la patria.
nativos aparecen referidos Como han observado varios
indistintamente como “indios amigos” autores, en el proceso de transición del
o “tropas auxiliares”. Sin embargo, es súbdito al ciudadano, que en la Nueva
otra la imagen que presentan las España inició desde el último cuarto
fuentes de factura indígena, que para del siglo XVIII y se consolidó mucho
la Nueva España incluyen códices, después del triunfo de su
lienzos y otros documentos independencia–cuyo fruto fue la
pictográficos elaborados por constitución de México como nación en
especialistas nativos como parte de 1821–, los indios participaron
una memoria histórica con posibles activamente construyendo el nuevo
usos políticos y administrativos. Por la espacio público y las instituciones
importancia de su contribución a la republicanas (CARMAGNANI Y CHAVÉZ,
expansión imperial española, y porque 1999; GUARISCO, 2003; DUCEY,
frecuentemente su participación estuvo 1999; SOTO, LEVIN Y VILLASEÑOR
orientada por estrategias y objetivos 2010). Paradójicamente en muchos
propios, estos agentes deben casos lo hicieron con el objeto de
catalogarse como conquistadores preservar, a nivel local, las estructuras
indígenas y no simplemente como corporativas del antiguo régimen y
sirvientes o auxiliares. Su resistir los ataques de los gobiernos
participación, cuando fue voluntaria liberales contra las formas de
estuvo frecuentemente acompañada representación política tradicional yla
por la concesión de beneficios y propiedad comunal.
privilegios que, en principio, se El presente artículo versa sobre
extendían a sus descendientes y dos pueblos, Sandia y Abiquiú,
quedaron asentados en ordenanzas, situados en el antiguo reino de Nuevo
capitulaciones y mercedes firmadas México, hoy un estado de la Unión
por las autoridades virreinales y Americana que durante el periodo
metropolitanas, incluyendo el rey. colonial fue la más septentrional de las
Cuando la instauración del régimen posesiones españolas en el continente.
republicano que derivó de los procesos Aunque tienen historias distintas,
independentistas en casi toda ambos fueron abandonados durante
Hispanoamérica convirtió en ley una rebelión masiva que estalló en
suprema el principio de igualdad 1680 y expulsó de la provincia a los
jurídica, buscando desmantelar los colonos españoles. Después de la
176
reconquista en 1696 los dos fueron También prestaron servicios en
reocupados por grupos de familias que Guatemala, Nicaragua, las Filipinas y 1
“Para que a los indios de
se auto-identificaban como Oaxaca y para marzo de 1591 se Tlaxcala que van a las
nuevas poblaciones de
“moquinas”, posiblemente habían consolidado como colonos de chichimecas se les guarden
descendientes de sus habitantes frontera, beneficiándose con una Real las preeminencias aquí
contenidas,” Ciudad de
originales quienes al parecer se Cédula de Felipe II que concedía
México, 14 de marzo de
refugiaron entre los hopis del actual privilegio de hidalgos a todos los 1591. Archivo General de la
estado de Arizona, entonces conocidos tlaxcaltecas que como colonos salieran Nación, México (AGN.
Tierras, vol. 2956, exp.
como moquis. En la segunda mitad del a fundar pueblos entre los 99).Publicado en
siglo XVIII sus habitantes pelearon al chichimecas. En el mes de junio, Documentos inéditos para el
estudio de los tlaxcaltecas en
lado de los vecinos hispanos para amparados en esta cédula y las San Luis Potosí siglos xvi-
defender la región contra los capitulaciones correspondientes–que xviii, vol. II, introducción,
compilación, selección y
frecuentes ataques de tribus nómadas los “principales” de la ciudad de transcripción paleográfica de
de las praderas como los apaches, utes Tlaxcala negociaron con el virrey Luis José Antonio Rivera
y comanches. Antes de entrar en de Velasco–los tlaxcaltecas mandaron Villanueva (México: Gobierno
del Estado de Tlaxcala,
materia, sin embargo, revisaré 400 familias en una caravana para Fideicomiso Colegio de
brevemente el fenómeno de los aliados colonizar la frontera. Entre los Historia de Tlaxcala, 2010),
35-39. Sobre esta diáspora
indígenas en el virreinato de Nueva derechos y privilegios que especifican tlaxcalteca véase TOMÁS
España, bajo cuya jurisdicción estaba las capitulaciones se estableció que 1988; SEGO, 1998.
el reino de Nuevo México. estos colonos irían a poblar el norte
para adoctrinar a los chichimecas en la
Los indios aliados en Nueva crianza de ganado y labranza de la
España tierra, sirviendo también en la defensa
La alianza entre europeos e de las nuevas poblaciones cuando
indígenas más conocida es sin duda la fuera necesario, y que a cambio de
que los tlaxcaltecas establecieron con esto, ellos y sus descendientes serían
los españoles. Esto se debe a su hidalgos libres de todo tributo, alcabala
temprana fecha, perdurabilidad y y servicio personal; que tendrían sus
eficacia, así como al empeño que éstos propios barrios y los españoles no
pusieron en llevar un registro podrían asentarse en ellos; que se les
documental preciso de sus acciones y proveerían tierras, pastos, montes,
defender la posición y los privilegios ríos, pesquerías, salinas y molinos
que se derivar onde ella. Después de separados de los que se
luchar al lado de Hernán Cortés en proporcionaran a los chichimecas; que
México contra los aztecas en 1521, los tendrían derecho de montar caballo y
tlaxcaltecas jugaron un papel portar armas, así como recibir
importante en Nueva Galicia con Nuño bastimento para fundar sus pueblos.1
de Guzmán a principios de la década Entre las abundantes fuentes
de 1530 y en la expedición fallida que que documentan la participación de los
Francisco Vázquez de Coronado tlaxcaltecas como aliados de los
condujo a Cíbola (1540-1542), en lo españoles destaca la Descripción de la
que más tarde se llamó Nuevo México. Ciudad y provincia de Tlaxcala de las
177
2
La Descripción de la ciudad y
provincia de Tlaxcala… está
Indias y del Mar Océano para el buen entre 1540 y 1542 y representó una en la Colección Hunter de la
Universidad de Glasgow
gobierno y ennoblecimiento dellas amenaza tan grande que las tropas (manuscrito 242). Los
(1580-1585), del cronista mestizo destinadas a combatirla fueron especialistas consideran que
se trata de la Relación que
Diego Muñoz Camargo cuya sección personalmente comandadas por el Muñoz Camargo escribió
final es una serie de 157pinturas con virrey en turno, Antonio de Mendoza. como respuesta a la
instrucción que, por orden del
escenas que representan las batallas La lámina 1 delCódice de Tlatelolco, rey Felipe II, formularon Juan
en las que participaron tlaxcaltecas pintado durante la segunda mitad del de Ovando y Juan López de
entre 1521 y 1542.2 Las mismas siglo XVI, muestra las huestes Velasco en 1577 para recabar
información sobre la
campañas, salvo cinco, fueron involucradas en ambos sucesos. geografía, toponimia,
representadas en otro documento Pequeños personajes montados en la población y recursos de los
territorios recientemente
pictográfico conocido como Lienzo de parte inferior de la página representan ganados en América. El
Tlaxcala que se pintó alrededor de a los capitanes españoles (incluyendo documento, cuyas 157
pinturas empiezan en el folio
1550 (BROTHERSTON Y GALLEGOS, al virrey) y las tropas que 236r, excede las preguntas
1990). comandaban, mientras que los contenidas en la instrucción,
pues además de las pinturas
También está documentada, caciques dirigentes de las compañías
incluye la historia antigua de
entre otras, la colaboración de de Tlatelolco aparecen en la figura de Anáhuac, la conquista de
contingentes otomís y tarascos, así dos grandes gurreros indios, de pie, Tenochtitlan y el primer siglo
como nahuas de Tlatelolco y de colonización de la Nueva
dominando la escena.3 Para el caso de España. Fue publicado por
Huexotzincocomo guerreros y colonos
Huexotzinco contamos con la relación René Acuña como Diego
en la Nueva España del siglo XVI. Muñoz Camargo, “Descripción
Aunque en algunas ocasiones tuvieron de Francisco Acazitli, cacique de de la ciudad y provincia de
un estatus similar al de los Tlalmanalco que dirigió personalmente Tlaxcala de la Nueva España
e Indias del mar océano para
tlaxcaltecas, las fuentes no siempre a los guerreros de su pueblo en la el buen gobierno y
dejan claro qué privilegios obtuvieron guerra del Mixtón (ACAZITLI, 1996). ennoblecimie[nt]o dellas,
como recompensa. Un escuadrón de Pueden citarse muchos otros mandada hacer por la
tlatelolcas comandado por su propio S.C.R.M. del rey Don Felipe,
documentos que constatan la práctica nuestro señor,” en Relaciones
gobernador, don Alonso Cuauhnochtli,
española de enlistar indígenas del geográficas del siglo XVI, vol.
formaba parte de los cerca de 1000 4, Tlaxcala, ed. René Acuña,
indígenas aliados del centro de México, centro de México, y posteriormente de 25-286 (México: Universidad
incluyendo tlaxcaltecas, que Francisco otras regiones, como aliados en las Nacional Autónoma de
México-Instituto de
Vázquez de Coronado llevó en 1540 a empresas de conquista, “pacificación” Investigaciones
su expedición en busca de Cíbola y poblamiento efectuadas allende los Antropológicas, 1984). Entre
(NOGUEZ Y WOOD, 1998). límites del antiguo imperio Azteca.4 1585 y 1594 el propio Muñoz
Como en muchas otras Camargo agregó al texto
Todos ellos permiten constatar que la original de la Descripción una
expediciones de conquista o represalia, serie de comentarios en un
imposición y consolidación del régimen
la cantidad de soldados europeos que borrador que pasó a manos
colonial español implicó procesos de fray Juan de Torquemada,
participaron en esta empresa, quien lo depositó en la
complejos de negociación,
alrededor de 300, era mucho menor Biblioteca del Convento de
sometimiento y alianza con una gran San Francisco en la ciudad de
que la de “indios auxiliares.”Tlatelolco
diversidad de pueblos cuyas lenguas y México. De allí, tras algunas
también contribuyó al menos con un peripecias, este manuscrito
culturas eran diferentes y que tenían fue a parar a la Biblioteca
contingente dirigido por el sucesor de
formas de organización social y política Nacional de París, donde hoy
Cuauhnochtli, Don Martin Cuauhtzin se encuentra con el título
distintas. Sin embargo, a pesar de que
Tlacateccatl, en la llamada guerra del Historia de Tlaxcala y fue
los pueblos indígenas de América no editado por Alfredo Chavero
Mixtón. Esta rebelión masiva tuvo en 1892. Detalles sobre la
tenían una identidad comúny por lo
lugar en el sur de Zacatecas y Jalisco historia de ambos
manuscritos se pueden ver en
178 la introducción de René Acuña
a su edición de las Relaciones
Geográficas de Tlaxcala aquí
referida.
3
Códice de Tlatelolco,
conservado en la Biblioteca
Nacional de Antropología e
Historia, México (Colección de
Testimonios Pictográficos,
signatura 35-39). Véase
Códice de Tlatelolco, Estudio
preliminar de Perla Valle
(Mexico: Instituto Nacional de
Antropología e Historia,
Benemérita Universidad
Autónoma de Puebla, 1994).
tanto no existía razón alguna para que, navajos y otros grupos de difícil
4
El cronista Diego Muñoz
unidos, presentaran un frente común identificación que en la época del
Camargo, por ejemplo,
contra los invasores europeos, su primer contacto con los españoles asienta en su Relación de
historia se escribió por mucho tiempo recibieron el nombre de querechos y Méritos y Servicios que fue a
6 las Hibueras con Hernán
como si esta circunstancia fuse una jumanos (LANGE, 1979). Cortés llevando “a su cargo
falla difícil de comprender y se les A partir de 1540 el territorio los indios amigos de Tlascala.”
Informe de los méritos y
representó como víctimas derrotadas comenzó a recibir esporádicas visitas servicios de Diego Muñoz
por su propia traición. Esta concepción de exploradores y misioneros Camargo, México 6 de
noviembre de 1555, en
del pasado colonial se desmorona españoles, pero no fue sino hasta 1598 Historia de Tlaxcala,
cuando se revisan fuentes de autoría que, con la conquista dirigida por el paleografía por Luis Reyes
indígena como el Lienzo de García (Tlaxcala: Universidad
capitán Juan de Oñate, empezaron a Autónoma de Tlaxcala, 1998),
Quauquecholan (ASSELBERGS, 2004), avecindarse como pobladores 369. En el documento se
el Códice de Tlatelolco o los litigios de mencionan otras campañas en
permanentes indios, mestizos y las que Muñoz Camargo
los moquinos de Sandía. Su análisis españoles provenientes del sur. La participó. Por su parte el fraile
comparativo permite reconocer a los llegada de estos colonos alteró el franciscano Guillermo de
Santa María señaló en una
nativos como artífices conscientes de equilibrio regional de las relaciones misiva de 1580 que para
su propio destino y no como meros interétnicas. Hasta ese momento pacificar a los chichimecas era
preciso fundar poblaciones con
objetos de la manipulación brillante del dichas relaciones estaban salpicadas mexicanos y tarascos que les
intruso español. por incursiones violentas de los grupos enseñaran a cultivar la tierra,
pues éstos eran inútiles para
nómadas sobre los asentamientos la guerra. El documento fue
Indios pueblos y genízaros: agrícolas sedentarios pero se publicado en René Acuña, ed.,
sujetos de una alianza estratégica articulaban también en torno a Relaciones Geográficas del
siglo XVI: Michoacán (México:
Hacia finales del siglo XVI, el territorio intercambios pacíficos regulares en los UNAM, 1987), 369-376. La
comprendido en los estados actuales que, además de los cautivos que todos relación geográfica de
Tiripitío, en la misma colección
de Nuevo México y Arizona fue dominio intercambiaban, los indios pueblos (pp. 339-369), describe la
de una serie de grupos indígenas con aportaban maíz, textiles y participación de grupos
diferentes culturas. Unos, que hoy tarascos. Posteriormente, en
ocasionalmente cerámica, mientras 1622 un informe sobre las
conocemos como indios pueblos, eran que los utes y apaches aportaban provincias de Colotlán y
horticultores sedentarios largamente Atotonilco afirma que el virrey
pieles, carne y otros productos otorgó a los franciscanos un
arraigados en la región; hablaban derivados de la caza. Con los nuevos grupo de mexicanos y
lenguas distintas y habitaban alrededor pobladores llegaron nuevos cultivos, tlaxcaltecas para asentarse en
la región como agentes
de cien asentamientos permanentes ganado caballar, armas y civilizatorios: “Ynformacion
independientes entre sí, la mayoría en herramientas. Todos estos bienes juridica de los conventos,
5 doctrinas y conversiones
la Cuenca del Río Grande. Otros eran resultaron sumamente atractivos para fundados por los padres de la
fundamentalmente cazadores- los grupos móviles de la praderas que provincia de Zacatecas.
Conventos de Colotlan y
recolectores, nómadas o seminómadas dependían de la recolección y la caza, Atotonilco. Yndios chichimecas
de más reciente arribo que vivían en lo que propició que intensificaran sus y guachichiles. Alzamiento de
Tepeguanes en 1617” [c.
aldeas temporales llamadas rancherías ataques, ahora también sobre las
1622-23] (Biblioteca Nacional
por los españoles y ocupaban zonas fundaciones recientes de hispanos y de México, Nueva Vizcaya,
aledañas en las praderas al oeste, mestizos asentadas alrededor, e caja 1), citado por Atanasio G.
Saravia, Obras II. Apuntes
norte y noreste. Entre ellos se incluso dentro de los asentamientos para la historia de la Nueva
contaban los utes, paiutes, apaches, 7 Vizcaya (Mexico: Universidad
pueblos. Por otra parte, el flujo de
Nacional Autónoma de México-
Instituto de Investigaciones
179 Históricas, 1980), 122, 162.
5
Este río también se conoce
productos agrícolas que estos últimos diversas bandas de apaches y navajos, como Río Bravo, sobre todo
en su porción meridional que
destinaban al comercio disminuyó forzando a los pocos sobrevivientes marca la frontera actual
desde principios del siglo XVII puesto españoles a abandonar la provincia– entre México y Estados
Unidos. Un panorama
que ahora debían entregara los junto con algunos nativos del sur que general sobre estos grupos
españoles granos y mantas como no se sumaron al levantamiento– para se puede ver en DOZIER,
8 refugiarse en lo que hoy es El Paso 1970.
tributo. Así, a pesar de que las
autoridades locales promovieron la (SANDO, 1979; De la VARA, 1992). Allí 6
De acuerdo con Steadman
permaneció la sociedad española en (1982, p. 48-51), los indios
celebración de ferias anuales y que los españoles llamaban
expediciones de intercambio comercial una suerte de exilio hasta 1696, querechos en la época del
a las praderas, el círculo de represalias cuando se logró la reconquista del contacto eran nativos del
suroeste, probablemente
y contra-ataques se convirtió en un antiguo reino de Nuevo México. yavapais, a diferencia de los
modo de vida en toda la región. El regreso de los colonos apaches que habían llegado
a la región –desde el norte
Durante el siglo XVII los expulsados a la región coincidió
por las Montañas Rocallosas
pueblos fueron sometidos a una aproximadamente con el arribo de un y desde el este por las
conjunto de bandas que pronto se Praderas– en oleadas
intensa explotación, que junto con una sucesivas a partir del siglo
serie de epidemias y la severa convirtió en el grupo cazador-guerrero XIII pero con mayor
más poderoso de las praderas: los intensidad a lo largo del siglo
contracción agrícola por sequías XVI. Las primeras menciones
diezmó drásticamente su población. En comanches. En su empuje desde el explícitas de apaches en los
menos de un siglo ésta declinó noreste desplazaron a los apaches documentos coloniales
corresponden a 1598 y 1599,
aproximadamente en un 75%. De los hacia el sur y comenzaron una intensa aunque ya en 1591 Gaspar
60,000 indios pueblos que Oñate actividad predatoria sobre los Castaño de Sosa describió
asentamientos de españoles e indios con sus características a un
reportó en 1598, incluyendo los tiwas, grupo que encontró en la
tewas y keres del Río Grande en la pueblos. A este cuadro de guerra periferia norte de los pueblos
intermitente se agregó en el siglo XVIII del Río Bravo. Según Snow
zona oriental y los hopis y zuñis de la (1996), los utes y paiutes
subregión occidental, sólo quedaban la presión de los colonos ingleses y arribaron también poco antes
alrededor de 15,000 en 1680 franceses en expansión, quienes del periodo del contacto
desde el sureste de California
(BARRETT, 2002). Robert Jackson practicaron una política de hostilidad y el sur de Nevada.
afirma que eran al rededor de 17,000 indirecta proveyendo de armas a
7
Esta breve descripción y en
en 1679 (Jackson, 2000, p. 108). comanches, apaches, pawnees y otros
general este apartado
Cincuenta pueblos en los alrededores indios de las praderas (LANGE, 1979). retoma y amplía la
En Buena medida por esta razón las información y argumentos
del Río Grande quedaron deshabitados que desarrollé en un trabajo
con anterioridad, y áreas como autoridades españolas dieron un viraje previo, publicado como
hacia el establecimiento de alianzas ROJO, (2010).
Socorro, en el extremo sur de la
provincia, o Albuquerque-Belén en su estratégicas con los pueblos, dirigidas 8
Dozier (1970) cita por
porción central fueron total o casi a crear una barrera contra el avance ejemplo un reporte que el
padre provincial fray Pedro
completamente abandonadas de sus rivales europeos y contra los Serrano dirigió al virrey en
(BARRETT, 2002, p. 78, 79). Ese indios “bárbaros”. Las primeras se 1761 denunciando que los
establecieron con Pecos, los pueblos gobernadores y alcaldes
mismo año de 1680 el creciente mayores de la provincia
resentimiento de los indios nativos keres de San Felipe, Santa Ana y Zía, y explotaban el trabajo de los
los tewas de Tesuque (BARRETT, indios sin paga y los
estalló en una gran rebelión que obligaban a tejer cobijas con
involucró, por primera vez, la acción 2002). Así, en las campañas de esa lana que ellos les
conjunta de casi todos los pueblos y centuria contra los apaches, navajos y proporcionaban, además de
cobrarles tributo en maíz y
animales o frutos que los
180 propios indios debían
transportar hasta el palacio
del gobernador.
comanches siempre había pueblos, que españoles y castas y 10,557 indios
generalmente superaban en número a sedentarios sumando un total de 9
El dato demográfico más
temprano que he
los soldados regulares y vecinos 34,205 habitantes sin contar a los encontrado para los grupos
españoles. En los documentos grupos indígenas de las rancherías nómadas –36,950–
9 proviene de una carta que
destacan tres de ellos con el título de móviles (KESSEL, 1979). El ligero Charles Bent, gobernador
capitanes mayores de la guerra: descenso demográfico de los pueblos militar del régimen
Domingo Romero de Tesuque, don establecido por la
en términos absolutos que se observa ocupación estadounidense,
Felipe de Pecos y José Naranjo de nueve años más tarde, cuando se le dirigió al Comisionado de
Santa Clara (DOZIER, 1979). Asuntos Indios de los
consumó la independencia de México – Estados Unidos el 10 de
Uno de los resultados más 10,000 indios pueblos frente a 40,000 octubre de 1846. Citada
tangibles de esta política fue que la hispanos en toda la provincia– puede por Morton Ganaway
Loomis, New Mexico and
contracción demográfica de los pueblos reflejar, de acuerdo con Hodge y the Sectional Controversy
prácticamente se detuvo en la segunda Dozier, procesos de mestizaje y 1846-1861 (Albuquerque:
mitad del XVIII, probablemente porque University of New Mexico
reubicación local y no sólo mortandad Press), 12.
el arreglo supuso al menos o el arribo de nuevos colonos hispanos
10
parcialmente la cancelación del servicio Puede decirse que estos
desde el exterior (HODGE, 1912; individuos eran
personal y el pago de tributos y, sobre DOZIER, 1979). Esta observación es prácticamente esclavos
todo, el reconocimiento de su relevante porque la filiación identitaria puesto que se les
compraba y vendía en las
propiedad comunal, que se protegió en comunidades como Abiquiú y ferias de Taos y Abiquiú
con la concesión de mercedes y Sandía, como veremos, no era fija ni que describió fray
Francisco Atanasio
mediante facilidades jurídicas para estática sino que variaba en función de Domínguez en 1776.
interponer litigios contra la invasión de las lealtades y alianzas que se (DOZIER, 1979).
sus tierras por los vecinos hispanos. En construían entre los habitantes de
1812, Pedro Bautista Pino, diputado asentamientos contiguos en un
por Nuevo México a las Cortes de Cádiz territorio caracterizado por una enorme
calculaba que la provincia tenía un diversidad cultural y lingüística.
total de 40,000 habitantes distribuidos La dinámica de los conflictos
en ocho alcaldías, que comprendían interétnicos en la región dio origen a
102 plazas españolas incluyendo las los llamados genízaros, una casta de
villas de Santa Fe, Albuquerque y indios de-tribalizados que ocupaba el
Santa Cruz de la Cañada, y 26 pueblos estrato más bajo de la sociedad
de indios (PINO, 1812) Su lista incluye colonial. Eran cautivos que llegaban
Abiquiú y Sandía pero no los pueblos frecuentemente desde niños a las
hopis que, como señala Edward Dozier, poblaciones españolas mediante
nunca fueron completamente “rescate” –por pago o captura– para
integrados al mundo colonial (DOZIER, vivir como sirvientes domésticos
1979). Aunque Pino no proporciona recibiendo educación cristiana.
10
Al
cifras específicas para los diferentes
cambiar su lengua y cultura de origen
segmentos étnicos, John Kessell señala
perdían la capacidad de reinsertarse en
que para 1799 había en efecto 26
la sociedad tribal de la que provenían y
misiones en la provincia, que entonces
por ello solían integrarse en las
tenía una población de 23,648
comunidades hispanas receptoras
181
después de adquirir su libertad, como al parecer muchos se
pagando con trabajo el costo de su involucraron en la gran rebelión de 11
El documento se preserva
rescate o por alcanzar la mayoría de 1680, al iniciar la reconquista en el Archivo Estatal de
Nuevo México (New Mexico
edad. Por su situación liminal abandonaron el pueblo por temor a las
State Records Center and
desempeñaron un papel importante represalias y se refugiaron en territorio Archives): “Peticion para los
como mercenarios autónomos en la Hopi. Las excelentes tierras agrícolas jenízaros de diversas tribus
a poblar el pueblo antiguo
defensa fronteriza. En el siglo XVIII de Tiguex pronto fueron ocupadas por de Sandía,” 21 de abril de
fueron el núcleo fundador de varias colonos y las inmediaciones del 1733. Spanish Archives of
New Mexico (SANM) 1, núm.
comunidades como Abiquiú, en los abandonado pueblo de Sandía vieron 1208, r. 6, fr. 687-696.
parajes más aislados del norte de nacer dos asentamientos hispanos,
Nuevo México (EBRIGHT, 1996; Alameda al sur y Bernalillo al norte.
BROOKS, 2002; ROJO, 2010; DOZIER, Así, el permiso que “los jenízaros”
1979). solicitaron en 1733 fue negado y se les
Una de las referencias más incitó a establecerse en cualquiera de
tempranas a esta casta está en una los asentamientos ya ocupados. No
averiguación que, en 1733, hizo el obstante, para 1748 el padre Juan
gobernador Gervasio Cruzat y Góngora Miguel Menchero abogó para refundar
para ponderar la solicitud de un grupo Sandía con otros indios que habían
de 100 indios de la praderas, quienes vuelto de Tusayán (Hopi) en 1742–
se presentaron ante las autoridades acompañando a los padres Delgado y
como “los jenízaros” pidiendo se les Pino– y que desde entonces vivían en
concediera una merced de tierra en el Jémez. El gobernador Joaquín Codallos
pueblo abandonado de Sandía. El y Rabal autorizó la refundación el 23
documento es la respuesta que 17 de enero de 1748 y el 5 de abril les dio
jefes de familia y 8 hombres solteros título de tierra. La orden colocaba al
dieron al gobernador sobre su pueblo bajo la jurisdicción de la villa de
identidad (nombre) y “nación” de San Felipe de Albuquerque y ordenaba
procedencia. El grupo, cuya petición la construcción de nuevos inmuebles.
fue denegada, incluía pawnees, También encargaba al teniente general
apaches, kiowas, tanos, jumanos, aas Bernardo de Bustamante Tagle
y utes que declararon vivir dispersos examinar el sitio y establecer los
en el Río Abajo, entre españoles o con límites de la merced después de
los pueblos (EBRIGHT, 2006).11 consultar a los rancheros españoles
que ya habían recibido tierras en la
Sandía y Abiquiú zona. Como no se pudieron otorgar las
Ubicado al norte de Albuquerque, mil varas reglamentarias en el lado
Sandía había sido el asentamiento más oeste del Río Grande por estar éste ya
grande de la provincia de Tiguexantes ocupado, se compensó a los
de la conquista. Sus habitantes, de peticionarios extendiendo los límites al
lengua tiwa, se habían sometido norte y sur. Así, Bustamante Tagle
“libremente” al dominio español, reportó haber puesto en posesión de la
jurando lealtad a Juan de Oñate, pero merced del pueblo de Sandía, el 14 de
182
mayo, a 70 familias que comprendían documentación relativa, dispersa en
350 personas (BRAYER, 1939).12 los archivos locales, españoles y de la 12
El expediente
Es posible que en este grupo se ciudad de México es incompleta, pues correspondiente se
encuentra en los archives
contaran descendientes de los tiwas muchos papeles se han perdido. No estatales de Nuevo México.
que originalmente habitaban el pueblo obstante, da cuenta de procesos de En el Archivo General de la
Nación de México existe
antes de huir al territorio Hopi y que, apropiación y litigios que se otro, citado abajo, quem
por esta razón, se autorizara su extendieron por décadas y enciona estos hechos:
AGN, Justicia, vol. 48, exp.
refundación. Malcom Ebright menciona trascurrieron bajo regímenes jurídico-
4.
que por esos años varias familias de políticos distintos. Como ejemplo
13
indios hopi, posiblemente tomaremos una solicitud de enero de AGN, Justicia, vol. 48,
exp. 4, fs. 35-39.
descendientes de los habitantes 1829 que los vecinos de Sandía
originales de la zona refugiados entre interpusieron en la ciudad de México
los hopis después de la rebelión ante la Suprema Corte de Justicia,13 en
también se avecindaron en Abiquiú. el contexto de una larga serie de
Asimismo señala que el padre disputas que involucraban a Eusebio
Menchero había recorrido los territorios Rael, sus herederos e Ignacio María
Navajo y Zuñicon sus correligionarios Sánchez Vergara, residentes de
Carlos Delgado, José Irigoyen y Pedro Bernalillo. Más que el conflicto por la
Ignacio Pino en 1744 para propiedad en sí, la petición nos
cristianizarlos y, en 1745, Delgado, interesa aquí porque los indios, ahora
Irigoyen y Juan José Toledo viajaron a ciudadanos mexicanos, argumentaron
Hopicon el mismo fin (EBRIGHT, en su favor los servicios que sus
2006). Dado que la presión ejercida antepasados, vasallos del rey de
desde el noreste por las bandas España, habían prestado a la sociedad
guerreras de las praderas se virreinal en la civilización y defensa del
intensificaba no sería extraño que las territorio. El documento, firmado por
autoridades españolas prefirieran Francisco de Mendoza y Moctezuma
reforzar los pueblos del Río Grande no como apoderado de los peticionarios,
con genízaros sino con personas de su que no sabían escribir, dice lo
misma ascendencia que, tal vez, no se siguiente:
habían adaptado del todo a las más
duras condiciones de vida del árido El ciudadano José Ma. Moquino Alcalde
[…], Andrés de la Candelaria y Antonio
territorio Hopi; después de todo había de la Cruz vecinos del pueblo y misión
pasado apenas una generación desde de Ntra. Sra de los Dolores y San
Antonio de la Sandía del partido de la
su partida. villa de San Felipe de Alburquerque
Durante las últimas décadas del […]prestando voz y comicion de trato
periodo colonial y el tiempo que Nuevo por todos los vecinos de nuestro pueblo
[…] decimos: que aunque nuestro
México formó parte de la República ascendientes fueron gentiles de la
Mexicana (1821-1848) se suscitaron nación de Moqui, […], se resolvieron a
profesar nuestra religión católica en el
numerosas controversias sobre la vencido año de 1748 abandonando su
posesión y los límites del pueblo de pais y se fueron reunidos hasta el
número de tresientos cincuenta
Sandía (BRAYER, 1939). La yndividuos a las provincias inmediatas
183
de la indicada capital del nuevo Mexico, del conflicto se remonta por lo menos
con el loable objeto de pedir […] santo 14
Aunque en este
bautismo y radicarse alli, como lo a 1821, cuando Sánchez Vergara, tras
documento, tal vez por
executaron. conseguir el testimonio de posesión o error del escribano, el
En esta atencion el reverendo PC Fr.
Juan Menchero, comisario y procurador
título de la merced del pueblo de nombre aparece como
Sánchez Melgares, en el
general de la Santa Custoria de la Sandía de manos de los naturales y resto de los papeles
Conversion de San Pablo, representó al alterarlo, pidió y recibió una merced asociados con estas
Exmo. Sr. Virrey […]lo mucho que diligencias está escrito
importaba al servicio de ambas cerca de allíy comenzó a maniobrar
“Sánchez Vergara.”
magestades el que nuestros para adueñarse de una porción
[predecesores] se erigiesen en Pueblo 15
AGN, Justicia, vol. 48,
para recoger en el los dispersos para considerable de la que el pueblo tenía,
exp. 4, fs. 35-36.
que vinieran en civilisacion y para que en contubernio con Eusebio Rael a
embarazasen las imbaciones de los 16
enemigos infieles que eran de temerse
quien prometió la mitad de las tierras Brayer, (1939) obtuvo
esta información de los
por aquel rumbo, a lo que defirió el en caso de ganar el juicio que iniciarían documentos que se
Exmo. Sr. Virrey y […] comisionó al
contra los naturales. Posteriormente conservan en Nuevo
Teniente General don Bernardo de
México. El dato no se
Bustamante, el que a 14 de maio del según Herbert Brayer, siendo alcalde
menciona en los del AGN,
propio año de 1748 […] les dio posesión local en 1827,Sánchez Vergara utilizó México que sólo contienen
del fundo legal y testimonio autorizado lo relativo a los litigios
en forma para en guarda de sus su capacidad oficial para intentar
iniciados por el pueblo de
derechos. favorecer a un heredero de Eusebio Sandía ante la Suprema
Ese testimonio lo confiamos al Corte de Justicia en la
ciudadano Ignacio Sanchez Melgares,14 Rael, Julián Rael, en un juicio que éste
ciudad de México y sus
quien hace mas de ocho años con llevaba contra el citado pueblo desde antecedentes más
apariencia de compacion por nuestra
situacion desgraciada nos lo pidió para
1826 para afincarse en terrenos relevantes.
imponerse en él, y el resultado ha sido ubicados dentro de sus límites.16 En
quitarle las dos primeras foxas y 1830 Ignacio Sánchez Vergara otorgó
apoderarse de legua y media de tierras
de las mas útiles que poder a su hijo Vicente para continuar
inquestionablemente nos pertenecen las diligencias del caso en la ciudad de
por el rumbo del sur […]
…y porque aquel Señor Gobernador nos México, las cuales continuaban aun el
dijo ocurriesemos a esta capital a pedir 19 de febrero de 1841. En esa fecha
lo que a nuestro derecho importe,
suplicamos rendidamente a la
“Diego Ramos, Mariano Candelario,
justificada integridad de VE que José Antonio, Juan Cruz, Domingo
teniendo presentes las graves
González, Juan Gutierrez y Mariano
incomodidades que hemos
esperimentado en el camino de tan Conejo, vecinos del pueblo de
crecido numero de leguas que se miden Bernalillo y Sandía” solicitaron ante la
de nuestro pueblo a esta corte, y a los
injustos procedimmientos del referido Suprema Corte de Justicia que se les
Sanchez Melgares, se digne recomendar nombrara un abogado para defenderse
nuestras solicitudes a nuestro señor
gobernador para que, haviendo, se contra el despojo perpetrado por
saque testimonio integro del titulo de Vicente Sánchez Vergara, entonces
posesion que se dio a nuestros maiores
y que debe parar en aquel archivo,
diputado al Congreso General. Su
disponga se nos entregue y asimismo petición de justicia aduce nuevamente
que libre las oportunas insitativas a los los servicios prestados, esta vez a la
jueces que deban entender en nuestras
pretensiones para que nos administren patria, por los miembros de su
pronta justicia…15 comunidad y denuncia
184
aquel Departamento [de Nuevo México] navajos lo consideran propio. Se
que nos han obligado a hacer un viaje
de mas de mil leguas sin considerar ni localiza en el valle de Chama a orillas 17
AGN, Justicia, vol. 48,
exp. 4, fs. 56-57.
por un momento que a merced de del río del mismo nombre, al norte de
nuestros sacrificios prestados en la
campaña deve la paz aquella frontera
su confluencia con el Río Grande, una 18
La fuente de este dato
zona que aparentemente padeció son las conversaciones que
con las tribus vecinas, y cuyos servicios
sostuve con residentes de
son constantes pues a cada paso ataques de las tribus nómadas de las Abiquiú, en el mismo
luchamos con ellos guardando de esta
praderas desde el siglo XIV y que pueblo. Durante una
manera la tranquilidad de aquella
estancia de trabajo de
porcion de la Republica Mejicana a la antes de la conquista española contaba campo en 2007.
cual tenemos los que sobrevivimos la
gloria de pertenecer por mas ultrajes más de 20 pueblos situados en las
que se nos infieran […] Tambien mesas que salpican su paisaje, siendo
suplicamos a VE que se nos acuda con
alguna pension durante el tiempo que
desde entonces nodo de amplias redes
tengamos que estar en esta capital comerciales entre apaches, pueblos y
como a soldados de la patria...17
navajos (EBRIGTH, 2006).
A principios del siglo XVIII
Las últimas noticias que ofrece
después de la reconquista los colonos
el expediente corresponden
que habían recuperado la provincia
precisamente al año de 1841, cuando
comenzaron a entrar en el área y
la Suprema Corte mandó que se
recibieron mercedes cerca de las
nombrara un abogado para la defensa
ruinas de estos asentamientos.
de los naturales y el presidente de la
Generalmente las utilizaban para criar
república ordenó se agilizara el proceso
ganado y en lugar de avecindarse
para que se restituyeran al pueblo de
permanentemente las poblaban con
Sandía las tierras de las que había sido
genízaros para que realizaran el
despojado por Vicente Sánchez
trabajo sin pago ni derecho de
Vergara.
propiedad. Las más tempranas de
Como Sandía, Abiquiú es uno de
estas mercedes se otorgaron a
los asentamientos indígenas de Nuevo
españoles ricos como Cristobal Torres
México habitados desde tiempos
(1724) o Bartolomé Trujillo y otros
prehistóricos que fueron abandonados
nueve jefes de familia (1734)
a consecuencia de la rebelión de 1680
(EBRIGTH, 2006). Según Marta Weigle
y refundados después de la
estos últimos llegaron al valle de
reconquista de la provincia en 1696.
Chama en abril de 1735 y
Probablemente entre los genízaros a
construyeron casas y una gran iglesia
quienes se concedió la merced para su
de adobe (WEIGLE, 1975). que se
refundación (1754) había
dedicó a Santa Rosa de Lima y cuya
descendientes de los tewas que
estructura en ruinas aun es utiliza hoy
originalmente ocupaban el pueblo
en día. Por esos años la familia de
antes del alzamiento y que se habían
Miguel Montoya tenía una casa en el
refugiado con los hopis. Uno de sus
pueblo abandonado de Abiquiú y allí
barrios, de hecho, todavía se conoce
vivían al menos 17 indios hopis,
en la actualidad como barrio “de los
sirvientes suyos que hizo bautizar en
moquis” o “moquino,”18 y tanto los
Santa Clara el año de 1743. Tres años
Tewas del Río Grande como los
185
más tarde el padre Menchero visitó la de sus comunidades, entre ellos había
zona y reportó que había 24 familias descendientes de los tlaxcaltecas que
españolas bajo la jurisdicción religiosa habían fundado el barrio de Analco en
del cura del pueblo de San Ildefonso, Santa Fe, sede de gobierno del reino
má al sur, pero en 1747 ante un de Nuevo México, a principios del siglo
ataque conjunto de utes y comanches, XVII. Como parte de esta política de
la mayoría de estos hispanos huyeron poblamiento Vélez Capuchín favoreció
a Chama y Santa Cruz de la Cañada, la formación de asentamientos
dejando atrás a la servidumbre genízaros para que éstos no tuvieran
genízara. Trecehopis de la casa de que vivir como dependientes en las
Montoya seguían en la plaza cuando el poblaciones españolas y, al asumir la
virrey ordenó repoblarla en 1750 y la defensa de sus propios pueblos,
reocupación, de hecho, se hizo según sirvieran como una barrera de
los documentos con siete jefes de protección fronteriza para los
familia españoles y 13 “jenízaros”, asentamientos españoles situados más
quizás se tratara de esos mismos hopis al sur (EBRIGTH, 2006; ROJO, 2008).
según infiere Ebright (EBRIGTH, 2006). Fue en este contexto que 60
Tal vez menos formalizada y familias de genízaros recibieron de
ventajosa que la alianza de los Vélez Capuchín la merced de Santo
tlaxcaltecas en el centro de México dos Tomás Apóstol de Abiquiúen 1754,
siglos atrás, la colaboración más teniendo como centro las ruinas del
circunstancial que los indios pueblos y antiguo pueblo e incluyendo un ejido
los genízaros entablaron con sus de una legua en las cuatro direcciones
vecinos españoles para la defensa de cardinales en concordancia con las
la zona fronteriza –que ellos mismos estipulaciones de las Leyes de Indias.
habitaban– tuvo como resultado una Entre las personas beneficiadas
amalgama étnica de grandes estaban seguramente los hopis
proporciones que se expresa en (moquis) de la casa de la familia
identidades dúctiles. Para algunos Montoya, probables descendientes de
genízaros, esta colaboración abrió la indios tewas como vimos atrás. En las
posibilidad de arraigarse en siguientes décadas la zona siguió
asentamientos propios, pues al asumir atrayendo a pobladores españoles que,
el gobierno de la provincia Tomás como señala Marta Wiegle, se
Vélez Capuchín en 1749, los estragos mezclaron tanto con la población local
causados por las hostilidades deutes, que ésta perdió su apariencia indígena
apaches y comanches en el extremo y desarrolló una nueva cultura híbrida
norte de Nuevo México eran con algunos elementos de todos los
mayúsculos. Para combatirlos fomentó grupos nativos de los que
el asentamiento de indios amigos en la originalmente provenía y muchos de la
periferia, otorgando mercedes a cultura hispánica, tanto que ninguna
grupos mixtos de genízaros e indios lengua indígena se habla en Abiquiú
pueblo de otras zonas desarraigados
186
por lo menos desde mediados del siglo XIX (EBRIGHT, 2006; WEIGLE, 1975).
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RECEBIDO EM 12/12/2015
APROVADO EM: 09/01/2016
190
A AMÉRICA LATINA NO PERÍODO americanos lançou proclamação
1914-1929: ASPECTOS DA VIDA individual de neutralidade;
POLÍTICA, ECONÔMICA E SOCIAL paralelamente, efetuavam-se
tentativas coletivas para se manter
Iraci del Nero da Costa tal posição. Em agosto de 1914, o
Professor Livre-docente aposentado Peru sugeriu que as nações
da FEA-USP americanas elaborassem uma política
idd@terra.com.br comum visando à proteção de seus
interesses comerciais. O Brasil
RESUMO: Esta compilação, baseada desejava, ademais, o
largamente nas obras arroladas nas estabelecimento, em torno da
Referências Bibliográficas, é dirigida, América do Sul, de uma zona neutra,
primordialmente, aos que se iniciam da qual seriam excluídos todos os
nos estudos sobre a história da vasos de guerra.
América Latina. O texto abarca o À época, chegou-se mesmo a
período que se estende de 1914, organizar uma Comissão Especial de
quando teve início a Primeira Grande Neutralidade, formada de nove
Guerra, até 1929, ano que conhece a membros e presidida pelo Secretario
grande crise econômica a qual abalou de Estado dos Estados Unidos.
profundamente a economia mundial. Conquanto tal Comissão tenha
Paravras-chave: História, América funcionado até 1917, suas
Latina, Período 1914-1929. recomendações não se viram
efetivadas. Isto deveu-se, sobretudo,
ABSTRACT: This compilation, largely à posição dos EUA, que encaravam
based on the works described in the com apatia os trabalhos da
Bibliographical References section, is Comissão, pois, cada vez mais,
meant primarily to those who are aproximavam-se dos Aliados (Rússia,
initiating their studies of Latin França e Inglaterra), aos quais
America history. The text covers the também uniram-se a Romênia,
period extending from 1914, when Japão, Portugal, Itália e Grécia.
the First World War begins, until À vista da indiferença dos
1929, with the onset of the great EUA, Argentina, Bolívia, Equador e
economic crisis which deeply shook México tentaram promover uma ação
the world economy. comum dos países latino-americanos
Keywords: History, Latin America, objetivando a salvaguarda da
1914-1929 Period. neutralidade; as três repúblicas sul-
americanas sugeriram a realização de
uma conferência de nações neutras,
1 - A AMÉRICA LATINA E A conclave este que não chegou a
GUERRA MUNDIAL DE 1914 realizar-se. O México, cujas relações
1.1 O Alinhamento Diplomático com os EUA estavam estremecidas,
Em face da deflagração da propôs que os países neutros
Primeira Guerra Mundial, as nações americanos rompessem as relações
latino-americanas procuraram comerciais com os beligerantes.
manter-se neutras. A situação de neutralidade dos
A maioria dos governos países americanos só foi rompida em
191
abril de 1917, quando os EUA No inicio da guerra, os preços
entraram em guerra contra as declinaram e o volume das
Potências Centrais (Alemanha e exportações da América Latina caiu
Áustria-Hungria, às quais aliaram-se rapidamente uma vez que o
a Turquia e a Bulgária). A partir de transporte marítimo encontrava-se
então, em momentos distintos, oito praticamente interrompido. No
nações latino-americanas declararam entanto, as exportações
guerra às Potências Centrais: Brasil, recuperaram-se mais rapidamente do
Costa Rica, Cuba, Guatemala, Haiti, que as importações, de sorte que, de
Honduras, Nicarágua e Panamá. 1915 a 1919, a América Latina
Bolívia, República Dominicana, usufruiu de uma balança comercial
Equador, Peru e Uruguai romperam crescentemente favorável. Em que
relaç5es com a Alemanha. Sete pese a redução da entrada de
governos mantiveram-se neutros: capitais estrangeiros, a produção
Argentina, Chile, Colômbia, México, industrial foi estimulada pelas
Paraguai, El Salvador e Venezuela. restrições que a guerra impôs à
As nações latino-americanas que importação. Esta última que atingiu
declararam guerra às Potências 1.320 milhões de dólares em 1913,
Centrais, ou romperam relações com reduziu-se para 930 milhões entre
elas, fizeram-no por reconhecer a 1914 e 1916; em 1917 chega a
liderança dos EUA e para manter a 1.200 milhões de dólares, alcançando
solidariedade das Américas. A tais 2.800 milhões em 1920 e mantendo-
condicionantes somaram-se os se no nível médio de 2.200 milhões
liames culturais e ideológicos com os entre 1919 e 1929. No caso
Aliados e a alegação de que as especifico do Brasil, para o período
Potências Centrais haviam violado as 1914-18, as importações de bens de
normas básicas do Direito capital foram as que mais
Internacional. declinaram.
As nações latino-americanas, Ao irromper o conflito,
além do fornecimento de matérias- fecharam-se os mercados europeus
primas, pouco se envolveram no para os produtos exportados pelos
conflito armado. No entanto, sua países latino-americanos. As receitas,
posição, em termos de política quase todas derivadas de tarifas
internacional, viu-se reforçada. aduaneiras, sofreram queda
Assim, onze países latino-americanos substancial, e muitos governos
enviaram delegados à conferência de tiveram de recorrer a gastos
paz e assinaram o Tratado de deficitários. A Argentina, visando a
Versalhes; com exceção do México, evitar a extinção de suas reservas de
República Dominicana e Equador, ouro, proibiu a exportação deste
todos os demais filiaram-se metal e suspendeu os pagamentos
imediatamente à Liga das Nações, em dinheiro. No Brasil as exportações
representando cerca de um terço do sofreram queda da ordem de 50% e
número total de seus membros. os preços do café e da borracha
viram-se reduzidos drasticamente.
1.2 O Impacto sobre Exportações Enquanto a Inglaterra não
e Importações rompeu o bloqueio a que esteve
192
submetida no primeiro ano da balança comercial referidos acima
guerra, o comércio internacional viu- evidenciam-se quando são
se profundamente abalado. No considerados os dados relativos aos
entanto, a partir do momento em países sul-americanos. Na tabela1,
que a Inglaterra conseguiu observa-se que as exportações,
restabelecer o domínio dos mares, o depois de declinarem abruptamente,
comércio de exportação voltou recuperaram-se mais rapidamente do
rapidamente a atingir o nível que que as importações, as quais
vigorava antes do início do conflito sofreram queda maior do que as
mundial. exportações; nota-se, ademais, o
Os movimentos das crescente saldo favorável aos países
exportações, importações e da sul-americanos.
Tabela 1
COMÉRCIO EXTERIOR DAS REPÚBLICAS SUL-AMERICANAS
(1913-19, em milhões de dólares)
-------------------------------------------------------------------------------------------
--------------
ANO EXPORTAÇÕES IMPORTAÇÕES
SALDO
-------------------------------------------------------------------------------------------
--------------
1913 1.160 1.020
140
1914 864 654
210
1915 1.177 524
653
1916 1.265 639
626
1917 1.431 899
532
1918 1.724 1.080
644
1919 2.187 1.368
819
-------------------------------------------------------------------------------------------
---------------
Fonte: Bulletin of the Pan-American Union, apud NORMANO, 1944.
1
.3 O Impacto sobre a aos produtores latino-americanos. No
Industrialização entanto, tal estímulo foi limitado pela
Como já afirmamos, a queda própria recuperação do comércio de
brusca do comércio exterior causada importações, que começou a tomar
pela guerra significou um estimulo novas forças já a partir de 1917.
193
Por outro lado, caso 2 - A PRESENÇA DOS EUA
consideremos as características dos 2.1 O Comércio Internacional
bens importados, verificaremos que
os artigos de uso pessoal são os que O comércio com a América
mais rapidamente recuperam os Latina, particularmente com a
níveis vigentes antes do inicio do América do Sul) sempre foi alvo das
conflito, e eram justamente estes disputas entre as nações
bens que haviam começado a ser economicamente mais desenvolvidas.
produzidos em maior escala nos Os Estados Unidos passaram a
países latino-americanos. Deste penetrar nos mercados sul-
modo, à curta duração do período americanos a partir do fim do século
propício para o desenvolvimento da passado. A Alemanha, igualmente,
indústria aliou-se a grande entrada tentava deslocar a Inglaterra e a
de bens de consumo originários dos França, tradicionais fornecedores e
EUA ou da Europa e que, via de clientes da América do Sul.
regra, deslocaram os artigos Antes da guerra de 14, cabia
produzidos nos países latino-ame- à Inglaterra o papel predominante no
ricanos. comércio sul-americano. O conflito
Outro elemento a limitar o mundial, no entanto, acarretou
impulso para a industrialização foi o transformações substanciais. Em
corte, entre 1914 e 1918, das escala mundial pode-se afirmar que
importações de máquinas, matérias- os EUA foram os grandes
primas e combustíveis. Não obstante, beneficiários da guerra travada em
deve-se ressaltar que as próprias território europeu. Na tabela 2 ficam
limitações acima apontadas evidenciadas, para o caso da América
induziram um processo de do Sul, a participação crescente dos
substituição de importações -- tanto EUA e a perda -- em termos
de bens de consumo, como de bens absolutos e relativos -- do Reino
de capital -- muito importante para o Unido. Enquanto o primeiro triplicava
posterior desenvolvimento industrial suas transações com a região, a Grã-
de alguns países latino-americanos. Bretanha via seus negócios
reduzirem-se nessa área.
Tabela 2
COMÉRCIO SUL-AMERICANO COM PAÍSES SELECIONADOS
(1913 e 1928, em milhões de dólares)
-------------------------------------------------------------------------------
PAÍSES 1913 1928
-------------------------------------------------------------------------------
Estados Unidos 364 1.050
Reino Unido 542 487
França 197 276
Alemanha 336 498
--------------------------------------------------------------------------------
Fonte: NORMANO, 1944.
194
Com respeito à América Latina com respeito às nações latino-
como um todo, cabe salientar que, americanas, cabia aos EUA.
em 1927, os EUA adquiriram 35,1%
das exportações totais e venderam 2.2 Os Investimentos
37,7% das importações latino- Os investimentos dos EUA na
americanas; a Grã-Bretanha América Latina também ganharam
participava com 17,0% e 16,6%, terreno, crescendo muito mais
respectivamente, e a Alemanha com rapidamente do que os investimentos
10,0% e 9,7%. Os EUA da Grã-Bretanha, conforme
desenvolveram, pois, uma política demonstrado na tabela 3.
comercial agressiva, comprando Em 1913 havia maior volume
matéria-prima e gêneros alimentícios acumulado de capital britânico, pois
e aumentando as exportações de há muito tempo os britânicos vinham
bens manufaturados. Este processo aplicando recursos na América
foi acompanhado de empréstimos Latina. Ao contrário dos norte-
públicos e privados que permitiram, americanos, cujas aplicações
às exportações norte-americanas, concentravam-se, sobretudo, no
atingir o nível dos seus concorrentes México e em Cuba, os investimentos
europeus e superar largamente as britânicos destinavam-se,
exportações do Reino Unido para a principalmente, para a Argentina,
área em apreço. Evidentemente, a Brasil, Chile, Peru e Uruguai.
Grã-Bretanha continuou a Ademais, embora os britânicos
desempenhar um papel de grande aplicassem quantias menores nos
importância nas relações dos países demais países latino-americanos,
latino-americanos com os países também neles preponderavam em
desenvolvidos; não obstante, já ao face dos investimentos norte-
fim do primeiro quartel do século XX, americanos.
a supremacia econômica e política,
Tabela 3
INVESTIMENTOS DOS EUA E DA GRÃ-BRETANHA NA AMÉRICA LATINA
(Em milhões de dólares)
-------------------------------------------------------------------------------------------
PAÍSES EUA GRÃ-BRETANHA .
1913 1929 Aumento (%) 1913 1929 Aumento (%)
-------------------------------------------------------------------------------------------
América do Sul
Argentina 40 611 1.428 1.860 2.140 15
Bolívia 10 133 1.233 2 12 496
Brasil 50 476 852 1.161 1.413 23
Chile 15 395 2.604 331 389 17
Colômbia 2 260 12.926 34 37 9
Equador 10 25 150 14 22 56
Paraguai 3 15 408 15 18 17
Peru 35 150 331 133 140 5
Uruguai 5 64 1.186 239 217 -9
Venezuela 3 161 5.252 41 92 122
195
Outros Países
Latino-Americanos
Costa Rica 7 35 410 33 27 -17
Guatemala 20 38 91 52 57 10
Honduras 3 12 332 15 25 62
Nicarágua 3 24 700 6 4 -35
El Salvador 3 15 410 11 9 -12
Panamá 5 36 627 -- 7 --
Cuba 220 1.525 593 222 237 7
Haiti 4 30 668 -- -- --
México 800 1.500 93 807 1.034 28
R. Dominicana 4 23 498 -- -- --
Tabela 4
INDICADORES DO INTERCÂMBIO EXTERNO EM PAÍSES SELECIONADOS DA A. L.
(Variação porcentual do quinquênio 1930-34 em relação ao quinquênio 1925-29)
-------------------------------------------------------------------------------------------
------------------
PAÍS Quantum das Termos de Capacidade para
Quantum das
Exportações Intercâmbio Importar Importações
-------------------------------------------------------------------------------------------
------------------
Argentina -8 -20 -27 -32
Brasil +10 -40 -35 -48
Chile -33 -38 -58 -60
México -25 -43 -55 -45
-------------------------------------------------------------------------------------------
Fonte: FURTADO, 1970.
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RECEBIDO EM 12/01/2016
APROVADO EM 07/02/2016
206
CRER SEM SABER: SOBRE O do objeto desta crença? Talvez, no
MODO-DE-PRODUÇÃO RELIGIOSO limite, realmente não se poderia
DA MODERNIDADE separar esses dois atos performativos
do sujeito religioso, entretanto a
Eduardo Quadros proposição de tal questão se funda
Doutor em História/UnB em uma distinção ocorrida na
Professor de História da Universidade modernização sociocultural
Estadual de Goiás relativamente recente. Pode-se
Professor da Pós-graduação em afirmar, até, que o divórcio entre os
Ciências da Religião/PUC-GO dois termos aconteceu de maneira
eduardo.hgs@hotmail.com radical.
Fé e saber estavam
imbricados no mundo da cristandade.
RESUMO: As teorias da modernização
fizeram previsões acerca do fim da
A forte presença e o domínio das
religião nas sociedades ocidentais. Neste instituições religiosas na esfera
artigo, buscamos uma abordagem pública – católicas e protestantes–
diferente, que não defende o fim ou a indica o controle que podiam exercer
volta do sagrado, mas problematizar o tanto na produção quanto na
modo como a modernidade reconfigurou circulação dos saberes. Pode-se
o ato de crer em sua relação com o supor, inclusive, que o saber poderia
saber. Como exemplos deste processo,
gerar o crer e, no sentido inverso, o
identificamos dois fenômenos atuais: o
crer proporcionava uma ordem aos
fundamentalismo e a glossolalia.
Palavras-chave: Modernização; Crer;
saberes legitimados socialmente.
Saber; Subjetividade. O jovem Hegel percebeu, em
1802, que depois do iluminismo as
ABRSTRACT: The theories of coisas estavam diferentes. A inflação
modernization have made predictions do racionalismo havia devorado o
about the end of religion in Western campo da fé, lançando-a para o
societies. In this article, we look for a abismo da subjetividade. Daí toda a
different approach, which we no defend
ênfase no “espírito” em seu
the end or the return of sacred, but
pensamento. “Deus estava morto”,
discuss how modernity reconfigured the
Act of believing in its relationship with
declarou ele no texto fé e
knows. As example of this process, we conhecimento, já que a metafísica
identified two current phenomena: tradicional, advinda da teologia, não
fundamentalism and glossolalia. podia ser mais sustentada
Key-words: Modernization; Believe; racionalmente depois da contundente
Know; Subject. crítica kantiana (GABRIEL, 2011).
Verdade que o caminho que
Deus fez muito bem em esconder-se fora apontado por Kant - um grande
Ou ninguém jamais pensaria nele pietista eunuco (BOTUL, 2004) -
Alfredo Cruz (2014, p.104) resguardou o religioso dentro do
campo da ética. Esse campo será,
A dissociação pode parecer sem dúvida, cultivado de modo
estranha. Como se pode crer em algo relevante no pensamento teológico
que não se conhece? O ato de crer do século XIX europeu. Chegou a
não pressuporia algum conhecimento influenciar as primeiras investigações
207
de sociologia religiosa, dedicada a como correspondência,
medir as práticas dos atores, a recalcando-se a 1
Principalmente em Temor
exemplo do numero de comunhões, artificialidade e a e Tremor, o pensador
frequência às celebrações, parcialidade dos modelos, dinamarquês explora esse
tema. Comentando a
casamentos eclesiásticos, etc. (v.g. hoje, evidente do ponto de
história do “pai da fé”
LE BRAS, 1942). Destacamos aqui, vista das teorias Abraão, ele escreve “que
que esse costume de aproximar o ser epistemológicas. inaudito paradoxo é a fé,
do frequentar era antigo nas igrejas, paradoxo capaz de fazer
de um crime um ato santo
como se vê em inúmeros relatórios A solução hegeliana recai
e agradável a Deus,
de missionários. sobre a subjetividade, na dialética do paradoxo que devolve a
Ainda que se aponte a espírito humano com o absoluto, Abraão o seu filho,
perspicácia da crítica kantiana, na como gostava de escrever. Deste paradoxo que não pode
reduzir-se a nenhum
modernização religiosa o maior peso ponto de vista, um grande crítico do
raciocínio, porque a fé
deve ser dado a outra obra de sua sistema hegeliano como Soren começa precisamente
lavra, àquela que estabelecia “a Kierkegaard propôs uma resposta onde acaba a razão...”
religião dentro dos limites da simples extremamente parecida, pois tanto o (KIERKEGAARD, 1979,
p.140)
razão”. Esse princípio, enunciado no salto de fé transcendendo qualquer
título, limitará ambos os níveis, razão1 quanto a mudança
destacando-se: antikantiana do estádio ético para o
religioso defendia o aspecto subjetivo
a) o crer – deslocado para o como uma fortaleza na qual o divino
além, ou para um estaria resguardado.
“sobrenatural”, cada vez
mais distinto da natureza. O fascínio fundamentalista
As noções clássicas que Nos Estados Unidos da
caracterizaram a América, os caminhos apontados por
religiosidade a partir do esses intelectuais europeus tiveram
totemismo, da vida após um impacto social maior. Era comum
morte, da consideração pensar, umas décadas atrás, que o
dos espíritos anímicos e do mundo caminhava para a
controle primitivo das secularização, para a irrefutável
forças naturais refletem perda de prestígio das instituições
exatamente essa nova religiosas nos espaços públicos,
divisão dos saberes que seguindo o modelo da Europa. Os
fora institucionalizada; Estados Unidos seria uma exceção
b) o saber – identificado nesta teoria da modernização. Hoje,
enquanto nível racional, os pesquisadores reconhecem que a
fruto de manipulações e lógica teórica estava invertida,
esquemas formais tornando-se a laicidade européia uma
construídos pelo próprio exceção em termos globais (VVAA,
raciocínio. Curioso que a 2011).
mentalidade cientificista Isso significa que o modo-de-
predominante tenha por produção religioso da modernidade
pressuposto a consciência- atuou de maneira muito mais forte
espelho, a noção entre os norte-americanos. As vias
aristotélica de verdade apontadas da ética com base em
208
valores religiosos, da racionalização instituições religiosas e com o mundo
da fé e do fideísmo subjetivista foram das crenças. Daí as análises 2
Uma Teoria da Religião foi
vivenciados institucionalmente de abundantes acerca do consumidor constituída a partir destes
pressupostos Cf. (STARK, R.
modo mais intenso. Os conflitos religioso, da lógica do mercado nas
e BAINBRIDGE, W. S.,
internos, ou mesmo teológicos, celebrações ritualísticas ou a ideia de 2008).
tiveram efeitos demarcados que o sujeito atual constrói a
3
“O império não estabelece
publicamente, já que a relação entre religiosidade a seu modo2. O termo
um centro territorial de
o crer, o saber e o agir na cultura chave nestes estudos é o neologismo poder, nem se baseia em
estadunidense constitui uma tradição bricolagem, a composição da vivência fronteiras ou barreiras fixas.
histórica. A esse conjunto, o com o sagrado de modo pragmático e É um aparelho de
descentralização e
sociólogo Robert Bellah (1992) desrespeitando os mecanismos de
desterritorialização do geral
denominou de religião civil controle institucionais. que incorpora gradualmente
americana. O tipo do convertido fora o mundo inteiro dentro de
O sentimento patriótico menos enfatizado. Será por suas fronteiras abertas e
em expansão. O império
naquele país está eivado de símbolos preconceito? Porque não se consegue
administra entidades
religiosos e bíblicos. Uma ver nenhuma novidade nessa hibridas, hierarquias
sociabilidade fora constituída a partir postura? A nosso ver, uma forma de flexíveis e permutas plurais
dessas referencias indentitárias. construção identitária não poderia por meio de estruturas de
comando reguladoras”.
Então, a doutrina assumiu estar separada da outra, pois ambas
(HARDT, M e NEGRI, T,
considerações muito além do que são posições dentro do campo 2010, p.12-13). Lembramos
seria uma declaração institucional ou religioso emergentes nas recentes que nessa passagem para a
a expressão de uma adesão pessoal. tramas da modernização (social), da sociedade de controle, a
“produção biopolítica”
Venceu no meio social a afirmação do globalização (econômica) e da
tornou-se fundamental.
passado idealizado, alçado à utopia ocidentalização (cultural). Para
das origens. Uma ideia de pureza resumir em um só termo, na
sacralizada acabou mesclada com expansão do império.
mitos históricos, sejam os retirados
da bíblia, sejam os que remetem aos O teo-poder
pais fundadores. Com tal conceito, Hardt e
O movimento Negri (2010) buscaram compreender
fundamentalista, irradiado a nova forma de
mundialmente sob o sol da ortodoxia governamentabilidade que se articula
salvacionista, coaduna-se com a atualmente. O termo é antigo, mas
consolidação do império. Destarte, diferente do sistema romano,
pode-se dizer de maneira explicita basicamente tributário, e do
que sob a aparência do imperialismo do século XIX,
conservadorismo e da postura fundamentando em políticas
reacionária, os fundamentalismos são nacionalistas, o império
um produto direto dos meios-de- contemporâneo não possui centro. A
produção da modernidade. primeira consequência é que seria
Quando Daniele Hervieu-Leger mais difuso do que difundido, não
(2008) esculpiu os dois tipos ideais possuindo também limites. Portanto,
do peregrino e do convertido para as esferas do público e do privado se
caracterizar a religiosidade moderna, tornaram totalmente imbricadas na
boa parte das análises ressaltava a passagem da sociedade disciplinar
primeira forma de relação com as para a sociedade do controle3.
209
Os dispositivos de fidelização do imaginário ficaria bastante
foram multiplicados, envolvendo até limitado e o próprio controle que as 4
Não apenas isso. Segundo
o consumo, e isso demarca o grandes corporações tentam exercer os autores, a própria
modernidade “começa com
processo de subjetivação das sobre ele não faria sentido. a descoberta da imanência”
diferenças de maneira ostensiva. É O teo-poder articula quatro (2010,p.89).
nesse sentido que compreendemos a polos, partindo do sujeito-que-se-
5
Ambos os conceitos
expansão fundamentalista, sujeita. Esse é o principal aspecto da
relacionam-se com a
correlacionada aos novos arranjos existência social na modernidade, construção do “dentro” e do
teo-políticos. Paralelamente ao conforme identificou Foucault: a “fora” do corpo, ou seja, a
biopoder, principal forma de domínio formação de sujeitos assujeitados delimitação mútua entre o
eu e a realidade. A
do império que atinge nossos corpos, (FOUCAULT, 2008). Contudo, os
identificação é um processo
defendemos que o teo-poder dispositivos de assujeitamento, na contínuo de ligação afetiva
permanece operando nos interstícios plena ambiguidade do conceito, com um objeto, real ou
da rede imperial (QUADROS, 2009). devem ser contrapostos com a busca imaginário, fruto de
investimentos libidinais que
Neste aspecto, os autores do empoderamento.
circunscrevem as funções
mantiveram certos preconceitos O poder soberano, divino ou psicossomáticas. A projeção
teóricos advindos do materialismo humano, geralmente manifesta-se de aborda o deslocamento
dialético. Eles colocaram a ênfase maneira imbricada na nossa comum perene de conteúdos
sensíveis posicionando o
histórica na transcendência ao lado experiência histórica. A soberania
outro nas fixações
dos movimentos conservadores, demarca os mecanismos psíquicos da narcísicas. Cf. KAUFMANN
como meio de legitimação das ordens projeção e da identificação, (1996).
hierárquicas. Os momentos de estudados pela psicanálise, que, por
ruptura e de crítica estariam sua vez, podem ser mobilizados pelo
baseados na imanência, no desvelar crer e pela vontade de poder. São
das bases materiais do domínio4. Se esses elementos que tecem as
esquecem, entretanto, que a pontes entre os polos, ao despertar o
transcendência tem sido uma intermitente desejo mimético, tão
importante fonte de utopias, de típico do campo do sagrado (GIRARD,
posturas críticas e de resistências 1990). Em grosso modo, teríamos o
criadas pelos subalternos. Sem esquema:
elementos transcendentes, o poder
Poder soberano
(divinos/humanos)
Desejo mimético
Desejo mimético
+ +
- -
Identificação Crer Projeção 5
- - (ser mais)
(demandas) + +
Desejo mimético Desejo mimético
Sujeito a
210
Como escreveu Michel de são extremamente perigosas. Outro
Certeau, a autoridade das problema é quando os próprios 6
Compreendido como um
instituições sustenta-se na cientistas se negam a pensar (ou “fato social total” que
vincula dois personagens
capacidade de produzir credibilidades crer?) no que encontram. Vamos dar
independente da dádiva
(1994, p.278). A interação precisa um exemplo disso com a glossolalia. obter retorno imediato,
acionar dispositivos de renúncia e como defende Alain Caiilé
satisfazer demandas para que a A sinfonia babélica (2002).
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RECEBIDO EM 12/12/2016
APROVADO EM 12/01/2016
214
FACES DE CARIDADE OU DE (2011), Hoornaert (1981) e Mariz (1980),
CONTESTAÇÃO? A LUTA CONTRA e, nos estudos sobre a religiosidade
brasileira do século XIX feitos por Azzi
O DESAMPARO FEMININO NAS (1978) e Ribeiro (1982). Conclui-se que
CASAS DE CARIDADE FUNDADAS atividades como as de cozinhar, costurar,
PELO PADRE IBIAPINA fiar e tecer algodão davam às meninas
uma pequena visibilidade social, possível
abertura para não se tornarem mulheres
Noemia Dayana de Oliveira submissas e dominadas.
Graduanda em História pela Palavras-chave: Peregrino. Educação.
Universidade Federal de Campina Nordeste. Casas de Caridade. Beatas.
Grande ABSTRACT: Ibiapina Father was a XIX
Bolsista de Iniciação Científica century Brazilian Northeast wanderer.
(CNPq/UFCG) Responsible for the foundation of 22
charity houses, he is considered one of
noemia__oliveira@hotmail.com
the most important religious people in
Brazil about the 1800s. His walks through
Dr. José Benjamim Montenegro the northeastern Brazil's interior of
Professor da Universidade Federal de ended up in respect and trust from poor
people who couldn't find starve and
Campina Grande
misery escape making them to bind for
Catholic Church Ideology. After trying to
Resumo: Padre Ibiapina foi um peregrino help society through advocacy and
no Nordeste do século XIX. Responsável politics work, José Antônio Pereira
pela fundação de 22 Casas de Caridade, Ibiapina decided to become priest in the
ele é considerado uma das mais year of 1853, believing that only like this
importantes figuras religiosas no Brasil he could deliver concrete help for his
dos oitocentos. Sua caminhada pelos people. Along with 1860 came the first
ardentes solos sertanejos culminou no charity houses, built to aid helpless
respeito e na confiança dos pobres que orphan, rich or poor girls where they
não encontravam saída da fome e da would be educated following christian
miséria fazendo-os apelar para a ideas. This houses represented a way of
ideologia da Igreja Católica. Depois da integrating women to society, leading
tentativa de ajudar a sociedade através them to marriage, but not leaving them
dos trabalhos de advogado e político, at house obligations and entirely
José Antônio Pereira Ibiapina decidiu dependent of hers husbands commands.
ordenar-se padre no ano de 1853, As it is, our objective in this article is to
acreditando que somente assim ajudaria analyze social side for the women that
seu povo de forma concreta. Em 1860, lived at Charity Houses, searching for
surgiram as primeiras Casas de Caridade, evidence that clarify what were the
construídas para atender a um público de charity and defying virtues. The theoric
meninas órfãs, desvalidas, pobres e ricas, material was based in bibliographic
onde seriam educadas segundo os research about “Padre Ibiapina” from
preceitos cristãos. Essas casas Comblin (2011), Hoornaert (1981) and
representavam uma forma de integrar as Mariz (1980), and, in the brazilian's
mulheres à sociedade, conduzindo-as ao religiosity from XIX century made by Azzi
casamento, mas sem deixá-las à margem (1978) and Ribeiro (1982). It follows that
do convívio familiar e inteiramente cooking, sewing, spinning and weaving
dependentes do comando de seus cotton gave girls a little social visibily,
maridos. Nesse sentido, o nosso objetivo possible openness to not become
neste artigo é analisar o papel social das submissive and dominated women.
mulheres internas nas Casas de Caridade, Key-words: Wanderer. Education.
buscando por indícios que esclareçam Northeast. Charity Houses. Devout
quais eram as suas virtudes de caridade women.
e as de contestação. O aporte teórico
baseou-se nas pesquisas biográficas
sobre Padre Ibiapina feitas por Comblin
215
INTRODUÇÃO cidade do Recife-PE, sabendo o
quanto ele já estava preparado para
Padre José Antônio de Maria o exercício canônico, o bispo
Ibiapina foi um peregrino do concedeu que algumas etapas
Nordeste do Século XIX. Nasceu na fossem preteridas, tomando
fazenda Morro do Jaibara, perto da primeiramente as ordens menores,
cidade de Sobral-CE, a 5 de Agosto logo depois se tornou subdiácono, e,
em 1806. Era filho de casal pobre, uma semana depois fez os exercícios
seu pai era Francisco Miguel Pereira espirituais no Convento da Penha,
Ibiapina, professor primário que foi habilitando-se para celebrar missa, o
morto juntamente com o Padre que ocorreu três dias depois na igreja
Mororó e o Frei Caneca, em 1825, da Madre de Deus, uma homenagem
por causa do seu envolvimento com a prestada à mãe de Jesus, que viria a
revolução republicana da ser inspiração do apóstolo e presente
Confederação do Equador, a qual em seus cultos.
também fez vítima seu irmão mais Ibiapina mantém-se vigário-
velho, morto tragicamente na prisão geral da diocese e professor de
de Fernando de Noronha; e sua mãe eloquência no Seminário de Olinda
era Tereza de Jesus, mulher com por três anos (1953-1956), quando
trajetória pouco mencionada nas começa a descontentar-se com a
biografias do padre mestre. burocracia que estava congênita ao
Teve uma carreira profissional catolicismo tradicional romanizado, e
bastante movimentada, começa a ensaiar suas primeiras
desempenhando funções como as atividades do que viria a ser sua
advogado, juiz de direito, chefe de verdadeira missão: a de lutar pela
polícia, deputado federal, vigário- situação de injustiça que estavam
geral da diocese de Olinda, professor condenados os nordestinos do século
do seminário e, finalmente, em 1860, XIX. A epidemia de cólera que
a de missionário do Nordeste. Em devastou a província da Parahyba vai
seus últimos anos de vida, ficou ser o primeiro ocorrido social que
quase paralisado em sua casa de Ibiapina participará como detentor,
caridade de Santa Fé, perto da sendo o responsável pela construção
cidade de Arara-PB, morrendo em 19 de um cemitério público para
de Fevereiro de 1883. comportar os cadáveres que se
A sua originalidade deu-se espalhavam e contaminavam as
pelo método missionário, a forma de pessoas; pela edificação de inúmeras
pregar, a empatia pela causa do povo casas nas imediações do foco da
nordestino e a quantidade de obras doença, a então cidade de Areia-PB;
que deixou. Ordenou-se padre após e pela fundação da capela de
uma conversa com o amigo Dr. Sant’Ana. A comunidade cresceu e
Américo, enviado pelo bispo de recebeu o nome de Soledade, cidade
Pernambuco, D. João Perdigão, que que permanece com o mesmo nome
já vinha observando a vida culta e dado pelo apóstolo.
dedicada a igreja do cearense. Em 29 Cedo compreendeu que o tom
de julho de 1853, com seus de seu trabalho seria o de pregar a
incompletos 47 anos de idade, na doutrina cristã e promover,
216
concomitantemente, algo socialmente simpáticos ao trabalho do padre
útil aos pobres. Distanciou-se, então, mestre.
das práticas tradicionais da Igreja As 22 casas de caridade foram
Católica do Brasil, as quais estão destinadas a luta contra a fome, a
vinculadas a sua origem lusitana e à miséria e o desamparo feminino,
cultura do povo brasileiro, aspectos de extrema relevância na
aproximou-se do catolicismo popular, empreitada do apóstolo. Essas
que é resultado de uma religiosidade construções começaram a surgir no
voltada para os milagres, as ano de 1860 e vão até 1872,
promessas e os ex-votos, e a busca totalizando 12 anos de peregrinação
pela salvação garantida na devoção de Ibiapina nos ardentes solos
aos santos do que no exercício nordestinos. Essas casas
sacramental. Essa aproximação do representavam uma forma de
povo nordestino com práticas integrar as meninas órfãs a
religiosas voltadas a atos comuns do sociedade, conduzindo-as ao
cotidiano inicia-se na metade do casamento, segundo os preceitos
século XIX como resultado da cristãos. Devido isso, muitas meninas
opressão sofrida pelos sertanejos nas de famílias ricas também buscavam
diversas revoltas ocorridas naquele pela educação das casas de caridade,
período, sobretudo, porque eles uma vez que sua formação se
buscavam um líder que tomasse a diferenciava na região.
frente das suas aspirações pela Nessa perspectiva, o nosso
independência dos poderosos e da objetivo nesse trabalho é o de
fome. analisar o papel social das mulheres
Diante das dificuldades internas nas casas de caridade,
socioeconômicas do Brasil imperial, buscando por indícios que esclareçam
muitos foram os líderes que surgiram quais eram as virtudes de caridade e
com características messiânicas para as de contestação, isto é, a
suprir a carência dos pobres, seja compreensão social de uma parcela
com palavras de esperança, do Nordeste que sofria com a miséria
relacionadas ao evangelho, seja com e com a fome, e, portanto, continha
construções para abrigar os inválidos, em suas personalidades faces que
os órfãos, os idosos. Na fusão dessas comportavam a caridade para com os
duas atividades, o Padre Ibiapina compatriotas e a contestação para
percorreu cinco províncias brasileiras com o governo excludente. As nossas
(Paraíba, Pernambuco, Ceará, Piauí e pesquisas basearam-se nos estudos
Rio Grande do Norte) fundando 22 biográficos sobre o padre Ibiapina,
casas de apoio para abrigar meninas realizados por Comblin (2011),
órfãs e desvalidas, obra máxima de Hoornaert (1981), Mariz (1980) e
sua carreira como apóstolo do Carvalho (1983); e, nas pesquisas
Nordeste, contudo, não foi a única. acerca da religiosidade popular do
Construiu ainda cemitérios, igrejas, século XIX, desenvolvidos por Azzi
hospitais, pequenas indústrias (1978, 1992), Bezerra (2011),
manufatureiras e escolas primárias, Marcílio (1993), Mendonça (1984),
todas por efeito de grandes doações Ribeiro (1982) e Santos (2008)
feitas por homens e mulheres ricos, importantes para absorver o cenário
217
sociocultural que estava inserido o íntima que não poucas vezes é difícil
distinguir o cultural do religioso.
apóstolo do Nordeste. Neste sentido é válido afirmar que o
“Brasil é um país de tradição
católica”, que “o povo brasileiro é
A DIFUSÃO DO CATOLICISMO católico por tradição”, e que temos
POPULAR NO BRASIL DOS “uma tradição cultural católica” (AZZI,
OITOCENTOS 1978, p. 9-10).
219
direção ao interior do nordeste desenvolvidas pelo reinado, que
brasileiro para desenvolver o que tinham o caráter imediatista e
viria a ser a sua maior obra social: temporário. Supreendentemente, os
vinte e duas casas de apoio ao menor cálculos feitos pelo historiador Celso
abandonado. Essa iniciativa Mariz revelam 601.758 quilômetros
aproxima-o do trabalho do jesuíta percorridos pelo líder religioso,
Malagrida no século XVIII, o qual extensão relativa ao tamanho dos
buscou fundar casas que abrigassem estados do Rio Grande do Sul, Santa
meninas carentes, projeto que foi Catarina e Paraná juntos e um total
suprimido e recuperado um século de 7,07% do Brasil, prova
depois pelo apóstolo. confirmativa da sua preocupação com
Empenhado em suas missões os pobres.
populares, Ibiapina desbravou uma Em aproximadamente três
vasta região nacional, na maioria das décadas de trabalho, o missionário
vezes a pé e outras em cima do reconheceu que as riquezas do
lombo de um cavalo, arrastando mundo rural estavam concentradas
muitos adeptos em prol das causas nas mãos de uma minoria, agente da
sociais que assolavam os ardentes marginalização das massas de
solos sertanejos. O panorama população pobre e livre. Seu contato
econômico do Brasil estava amiúde com os sertanejos despertou
consolidado nas lavouras do café a atenção para problemas afincados
localizadas no Sul e no Sudeste do no Brasil desde o período colonial,
país, situação que, de certo modo, como o desamparo das órfãs, a falta
abstinha o Imperador de desenvolver de assistência aos enfermos e o
projetos para regiões Norte e abandono aos recém-nascidos.
Nordeste, regiões onde os produtos Diante disso, alguns historiadores
significativos eram o açúcar e o defendem que a principal causa que
algodão, ambos enfraquecidos na impulsionou o trabalho de Ibiapina
relação do conjunto das exportações. foram as suas experiências com a
Santos (2008) afirma que pobreza e com a orfandade,
circunstâncias que o levariam a
Na segunda metade do século XIX, a batalhar pelas injustiças sofridas
estrutura político- econômica do pelos pobres, efeito gerador do
Estado se modificava
substantivamente e teve como conformismo presente nessa camada
principal evidência o desequilíbrio social.
regional que se dá em prejuízo das
regiões Norte e Nordeste (SANTOS,
A atenção do padre Ibiapina
2008, p. 67). concentrou-se na orfandade feminina
em seus doze anos de trabalho social
Impulsionado pelo descaso do no Nordeste brasileiro, problema
Estado com a realidade nordestina, calcado em dificuldades advindas do
bem como pelas suas experiências machismo integrado ao país desde a
pessoais, Ibiapina construiu chegada dos portugueses, homens
instituições que trouxeram para o que usufruíam sexualmente das
homem pobre a certeza do nativas e não se importavam com o
funcionamento duradouro, que procederia dessa ação.
diferentemente de muitas obras Preocupado com o destino dessas
220
crianças, notadamente as meninas, A ação social desempenhada
ele buscou a resolução em obras por Ibiapina visava amenizar as
voltadas para a caridade, onde se dificuldades que viriam a ser
desenvolveria o trabalho de educa- enfrentadas pelas crianças enjeitadas
las segundo os preceitos cristãos, por suas mães, muitas vezes
além da profissionalização em obrigadas a deixa-las na Roda dos
trabalhos manuais, como a Enjeitados por não possuírem meios
tecelagem do algodão, processo que financeiros de mantê-las. Esse
as levariam ao casamento. Mariz método também foi incrementado
(1980, p. 205-206) avalia que as pelas Santas Casas de Misericórdia,
órfãs “em geral davam boas esposas, garantindo o anonimato da mãe ao
companheiras práticas e sérias a deixar sua cria em um grande
moda cristã e sertaneja daquele cilindro que era instalado no muro da
tempo”. Instituição, girando com a criança até
As casas de caridade ela aparecer no interior da casa. Mais
causaram grande impacto na tarde, isso também foi incorporado
população sertaneja do século XIX, às casas de caridade fundadas pelo
desempenhando um papel apóstolo do Nordeste.
salvacionista para as meninas
desvalidas que supostamente cairiam 4 A LUTA CONTRA O DESAMPARO
na prostituição. Embora essa atitude FEMININO NAS CASAS DE
do apóstolo sinalizasse inovação no CARIDADE FUNDADAS PELO
Nordeste, obra parecida era PADRE IBIAPINA
desenvolvida nas regiões do Sudeste
e do Sul do Brasil, remontando o As primeiras casas de
exercício realizado nas Santas Casas caridade surgiram no ano de 1860,
de Misericórdia atuantes desde o sendo a primeira no interior do Rio
período colonial, pensadas Grande do Norte, mais precisamente
inicialmente para atender aos pobres em Mossoró. Neste ano, o padre
e aos marinheiros e oferecer túmulo Ibiapina compareceu a cidade de
cristão aos abandonados. A Taperoá-PB pregando suas missões e
incorporação de atender as crianças construindo um cemitério, quando
abandonadas veio em seguida, como passou por Mossoró e entrou no
explica Marcílio (1993) estado do Ceará, terminando o ano
em Gravatá-PE. A partir daí, o padre
A assistência a criança abandonada só mestre terá uma vida movimentada
foi incorporada à Instituição bem até o início do ano de 1873,
depois de sua fundação e deveu-se à
greve questão social que passou a momento que ele voltará a Santa Fé-
constituir-se, em Portugal e no Brasil, PB por motivos do seu reumatismo e
o enjeitamento de bebês recém-
nascidos. No Brasil, a incorporação da
da sua asma, doenças que
assistência aos expostos data do início acometeram sua saúde gravemente.
do século XVIII, com o adensamento Ao longo dos doze anos
de populações em torno das duas
grandes cidades portuárias das mais missionários, foram construídas 22
importantes da época: Salvador e Rio casas de caridade entre as províncias
de Janeiro (MARCÍLIO, 1993, p. 152-
153). da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande
do Norte, Ceará e Piauí, todas com a
221
pretensão de receber meninas
abandonadas. Com o tempo, Ibiapina Superiora que cumpria e fazia cumprir
permitiu a presença de filhas de o Estatuto, as Regras e Instruções
determinadas pelo Padre Ibiapina.
donos de terras, desde que Acima da Superiora, encontrava-se a
pagassem uma quantia para Visitadora, que estava sempre atenta
a qualquer deslize ou falha no
receberem a educação cristã ofertada comando das Casas. Contava-se ainda
pelas casas. O padre era taxativo com a ajuda do Conselho Deliberativo
quando estabelecia regras nas casas das Irmãs, da Vice-Superiora e do
Inspetor Geral [...]. Ainda faziam
para que as meninas hospedadas parte a Irmã Secretária, encarregada
fossem tratadas da mesma forma das anotações de ocorrências e atas
das reuniões; a Irmã Zeladora da
que as meninas órfãs, eliminando a Modéstia, que observava e dava conta
preferência das irmãs pelas filhas dos dos Enjeitados; as Irmãs Roupeira e
Cozinheira, que cuidava da
fazendeiros. Essa atitude estendia-se organização da roupa e a
ao estatuto, documento redigido por alimentação, e a Irmã do Coro. Esta
última era encarregada de tocar a
Ibiapina para o êxito no
sineta para o cumprimento dos
funcionamento das casas. horários e pela arrumação a capela.
O sistema implantado para As Irmãs Mestras e Enfermeiras,
dependendo da necessidade, viviam
manutenção econômica de todas as se deslocando de uma Casa a outra
casas de caridade baseava-se “na (NASCIMENTO, 2009, p. 58, grifo
nosso).
ajuda advinda de esmolas, o
recebimento de doações externas e a
venda dos produtos internos Essa organização garantia o
fabricados [...] a venda de animais ensino das pequenas órfãs, a
como galinhas, patos, bodes ou bois produção de materiais
que pertenciam à instituição” manufaturados, o cultivo de alguns
(NASCIMENTO, 2009, p. 57), poucos alimentos, a criação de
incluindo aí também a mensalidade animais domesticados e, em alguns
paga pelas pensionistas. Nos anos de casos, a hospedagem de pessoas
1877 e 1878, tempos da grande seca enfermas, vítimas da condição
do Nordeste, foi preciso recorrer ao precária que se expandia pelo
trabalho dos irmãos de caridade, Nordeste brasileiro.
homens que pertenciam às fundações O desempenho do padre
e abdicavam dos seus interesses Ibiapina em sua obra social consistiu
cotidianos para viverem em função em desenvolver meios para o
da causa defendida por Ibiapina, engajamento dos pobres numa
prestando-se a sair pelo Brasil sociedade que não dava brechas para
angariando donativos, dinheiro e os que eram abastados de poder
animais para o sustento da casa. econômico. De certo modo, a
O funcionamento das casas de transição do trabalho escravista para
caridade se dava por duas comissões, o trabalho livre permitiu a abertura
a interna e a externa. Os membros de setores antes irredutíveis a
da externa eram o capelão, o participação do pobre, precisamente
regente, o tesoureiro e o inspetor a mulher, anunciando uma nova
geral, cargo ocupado geralmente pelo conjuntura econômica que
próprio padre Ibiapina. Na comissão demandava uma reorganização
interna contava-se com a política para o país. Ideais como o da
222
abolição da escravatura e a espiritual com o material, exercício
proclamação da república que estava a favor do homem e não
permeavam os discursos políticos só da alma. Muitas casas viraram
brasileiros no final do século XIX, escolas, hospitais, pensionatos e
propondo a igualdade racial e a outros, sendo preservada unicamente
suspensão do governo centralizado a casa de Santa Fé-PB, onde está
nas mãos do Imperador, cuja enterrado o maior apóstolo do
projeção desencadeou no início do Nordeste.
século XX, ainda com a presença da
desigualdade social entre as classes. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em meio as disparidades
sofridas pelos nordestinos, As mulheres das casas de
circunstanciado pelo panorama caridade fundadas pelo padre
nacional, Ibiapina apegou-se ao Ibiapina participaram timidamente do
trabalho, a educação e a oração, contexto sociopolítico do Brasil no
meios que garantiram o século XIX, em especial se for
distanciamento dos pobres da considerado a predominância
ociosidade e do vício, problemas que patriarcalismo nessa época. O
acometiam as mulheres de forma trabalho realizado nesses espaços
ainda mais severa, por não terem tornou-se o diferencial no modo de
acesso as letras e ao trabalho vida dessas mulheres, visto que as
especializado. A sua luta fomentava- mulheres que se especializavam em
se em instruções para uma vida algum trabalho eram solteiras e
matrimonial ou para uma vida viúvas, e as das casas seriam
religiosa, ambas com pretensões de destinadas ao casamento, portanto,
diminuir os problemas enfrentados não precisariam do trabalho para
pelas populações marginalizadas sobreviver.
socialmente. Compadecendo-se pelo
Embora as mulheres tivessem agravante da orfandade, a missão do
encontrado apoio nas casas de padre Ibiapina foi a de lutar contra o
caridade fundadas pelo padre desamparo vivido por dezenas de
Ibiapina, estas não foram meninas, que eram rejeitadas pelas
suficientemente capazes de manter mães e largadas ao descaso social.
as instituições após a sua morte no As casas de caridade resgataram-nas
ano de 1883, dentre outras coisas, para oferecer uma educação pautada
pelo espírito paternalista absorvido no cristianismo, embora não fossem
pelas irmãs, o que as tornou destinadas aos cargos de beatas,
impossibilitadas de proceder com o mas sim a de boas esposas e boas
trabalho missionário. Isso acelerou a mães. Neste aspecto, inclusive, ainda
decadência das casas, dado que os persistem muitas dúvidas acerca da
bispos reformadores não eram atitude de Ibiapina em destinar
simpáticos as iniciativas autônomas meninas ao casamento e não ao
dos religiosos e pretendiam convento, entretanto, esse estudo
romanizar a Igreja Católica, realizar-se-á em breve.
eliminando qualquer resquício que Devido o ofício aprendido nas
remetesse à prática que conjugasse o casas de caridade, as mulheres
223
“interferiam na economia da sociedade e era sinônimo de uma
sociedade local vendendo nas feiras liberdade que viria a ser fortificada
as mercadorias confeccionadas nas com as conquistas femininas do
pequenas fábricas [...]. E através da século XX. Desse modo, as condições
educação adquirida, também de sobrevivência ofertadas por
puderam se inserir na atividade Ibiapina preparavam as mulheres
especializada de professores de tanto para os fins domésticos, como
primeiras letras” (NASCIMENTO, também para o trabalho, capacidade
2009, p. 88), realidade que as não as relegou a subalternidade.
introduziam timidamente na
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Gilberto Vilar de. O padre Ibiapina, um homem que viveu e morreu
pelo seu povo. In: Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 43, fasc. 169, março de
1983.
NASCIMENTO, Maria Célia Marinho do. Filhas e irmãs do padre Ibiapina: educação
e devoção na Paraíba (1860-1883). 167f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal da Paraíba, 2009.
224
SANTOS, João Marcos Leitão. A ordem social em crise: a inserção do
protestantismo em Pernambuco 1860-1891. 364f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade de São Paulo, 2008.
225